Você está na página 1de 6

Haroldo de Campos: “O barroco é a literatura das

Américas”
Ed Caliban
Aug 4, 2017 · 7 min read

por Pedro Maciel


Haroldo de Campos é um dos mais polêmicos intelectuais do Brasil. Traduziu
tanto Dante quanto os provençais, Ezra Pound e os poetas russos, entre outros
nomes da literatura. Fazendo a ponte entre modernos e clássicos, ele
desempenhou um papel importante na redescoberta de poetas esquecidos como
Sousândrade e na revalorização de personagens como Oswald de Andrade.
Haroldo é um dos fundadores do Movimento Concretista, juntamente com Décio
Pignatari e Augusto de Campos. Poeta laico não hesitou em enfrentar o desafio de
traduzir o capítulo inicial do Gênesis, texto básico do Judaísmo e do Cristianismo,
Bere’shith. Sem ver contradição entre “sacralidade e poeticidade”, ele estudou
hebraico durante cinco anos para se desincumbir da tarefa.

Como é fazer poesia em um país em que quase ninguém lê?

É aquilo que se poderia chamar: o princípio esperança. Faz-se a poesia em um país em


que a maioria não lê; e não lê por duas razões: porque faltam duas reformas
fundamentais, uma de melhor e mais justa de distribuição de renda e outra agrária,
mas para valer. Quando isso acontecer, sem dúvida, os auditórios aumentarão. E é
esperando esses melhores tempos e semeando para aqueles que hoje podem contribuir
para isso, que alguém faz poesia. A esperança, como dizia Walter Benjamin, existe por
causa dos desesperados.

A poesia é uma espécie de religião natural do homem?

Quando você faz esta pergunta, eu me recordo daquela colocação magnifica… Eu que,
recentemente traduzi trechos da Bíblia Hebraica e muitas vezes me via confrontando
com a pergunta como é que alguém pode, do ponto de vista laico, traduzir uma obra
clássica da religião tanto cristã, quanto hebraica, ou seja, o poeta laico traduzir o texto
religioso. Eu dizia que entre poeticidade e sacralidade não há incompatibilidade e
lembrava o grande poeta alemão, Novalis, que colocava que “a poesia é o único real
absoluto. Quanto mais poético, mais verdadeiro”.

A poesia é a revelação de um mundo sagrado, profano, real, abandonado…

A poesia é a linguagem elevada a sua última potência. O poeta é aquele que é o


configurador por excelência da linguagem, qualquer que seja a sua escola; o poeta
clássico, o poeta romântico, o poeta simbolista ou um poeta de vanguarda, só pode ser
digno do nome de poeta se ele realmente souber manipular a materialidade dos signos,
aquilo que o lingüista Roman Jacobson chamava a função poética. Aquilo que faz com
que a atenção do poeta se volte para a própria linguagem e saiba configurar a sua
mensagem, qualquer que seja o tipo dessa mensagem. Vou dar um exemplo no
romantismo brasileiro. Sousândrade é muito mais importante do que Cassimiro de
Abreu e os dois publicaram as suas obras na mesma época, em torno de 1857.
Sousândrade não era só um poeta romântico, era um designer da linguagem, um
configurador da linguagem, seja no nível fônico, seja no nível sintático. Quando esta
função lingüistica, a função poética da linguagem não é dominada pelo poeta pode
acontecer que ele tenha bons sentimentos, respeitáveis idéias a transmitir, mas não
conseguirá fazê-lo através de um poema.

A poesia é também tudo que poderia ter sido…

Certamente. A poesia é uma saudade, em muitos momentos, daquilo que poderia ter
sido e que não foi, como dizia Manuel Bandeira. Mas ela também, muitas vezes, é uma
previsão do futuro, é o resgate do passado. A poesia trabalha em várias dimensões do
tempo.

Qual a importância da miscigenação na cultura, em geral, e na literatura em


particular?

O Brasil é um país para o qual é fundamental a idéia de mestiçagem. Desde o começo


da civilização. E aqui, é bom lembrar que a nossa literatura começa, por assim dizer,
com um padre canário, das ilhas Canárias, o padre Anchieta, que escrevia em latim,
português, espanhol e tupi-guarani. E um dos nossos grandes poetas barrocos, o
Manoel Botelho de Oliveira, que teve em sua vida um livro publicado, A música do
parnaso, tem poemas em português, latim, espanhol e italiano. Quer dizer, esta
vocação, a par da sua tendência à mestiçagem e ao caldeamento racial, são
características muito importantes que marcam o país não apenas do ponto de vista
sociológico, como também do ponto de vista literário.

A literatura brasileira nasceu no período do Barroco.

Os exemplos são os poetas Gregório de Matos e Manoel Botelho de Oliveira. A nossa


literatura não nasceu como uma criança primitiva. Ela já nasceu falando a língua mais
elaborada da época, que era a língua universal do Barroco que imperava na Itália, na
Alemanha, sob várias formas. O Barroco é exatamente a poesia da proliferação
metafórica, do labirinto ocultista e também da miscegenação. O Gregório de Matos,
como se sabe, escrevia um soneto misturando os termos portugueses, com tupi-guarani
e língua africana. O Barroco, pode-se dizer, é a marca característica da literatura das
Américas.

Você resgatou poetas nacionais, praticamente esquecidos, como Sousândrade e


Gregório de Matos. Como o país pôde esquecer ou marginalizar poetas tão
geniais?
Isso é uma característica constante não só no nosso país, mas na literatura de um modo
geral. Bastaria citar, por exemplo, o caso do grande poeta alemão Hölderlin, que foi
completamente marginalizado na sua época e assim tantos outros. Por exemplo, na fase
do Barroco, os poetas metafísicos ingleses, que foram resgatados por T. S. Eliot, ficaram
muito tempo esquecidos. O próprio Gôngora foi considerado o anjo mau da literatura
espanhola. A sua obra foi reativada e ele foi redescoberto, com a geração de Garcia
Lorca. O Sousândrade tem um texto muito lindo onde ele diz: “Disseram que o Guesa só
seria lido 50 anos depois”. O Guesa é o nome do poema de Sousândrade e ele próprio
comenta: “entristeci, decepção de quem escreve 50 anos antes”. De modo que esse é o
processo da dialética da recepção. Há muitos casos da recepção de um poeta escapar da
audibilidade de um tempo. O caso do Oswald é diferente, ele ficou completamente
marginalizado até ser reposto em circulação nos anos 60.

O Oswald foi marginalizado por sua opção política, ou por que o país desconhecia
a sua poesia?

O Oswald tinha uma coisa um pouco irônica, um pouco amarga sobre o Brasil. Ele diz
que o Brasil padece de “incompetência cósmica”. Mas não foi pôr esta incompetência
cósmica que ele foi marginalizado. É claro que a opção política dele contribuiu muito
porque já nos anos 30 ele fez uma opção pelo Partido Comunista e lá ficou com a Pagu,
só saindo do partido nos anos 50 fazendo uma crítica severa ao stalinismo na tese A
crise da filosofia messiânica, em que ele criticava todos os autoritarismos. Mas, por
outro lado, não podemos esquecer que o Oswald foi um tremendo polemista. Ele, às
vezes, preferia perder um amigo, mas fazer uma boa piada. Embora ele tivesse
pessoalmente um comportamento muito civilizado. Ele não era uma pessoa de guardar
rancor, polemizava violentamente com um escritor e depois simplesmente esquecia,
entregava aos céus e fazia as pazes. Foi o caso, por exemplo, de Tristão de Athaíde. Ele
foi muito atacado por Oswald, na época em que Tristão era simpatizante do
integralismo; depois, no final da vida de Oswald, Tristão fez uma visita a ele e se
reconciliaram. Agora, sem dúvida, muitas pessoas atingidas pela mordacidade e pela
virulenta polêmica de Oswald fizeram o possível para que ele fosse esquecido.

Você traduziu trechos bíblicos, a cena da origem, com o título Bere’shith. Qual a
sua versão da cena da origem?

Eu traduzi, de fato, a primeira história da criação, que é o capítulo inicial do Gênesis,


da Bíblia Hebraica. Estudei hebraico por cinco anos, para este fim. Traduzi os quatro
primeiros versículos, do segundo capítulo do Gênesis e, além disto, traduzi um capítulo
do Livro de Jó, que é o capítulo 38, onde tem a resposta de Deus a Jó e que só pode ser
definida como poesia sublime. Antes eu havia publicado, dois anos atrás, um outro
livro que é a tradução total do Eclesiastes ou Qohélet, que significa aquele que sabe, o
sabedor. Este livro, consta de 12 capítulos e eu o traduzi na íntegra.

Haroldo, diz um um pequeno trecho do Bere’shith…

Pois não, vou dizer um pequeno trecho do Bere’shith que significa “no começar, no
começo”. E dá uma explicação de como eu fiz a tradução para o português. Vou citar o
primeiro versículo da Bíblia Hebraica, do Gênesis ou Thorá, que diz assim em hebraico:
“No começar/ Deus criando / O fogoágua/ e a terra”. As pessoas acostumadas na
tradução que diz “ Deus criou o céu e a terra” ficarão surpresas em esse meu
“fogoágua”. A palavra em hebraico é shamáyim. Segundo o mais importante dos
intérpretes hermeneutas do texto bíblico hebraico, Rashi de Troyes, ela é composta de
duas palavras: esh e máyim, ou seja fogo e água. Achei que essa metáfora
extraordinária, embutida na palavra que é abstrata, deveria ser resgatada em sua
concretude e traduzida para fogoágua.

Você é um descendente espiritual da tríade de poetas, formada por Ezra Pound,


Oswald de Andrade e Mallarmé?

Eu me sentiria honrado se fosse. Desejaria sê-lo, mas esta é a sua opinião. Fico muito
contente que você tenha lembrado esta tríade que realmente é extraordinária na minha
admiração. O meu livro Galáxias é uma espécie de poema, fica entre a prosa e a poesia,
ao invés de ser narrativo, ele é visionário. Diz respeito à visão. E, de fato, entre as
influências que me ajudaram na composição deste trabalho estariam desde James
Joyce até Oswald de Andrade. A prosa dos dois foi muito importante, como foram
importantes as estruturas narrativas de Ezra Pound.

Entrevista/Haroldo de Campos . Jornal do Brasil, caderno “Idéias”, 07/07/95

. . .

Pedro Maciel é autor dos romances “A noite de um iluminado”, (ed. Iluminuras 2016),
“Previsões de um cego”, (ed. LeYa 2011), “Retornar com os pássaros”, (ed. LeYa 2010),
“Como deixei de ser Deus”, (ed. Topbooks 2009) e “A hora dos Náufragos”, (ed.
Bertrand Brasil 2006)
Poesia Ensaio Entrevista Haroldo De Campos Poesia Brasileira

About Help Legal

Você também pode gostar