Você está na página 1de 6

Neurocientistas mostram

a luta do cérebro contra


o estresse do isolamento
Pesquisadores argentinos Facundo Manes e Fernando Torrente alertam que a
solidão vem afetando principalmente os mais jovens, e não os idosos, e elegem a
‘resiliência’ como palavra-chave dessa crise
Janaína Figueiredo
20/04/2020 - 04:30 / Atualizado em 20/04/2020 - 10:13

Liberdade. Medidas de isolamento para contenção do vírus reforçam sentimento de


solidão tanto em casa quanto nas ruas vazias das grandes cidades Foto: Agência O
Globo

RIO — A pandemia de Covid-19 representa um gigantesco desafio


não apenas para os médicos na linha de frente, mas também para
profissionais que estão analisando o impacto da crise no cérebro
humano e, em consequência, no comportamento das sociedades.
Há semanas neurocientistas renomados como o argentino
Facundo Manes, fundador do Instituto de Neurociências da
Universidade Favaloro, de Buenos Aires, e presidente honorário
da fundação INECO para pesquisas em neurociências, trabalham
em ritmo frenético para encontrar respostas. Ele acredita que o
mundo subestimou o risco de uma pandemia e hoje enfrenta
mudanças forçadas “que talvez, sem que percebamos, deixarão
marcas em nossas vidas”. Todas as pandemias, ao longo da
História, frisou Manes em entrevista ao GLOBO, “levaram a
grandes alterações sociais”. Uma das palavras de ordem do
momento é “resiliência”.
— Sem dúvidas, a pandemia causará dor e sofrimento. Mas temos
de confiar em que isso vai terminar, como terminou outras vezes,
com o ser humano derrotando o vírus. Tenho certeza que a
investigação científica e a saúde vencerão —assegura o
neurocientista.

Seus livros, entre eles “Usar o cérebro: conhecer nossa mente para
viver melhor”, fazem sucesso em toda a América Latina, e suas
palestras viralizam nas redes sociais. Manes tenta aproximar a
neurociência da população com uma linguagem simples e
esclarecedora. Hoje, seu objetivo é instalar a ideia de que a Covid-
19 deve ser uma oportunidade para que as pessoas se conheçam
melhor.

— No longo prazo, esta crise pode nos ajudar a descobrir nossa


melhor versão de nós mesmos — frisa.

Flexibilidade cognitiva

Ele trabalha com outros grandes nomes da neurociência na


Argentina, entre eles Fernando Torrente, diretor do instituto
fundado por Manes e reitor da faculdade de Ciências da Conduta
da Universidade Favaloro. Ambos são uma referência em matéria
de estudos do cérebro no país e no continente. Hoje, Manes e
Torrente são otimistas, embora reconheçam que a pandemia terá
um custo humano ainda desconhecido. O cérebro, lembraram,
tem diversas ferramentas para lidar com este tipo de situação de
estresse extremo, e uma delas é justamente a resiliência.

— São fatores e mecanismos que nos permitem superar e nos


adaptarmos a situações adversas —explica Torrente. — Temos
sistemas cerebrais de regulação das emoções, entre eles a
habituação.

Essa habituação, esclarece, é “uma propriedade geral de nossas


células nervosas que consiste na acomodação ao entorno para
evitar respostas ociosas. Existem diversos exemplos, como entrar
numa piscina muito fria e, aos poucos, irmos nos acostumando a
essa temperatura”.

— A extinção é outro mecanismo. Ela acontece quando nos


expomos a um estímulo temido e comprovamos, uma e outra vez,
que as consequências negativas esperadas não acontecem e,
assim, o estresse diminui — comenta o diretor do instituto.

Nas últimas semanas, após um primeiro momento de estupor,


ambos acreditam que as pessoas foram se acostumando e se
acomodando. O hábito de lavar as mãos foi incorporado e certas
condutas se tornaram normais num novo entorno. O cérebro, diz
Manes, também tem uma estratégia importantíssima, que é a
reavaliação. Oscilamos entre pensamentos catastróficos do tipo
“morreremos todos” a outros quase irresponsáveis como “nada vai
acontecer”. No processo, nosso raciocínio se encarrega de
reavaliar essas ideias iniciais e chegar a posições mais
equilibradas como “estamos diante de uma ameaça séria e
devemos nos cuidar para permanecer seguros”.

— Temos visto muitas dessas acomodações e mudanças no


pensamento, inclusive em líderes que estão no comando de nossas
sociedades — analisa Manes. — Vimos como reações irracionais
ou exageradas se tornaram visões mais ajustadas e decisões mais
realistas. A aceitação das circunstâncias e a flexibilidade cognitiva
são outras das características que nos tornam mais resilientes.

Situação extrema

O isolamento social, regra básica do manual de combate a


pandemias, foi muito estudado pela neurociência e está provado,
confirmam os especialistas, que “pode causar dano psicológico
significativo e duradouro”. Patologias como ansiedade, depressão,
insônia, estresse e ira são frequentes. Mas esta é uma situação
inédita, argumentam ambos, e requer “um esforço enorme para
estudar o que está acontecendo, ao mesmo tempo em que o
atravessamos”.

— Resultados preliminares obtidos por nossa equipe de


investigação revelam que mais de um terço de uma amostra de
mais de 10 mil pessoas, em nosso país, apresentaram estados
depressivos e ansiosos relevantes nos primeiros dias de
isolamento. O fator mais importante foi a solidão — revela
Torrente.
Ao contrário do que se poderia pensar, a solidão afetou
principalmente aos mais jovens, e não os idosos.

— Também está claro que os setores de menores recursos são mais


impactados, assim como pessoas com doenças de saúde mental
prévias — amplia o diretor da fundação.

Em situações extremas como as que estamos vivendo, explicam


ambos, um mecanismo de alerta é ativado em nosso sistema
cognitivo. Se este alerta se torna permanente, médicos consideram
que a pessoa sofre um quadro de “estresse crônico”. O trabalho de
Dan Gilbert, psicólogo da Universidade de Harvard, nos Estados
Unidos, é usado como base por muitos neurocientistas como
Manes e Torrente. Gilbert refere-se ao cérebro humano como “um
grande simulador de experiências”.

— Quando as ameaças do futuro aparecem, surge a ansiedade —


afirma Manes. — E quando essa ansiedade supera os níveis
normais pode gerar “falsos alarmes”, que podem vir
acompanhados de estados de preocupação intensos e sintomas
físicos leves.

O fato de as pessoas estarem recebendo permanentemente


informações sobre a pandemia, como número de mortos e
infectados, pode se transformar numa desvantagem.
— Temores podem se espalhar e aumentar a circulação de notícias
ruins — diz Torrente.

Os neurocientistas ainda não souberam determinar se os cérebros


das crianças são mais bem preparados do que o dos adultos para
atravessar uma pandemia. As circunstâncias, asseguram, afetam
as pessoas de diferentes maneiras e, no caso das crianças, “é
fundamental o suporte emocional dos adultos, a rotina e um
entorno de pessoas próximas”. Sobre o impacto em homens e
mulheres, ambos acreditam que existem muitos mitos.

— É verdade que estatisticamente é mais provável que as


mulheres sofram episódios de ansiedade e depressão, mas, ao
mesmo tempo, os homens são mais propensos ao consumo de
substâncias ou condutas violentas. Ou seja, devemos ter cautela ao
generalizar — observa Manes.

Você também pode gostar