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Sara Medeirosa
Resumo Abstract
Palavra-Chave Keywords
Habitação, Periferia, Segregação, Gentrificação. Housing, Periphery, Segregation, Gentrification.
a
Geógrafa, doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professora do Departamento de Políticas Públicas da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Norte. Email: x.saramedeiros@gmail.com.
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Toponímia desconhecida.
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O Bairro Potengi recebe o nome do Rio que divide a cidade.
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Diferente de outros conjuntos do mesmo porte, construídos na mesma época, o partido urbanístico do conjunto não é assinado por um arquiteto renomado no
âmbito local.
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A preservação da vegetação foi estabelecida p.5) defende que “não é em qualquer localização
como meta na construção do Soledade II. A pos- que a invasão de terras urbanas é tolerada. Nas
sível sensibilidade ambiental, com preservação áreas valorizadas pelo mercado, a lei se aplica”.
das árvores e presença de praças e áreas verdes, Em Natal, a mesma lógica da irregularidade ou
corresponde à orientação apontada pelo Plano informalidade dos loteamentos propaga-se em
Diretor da cidade (Natal, 1974), que especificava áreas de risco (córregos, áreas propensas a desli-
que “em todo o loteamento, deverão ser reserva- zamento e áreas de proteção ambiental). Essa to-
das, além das vias e logradouros públicos, áreas lerância é, portanto, uma prática permissiva para
livres para espaços verdes e equipamentos urba- áreas desvalorizadas ou inviáveis para o mercado,
nos, com um mínimo de 15 por cento da área to- onde a lei pode ser transgredida. Não se garante o
tal” (Art. 22). A previsão dessas áreas e de outros direito à cidade, mas permite-se o direito à inva-
equipamentos é visualizada no Mapa 1. É interes- são (Maricato, 1999).
sante observar que as áreas para a localização dos Os primeiros anos de ocupação do conjunto
equipamentos estão, em sua maioria, dispostas Soledade foram marcados pelo "abandono" do
na proximidade da linha do comboio, no interior poder público, no que tange à provisão de equi-
do conjunto, viabilizando o seu uso prioritaria- pamentos e serviços. O conjunto em questão fez
mente para os moradores dos conjuntos. parte dos "esquecidos da Zona Norte" (RN-Eco-
Não apenas o Soledade, mas os outros con- nômico, 1989). A ausência, ou precariedade, de
juntos dessa região, também foram dispostos de serviços como educação, coleta de lixo, linha te-
forma fragmentada, pois as suas implantações lefónica e transporte coletivo aparecem como os
regeram-se pela oferta de terras mais baratas mais citados nas reclamações dos moradores.
e disponíveis na época de construção das ha- Conjuntos como o Soledade atraíram uma po-
bitações, “sendo o acesso viário aos conjuntos pulação mais vulnerável e os problemas vivenciados
realizado por eixos perpendiculares à Avenida nos primeiros anos dificultaram a vida dos morado-
Dr. João Medeiros Filho, que força um fluxo do res que dependiam dos serviços públicos e privados,
transporte coletivo tipo ‘serpentina’, gerando um como transporte, saúde, educação e comércio. Não
aumento no tempo da viagem e maior consumo por acaso, esse conjunto perdeu um número signifi-
de combustível” (Silva, 2003, p. 116). O contato cativo da sua população original nos primeiros cinco
do Conjunto Soledade com a Avenida Dr. João anos de ocupação. No entanto, dados do censo de
Medeiros, porém, é mínimo, estando a dinâmica 2010 demonstram que o conjunto Soledade, bem
do conjunto mais relacionada aos logradouros como outros conjuntos do Bairro Potengi, funciona
internos, destacando-se as vias coletoras – as como uma ilha de maiores rendimentos no meio de
avenidas Rio Doce, Serra Negra, Senhor do Bon- uma vasta área com baixo poder aquisitivo. Essa re-
fim, Serra de Araguaia, Feira de Santana, Pico do lação do conjunto com o seu entorno pode ser com-
Cabugi e Atol das Rocas. É interessante observar preendida pela sua origem e história de ocupação, aí
que as toponímias das avenidas e ruas homena- incluída a área adjacente aos conjuntos, por lotea-
geiam em geral formações geomorfológicas: pi- mentos irregulares, com várias ocupações em área
cos, montanhas e praias. de risco. Os dados revelam que os conjuntos pos-
Em termos da sequência cronológica de ocu- suem um rendimento per capita superior, tanto ao
pação da área, o conjunto Soledade foi construí- bairro onde estão inseridos, quanto à média da cida-
do depois do conjunto Igapó (19764) e no mesmo de. Enquanto o rendimento médio per capita de Na-
período que o Panorama I e II (1977 e 1978). Em tal em 2010 foi 510,00 reais, o do Bairro Potengi foi
seguida, foram construídos os conjuntos Panatis 544,00 reais, e o do conjunto Soledade foi 868,00
(1979 a 1981), Santa Catarina (1980) e Santarém reais. É evidente que, em Natal, a não estigmatiza-
(1983). Deles, apenas Igapó não se situa nos limi- ção dos conjuntos como área de pobreza – diferente
tes administrativos do Bairro de Potengi. Na ocu- do que é comum em outras cidades brasileiras – e as
pação da área, destaca-se ainda a presença dos melhorias que neles ocorreram contribuíram para a
loteamentos, a maioria deles sem registro formal, permeabilidade das transformações estruturais e
considerados irregulares e reloteamentos, como socioeconómicas.
refere Silva (2003). O autor foca a sua análise na
irregularidade fundiária nos limites da Avenida
das Fronteiras (ou Avenida Rio Doce – nomen- O Soledade como área central
clatura recebida à altura do conjunto Soledade).
A ocupação das áreas adjacentes aos conjun- Os investimentos públicos, com o provimento
tos por loteamentos irregulares denuncia a di- dos equipamentos coletivos previstos nos Planos
ferença de valorização da terra. Maricato (1999, de Pormenor (Partidos Urbanísticos – no Brasil)
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O conjunto Igapó foi o primeiro a ser conjunto construído nessa região.
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Estão sendo considerados apenas os empreendimentos com maior impacto na reestruturação do ambiente construído e com possibilidade de atribuir novas
dinâmicas sócio-espaciais à área.
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Não foram abordadas as obras da Copa do Mundo FIFA, como o novo Aeroporto Internacional Governador Aluízio Alves, localizado na cidade de São Gonçalo
do Amarante, cujo acesso se dá pela Região Norte.
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A Ponte Newton Navarro figura como um dos principais ícones do planeamento estratégico da cidade de Natal (Silva, 2013).
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O PRONORTE, segundo relatório de Gestão da Secretaria de Planejamento de Natal (2004), foi elaborado para a Região Norte de Natal a partir da concepção de
Projetos Multissetoriais Integrados, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. De acordo com o documento, ele “objetiva a melhoria
das condições de vida da população excluída dos serviços e equipamentos sociais, envolvendo ações de infraestrutura, como obras de saneamento e pavimentação,
e ações voltadas para a geração de trabalho e renda”.
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Recorte utilizado por uma pesquisa mais abrangente que inclui o conjunto Soledade.
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A plotagem dos dados do mapa de uso do solo contou com a colaboração da equipe do Grupo de Estudos Sócio-territoriais Urbanos e de Acção Local (Gestual) da
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, nomeadamente na transposição da planta dos conjuntos do Autocad para o Arcgis e nas sugestões de inserção
dos dados.
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Uso %
Residencial simples 74,0%
Residencial duplex 3,5%
Misto simples 12,0%
Misto duplex 1,1%
Comercial 1,8%
Quitinete horizontal 6,0%
Quitinete vertical 0,8%
Edifício residencial 0,03%
Norte, é uma das barreiras impostas à valoriza- as marcas da segregação impostas nos primeiros
ção do conjunto, dentro do mercado imobiliário anos de ocupação.
natalense. As transformações de uso e ocupação A importância de trabalhar com um recorte
do solo nas casas em Soledade ainda ocorrem temporal que contemple a origem, a ocupação e
associadas a pequenas estratégias familiares, a atualidade de um conjunto habitacional com
principalmente no uso misto da residência, com mais de 38 anos é evidenciada na análise his-
a inclusão de pequenos comércios. A sua exter- tórica e geográfica, que permite compreender o
nalidade é, de início, mais neutra, por ser locali- contexto atual de valorização imobiliária, de uso
zado num bairro com predominância de conjun- e ocupação da área. Essa análise revela, ainda,
tos habitacionais e pelo fato de que, nos últimos o desafio que o poder público enfrenta na quali-
anos, sobretudo a partir de 2000, o conjunto ficação das áreas urbanas (com infraestrutura e
começou a receber maiores incentivos e investi- serviços públicos coletivos, e na atração da inicia-
mentos públicos e privados. Esses investimentos tiva privada), quando, ao atender a demanda da
têm a capacidade de atrair novas dinâmicas para população residente, viabiliza, ao mesmo tempo,
o conjunto e interferem na competição e hierar- formas de valorização e apropriação capitalista –
quização do solo, refletindo-se nos processos de fenómeno promovido pelos próprios moradores,
segregação e gentrificação. que vendem as suas casas para uma população
com maior poder aquisitivo. A periferização e a
segregação são fruto da diferenciação de áreas,
Considerações finais que cria uma contraposição entre as áreas resi-
denciais de pobres e ricos. A gentrificação, por
A lógica capitalista de gestão do espaço cria os sua vez, ocorre, em grande medida, quando uma
ciclos de valorização e desvalorização. São cons- área da cidade é eleita por uma população que
tantes as denúncias em torno do papel do Esta- deseja e pode pagar para usufruir de melhorias
do, cujas ações tácitas, para além de não comba- decorrentes das ações da inciativa pública e/ou
terem esses processos, alimentam-nos, criando privada.
sinergias urbanas em torno das localizações, que
ampliam as divisões e desigualdades e que se
refletem até visualmente no espaço urbano. Por Referências bibliográficas
vezes, os investimentos do Estado numa área
passam a ser apropriados por grupos de maior • Alves, Sónia C. Nunes (2010), O social, o espa-
estatuto social e poder económico. O desenvolvi- cial e o político na pobreza e na exclusão: avaliação
mento geográfico desigual ocorre em diferentes de iniciativas de regeneração de áreas urbanas “em
escalas e está relacionado a diversos processos, risco" na cidade do Porto (Tese de Doutoramento
tais como a segregação e a gentrificação residen- em Sociologia), Lisboa: Universidade de Lisboa.
cial. Essas diferenciações refletem-se em divi- • Araújo, Josélia Carvalho de (2004), Ou-
sões de ordem social e económica. tra Leitura do “Outro Lado”: o espaço da Zona
O caso do conjunto Soledade é ilustrativo Norte em questão (Dissertação de Mestrado em
para demonstrar o processo desigual de produ- Geografia), Natal: Universidade Federal do Rio
ção e apropriação do espaço, assim como das Grande do Norte.
suas benfeitorias. A produção pública de habi- • Bolaffi, Gabriel (1992), “O problema e o fal-
tação para as famílias de menores rendimentos, so problema”, em Ermínia Maricato, A produção
no Brasil, perpetua a prática da periferização. capitalista da casa e da cidade no Brasil, São
Em Natal, os conjuntos habitacionais, mesmo Paulo: MFA-Ômega, pp. 65-85.
os construídos longe das áreas urbanas consoli- • Companhia de Habitação Popular do Rio
dadas, tomaram parte no processo de valoriza- Grande do Norte (COHAB/RN) (1980), Partido
ção imobiliária da cidade. A provisão de equi- Urbanístico do Conjunto Soledade.
pamentos públicos e privados reservaram para • Cunha, Gersonete Sotero (1991), Natal e a
esses espaços residenciais novas dinâmicas de expansão territorial urbana, Natal: EDUFRN.
valorização, atraindo uma população com maio- • Davidson, Mark; Lees, Loretta (2005),
res rendimentos. Os conjuntos antes periféricos “New-build ‘gentrification’ and London's riversi-
passaram a assumir uma centralidade em rela- de renaissance”. Environment and planning A,
ção ao seu entorno. Áreas antes segregadas pas- Vol. 37, n.º 7, pp. 1165-1190.
sam a conviver com o processo de gentrificação. • Gaffney, Mason (1977), “The Synergistic
No entanto, a gentrificação em vigor não ocorre City: Its Potentials, Hindrances and Fulfillment”,
de forma homogénea, convive lado a lado com em Colloquiumon Land Policy, Cambridge: The
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