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Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura

Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128


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QUARTO DE DESPEJO: RECEPÇÃO DA OBRA DE CAROLINA DE JESUS

Edilene Silva Bahia Souza (mestranda/UEFS-NECLIF)

Trata-se da análise da “recepção”, no Brasil e no exterior, tomando-se como

referência a obra de Carolina Maria de Jesus – “Quarto de Despejo Diário de uma

Favelada”. Esse estudo pretende possibilitar um melhor entendimento dessa questão. A

partir da emergência dos Estudos Culturais, produções literárias alcançaram um maior

reconhecimento dentro e fora de seu lugar de publicação.

O livro “Quarto de Despejo Diário de uma Favelada” é uma obra na qual a autora

relata suas vivências. Na narrativa destaca-se: a fome, a miséria, abusos, e preconceitos

sofridos por ela, seus filhos e outros favelados. Apesar de Carolina Maria de Jesus1, não ter

formação acadêmica, apenas havia estudado até a segunda série primária, fato que é

notório na escrita, já que esta apresentava erros ortográficos, sintáticos e de pontuação,

essa condição de semi-analfabeta não foi obstáculo para que o seu livro Quarto de Despejo

fosse publicado pela primeira vez no ano de 1960 e tivesse grande repercussão.

Após o lançamento da 1ª edição do livro, já na primeira semana foram vendidos dez

mil exemplares. Em seguida, a livraria Francisco Alves - São Paulo - mandou imprimir mais

noventa mil exemplares que em menos de seis meses superou a vendagem do então

recordista, Jorge Amado. Nos cinco anos subseqüentes, Quarto de Despejo foi traduzido

para 14 idiomas, traduções que alcançaram mais de 40 países: Dinamarca, Holanda,

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Carolina Maria de Jesus nasceu no interior de Minas Gerais em 1914. Na década de 30, mudou-se
para São Paulo foi morar na favela Canindé. Descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, repórter da
Folha da Noite. Publicou os livros: Quarto de Despejo Diário de uma Favelada, Casa de Alvenaria,
Diário de uma ex-favelada, Pedaços da Fome e Provérbios. Carolina faleceu em São Paulo em 1977.
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Argentina, França, Alemanha, Suécia, Itália, passando pela Tchecoslováquia, Romênia,

Inglaterra, EUA e outros2.

O livro “Quarto de Despejo Diário de uma favelada”, rompe com critérios tradicionais

da produção literária brasileira, na medida em que, a autora sendo uma mulher negra,

favelada e analfabeta fugia dos padrões ou estereótipos das escritoras que atuavam no

mercado nacional, num momento em que a produção literária era difícil para as mulheres

em geral. Na narrativa está presente o sofrimento provocado pela má qualidade de vida na

favela, mas destaca-se a sensibilidade da autora:

Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de


ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de
brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de
todas as qualidades (...). É preciso criar este ambiente de fantasia, para
esquecer que estou na favela. (Jesus, 1993, p.52).

Dessa forma, o sucesso e importância do livro, provocou vários debates nacionais e

internacionais em torno de questões sociais, políticas e econômicas. Em virtude dessa

aceitação e divulgação, justifica-se estudar a sua recepção no Brasil e fora dele,

especificamente em países lusófonos.

Antes de iniciarmos esta reflexão sobre abordagem teórica nos estudos da recepção,

convém esclarecer o uso desse conceito que só foi possível a partir dos estudos culturais,

que permitiram um outro olhar, abrindo novas possibilidades para novas discussões e,

assim, pesquisadores começaram a questionar seus objetos de estudos a partir de novos

modelos teóricos que surgiram em meados do século XX. Nessa abordagem, teóricos que

se debruçaram sobre o conceito da recepção como Hans Robert Jauss, Roger Chartier e

Paul Zumthor, o texto é visto não como um documento biográfico ou histórico, ou simples

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MEIHY, J. C. S. B & Levine, R. M. Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de
Janeiro: UFRJ. 1994.
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soma de influências exercidas sobre ele, mas como obra de arte sujeita e submetida às

suas próprias estéticas.

Hans Robert Jauss3 traz contribuição teórica para os estudos de recepção, com a

proposta de ir mais além do estudo das condições de produção da obra e do autor,

propondo um diálogo entre a obra e o público. Assim também Chartier, em sua reflexão

teórica inovadora cria condições para que se estabeleça uma nova postura nos estudos da

história cultural e estimula a permanente renovação nas formas de ler e fazer história, diante

dos métodos, das fontes e dos temas estudados4.

Sem dúvida, a obra de Carolina de Jesus alterou a situação do mercado do livro. Em

meados do século XX, mais precisamente em 1960 seu livro bateu recorde de venda, tendo

sido editado oito vezes no mesmo ano. Em menos de doze meses, mais de setenta mil

exemplares foram vendidos. Zumthor5, em seus estudos, privilegia o ponto de vista do leitor,

perpassando por diversos momentos históricos, criando alternativas e outras reflexões, para

o olhar literário, discutindo o oral e o escrito. Dessa forma, o leitor rompe horizontes e

despe-se de preconceitos literários. Essa foi possivelmente a atitude assumida pelos leitores

de Carolina de Jesus.

Apesar de ser quase analfabeta, a escritora demonstrava muita consciência de seu

papel de cidadã quando anotava.

Quando fui catar papel encontrei um preto. Estava sujo que dava pena (...).
O seu olhar era um olhar angustiado como se olhasse o mundo com
desprezo. Indigno para um ser humano. (...) Não estava embriagado, mas
vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de fome! (JESUS, 1960, p.
48).

3
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. Tradução Sergio Tellaroli. São Paulo:
Editora Ática. 1994. (PP 55 – 56 – 57 – 58)
4
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
5
ZUMTHOR, Paul. Performance recepção leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC,
2000.
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As considerações teóricas dialogam ainda com as relações biográficas, sob a

mediação de Elizeu Clementino de Souza, Maria Helena Mema6 e Raimunda Bedasee7.

Nesse sentido aspectos da obra biografada permite uma abordagem que contempla a

construção de uma história de vida. Ao significado que os sujeitos imprimem às suas

vivências, adicionando-se discussões que se inserem no campo dos estudos de gênero,

problematizando-o, tendo em vista as transformações que ocorreram ao longo do tempo,

numa história quase que exclusivamente masculina.

Carolina demonstra muita inquietação por ter a consciência alerta para a condição

da mulher. Como consequência ela não se vê dentro dos padrões constituídos, ou seja, não

tem os mesmos comportamentos que as mulheres da favela:

...E elas têm que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. À noite
enquanto elas pedem socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço
valças vienenses. Enquanto os esposos quebram as tabuas do barracão eu
e meus filhos dormiram sossegados. Não invejo as mulheres casadas da
favela que levam vida de escravas indianas... (Jesus, 1993, p.14)

As abordagens teóricas continuaram sob o olhar de Meihy8, historiador paulista,

introdutor da moderna história oral no Brasil e Levine9, grandes estudiosos da obra de

Carolina Maria de Jesus, este último, Levine, professor norte-americano, cientista social, há

muitos anos utiliza os escritos de Carolina em suas aulas, para entender e problematizar a

América Latina. Durante os anos 60, em virtude da influência da teoria desenvolvimentista10,

procurou compreender a história política e ideológica do Brasil, influenciado por nossa

6
Favorece reflexões oriundas de pesquisas, que contemplam a consideração da vida humana e suas
construções bem como configurações dos relatos de experiências individuais e coletivas.
7
Organizam-se dados onde protagonistas das biografias e autobiografias deixam marcas perenes no universo
literário.
8
MEIHY, J. C. S. B & Levine, R. M. Cinderela Negra . Op cit. Estudioso da percepção das clivagens entre ficção
e realidade e das múltiplas possibilidades de interpretação.
9
Id idem
10
Teoria desenvolvimentista política econômica baseada na meta de crescimento da produção industrial.
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historiografia. Já Meihy desenvolve trabalhos que são considerados fundamentais para

estabelecer elos entre a narrativa acadêmica e o público em geral.

Nos anos 90 esses dois professores universitários ajudaram a redescobrir essa

autora, com a publicação de Cinderela Negra a Saga de Carolina Maria de Jesus. Em 1995,

organizaram e publicaram Meu Estranho Diário (Trechos inéditos dos diários de Carolina

Maria de Jesus).

Ser negra num mundo dominado por brancos, ser mulher num espaço
regido por homens, não conseguir fixar-se como pessoa de posses num
território em que administrar o dinheiro é mais difícil do que ganhá-lo,
publicar livros num ambiente intelectual de modelo refinado, tudo isto
reunido fez da experiência de Carolina um turbilhão (Meihy & Levine, 1994,
p.63).

No Brasil, pesquisas como (Magna-Bosco, 2002; Perpétua, 2000; Sousa, 2004),

apontam que a autora é pouco conhecida, tanto nas universidades brasileiras quanto por

leitores convencionais. A sua popularidade diminuiu principalmente a partir do livro Casa de

Alvenaria, publicado em 1961, um livro que trata de depoimentos do seu cotidiano em sua

temporada de ascensão social e que não fez sucesso. Iniciou-se, assim, um processo de

ostracismo da autora quando comparada a autores como Jorge Amado, Clarice Lispector e

outros.

Sua obra foi adaptada para teatro, rádio, televisão e cinema, sempre com grande

sucesso. Até hoje, apesar de não ser muito conhecida em seu próprio país de origem, é a

escritora brasileira mais publicada no exterior, em particular nos Estados Unidos, sendo

superada apenas por Paulo Coelho.

Apesar de seu nome ter sido progressivamente esquecido no Brasil, Carolina Maria

de Jesus se mantém como leitura obrigatória em centenas de salas de faculdades e

universidades no Canadá e nos Estados Unidos. Para o professor Robert M. Levine, um dos
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maiores conhecedores da obra da autora, os críticos brasileiros perdem tempo discutindo se

os diários de Carolina limitam-se a ser um documento histórico ou se devem ser

reconhecidos como literatura, assim ele11 faz a seguinte afirmação: “Isto pode ou não ser

verdade. Mas ignorar a importância de Carolina desta maneira diminui seu valor e despreza

seu legado como uma grande figura da cultura brasileira do século 20”.

Passados 50 anos da descoberta da autora e 48 da publicação de Quarto de

Despejo, Carolina Maria de Jesus continua sendo uma das maiores indagações sobre a

sociedade brasileira. À parte sua pouca instrução formal, sua narrativa pessoal densamente

elaborada enfatizou de maneira única a imperceptível a vida dos brasileiros menos

privilegiados, em sua maioria negros. Suas descrições da vida na favela não romantizam a

pobreza, mas a despedaça como um machado. E contém uma fúria intensa e constante,

direcionada a uma sociedade corrupta que ignora os pobres, sentenciando-os a uma vida

sem esperança. (Perpétua, 2000).

Portanto acredita-se que seja pertinente a verificação da obra sobre os impactos de

sua percepção. Uma vez que a constatação dessa lacuna ainda que muito superficial se dá

pela pouca divulgação da obra em ambientes acadêmicos e convencionais, percebe-se no

Brasil o descaso por essa importante produção. Enquanto que em outros países, grupos de

estudantes e pesquisadores estrangeiros buscam incansavelmente informações dos escritos

da vida e obra de Carolina de Jesus.

A presente pesquisa, apenas iniciada, se complementará com análises e consultas

em fontes primárias e secundárias como: jornais, revistas, artigos, livros, material publicado

na imprensa e material da internet. Ao propormos uma análise sobre a recepção da obra de

Carolina de Jesus no Brasil e no exterior busca-se preencher lacunas e compartilhar

11
Supra em entrevista dada ao jornal Correio Popular matéria publicada na edição de 13.04.2008.
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reflexões visando colaborar com o resgate de uma obra que foi negligenciada por

pesquisadores brasileiros, embora continue a intrigar a crítica estrangeira.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA

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gênero no Brasil contemporâneo. In: SAFFIOTI, H. & MUNHOZ-VARGAS, M. (Org.). Mulher
brasileira é assim. Rio de Janeiro/Brasília, Rosa dos Tempos/UNICEF, 1994, p. 187-188.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria


Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária.


Tradução Sergio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática. 1994.

JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora
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Rio de Janeiro: UFRJ. 1994.

MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos,
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PERPÉTUA, E. D. (2000). Traços de Carolina Maria de Jesus: gênese, tradução e


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Doutorado em Literatura Comparada, Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais. Belo Horizonte, MG. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822006000200014. Acesso
em 03 abril de 2010.

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ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e historia da literatura. São Paulo: Ática,


1989. (Fundamentos; 41).

ZUMTHOR, Paul. Performance recepção leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.

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