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Revista Brasileira de

NUTRIÇÃO
FUNCIONAL
Brazilian Journal of Functional Nutrition

ISSN 2176-4522
ano 20. edição 81
www.vponline.com.br

RECEITA
Alimentos Fermentados e
Saúde: Como Fazer Kefir

Crononutrição & Saúde

Microbiota
e preferências alimentares: qual a relação?

Escute o solo, as raízes e ouças os


ventos de Primavesi
Editorial

Dra. Valéria Paschoal


Diretora da VP Centro de Nutrição Funcional

Nesta primeira edição do ano, a Revista Brasileira de Nutrição Funcional


traz, além de atualizações científicas relevantes para a prática clínica, algumas
novidades para tornar a experiência de nossos leitores mais interativa, com vídeos
complementares ao conteúdo escrito dos artigos científicos, matéria jornalística
e seção de gastronomia. Alguns artigos ainda trarão exemplos de casos clínicos,
aliando a teoria à prática.

O conteúdo científico desta edição contará com revisões sobre o papel dos
alimentos nas doenças neurodegenerativas, abordando de forma objetiva e prática os
principais alimentos investigados em pesquisas clínicas recentes, e sobre os conceitos
e a importância da crononutrição na saúde humana, elucidando os principais fatores
a serem considerados na conduta dietética no que se refere aos aspectos temporais da
alimentação.

Complementando o conteúdo de nutrição clínica, serão abordadas atualizações importantes


sobre microbiota e preferências alimentares e modulação nutricional no transtorno do espectro
autista, ambos artigos tratando de aspectos teóricos e práticos, com exemplos de estudos de caso que
enriquecerão o entendimento sobre as respectivas temáticas.

Na área de nutrição esportiva, um artigo sobre os efeitos fisiológicos de ultraendurance ampliará


os conceitos sobre exercícios físicos prolongados, trazendo um estudo de caso de uma atleta com
estratégias periodizadas de nutrição e suplementação.

A matéria desta edição traz aspectos importantes sobre a vida e obra de Ana Primavesi, agrônoma
e autora de valiosas obras de referência em agroecologia e estudos do solo, como principal agente
propagador da vitalidade no meio ambiente. Ainda, apresenta um vídeo com um modelo de agricultura
regenerativa no Sítio Eco Recanto Lótus.

Para finalizar, nossa seção de gastronomia traz um vídeo com o passo a passo para você aprender
como fazer adequadamente o Kefir, uma estratégia prática e acessível para inserir probióticos no
planejamento alimentar.

Boa leitura!
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

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Revista Brasileira de Nutrição Funcional - 2020 - edição 81


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Indexação: Sumários (www.sumarios.org) e ESALQ (http://dibd.esalq.usp.br)


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Diretora Responsável Redação, Publicidade e Administração
Valéria Paschoal VP Centro de Nutrição Funcional
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Coordenação Científica Yu Mei - contato@vponline.com.br
Neiva dos Santos Souza Fone / Fax: (11)3582-5600
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Jornalista Responsável Revista Brasileira de Nutrição Funcional


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Capa, Ilustrações e Editoração autorização prévia.
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Coordenação e Autores

Conselho Editorial
Ana Cláudia Poletto
Nutricionista pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2002) e mestre em Ciências, com ênfase em Fisiologia
Humana pela Universidade de São Paulo (2006). Pesquisadora (doutoranda, desde 2007) do programa de Fisiologia
Humana da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Fisiologia Endócrina, atuando nos temas:
mecanismos transcricionais envolvidos na regulação da expressão do gene SLC2A4, sensibilidade à insulina,
metabolismo lipídico, obesidade e diabetes mellitus.

Ana Vládia Bandeira Moreira


Nutricionista graduada pela Universidade Estadual do Ceará (1996), mestre em Ciências dos Alimentos pela
Universidade de São Paulo (1999) e doutora em Ciências dos Alimentos pela Universidade de São Paulo (2003).
Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Viçosa (MG). Coordenadora do Laboratório de Análise
de alimentos e coordenadora do Projeto de extensão pró-celíaco. Ministra as disciplinas de Técnica Dietética na
Graduação e Dietética Aplicada no Mestrado e Doutorado e Gastronomia Funcional na especialização na UFV.

Anna Cecília Queiroz de Medeiros


Nutricionista pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Experiência na área
de Nutrição, com ênfase em Nutrição e metabolismo de nutrientes nos diversos estados fisiológicos.
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Fátima Aparecida Arantes Sardinha


Nutricionista. Doutora em Ciência dos Alimentos pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USP. Mestre em
Ciências Aplicadas à Pediatria pela UNIFESP/EPM. Especialista em Nutrição e Saúde Pública pela UNIFESP/EPM.
Docente convidada do curso de pós-graduação em Nutrição Clínica Funcional da VP Centro de Nutrição Funcional
em parceria com a Universidade Cruzeiro do Sul.

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Coordenação e Autores

Fernanda Serpa
Diretora e Docente da Empresa Nutconsult. Nutricionista pela Universidade do Estado do RJ/UERJ. Título de
residência em Clínica Médica no Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ. Pós-graduada em Nutrição Clínica
Funcional da VP Centro de Nutrição Funcional em parceria com a Universidade Cruzeiro do Sul. Docente convidada
dos cursos de pós-graduação e extensão da VP Centro de Nutrição Funcional em parceria com a Universidade
Cruzeiro do Sul. Mestre em Clínica Médica - IPPMG/UFRJ. Nutricionista Militar do Corpo de Bombeiros do RJ.
Nutricionista Municipal do Hospital Souza Aguiar.

Gilberti Hübscher
Nutricionista. Mestre e Doutora em Fisiologia Cardiovascular pela UFRGS. Especialista em Gestão e Saúde pela
PUC-RS, Gestão em UAN pela UNISINOS e em Saúde da Família pela ULBRA (RS). Docente convidada dos cursos de
pós-graduação em Nutrição Clínica Funcional da VP Centro de Nutrição Funcional em parceria com a Universidade
Cruzeiro do Sul e dos cursos de graduação em Nutrição e pós-graduação em Saúde e Trabalho da Feevale (RS).
Membro do Instituto Brasileiro de Nutrição Funcional (IBNF).

Márcia Cristina Paiva


Nutricionista, graduada na Universidade de Passo Fundo - RS. Pós-graduada em Nutrição Clínica Funcional e pós-
graduanda em Fitoterapia Funcional da VP Centro de Nutrição Funcional em parceria com a Universidade Cruzeiro
do Sul. Educadora em diabetes certificada pela empresa Medtronic Brasil de equipamentos médicos (Bombas de
infusão de insulina). Atua em atendimento clínico em clínica de gastroenterologia em São José dos Campos - SP.

Renata Alves Carnauba


Nutricionista graduada pelo Centro Universitário São Camilo. Doutoranda em Ciências dos Alimentos pela
Universidade de São Paulo. Especialista em Revisão Sistemática e Meta-Análise pela Universidade de São Paulo.
Pós-graduada em Nutrição Clínica Funcional e pós- graduada em Genômica Nutricional pela Unicsul em parceria com
a VP Centro de Nutrição Funcional. Nutricionista do Departamento Científico da VP Centro de Nutrição Funcional.

Rosangela Passos de Jesus


Professora Adjunta da Escola de Nutrição da UFBA (ENUFBA). Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de
Medicina da USP. Mestre em Nutrição pela Universidade Federal de São Paulo. Especialista em Nutrição Clínica
Funcional, coordenadora do Ambulatório de Nutrição e Hepatologia do Hospital Universitário Prof Edgard Santos.

Sandra Matsudo
Médica Especializada em Medicina Esportiva pela Escola Paulista de Medicina - UNIFESP. Doutorado e pós-doutorado
em Ciências pela Escola Paulista de Medicina - UNIFESP. Diretora Geral do Centro de Estudos do Laboratório de
Aptidão Física de São Caetano do Sul - CELAFISCS. Coordenadora geral do Projeto Longitudinal de Envelhecimento e
Aptidão Física de São Caetano do Sul. Coordenadora pela IUHPE dos Cursos de Atividade Física e Saúde Pública - Agita
Mundo. Professora Titular do Curso de Educação Física do Centro Universitário FMU. Editora Executiva da Revista
Brasileira de Ciência e Movimento. Autora dos Livros: “Avaliação do Idoso - Física e Funcional”, “Envelhecimento
e Atividade Física” e “Obesidade e Atividade Física”.

Valéria Paschoal
Nutricionista. Mestre na área de Nutrição e Pediatria pela UNIFESP – EPM. Editora Científica da Revista Brasileira
de Nutrição Funcional. Coordenadora científica e docente convidada dos cursos de Nutrição Clínica Funcional e
Nutrição Esportiva Funcional da VP Centro de Nutrição Funcional em parceria com a Universidade Cruzeiro do
Sul. Diretora da VP Centro de Nutrição Funcional. Autora dos Livros “Nutrição Clínica Funcional: dos Princípios à
Prática Clínica”, “Suplementação Funcional Magistral: dos Nutrientes aos Compostos Bioativos”, “Nutrição Clínica
Funcional: câncer” "Tratado de Nutrição Esportiva Funcional" e "Nutrição & Sustentabilidade: alimentando um
mundo saudável". Coordenadora da Comissão Científica do Instituto Brasileiro de Nutrição Funcional (IBNF).
Membro do The Institute for Functional Medicine – USA. Nutricionista do CSA Brasil (Community Supported
Rev Bras Nutr Func; 41(76), 2018

Agriculture - Agricultura Sustentada pela Comunidade). Membro do conselho consultivo da CNTU (Confederação
Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados).

Wagner Alessandro dos Reis


Nutricionista graduado pelo Centro Universitário Newton Paiva. Especialista em Formação Pedagógica para
Profissionais de Saúde pela Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado
em Nutrição Esportiva Funcional e em Fitoterapia Funcional pela Unicsul em parceria com a VP Centro de Nutrição
Funcional. Docente convidado nos cursos de pós-graduação em Nutrição Esportiva Funcional, Nutrição Clínica
Funcional e Fitoterapia Funcional pela Unicsul em parceria com a VP Centro de Nutrição Funcional.
4
Coordenação e Autores
Lista de Autores
Angélica Simões Ferrari
Nutricionista graduada pela Universidade Federal de Alfenas-MG. Mestre em Biociências Aplicadas à Saúde com
ênfase em fisiopatologia e ciência de alimentos, também pela Universidade Federal de Alfenas-MG. Pós-graduada
em Nutrição Clínica Funcional e em Fitoterapia Funcional, ambas pela da UNICSUL em parceria com a VP Centro de
Nutrição Funcional. Pós-graduanda em Nutrição Esportiva Funcional também pela da UNICSUL em parceria com
a VP Centro de Nutrição Funcional. Exerce atendimento nutricional em consultório e atua também como docente
convidada da pós-graduação pela UNICSUL em parceria com a VP Centro de Nutrição Funcional, lecionando a
disciplina de disbiose.

Caroline Aparecida Pereira de Souza


Nutricionista. Especialista em Nutrição Clínica e Mestre em Neurofisiologia - Unifesp. Especialista em Nutrição
Clínica: Metabolismo, Prática e Terapia Nutricional pela Universidade Gama Filho. Atualmente doutoranda do
laboratório de Neurobiologia da Pineal do Departamento de Fisiologia da Unifesp.

Franciela Salete Santin


Graduada em Comunicação Social Jornalismo pela Unochapecó. Pós-graduada em Comunicação e Marketing pela
Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC. Pós-graduada em Comunicação, informação e cultura pela
Universidade do Contestado – UNC. Pós-graduada em Gestão de Instituições de Ensino Superior e Tecnologia pelo
Serviço nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI. Mestre em Ciências da Educação pela Universidad Privada Del
Guaira – UPG. Graduanda em Nutrição pela Unisociesc. Estagiária do Departamento Médico do AVAÍ Futebol Clube.

Guilherme Cysne Rosa


Graduado em Nutrição pela Universidade do Vale do Itajaí com intercâmbio de graduação em Nutrición Humana
y Diétoterapia pela Universitat de Valencia (Espanha). Mestrado em Nutrição - Metabolismo e Dietoterapia pela
Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduado em Nutrição Esportiva pela Universidade Castelo Branco.
Pós-graduado em Nutrição Esportiva Funcional pela UNICSUL em parceria com a VP Centro de Nutrição Funcional.
Especialista em Nutrição em Esportes por Mérito pela Associação Brasileira de Nutrição. Docente convidado do
curso de pós-graduação em Nutrição Esportiva Funcional pela UNICSUL em parceria com a VP Centro de Nutrição
Funcional. Nutricionista da equipe profissional do AVAÍ Futebol Clube.

Luana Meller Manosso


Doutora em Bioquímica pela USFC. Mestre em Neurociências pela UFSC. Nutricionista pela UFSC. Pós-graduada em
Nutrição Clínica Funcional. Pós-graduada em Fitoterapia Funcional. Pós-graduada em Nutrição Esportiva Funcional.
Docente convidada nos cursos de pós-graduação em Nutrição Clínica Funcional e em Fitoterapia Funcional.
Atendimento em consultório. Autora do livro “Nutrição Clínica Funcional: Neurologia”.

Ludmilla Scodeler de Camargo


Nutricionista. Especialista em Nutrição Clínica. Mestre em ciências da saúde - Unifesp. Doutoranda no laboratório
de Neurobiologia da Pineal - Departamento de Fisiologia da Unifesp.

Neiva dos Santos Souza


Nutricionista. Pós-graduada em Nutrição Clínica Funcional, em Fitoterapia Funcional e em Nutrição Esportiva
Funcional pela UNICSUL em parceria com a VP Centro de Nutrição Funcional. Nutricionista da Editora VP. Autora
do livro “Nutrição Funcional & Sustentabilidade: alimentando um mundo saudável”. Docente convidada dos cursos
de pós-graduação em Nutrição Clínica Funcional e em Fitoterapia Funcional da UNICSUL em parceria com a VP
Centro de Nutrição Funcional. Membro da coordenação científica da Revista Brasileira de Nutrição Clínica Funcional.
Membro do Laboratório de Neurobiologia da Pineal do Departamento de Fisiologia da Unifesp.

Ticiane Aragão da Silveira Gomes


Nutricionista graduada pelo Centro Universitário Estácio do Ceará. Mestranda em Saúde da Mulher e da Criança
(Faculdade de Medicina UFC). Pós-graduada em Nutrição Materno Infantil na Prática Clínica e Ortomolecular
(FAPES/SP). Pós-graduada em Nutrição Clínica Aplicada a Patologias com Base na Prática Ortomolecular (FAPES/SP).
www.vponline.com.br

Docente convidada do curso de Pós-graduação em Nutrição Funcional da Concepção à Adolescência no módulo


Síndrome de Down, Neuropatias e Erros Inatos de Metabolismo da UNICSUL em parceria com a VP Centro de
Nutrição Funcional. Experiência no atendimento em consultório de mulheres que desejam engravidar, gestantes,
lactantes e crianças; especialmente crianças com diagnóstico de TEA, TDAH, síndrome de down, neuropatias, erros
inatos de metabolismo.

5
Índice

Crononutrição & Saúde


7

Microbiota e preferências alimentares: qual a relação?


12

O papel da alimentação na melhora da cognição e prevenção de doenças neurodegenerativas


24

Efeitos fisiológicos do exercício físico prolongado: estudo de caso de uma atleta de ultraendurance
27

Modulação nutricional no transtorno do espectro autista – um estudo de caso


34

Escute o solo, as raízes e ouça os ventos de Primavesi


44

Alimentos Fermentados e Saúde: Como Fazer Kefir


Rev Bras Nutr Func; 42(77), 2019

54

6
Caroline Aparecida Pereira de Souza, Ludmilla Scodeler de Camargo e Neiva dos Santos Souza

Crononutrição & Saúde

Chrononutrition & health

Resumo
A capacidade de adaptação dos seres vivos às características do meio ambiente possibilitou sua evolução e sobrevivência. A presença
de ritmos biológicos nos organismos vivos é fundamental para a adaptação preditiva da fisiologia e do comportamento às características
cíclicas do meio ambiente. Nesse contexto, a crononutrição estuda a relação entre os ritmos biológicos, nutrição e metabolismo e considera,
para a adequada avaliação nutricional, o aspecto temporal da alimentação. É importante apontar que a expressão do comportamento
alimentar está ligada ao relógio biológico, e que abordagens dietéticas devem considerar também o cronotipo do indivíduo para que os
resultados à saúde sejam mais individualizados e efetivos.

Palavras-chave: Crononutrição, cronobiologia, ritmos biológicos, cronotipo.

Abstract
The ability of living beings to adapt to the characteristics of the environment enabled their evolution and survival. The presence of bio-
logical rhythms in living organisms is fundamental for the predictive adaptation of physiology and behavior to the cyclical characteristics
of the environment. In this context, chrononutrition studies the relationship between biological rhythms, nutrition and metabolism, and
considers, for adequate nutritional assessment, the temporal aspect of food. It is important to point out that the expression of eating
behavior is linked to the biological clock, and that dietary approaches must also consider the individual's chronotype so that health
results are more individualized and effective.

Keywords:Chrononutrition, chronobiology, biological rhythms, chronotype.


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7
Caroline Aparecida Pereira de Souza, Ludmilla Scodeler de Camargo e Neiva dos Santos Souza

A
A Crononutrição nada mais é que a junção do metabolismo, estudada pela crononutrição, já está
estudo de duas áreas: a cronobiologia e a nutrição. descrita na literatura, pautando a disponibilidade
Desta forma, esta ciência investiga a relação entre dos alimentos como transmissor de informação
os ritmos biológicos, nutrição e metabolismo1. de tempo para o relógio biológico, sincronizando
Para entendermos esta relação, necessitamos ter alguns relógios periféricos6.
conhecimento de um fator indispensável à nossa Vale ressaltar que os seres humanos são parte
evolução, que é a capacidade dos seres vivos de de uma espécie diurna que se alimenta durante
adaptarem-se às alterações que ocorreram/ocorrem o período de claro (dia) e repousa/jejua durante
no meio ambiente. Dentre os vários fenômenos a noite. A alimentação e o comportamento
biológicos que permitiram que esse processo alimentar são influenciados pelo ritmo biológico
adaptativo ocorresse, estão os ritmos biológicos. do indivíduo. O conflito entre o padrão de
Uma das classificações dos ritmos biológicos alimentação e a alternância de luminosidade do
baseia-se na frequência de ocorrência, a saber: ciclo claro/escuro veio em decorrência do mundo
ritmos infradianos, ultradianos e circadianos. moderno, que possibilitou e estendeu o período
Esse último tem o nome derivado do latim de disponibilidade de alimentos também para o
circa diem, que significa em torno de um dia e período da noite, momento em que o organismo
refere-se aos ritmos que ocorrem a cada 24 horas humano apresenta menor capacidade de resposta
aproximadamente. Os ritmos circadianos estão à ingestão alimentar7,8. Tal cenário não fez parte
normalmente sincronizados ao processo de rotação da evolução da espécie ao longo de milhares
da terra, que nos expõe diariamente à alternância de anos, estando presente a partir do advento
dos ciclos claro/escuro (dia e noite) e às mudanças da energia elétrica e do processo avançado de
de temperatura2,3. urbanização, que trouxeram como resultados, por
Para que esse processo ocorra de modo exemplo, a obtenção de alimentos, seu preparo,
adequado, o nosso organismo conta com um armazenamento e conservação sem a limitação
intricado sistema de temporização formado por do tempo.
um oscilador ou relógio central, conexões neurais Existem também padrões rítmicos de
e humorais, e relógios periféricos localizados sinalização endogenamente gerados e que fazem
em órgãos e tecidos. Um importante mediador parte da constituição do organismo vivo, como a
hormonal desse sistema é a melatonina. Essa adequada temporização de órgãos como o fígado e a
indolamina, que tem sua concentração plasmática liberação de hormônios e secreções orgânicas, que
garantida pela produção pela glândula pineal, é participam dos processos de digestão e absorção de
sintetizada somente durante a noite desde que a nutrientes. A ingesta alimentar, como um marcador
mesma seja escura, sendo esse processo inibido de tempo, pode interferir com a sincronização
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020. doi: 10.32809/2176-4522.46.81.01

pela presença de luz. Devido a essa característica, desses padrões rítmicos6-8. Assim, é importante
ela atua como um sinalizador do fotoperíodo para que os processos correlacionados à alimentação,
o ambiente interno e, por meio dessa função, digestão e absorção dos nutrientes, que são
a melatonina é capaz de controlar diversos essenciais para um adequado funcionamento do
processos fisiológicos como: sono e vigília, organismo, sejam conduzidos da melhor forma
processos reprodutivo, digestivo e de sinalização possível. Somado a isso, o número crescente dos
insulínica, além de garantir a manutenção do casos de obesidade e doenças cardiometabólicas
balanço energético4,5. Nesse sentido, é importante fez com que a alimentação adequada se tornasse
também considerar o âmbito da frequência o foco de diversas pesquisas.
alimentar, do horário das refeições e, até mesmo, A qualidade e a quantidade do que se é ingerido
do comportamento alimentar, que são aspectos ganhou destaque, porém alguns estudos apontam
nutricionais que também podem influenciar a que a busca por uma alimentação e estilo de vida
homeostase do metabolismo energético6. saudáveis deve levar em conta o horário em que
A relação entre nutrição, ritmos biológicos e as refeições são realizadas ou não realizadas.

8
Crononutrição & Saúde

A metanálise de Chen et al.9 buscou avaliar melatonin onset, que se refere ao momento de início
a associação entre não realizar o café da manhã do aumento na curva plasmática de melatonina)
e o risco cardiovascular, avaliando 7 estudos com o conteúdo dos alimentos ingeridos e com
de coorte, totalizando 221.732 indivíduos. Os a composição corporal. Participaram do estudo
indivíduos que não realizavam essa refeição típica transversal 110 jovens entre 18 e 22 anos que
do período da manhã, em comparação com aqueles registraram toda a ingestão de alimentos durante
que a realizavam regularmente, apresentaram um 7 dias consecutivos em sua rotina diária regular,
risco elevado de doença cardiovascular (risco além de terem aferidas as medidas de composição
relativo de 1,22 - intervalo de confiança de 95% corporal e concentração salivar de melatonina. Os
1,10–1,35) e de todas as causas de mortalidade principais resultados mostraram que os indivíduos
relacionadas (risco relativo de 1,25 - intervalo com alta porcentagem de gordura corporal
de confiança de 95% 1,11–1,40). Os autores consumiram a maior parte das calorias diárias
discutiram possíveis explicações para esse cerca de 1,1h mais perto do início do horário de
achado, como possíveis alterações fisiológicas e liberação noturna de melatonina (que informa o
metabólicas que podem ocorrer nos indivíduos que início da noite biológica para o organismo), do
não realizaram o café da manhã e tiveram risco que indivíduos com baixa porcentagem de gordura
aumentado de doenças cardiovasculares, dentre as corporal. De acordo com a análise de regressão
quais possível hiperatividade do eixo hipotálamo- múltipla, o momento da ingestão de alimentos
hipófise-adrenal, não atrelada ao estresse, que em relação ao horário de início da liberação de
elevaria a concentração de cortisol e a pressão melatonina foi significativamente associado com
arterial; aumento nos níveis de colesterol total e a porcentagem de gordura corporal e índice de
LDL-colesterol (colesterol ligado à lipoproteína massa corporal. O mesmo não foi observado
de baixa densidade); prejuízos à sensibilidade quando considerada a quantidade ou qualidade
à insulina e maior risco de diabetes; e a relação dos alimentos. Dessa forma, os autores concluíram
com preferências alimentares e hábitos de vida que o consumo alimentar próximo ao início da
menos saudáveis, como maior ingestão de bebidas noite circadiana, independentemente de outros
açucaradas, aperitivos e álcool, tabagismo e fatores de risco tradicionais como quantidade
sedentarismo. ou qualidade da ingestão de alimentos e nível de
Alguns indivíduos, como aqueles que pulam atividade, desempenha um papel importante na
o café da manhã ou acordam mais tardiamente, composição corporal.
tendem a arrastar os horários das próximas Indícios como esse fizeram com que a crono-
refeições para mais tarde, avançando no período nutrição ganhasse mais destaque. De acordo com
noturno. os preceitos seguidos pela crononutrição três as-
McHill et al.10 examinaram a associação entre pectos relacionados ao tempo devem ser levados
o momento do consumo alimentar (em relação em conta para adequada avaliação nutricional do
ao horário do relógio e ao DLMO – Dim light indivíduo11:
www.vponline.com.br

9
Caroline Aparecida Pereira de Souza, Ludmilla Scodeler de Camargo e Neiva dos Santos Souza

Estes aspectos são influenciados por ações imposição social, que molda nosso estilo de vida
individuais dependentes do cronotipo (é definido e reflete em nosso contexto alimentar11-13.
como a expressão fenotípica da relação do Há ainda a influência dos padrões de vida
indivíduo com a flutuação rítmica do meio atuais, como a exposição excessiva à luz artificial
ambiente em que ele vive), levando em conta que no período noturno e o hábito de se alimentar
os horários de sono e de atividade influenciam a tardiamente, especialmente na madrugada,
característica temporal do hábito alimentar, que que causam uma desorganização temporal do
são tão importantes quanto os aspectos qualitativos ritmo circadiano de funções biológicas gerando
e quantitativos da alimentação11. impactos negativos à saúde ao intensificar ou
Pesquisas mostram que indivíduos com desencadear processos moleculares envolvidos
cronotipo vespertino, que são aqueles que têm em diferentes doenças crônicas não transmissíveis
preferência por realizar as atividades mais como obesidade, diabetes, resistência à insulina e
tardiamente, têm maior incidência de doenças síndrome metabólica11-13.
cardiometabólicas e sobrepeso devido à propensão É possível concluir que abordagens dietéticas
a manter uma rotina alimentar irregular e uma que considerem os preceitos da crononutrição
ingestão tardia de alimentos. Por outro lado, – que visam garantir a organização dos hábitos
indivíduos com cronotipo matutino, ou seja, que alimentares considerando o relógio biológico –,
apresentam preferência em realizar suas atividades são importantes para a organização temporal de
durante em horários mais cedo do dia, tendem nossa fisiologia e comportamento, auxiliando
a manter maior regularidade em seus hábitos a manutenção de nossas respostas celulares e
alimentares e a apresentarem menor predisposição modulações fisiológicas para a promoção da saúde.
ao risco cardiometabólico e ao desenvolvimento Ainda, quando tais estratégias vão de encontro ao
de obesidade11,12. cronotipo, respeitando a organização biológica
Outros aspectos também devem ser considerados de nosso corpo e suas necessidades e o ciclo de
nessa avaliação como a idade, etnia, moradia, jejum/alimentação, as respostas podem ser mais
estresse, carga de trabalho, trabalho em turno, efetivas quando utilizadas para melhorar a saúde
qualidade e horas de sono e jetlag social. Estes metabólica, reduzindo os riscos de doenças.
fatores podem influenciar a ingestão alimentar e a

Resumo gráfico
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020. doi: 10.32809/2176-4522.46.81.01

Fonte: Adaptado de: Henry; Kaur e Quek12


10
Crononutrição & Saúde

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11
Angélica Simões Ferrari

Microbiota e preferências alimentares:


qual a relação?

Microbiota and food preferences: what is the relation?

Resumo
O trato gastrointestinal humano é composto por abundantes e diversas comunidades microbianas, sendo o cólon o principal habitat
para elas, com cerca de 1013 a 1014 microrganismos que exercem uma relação mutualista com o hospedeiro, influenciando no fenótipo
imunológico e metabólico e, assim, impactando na saúde do ser humano. Dessa relação mutualista, o eixo microbiota-intestino-cérebro
exerce um papel importante na função do sistema nervoso, interligando o intestino com o centro da fome/saciedade, podendo influenciar
no comportamento alimentar e afetar a qualidade e quantidade do que é consumido. Essa comunicação entre cérebro e intestino pode
ocorrer através de quatro vias principais interligadas entre si: imune, neuronal, endócrina e metabólica, onde a via imune ocorre por
meio das citocinas produzidas pelas células imunológicas, a comunicação neuronal dá-se por meio do sistema nervoso entérico e
nervo vago, a ligação endócrina faz-se por intermédio do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e na via metabólica tem-se a participação
dos metabólitos produzidos pela microbiota intestinal, como o butirato. Portanto a microbiota intestinal tem um papel chave nessas
comunicações, podendo influenciar no apetite e preferências alimentares, destacando-se, assim a importância da homeostase microbiana
e saúde intestinal no comportamento alimentar.

Palavras-chave: Microbiota; comportamento alimentar; nervo vago; leaky gut.

Abstract
The human gastrointestinal tract is composed of abundant and diverse microbial communities, the colon being the main habitat for them,
with about 1013 to 1014 microorganisms that exercise a mutualistic relationship with the host influencing the immune and metabolic
phenotype and thus impacting human health. From this mutualistic relationship, the microbiota-gut-brain axis plays an important role
in the function of the nervous system, connecting the intestine with the center of hunger/satiety, which can influence eating behavior
and affect the quality and quantity of what is consumed. This communication between the brain and the intestine can occur through
four main routes interconnected: immune, neuronal, endocrine and metabolic, where the immune pathway occurs through the cytokines
produced by immune cells, the neuronal communication occurs through the enteric nervous system and the vagus nerve, the endocrine
connection is made through the hypothalamic-pituitary-adrenal axis and in the metabolic path there is the participation of metabolites
produced by the intestinal microbiota, such as butyrate. Therefore, the intestinal microbiota has a key role in these communications,
which can influence appetite and food preferences, thus highlighting the importance of microbial homeostasis and intestinal health in
eating behavior.

Keywords :Microbiota; eating behavior; vagus nerve; leaky gut.


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Microbiota e preferências alimentares: qual a relação?

Introdução

O
O intestino humano é composto por abundantes e comensais, estado denominado de disbiose,
diversas comunidades microbianas, que consistem associado a um aumento da permeabilidade
principalmente em bactérias, fungos, protozoários, intestinal, pode predispor o organismo a uma
vírus e arqueias, denominadas de microbiota inflamação crônica de baixo grau, ocasionando
intestinal. O cólon é quem abriga a maior parte um remodelamento vagal, levando à alterações
desse ecossistema, com cerca de 1013 a 10 14 no controle da fome/saciedade, aumentando a
microrganismos, que interagem com o hospedeiro ingestão alimentar7,8.
desempenhando importantes funções metabólicas Diante do exposto, a presente revisão de
e imunológicas, impactando assim na saúde do ser literatura teve como objetivo abordar o impacto
humano1-3. A microbiota intestinal também tem um da microbiota no comportamento alimentar, o
papel importante no desenvolvimento e função que pode influenciar em distúrbios metabólicos
do sistema nervoso, exercendo uma comunicação como a obesidade, e a importância do equilíbrio
bidirecional com o cérebro, através das vias microbiano para um melhor controle da fome/
neuronal, endócrina, imune e/ou metabólica, por saciedade, visando uma melhor qualidade de vida.
meio do eixo microbiota-intestino-cérebro, que Será, ainda, apresentado um estudo de caso, com o
também interliga o intestino com o centro da fome/ intuito de discutir, de forma prática, os conceitos
saciedade, podendo impactar no comportamento teóricos abordados.
alimentar, afetando a qualidade e quantidade do Para a escrita foram considerados como
que é consumido2-4. objetos de estudo artigos e outras revisões da
Considerando essa influência que a microbiota literatura, disponíveis no banco de dados PubMed,
exerce no controle da fome/saciedade, é importante publicados nos últimos 10 anos, utilizando as
salientar que ela pode ocorrer por diferentes palavras-chave “microbiota”, “microbioma”
maneiras, controlando a ingestão alimentar. Dentre “comportamento alimentar” e o termo “microbiota
tais maneiras, destaca-se a capacidade das bactérias e ingestão alimentar”. Os artigos incluídos foram
intestinais de sintetizar neurotransmissores, como apenas aqueles que relacionavam a microbiota
serotonina, dopamina e ácido γ-aminobutírico com a ingestão alimentar, tanto em modelo
(GABA) que podem atuar localmente no sistema experimental, quanto em humanos.
nervoso entérico ou transmitir sinais ao sistema
nervoso central através dos neurônios aferentes Microbiota
vagais, no nervo vago. Além disso, tais bactérias,
também podem metabolizar carboidratos O trato gastrointestinal humano é colonizado por
indigeríveis em ácidos graxos de cadeia curta trilhões de microrganismos, como fungos, vírus,
(AGCC), principalmente butirato, acetato e protozoários, arqueias e principalmente bactérias,
propionato, que podem ligar-se a receptores conhecidos como microbiota intestinal, que vive
acoplados a proteína G, especificamente GPR41 uma relação mutualista com o hospedeiro1,3,9.
e GPR43, nas células intestinais enteroendócrinas, Essa colonização dá-se ao início da vida, sendo
estimulando a liberação do peptídeo semelhante influenciada pela microbiota da mãe, modo
ao glucagon (do inglês, glucagon-like peptide – de entrega (parto normal ou cesárea), tipo de
GLP-1) e peptídeo YY (PYY), ambos conhecidos leite recebido (aleitamento materno ou fórmula
pelo efeito anorexigênico2,5,6. Em contrapartida, infantil), introdução alimentar, ambiente que a
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um desequilíbrio da microbiota intestinal, com criança está inserida, alimentação ao longo da


diminuição da diversidade microbiana, aumento vida, uso de antibióticos, dentre outros fatores9-11
de patobiontes ou diminuição de microrganismos (Figura 1).

13
Angélica Simões Ferrari

Figura 1. Fatores que afetam a composição e função da microbiota intestinal.

Fonte: Adaptado de: Clarke et al.11

Nos primeiros anos de vida, a microbiota é tecido linfoide associado ao intestino (do inglês –
relativamente instável e menos diversa, com uma gut associated lymphoid tissue - GALT), sintetiza
predominância dos gêneros Bifidobacterium e algumas vitaminas, como por exemplo as vitaminas
Lactobacillus. Com o passar do tempo, quando B9, B12 e K e, por fim, também influencia no
a criança atinge 3 a 4 anos de idade essa processo digestivo, expressando algumas enzimas
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020 doi: 10.32809/2176-4522.46.81.02

microbiota assemelha-se a do adulto, tonando- digestivas e degradando carboidratos indigeríveis


se mais diversa e estável. Em adultos saudáveis em AGCC, onde o butirato é utilizado como
ela é composta essencialmente por bactérias, principal fonte energética para os colonócitos,
que perfazem cerca de 99% dos genes no com consequente manutenção da integridade da
intestino, com uma predominância de cinco filos: barreira intestinal12-14.
Actinobacteria, Proteobacteria, Verrucomicrobia Por outro lado, quando ocorre uma diminuição
e, principalmente, Bacteroidetes e Firmicutes e, na na quantidade de microrganismos comensais,
velhice, ela será novamente modificada, com uma aumento na proliferação de patobiontes e/ou
queda na diversidade microbiana2,9,12. redução na diversidade microbiana, origina-se
Sendo assim, manter uma microbiota saudável é um quadro de disbiose, uma alteração que pode
essencial para o equilíbrio imunológico e metabólico favorecer desordens imunológicas, causando
do hospedeiro, pois ela promove proteção contra degradação do muco intestinal, rompimento
patógenos, exerce imunomodulação através do de junções fortes da barreira epitelial, com
aumento da produção de IgA e maturação do consequente aumento da permeabilidade intestinal,

14
Microbiota e preferências alimentares: qual a relação?

levando ao chamado intestino “gotejante” ou, todas essas vias sofrem interferência da microbiota,
do inglês, leaky gut, além de um aumento de por meio do eixo microbiota-intestino-cérebro,
lipopolissacarídeos bacterianos (LPS - componente no qual ela pode impactar de alguma maneira
da membrana celular de bactérias gram-negativas) no comportamento alimentar, influenciando nas
no lúmen intestinal que, através desse intestino preferências alimentares e apetite, bem como em
mais permeável, atinge a corrente sanguínea, distúrbios alimentares e metabólicos18,19.
provocando uma endotoxemia metabólica, com À vista disso, segue uma discussão mais
inflamação crônica de baixo grau7,8,12. detalhada de cada uma dessas vias que fazem
Quando esse desequilíbrio microbiano acontece a comunicação do intestino com o cérebro,
na relação entre os filos Firmicutes e Bacteroidetes lembrando que elas estão interligadas entre si.
há uma correlação com a obesidade, com a
microbiota intervindo na coleta de energia, nas Via imunológica – comunicação microbiota-
alterações no comportamento, na modulação intestino-cérebro através de citocinas
de respostas imunológicas e na sinalização Bactérias intestinais possuem componentes
inadequada de AGCC, com consequente impacto na membrana celular (padrões moleculares)
no controle da saciedade15,16. Ademais, a microbiota que podem ser reconhecidos por receptores de
também pode influenciar no desenvolvimento reconhecimento de padrão, particularmente os do
e função do sistema nervoso, onde a disbiose tipo Toll (TLR) que são expressos em diferentes
associa-se à algumas patologias que atingem esse células no trato gastrointestinal e sistema nervoso.
sistema, com a endotoxemia metabólica gerando Dentre tais receptores destacam-se o TLR4
uma inflamação neuronal, com consequente responsável por reconhecer o LPS proveniente da
remodelamento vagal, causando hiperfagia e membrana celular de bactérias gram-negativas5,7.
impactando assim, no comportamento alimentar, O nervo vago possui neurônios envolvidos na
conforme discutido a seguir3,5,7. regulação da ingestão alimentar, estando os
terminais periféricos dos neurônios aferentes
Influência da microbiota no comporta- vagais localizados na mucosa intestinal. Tais
mento alimentar neurônios, juntamente com os plexos mioentérico
e submucoso expressam tais receptores, sugerindo
Um adequado controle da ingestão alimentar que o LPS pode controlar as sinalizações neuronais
depende de um equilíbrio neuronal e hormonal entéricas5,20.
entre o intestino e o sistema nervoso central Quando o LPS se liga ao TLR4 ocorre a
(SNC), onde o cérebro recebe e assimila sinais translocação nuclear do NF-κB, um fator de
intestinais, modificando o comportamento transcrição que regula positivamente a liberação
alimentar conforme a necessidade e o desejo do de citocinas com ação pró-inflamatória, como as
organismo. Essa comunicação entre o cérebro e interleucinas 1β e 6 (IL-1β e IL-6) e o fator de
o intestino é bidirecional, através de quatro vias necrose tumoral α (TNF-α). Dessa maneira, na
principais interligadas entre si: imune, neuronal, disbiose intestinal, ocorre um aumento do LPS
endócrina e metabólica. Em síntese, a via imune no lúmen, devido ao aumento de bactérias gram-
ocorre por meio das citocinas produzidas pelas negativas, levando a uma maior ativação desses
células imunológicas, ao passo que a comunicação receptores, gerando uma resposta inflamatória
neuronal dá-se por meio do sistema nervoso que lesiona a barreira intestinal, aumentando a
entérico e nervo vago, com neurônios aferentes e permeabilidade com consequente passagem do
eferentes vagais. Já a ligação endócrina faz-se por LPS para a corrente sanguínea, provocando uma
intermédio do eixo hipotálamo-hipófise(pituitária)- inflamação crônica de baixo grau (endotoxemia
adrenal (HPA) e na via metabólica tem-se a metabólica). Foi demonstrado em modelos
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participação dos metabólitos produzidos pela experimentais que a endotoxemia metabólica


microbiota intestinal, como os AGCC2,17. Um leva à ligação do LPS nos TLR4 expressos
crescente corpo de evidências tem demostrado que no gânglio nodoso, aumentado a liberação de

15
Angélica Simões Ferrari

citocinas pró-inflamatórias que direcionam uma e expressam a pró-opiomelanocortina (POMC) e


maior ativação dos aferentes vagais e conseguinte o transcripto regulado por anfetamina e cocaína
remodelamento vagal, prejudicando a sinalização (CART) que, quando estimulados, liberam o
de saciedade mediada vagamente para o núcleo do hormônio estimulador de α-melanócitos (α-MSH)
trato solitário no tronco encefálico, favorecendo que ativa o receptor de melanocortina-4 (MC4R)
desordens no comportamento alimentar com suprimindo a fome e aumentando o gasto de
aumento da ingestão energética, mostrando um energia4,6,21,22.
papel da microbiota na contribuição da patogênese
Dessa maneira, a microbiota intestinal
da obesidade, através de um desequilíbrio na
influenciará na ingestão de alimentos por meio
comunicação vagal7,8.
do papel que exerce na liberação de GLP-1, PYY
Via endócrina – comunicação microbiota- e CCK, sinalizando as células enteroendócrinas
intestino-cérebro através de hormônios e peptídeos através da produção de metabólitos como os
intestinais e eixo HPA AGCC, que serão abordados no próximo tópico.
As células intestinais enteroendócrinas (CEE) Essas células também possuem TLR4 que
recebem sinais do lúmen intestinal como a reconhecem o LPS, interagindo diretamente
presença de nutrientes e metabólitos microbianos com a microbiota e influenciando a ingestão de
e então interagem com as fibras aferentes vagais alimentos, pois o aumento na concentração de
por meio da liberação de hormônios como a citocinas pró-inflamatórias vindos por exemplo
colecistocinina (CCK) e peptídeos, como o GLP- da disbiose e estresse emocional levam a ativação
1 e PYY, que ligam-se a receptores presentes no do eixo HPA, com liberação do hormônio
nervo vago, levando assim as informações ao liberador de corticotrofina (CRH) pelo hipotálamo,
SNC e/ou atingem o hipotálamo e tronco cerebral
que então estimulará a secreção do hormônio
por meio da circulação, regulando o apetite, com
adrenocorticotrófico (ACTH) pela hipófise e
promoção de saciedade e então sinalizando para
o término da refeição2,4,7,17,21. com isso a liberação de cortisol pela glândula
A CCK é um hormônio secretado no intestino adrenal. Cronicamente, essa elevação do cortisol
em resposta a gorduras e proteínas, atuando também irá modular a microbiota intestinal para
no processo digestivo e também como um um perfil mais disbiótico, com crescimento de
anorexígeno. O GLP-1 é uma incretina liberada patobiontes como Escherichia coli, Pseudomonas
pelas células L-enteroendócrinas em resposta a aeruginosa e Yersinia enterocolitica, mantendo
ingestão de carboidratos, com ação na inibição o quadro inflamatório, entrando, assim, em um
do esvaziamento gástrico, secreção de insulina, ciclo vicioso4,18. Ademais, exacerbando ainda
controle da fome e homeostase da glicose, ligando- mais esse ciclo, um estresse emocional interfere
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020 doi: 10.32809/2176-4522.46.81.02

se a receptores expressos no intestino, células na escolha alimentar, com propensão ao consumo


β-pancreáticas, rins, nervo vago, núcleo do trato de alimentos mais palatáveis, ricos em gordura,
solitário e hipotálamo. O PYY é um peptídeo açúcar e energia que, além de ativarem regiões
produzido em resposta ao consumo principalmente
cerebrais de recompensa e prazer, podem piorar o
de lipídeos, mas também de proteínas e, em menor
quadro de disbiose que também, conforme supõe
intensidade, carboidratos, ligando-se a receptores
contidos no eixo intestino-cérebro, proporcionando Norris, Molina e Gewirtz 23, pode influenciar
um controle na ingestão de alimentos21. Essas na escolha alimentar, devido à plasticidade da
substâncias enviam sinais ao SNC indiretamente microbiota que se molda rapidamente para motivar
por vias aferentes do nervo vago ou diretamente preferências alimentares, mantendo-se assim esse
através dos neurônios no núcleo arqueado do looping infinito4,18,23,24.
hipotálamo. Dentre esses neurônios, o GLP-1 Pensando ainda na produção hormonal pelo
e o PYY irão atuar naqueles que possuem ação trato gastrintestinal e a influência da microbiota,
anorexígena, ou seja, que promovem saciedade vale ressaltar também que Cani e Knauf 5

16
Microbiota e preferências alimentares: qual a relação?

demonstraram que modular a microbiota de ratos as bifidobactérias e bactérias do ácido lático


obesos com prebióticos diminui significativamente são bem conhecidas por produzirem acetato e
a grelina sanguínea – um hormônio com ação lactato, que serão utilizados como substratos por
orexígena, ou seja, associado ao aumento da outros microrganismos para produção de butirato
fome e ingestão energética –, diminuindo, dessa e propionato e, dentre as bactérias produtoras
maneira, a ingestão alimentar e contribuindo com de butirato, o Faecalibacterium prausnitizzi e
a homeostase energética5. a Akkermansia muciniphila têm demostrado
Outro ponto importante de ressaltar é o papel participação especial, estando associadas a um
da disbiose no sistema endocanabinoide, um perfil de microbiota mais saudável, com efeitos
sistema de sinalização presente no eixo intestino- benéficos à saúde28,29.
cérebro e que estimula o apetite e a ingestão Pensando no papel que os AGCC exercem
de alimentos, especialmente daqueles mais no comportamento alimentar, eles podem se
palatáveis, ricos em gordura e açúcar. Esse sistema ligar a receptores acoplados a proteína G,
possui substâncias endógenas denominadas especificamente o GPR41 e GPR43, presentes
endocanabinoides que se ligam a receptores nas células L-enteroendócrinas, estimulando-
acoplados a proteína G, chamados de canabinoides as a secretarem os peptídeos anorexígenos,
1 e 2 (CB1 e CB2). De acordo com Ringseis, GLP-1 e PYY, reduzindo a ingestão alimentar
Gessner e Eder22, o LPS estimula a produção de e melhorando a homeostase de glicose. AGCC
anandamida a partir do ácido araquidônico, uma também exercem função imunomoduladora, com
substância com alta afinidade pelos receptores modulação da função de linfócitos e neutrófilos,
CB, ativando-os em diferentes tecidos periféricos, e anti-inflamatória neutralizando a inflamação
particularmente adiposo e hepático, levando mediada pelo LPS5,12,30. Além disso, os AGCC
a uma alteração no metabolismo energético também podem regular a sensibilidade à insulina
e maior consumo alimentar. A modulação da e a liberação de leptina pelo tecido adiposo,
microbiota de camundongos obesos, por uma pelo mesmo mecanismo de ligação ao GPR41
alimentação rica em prebióticos, com aumento de e GPR43 presentes nesse tecido5,8,12. A leptina é
Akkermansia muciniphila (uma espécie bacteriana um hormônio produzido pelos adipócitos que está
relacionada à saúde intestinal), protege a barreira envolvido na regulação da ingestão energética
intestinal e, consequentemente, leva a uma menor e que também sofre influência da microbiota
ativação desse sistema. Sendo assim, fica claro intestinal, onde uma endotoxemia metabólica
a importância de estratégias alimentares que vinda de uma disbiose intestinal pode favorecer
promovam um perfil microbiano mais saudável e um quadro de resistência à leptina, contribuindo
a integridade da barreira intestinal12,22,25. para um desequilíbrio na homeostase energética,
ao passo que uma alimentação rica em prebióticos
Via metabólica – comunicação microbiota- pode melhorar a sensibilidade desse hormônio5.
intestino-cérebro através de metabólitos Ademais, os quimiorreceptores dos aferentes
produzidos pela microbiota – AGCC vagais também são capazes de detectar
Prebióticos são componentes alimentares não metabólitos microbianos, como os AGCC,
digeríveis que serão fermentados pela microbiota transmitindo mensagens ao SNC para controle
intestinal com consequente produção de AGCC. da fome2 e, somado à isso a microbiota também
Dentre os alimentos fontes de prebióticos cita-se é capaz de influenciar a diferenciação de células
banana verde, cebola, chicória, aspargo e aveia, tronco intestinais em células enteroendócrinas,
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ressaltando também que os polifenóis presentes aumentando ainda mais a secreção de GLP-1 e
nos alimentos vegetais podem exercer efeitos PYY, com estudos demonstrando que tais células
prebióticos26,27,28. No tocante aos microrganismos, podem produzir também o GLP-2 que auxilia

17
Angélica Simões Ferrari

na integridade da barreira intestinal, diminuindo induz a secreção de serotonina pelas células


assim a translocação de LPS para corrente enterocromafins intestinais. Dessa maneira, a
sanguínea5. serotonina liga-se então a receptores nos aferentes
Outro quesito eminente é a influência da vagais, regulando a ingestão energética através
microbiota nos receptores de sabor acoplados de sinais emitidos ao tronco cerebral5,18,31. É
às células enteroendócrinas (CEE), dentre eles interessante ressaltar que 80 a 90% da serotonina
os receptores de sabor doce que ligam açúcares do corpo é sintetizada e centralizada no trato
e adoçantes não calóricos, receptores de sabor gastrointestinal, não atravessando a barreira
amargo e receptores de ácidos graxos livres, que hematoencefálica, mas sim, transmitindo sinais
além dos ácidos graxos da alimentação, ligam ao SNC por meio do nervo vago, regulando dessa
também os AGCC provenientes da microbiota18,21. maneira o humor e o apetite, tanto em relação ao que
De acordo com Lyte18, existe uma hipótese de se come, como o volume das refeições e, somado
que a composição microbiana é diferenciada para a isso, a liberação da serotonina em nível cerebral
a preferência pelo sabor doce, gerando efeitos similarmente sofrerá influência da alimentação.
comportamentais através da comunicação da Ademais, a serotonina intestinal também tem uma
microbiota, CEE e nervo vago18. Isso mostra o importante ação local para controle por exemplo,
quão importante é modular a microbiota para um dos movimentos peristálticos24,31.
perfil mais saudável, limitando o consumo de Em contrapartida, estudos demostram que
alimentos açucarados. a disbiose intestinal pode gerar inflamação,
controlando o metabolismo do triptofano,
Via neuronal – comunicação microbiota-intestino- desviando-o para a via das quinureninas,
cérebro através de neurotransmissores diminuindo, assim, a síntese de serotonina
O controle da atitude alimentar pela via e melatonina, levando a um comportamento
neuronal caminha junto à via hedônica, onde alimentar negativo, pois a serotonina é um
não apenas hormônios influenciam a ingestão neurotransmissor ligado à regulação do humor e
alimentar como também o comportamento e apetite4,31.
humor do indivíduo, com uma grande participação Digno de nota também são as catecolaminas,
da microbiota nesse processo, onde um alto e serotonina, glutamato e GABA, atuando como
frequente consumo de alimentos ricos em gordura e mensageiros na comunicação microbiota-intestino-
açúcar ativam a via de recompensa dopaminérgica, cérebro, com alguns estudos demostrando que
com tendência ao vício nesses alimentos, que a disbiose pode afetar a síntese e sinalização
consequentemente levarão a microbiota à um desses neurotransmissores através do nervo
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020 doi: 10.32809/2176-4522.46.81.02

perfil mais negativo, devido a plasticidade de vago, promovendo alterações comportamentais,


adequarem-se ao ambiente em benefício próprio. como por exemplo ansiedade e humor deprimido
Além disso, a via neuronal associada ao intestino que, como dito anteriormente, podem promover
está firmemente conectada ao centro da fome/ ainda mais alterações desfavoráveis da
saciedade e homeostase energética, através de microbiota, impactando na sinalização desses
neurotransmissores produzidos tanto pelas células neurotransmissores e controle da alimentação4,12,18.
intestinais quanto pela microbiota, modulando o À vista de tudo o que foi exposto nota-
comportamento alimentar4,18,23,24. se que alterações na composição e atividade
Em um ambiente microbiano equilibrado microbiana podem impactar no comportamento
as bactérias intestinais tanto podem sintetizar alimentar, influenciando tanto a qualidade
a serotonina, quanto expressarem uma enzima quanto a quantidade do que é consumido, com
denominada triptofano descaboxilase, capaz estudos mostrando a importância de modular a
de converter o triptofano em triptamina, que microbiota intestinal com uma alimentação rica

18
Microbiota e preferências alimentares: qual a relação?

em prebióticos e hábitos de vida saudáveis, para energético. A Figura 2 sintetiza todas essa vias de
um melhor controle da fome/saciedade e equilíbrio controle que sofrem influência microbiana.

Figura 2. Influência da microbiota no controle da ingestão alimentar.

Legenda: AGCC: ácidos graxos de cadeia curta; DA: dopamina; GABA: ácido γ-aminobutírico; Ach: acetilcolina; HI:
histamina; TRP: triptamina; 5-HT: serotonina; NA: noradrenalina; Neurotrans.: neurotransmissores; ClpB: protease
caseinolítica; CEE: células L-enteroendócrinas; Perm. BI: Permeabilidade da barreira intestinal; IN: insulina; LP: leptina;
GR: grelina; Comp alim: comportamento alimentar; TC: tronco cerebral; Cels. recep. paladar: diferenciação de células
receptoras do paladar.

Fonte: Adaptado de Van de Wouw et al.19

Outro aspecto que também merece atenção é a contrapartida, modificar o relógio biológico,
conexão da microbiota com o ciclo circadiano pois, com hábitos noturnos e restrição do sono, estilo
conforme Kaczmarek, Thompson e Holscher3, o de vida estressante e comportamento alimentar
metabolismo microbiano pode variar ao longo tipo ocidental, com alto consumo de alimentos
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do dia, apontando ritmos diurnos, ao passo industrializados, pode diminuir a diversidade


que o momento da alimentação também pode microbiana, favorecendo a disbiose e alterações
promover mudanças na função microbiana3. Em metabólicas32.

19
Angélica Simões Ferrari

Estudo de Caso chamam a atenção, dentre eles, os antecedentes


e histórico clínico, a parte da assimilação
De maneira a melhor compreender a influência englobando as alterações do trato gastrointestinal,
da microbiota no comportamento alimentar a comunicação com possíveis alterações na
e, consequentemente, a importância da saúde sinalização de neurotransmissores e hormônios e
intestinal nesse quesito, segue um exemplo o centro da teia, englobando as emoções, mente
de estudo de caso com possíveis estratégicas e espírito, todos abordados a seguir de maneira
nutricionais baseadas nos princípios da nutrição sucinta.
funcional com foco na modulação da microbiota e Considerando que a colonização microbiana
integridade da mucosa intestinal, proporcionando dá-se ao início da vida, sofrendo diversas
mais saúde e qualidade de vida. influências, pode-se cogitar que desde o
nascimento as condições foram mais propícias
Caso Clínico: Paciente com disfunções para a prevalência de uma microbiota com um
do trato gastrointestinal e compulsão perfil mais negativo pois, de acordo com Thursby
alimentar. e Juge33, o nascimento por cesariana proporciona
um atraso na colonização pelo gênero Bacteroides,
1. Descrição do caso: com predominância do gênero Clostridium e
Mulher, 23 anos de idade, estudante pouca semelhança à microbiota intestinal da mãe
universitária, procura atendimento nutricional e, bebês alimentados por fórmulas, possuem uma
com objetivo de emagrecimento e queixa de má menor concentração de Bifidobacterium e maior
funcionamento intestinal. de Escherichia coli e Clostridium difficile33. Além
Antecedentes: nasceu por cesárea, recebeu disso, o uso frequente de antibióticos também
aleitamento materno apenas por três meses, e contribui para uma diminuição da diversidade
então iniciou a alimentação por fórmula. Relata ter microbiana e consequente disbiose11,33.
sido uma criança com peso adequado porém, com Analisando o funcionamento do trato
aumento da massa de gordura na adolescência, gastrointestinal é possível que haja correlação da
que acentuou-se no início da fase adulta. Possui má digestão com uma diminuição na produção
histórico de infecção de urina recorrente, com uso de ácido clorídrico, o que dificulta a digestão e
frequente de antibióticos. Referiu sempre possuir absorção de nutrientes, pois um pH estomacal
intestino mais lento, com evacuação a cada 2 menos ácido dificulta a digestão de proteína,
ou 3 dias, com fezes ressecadas e volumosas e, diminui a ionização de minerais e impacta
atualmente vem sentindo-se incomodada com na absorção da vitamina B12, que precisa do
o aumento de gases, distensão abdominal e má fator intrínseco para ser absorvida e, esse fator
digestão. depende de um meio estomacal ácido para ser
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Possui o hábito de estudar a noite, devido ao produzido. Ainda, essa má digestão proporciona
silêncio, pois relata dificuldade de concentração. uma passagem maior de fragmentos alimentares
Além disso, mencionou estresse com o período de para o intestino, favorecendo a fermentação
provas na faculdade. Visto que mora sozinha, baseia microbiana e produção de gases, corroborando
a sua alimentação em produtos industrializados, com o aumento da distensão abdominal relatado
como macarrão instantâneo, bolachas recheadas pela paciente. Além disso, um tempo de trânsito
e lanches prontos. Somado a isso, tem percebido mais lento, também permite que nutrientes fiquem
um aumento no consumo alimentar nos últimos disponíveis para fermentação por um tempo maior,
meses, com dificuldade em perceber a saciedade. favorecendo a proliferação microbiana. Portanto,
todos esses fatores possibilitam o surgimento de
2. Entendimento funcional do caso: uma disbiose intestinal, piorando ainda mais a
Pensando na Teia das Interconexões Metabólicas saúde e qualidade de vida dessa mulher34,35,36.
proposta pelo Instituto de Medicina Funcional e Contribuindo com esse quadro, uma
representada por Souza et al.37, alguns pontos alimentação baseada em produtos alimentícios

20
Microbiota e preferências alimentares: qual a relação?

ultraprocessados exacerbam a disbiose, visto importantes para a adequada digestão dos


que um número crescente de evidências tem alimentos, considerando-se assim, o uso de chás
associado o padrão alimentar ocidental, rico em com ação digestiva e enzimas compostas nos
açúcar e gordura, à alterações da microbiota7,8,32. próprios alimentos, como a bromelina presente
Somado a isso, esse tipo de alimentação é pobre no abacaxi e que auxilia na digestão de proteínas.
em fibras prebióticas, limitando a produção de Reinocular: pensar em uma alimentação rica
AGCC, o que pode impactar na integridade da em fibras prebióticas para contribuir com o
membrana intestinal, além de atenuar a secreção crescimento de bactérias comensais, como
de peptídeos como o GLP-1 e PYY, favorecendo bifidobactérias e lactobacilos e assim aumentar a
o aumento da ingestão energética. E, ainda, a produção de AGCC que podem sinalizar as células
restrição de sono, com interrupção do relógio enteroendócrinas para produção de peptídeos
biológico e estilo de vida mais estressante também ligados ao controle da ingestão alimentar, como
são pontos importantes que vão a favor da disbiose GLP-1 e PYY. Avaliar a necessidade de reinocular
intestinal5,12,30,32. probióticos. Reparar: restaurar a integridade
Por fim, pode-se pensar que tanto a compulsão da mucosa intestinal, por meio de uma dieta
alimentar pode impactar na microbiota, quanto não irritativa e rica em nutrientes importantes
a disbiose pode promover um desequilíbrio para a integridade da barreira intestinal, como
no controle da fome/saciedade, conforme vitaminas A, D, zinco, ômega 3 e glutamina.
descrito anteriormente, possibilitando aumento Reequilibrar: focar em hábitos de vida saudáveis,
da permeabilidade intestinal e consequente e por fim Reavaliar: verificar se os objetivos foram
endotoxemia metabólica, com redução da alcançados, se houve melhora na saúde e então
sinalização hormonal e de neurotransmissores, reavaliar as condutas nutricionais37,38,39.
colocando essa paciente num ciclo vicioso que É relevante salientar que as condutas nutricionais
precisa ser rompido. Ademais, vale considerar devem sempre ser individualizadas e que as
que a disbiose ativa o sistema endocanabinoide estratégias aqui comentadas foram pertinentes ao
aumentando o consumo de alimentos mais exemplo de caso clínico relatado. Portanto, deve-
palatáveis, ricos em gordura e açúcar e também se sempre pensar no contexto que o paciente está
diminui a síntese de serotonina, que cronicamente inserido e todas as suas particularidades, para então
pode deprimir o humor dessa paciente e contribuir traçar as intervenções nutricionais pertinentes,
com a compulsão alimentar. visando sempre mais saúde e qualidade de vida.

3. Possíveis intervenções nutricionais funcionais: Conclusão


Quando tem-se o foco em modular a saúde
intestinal, uma intervenção funcional pertinente Mesmo com um crescente corpo de evidências
deve envolver um planejamento alimentar que associando a microbiota ao comportamento
compreenda o programa dos 6R: Remover, alimentar, ainda há a necessidade de mais
Recolocar, Reinocular, Reparar, Reequilibrar e estudos em humanos, com uma abordagem mais
Reavaliar37. profunda sobre causa e efeito no que tange esse
Remover: o foco está em diminuir a tema, principalmente em relação à preferência
colonização de patobiontes e reduzir a ingestão por determinados alimentos. Porém, pode-se
de xenobióticos e alérgenos alimentares, para concluir que ter um estilo de vida mais estressante
tanto deve-se minimizar o consumo de alimentos e/ou sedentário e alimentar-se sobretudo de
ultraprocessados, cheios de aditivos químicos e produtos industrializados repletos de açúcar e
orientar o consumo de alimentos mais naturais, gordura e também ricos em aditivos alimentares
ricos em vitaminas, minerais e fitoquímicos, pode corromper a microbiota intestinal, levando
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inclusive aqueles com ação antimicrobiana. ao aumento da permeabilidade intestinal, com


Recolocar: utilizar estratégias que visam uma translocação do LPS para a corrente sanguínea,
melhor produção de ácido clorídrico e enzimas, causando endotoxemia metabólica, favorecendo a

21
Angélica Simões Ferrari

compulsão alimentar, obesidade e outras desordens assim sucessivamente, o que deixa claro a primazia
metabólicas, além de colocar o organismo em um de hábitos de vida saudáveis na modulação da
looping infinito, partindo para escolhas alimentares microbiota para um perfil mais positivo, que
mais palatáveis, exacerbando a disbiose que então irá modular o comportamento alimentar,
aumenta a fome por alimentos mais palatáveis e

Highlights
• Manter uma microbiota saudável é essencial para o equilíbrio imunológico e
metabólico do hospedeiro;
• A microbiota também pode influenciar no desenvolvimento e função do sistema
nervoso, onde a disbiose associa-se a alterações no comportamento alimentar;
• Um adequado controle da ingestão alimentar depende de um equilíbrio neuronal
e hormonal entre o intestino e o sistema nervoso central (SNC);
• A comunicação entre o cérebro e o intestino ocorre através de quatro vias principais
interligadas entre si: imune, neuronal, endócrina e metabólica, todas sofrendo influência
da microbiota;
• Uma das estratégias utilizadas para modular a microbiota intestinal e,
consequentemente, equilibrar o comportamento alimentar, pode ser o programa dos 6R.

Referências bibliográficas

proporcionando mais saúde e qualidade de vida.


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23
Luana Meller Manosso

Short Communication:
O papel da alimentação na melhora

da cognição e prevenção de

doenças neurodegenerativas
Short Communication: The role of food in improving cognition and
preventing neurodegenerative diseases

D
Dados da Organização Mundial da Saúde Por outro lado, a alimentação tem um
evidenciam que já existem mais de 50 milhões de papel importante na melhora da cognição e na
pessoas com demências1. Várias questões podem diminuição no risco de desenvolver alguma
influenciar no funcionamento cerebral, piorando doença neurodegenerativa. O padrão alimentar
a cognição e aumentando o risco de doenças que tem sido mais estudado é o baseado na dieta
neurodegenerativas, incluindo: estresse oxidativo, do mediterrâneo, com mais frutas, verduras,
disfunção mitocondrial, inflamação, prejuízo na alimentos integrais, azeite de oliva, maior ingestão
eliminação de resíduos moleculares/agregados de peixes, menor ingestão de carnes vermelhas e
proteicos, prejuízo no reparo no DNA, alteração na menos alimentos industrializados e refinados5–7.
comunicação neuronal, diminuição nos níveis do Além disso, uma alimentação orgânica é bem
fator neurotrófico derivado do encéfalo (BDNF), importante, já que pesticidas podem aumentar o
diminuição da neurogênese, entre outros2–4. risco de doenças neurodegenerativas8.
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24
Short Communication: O papel da alimentação na melhora da cognição e prevenção de doenças neurodegenerativas

Além de manter um padrão alimentar saudável, humanos que foram associados com melhora de
podemos pensar em alguns alimentos em específi- algum aspecto da cognição:
co, os quais já foram estudados em pesquisas em

Vegetais verdes escuros9 Frutas em geral10 Chocolate amargo / cacau11–13

Açafrão-da-terra / curcumina14 Ovos15,16 Peixes / ômega-317–19

Castanha-do-Brasil20 Chá verde21

Para mais detalhes, acesse o vídeo a seguir.

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25
Luana Meller Manosso

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26
Guilherme Cysne Rosa e Franciela Salete Santin

Efeitos fisiológicos do
exercício físico prolongado: estudo de caso

de uma atleta de ultraendurance

Physiological effects of prolonged physical exercise: a case study of


an ultraendurance athlete

Resumo
Caracteriza-se uma ultramaratona como qualquer corrida a pé com distância superior à da maratona, 42.195 m, sendo as mais populares
as de 50 km, 100 km e 100 milhas. Além da distância e variabilidade de terrenos, vários pontos diferenciam a ultra de uma maratona,
principalmente em relação aos aspectos fisiológicos. Atletas que competem em esportes de ultra-resistência devem gerenciar questões
nutricionais, especialmente no que diz respeito ao equilíbrio energético e à ingestão hídrica. Este trabalho teve por objetivo avaliar os
efeitos do exercício físico prolongado em uma atleta amadora de ultraendurance, detalhando as alterações hematológicas e bioquímicas
relacionadas 27 dias antes, 48 horas depois e 10 dias após a corrida, bem como apresenta as estratégias periodizadas de nutrição e
suplementação, considerando sua participação em uma ultramaratona de 100 km. Os resultados demonstraram que 48 horas após a
ultramaratona houve grandes alterações, principalmente nos marcadores inflamatórios avaliados, como PCR e CK, além dos marcadores
hepáticos, como TAG e TGP, marcadores do sistema renal, como creatinina e ureia, porém, com rápida recuperação dos parâmetros
avaliados 10 dias após a competição.

Palavras-chave: Ultraendurance, desempenho, corrida, biomarcadores fisiológicos, alimentação, suplementação.

Abstract
Ultramarathon is characterized as any walking race with a distance greater than the marathon, 42,195m, the most popular being those
of 50 km, 100 km and 100 miles. In addition to the distance and variability of terrain, several points differentiate the ultra from a mar-
athon, mainly in relation to the physiological aspects. Athletes who compete in ultra-resistance sports must manage nutritional issues,
especially with regard to energy balance and water intake. This study aimed to evaluate the effects of prolonged physical exercise in an
amateur ultraendurance athlete, detailing the related hematological and biochemical changes 27 days before, 48 hours after and 10
days after the race, as well as presenting the periodic nutrition and supplementation strategies, considering its participation in a 100
km ultramarathon. The results showed that 48 hours after the ultramarathon there were major changes, mainly in the inflammatory
markers evaluated, such as CRP and CK, in addition to the hepatic markers, such as TAG and TGP, markers of the renal system, such
as creatinine and urea, however, with rapid recovery of parameters evaluated 10 days after the competition.

Keywords: Ultraendurance, performance, running, physiological biomarkers, food, supplementation.


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27
Guilherme Cysne Rosa e Franciela Salete Santin

Introdução Diversas alterações bioquímicas também

A
foram relatadas por Fallon et al.5 durante uma
A participação de atletas amadores em competi- ultramaratona de 1.600 km, entre 10 e 16 dias,
ções desportivas aumentou consideravelmente nos embora tenham mostrado que uma série de
últimos anos, porém são as provas de ultraendu- variáveis também permaneceram dentro dos
rance ou de longa duração que despertam maior limites normais, apesar de grave estresse físico
fascínio1. A cada ano, verifica-se um número maior após a corrida. Os resultados mostraram aumento
de corredores de rua migrando para esse tipo de significativo na ureia, lactato, CK, TGO, TGP,
esporte, assim como profissionais e pesquisadores glicose, albumina, cálcio e fosfato, porém
da área da Saúde interessando-se nessas compe- diminuição significativa foi encontrada para
tições para gerar novos estudos que forneçam globulina, ácido úrico e colesterol. Nenhuma
informações sobre os benefícios e riscos desse alteração ocorreu no potássio sérico, bicarbonato,
estresse fisiológico. creatinina e triglicerídeos.
Denissen et al. 2 publicaram estudo sobre A ureia é o principal produto final do
os marcadores de lesão muscular e inflamação metabolismo das proteínas. A maior parte da
em ultramaratonistas durante três dias de ureia é filtrada pelos rins e eliminada pela urina6.
corrida. Os biomarcadores foram coletados Concentrações elevadas podem sinalizar uma
antes, imediatamente após e nas 24 e 72 horas possível aceleração do catabolismo das proteínas
subsequentes do pós prova. Tais biomarcadores musculares, o que poderia comprometer o
incluíam creatina quinase (CK), proteína C-reativa desempenho aeróbio e a potência muscular do
(PCR), cortisol, troponina T (cTnT) e osmolalidade atleta7. Um aumento na concentração de ureia pode
(sOsm), bem como mioglobina urinária (UMB), ser relacionado com a redução do fluxo sanguíneo
mudanças na massa corporal e dor muscular de renal (e da taxa de filtração glomerular) secundário
início tardio. Os autores constataram que aumentos à deficiência de volume de líquidos, ao aumento
significativos foram verificados na CK e PCR, não do catabolismo proteico e/ou sangramento para
tendo sido constatadas mudanças expressivas em o intestino, que podem, todos, ocorrer após uma
troponina T, cortisol e mioglobina urinária. Os ultraendurance.
autores concluíram que três dias consecutivos com A concentração de creatinina também aumenta
95 km de corrida em trilha resultaram em aumento geralmente após esforço prolongado, incluindo
dos marcadores de lesão muscular e inflamação, eventos como uma ultramaratona. O aumento
apesar da manutenção de uma frequência cardíaca na concentração plasmática de creatinina é
acima de 77%. provavelmente o resultado de sua liberação em
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020. doi: 10.32809/2176-4522.46.81.04

O exercício físico extenuante pode resultar consequência do trabalho muscular, desidratação


em prejuízo muscular, o qual é caracterizado e/ou redução no fluxo sanguíneo renal e da taxa
por microtraumas em nível de sarcômero de filtração glomerular.
e sarcolema desencadeados possivelmente Nesse sentido, linhas de estudos têm observado
por estresse mecânico, resposta inflamatória uma grande perturbação nas respostas inflamatória,
e estresse oxidativo 3,4. Esses microtraumas hematológica, de estresse oxidativo, prejuízo
representam danos na integridade da membrana e muscular e composição corporal em provas
no acoplamento excitação-contração do músculo de ultramaratonas. E, interessantemente, tem
esquelético e podem ser evidenciados por um sido proposto que essas respostas podem estar
aumento sérico de proteínas musculares, como entre os fatores fisiológicos determinantes da
a creatina quinase (CK), a lactato desidrogenase performance em ultramaratona8 ao lado de fatores
(LDH), as aminotransferases e a mioglobina, bem físicos, ambientais, psicológicos, motivacionais e
como pela dor muscular tardia e perda de força4. táticos9-11.

28
Efeitos fisiológicos do exercício físico prolongado: estudo de caso de uma atleta de ultraendurance

Estudo realizado no Brasil, no ano de 2009, que reuniram, de maneira mais completa, a sua
com 11 atletas participantes da Brazil 135 Ul- respectiva abordagem ao escopo deste artigo, de
tramarathon, ultramaratona de 217 quilômetros, forma a atender a discussão baseada nas palavras-
analisou as respostas inflamatórias e hematoló- chave aqui apresentadas: “ultraendurance”,
gicas desses atletas, bem como verificou se essas “desempenho”, “corrida”, “biomarcadores
respostas estavam correlacionadas com a perfor- fisiológicos”, “alimentação”, “suplementação”.
mance dos mesmos. Amostras de sangue foram
coletadas pré e pós-prova para determinação de Desenvolvimento
hemograma completo e de proteína C-reativa. Os
principais encontrados desse estudo foram que os A ultramaratona de que a atleta deste estudo
atletas que concluíram a Brazil 135 Ultramara- participou foi a TUTAN – Transmantiqueira
thon tinham valores significativamente elevados Ultratrail Agulhas Negras, realizada no dia
de leucócitos, neutrófilos, monócitos e proteína 20 de abril de 2019, com largada na cidade
C-reativa, valores significativamente reduzidos de de Itamonte - MG e chegada na cidade de
basófilos e que, apesar de os valores de eritrócitos, Rezende - RJ. Largaram 64 corredores, porém
hemoglobina, hematócrito, MCV e RDW terem concluíram a prova 40 ultramaratonistas dos sexos
permanecido mantidos, as concentrações de MCH, feminino e masculino. Nove corredores foram
MCHC e de plaquetas aumentaram após a prova. desclassificados, e outros 15 desistiram em algum
Além disso, maiores valores de leucócitos e neu- ponto da competição. O percurso da prova foi
trófilos ao final da corrida estiveram relacionados realizado em terrenos acidentados compostos de
com maior velocidade média e porcentagem de trilhas na mata (70%), estradões de terra (25%) e
velocidade crítica em que os atletas percorreram asfalto (5%), com altimetria acumulada de mais
a prova, bem como com menor tempo de pausa de 3.000 metros.
dos atletas. Essa competição possui importante relevância
Objetivando ampliar os estudos existentes no cenário internacional de ultramaratonas, uma
com atletas de ultraendurance, este trabalho teve vez que concede pontuação junto ao ITRA –
como objetivo avaliar os efeitos do exercício Internacional Trail Running Association, uma
físico prolongado em uma atleta amadora de associação mundial com normas e diretrizes
ultramaratona, 38 anos de idade, detalhando voltadas para a modalidade. A atleta em estudo foi
as alterações hematológicas e bioquímicas a campeã da prova no sexo feminino, realizando-a
relacionadas 27 dias antes, 48 horas depois e em 15:03:29, quebrando o recorde de tempo que
10 dias após a corrida, por meio de exames de até então era de 16:27:56. A segunda colocada
sangue e urina, bem como apresentar as estratégias fez a prova em 18:43:43, seguida da terceira,
periodizadas de nutrição e suplementação, que necessitou de 19:25:55 para concluir a
considerando sua participação em uma ultramaratona.
ultramaratona de 100 quilômetros.
Para esta revisão foram analisados trabalhos Ciclo de treinamento
publicados em base de dados como: PubMed,
Google Acadêmico e SciELO, buscando O ciclo de treinamento da atleta em estudo
selecionar artigos publicados recentemente. foi elaborado e acompanhado por profissional
Os descritores de busca utilizados foram: habilitado em educação física, treinador de
ultramarathon; endurance; nutritional strategies corrida com experiência internacional em provas
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and ultramarathon; biomarkers; nutritional de trail running. O ciclo se iniciou no mês de


supplements and ultramarathon. Os artigos fevereiro de 2019, com conclusão 3 dias antes
selecionados para a discussão foram aqueles da competição, realizada em 20 de abril de 2019.

29
Guilherme Cysne Rosa e Franciela Salete Santin

Nesse período, a atleta percorreu 850 quilômetros da tarde e jantar. Também foi dada especial aten-
em treinos variados, como fartleks, intervalados, ção à hidratação pré prova, sendo que houve o
regenerativos e os longões do final de semana, consumo diário de 2 litros de água, acrescida de
divididos em 5 treinos semanais de corrida. Além repositor eletrolítico, 4 dias antes da competição.
disso, como forma de fortalecer a musculatura, a As atividades de endurance geram uma eleva-
atleta realizou 2 treinos físicos semanais de 1 h ção do gasto energético com significativo aumento
das taxas de oxidação de carboidratos15. Durante
cada um, perfazendo 22 h totais nesse período.
o exercício físico, é importante que a suplemen-
Os treinos foram acompanhados por personal com
tação de carboidratos ingerida seja rapidamente
formação em educação física. absorvida, para que se mantenha a concentração
de glicose sanguínea, principalmente em esforços
Alimentação e suplementação realizados por períodos de tempo prolongados,
quando os depósitos endógenos de carboidratos
O impacto da nutrição no desempenho e na tendem a se reduzir significativamente17.
saúde humana tem sido foco de estudos que Durante a competição, a atleta utilizou-se de 40
buscam estabelecer estratégias dietéticas capazes a 50 g de carboidrato/hora por meio da ingestão
de aperfeiçoar o desempenho e a ergogênese12. A de comida (p.e.: batata inglesa, tâmaras, goiabada
nutrição bem equilibrada pode minimizar a fadiga, cascão, banana seca, castanhas de caju, damascos,
reduzir as lesões, otimizar os depósitos de energia, chocolate 70%, bisnagas de pão recheadas com
e finalmente, ajudar a saúde em um modo geral13,14. creme de castanhas, gel de carboidrato, entre ou-
Diante disso, durante o ciclo de treinamento tros), além da suplementação diluída em água que
de corrida e treino físico, a atleta foi orientada e também continha carboidratos de rápida, média
acompanhada por nutricionista, especialista em e lenta absorções, associados a doses específicas
nutrição ortomolecular, funcional e esportiva. de creatina e BCAA, que era ingerida a cada 10
Toda a alimentação e suplementação prescritas minutos em forma de pequenos goles durante toda
estavam em consonância com a periodização do a ultramaratona. Além disso, no período noturno
treinamento, e o que foi utilizado na competição da prova a atleta utilizou-se de uma combinação
foi testado anteriormente durante os treinos, de cápsulas de cafeína, associadas a L-taurina
objetivando gerar processo adaptativo e sublingual.
maximização dos resultados. Conforme Jeukendrup18, existe uma relação
As atividades de endurance promovem elevação direta entre a ingestão alimentar do atleta e seu
do gasto energético, com aumento significativo desempenho na prática esportiva, sendo funda-
das taxas de oxidação de carboidratos15. Para a mental que as necessidades de nutrientes e energia
reposição dos estoques de carboidratos torna- sejam satisfeitas. Em provas de endurance, o des-
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020. doi: 10.32809/2176-4522.46.81.04

se necessário um aumento da ingestão de CHO gaste físico dos atletas promove uma significativa
durante todo o período de competição (antes, demanda energética e substancial aceleração do
durante e após), e essa manipulação dietética é metabolismo. A rotina exaustiva de treinamento
uma prática cientificamente comprovada como físico conduz a alterações consideráveis nas ne-
benéfica para o desempenho no exercício16. cessidades nutricionais de um atleta19.
No período pré evento, estudos aconselham As refeições e estratégias de hidratação e uso
o armazenamento de energia muscular. Diante de recursos ergogênicos nos períodos pré, durante
disso, 3 dias anteriores à prova ocorreu aumento e principalmente pós-exercício devem focar no
significativo no consumo de carboidratos, apro- fornecimento de energia e nutrientes adequados
ximadamente 230 gramas por refeição no almoço às características daquele esforço. Falhas relacio-
e jantar. Além disso, foi realizada saturação de nadas a esses períodos de ingestão podem provo-
alguns suplementos 7 dias antes da competição, car sintomas como tonturas e náuseas durante o
sendo ingeridas doses específicas de beta-alanina, exercício, muitas vezes ocasionados por escolha
bicarbonato de sódio e creatina juntamente com de alimentos com índice glicêmico, quantidade,
café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche perfil lipídico e outras estratégias inadequadas20-22.
30
Efeitos fisiológicos do exercício físico prolongado: estudo de caso de uma atleta de ultraendurance

Nesse sentido, logo após a competição do treinamento da atleta em questão elaborado por
a atleta se utilizou de suplementação 4:1, seu treinador, período esse em que se iniciava a
que ofereceu uma combinação de 4 partes de redução dos volumes de treino.
carboidrato com diferentes perfis de absorção A coleta laboratorial 48 horas após a
(rápida, intermediária e lenta) para 1 parte ultramaratona de 100 km e 10 dias subsequentes
de proteína, associada a blend de vitaminas e se deu por questões de logística de retorno da
minerais, objetivando proporcionar um rápido prova e após 1 semana de repouso.
reabastecimento de energia, além de cápsulas de Os resultados demonstraram que 48 horas
ômega-3, doses específicas de glutamina, BCAA após a ultramaratona houve grandes alterações
e um composto de probióticos manipulados em principalmente nos marcadores inflamatórios
farmácia especializada, com foco em reduzir avaliados, como PCR e CK, além dos marcadores
possíveis quedas no sistema imunológico. Nos hepáticos como TAG e TGP, marcadores do
4 dias subsequentes à competição, o cuidado sistema renal, como creatinina e ureia, porém, com
com a hidratação permaneceu, e a atleta fez uso rápida recuperação dos parâmetros avaliados 10
diário de repositor eletrolítico diluído em água, dias após a competição.
além da alimentação, que permaneceu rica em As tabelas abaixo representam os parâmetros
carboidratos. avaliados, considerando coleta de sangue e urina
Objetivando avaliar os efeitos do exercício 27 dias antes da competição, 48 horas após e 10
físico prolongado, a atleta em estudo realizou dias subsequentes ao término da ultramaratona.
coleta de sangue e urina em laboratório autorizado O objetivo foi verificar as alterações decorrentes
27 dias antes da competição. Justifica-se esse do esforço físico extenuante, bem como verificar
período de coleta, tendo em vista a periodização a recuperação da atleta posteriormente.

Tabela 1. Comportamento hematológico de inflamação e dano tecidual pré, 48 h após e 10 dias pós
competição em atleta amadora de ultraendurance.

27 dias antes 48 h pós 10 dias pós


Parâmetros
da prova prova prova
Creatinina 1,02 mg/dl 1,03 mg/dl 0,98 mg/dl

Creatina quinase (CK) 222 U/l 2.598 U/l 96 U/l

Proteína C-reativa (PCR) 2,07 mg/l 87,3 mg/l 1,37 mg/l

Desidrogenase láctica 198 U/l 376 U/l 187 U/l

Transaminase ALT (TGP) 22 U/l 97 U/l 26 U/l

Transaminase AST (TGO) 22 U/l 162 U/l 20 U/l

Ureia 50 mg/dl 54 mg/dl 47 mg/dl

Cortisol 23,17 mcg/dl 19,73 mcg/dl 34,93 mcg/dl


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31
Guilherme Cysne Rosa e Franciela Salete Santin

Tabela 2. Comportamento do hemograma pré, 48h após e 10 dias pós competição em atleta amadora
de ultraendurance.

27 dias antes 48 h pós 10 dias pós


Parâmetros
da prova prova prova
EXAME FÍSICO-QUÍMICO
Cor Amarela Amarela Amarela
Aspecto Turvo Turvo Turvo
Densidade 1.034 1.036 1.033
pH 6 7,5 6
Proteína Negativa Positiva (+) Negativa
Glicose Negativa Negativa Negativa
Cetonas Negativa Negativa Negativa
Bilirrubinas Negativa Negativa Negativa
Sangue Negativa Positiva (+) Negativa
Urobilinogênio Negativa Negativa Negativa
Nitrito Negativa Negativa Negativa
ANÁLISE DE ELEMENTOS FIGURADOS
Leucócitos 76.500 p/ml 35.400 p/ml 45.200 p/ml
Hemácias 22.800 p/ml 5.600 p/ml 18.700 p/ml
Células epiteliais 129.000 p/ml 130.000 p/ml 201.000 p/ml
Bactérias 3.995 p/mcl 1.791 p/mcl 5.391 p/mcl
Cilindros Inferior a Inferior a Inferior a
1.000 p/ml 1.000 p/ml 1.000 p/ml

Conclusão
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020. doi: 10.32809/2176-4522.46.81.04

Nossos achados mostraram valores muito ter sido importantes fatores de proteção para a
elevados de creatina quinase, assim como atleta, que demonstrou rápida recuperação dos
tendências de dano hepático (TGO e TGP), que marcadores relacionados apenas sete dias após a
podem ser explicados pela sobrecarga decorrente competição.
da lesão tecidual cardíaca e musculoesquelética O efeito a longo prazo de alterações com a
que ocorre após exercício físico prolongado, manutenção da prática desse tipo de atividade
porém com regressão expressiva dos valores que ainda é desconhecido. Porém os estudos têm de-
retornaram aos parâmetros normais após 10 dias monstrado importantes alterações hematológicas,
de repouso ativo. bioquímicas e até mesmo cardíacas em atletas de
A hiponatremia não foi um achado consistente, ultraendurance, o que demonstra a importância
e, embora outros fatores possam ter sido da continuidade de pesquisas ainda mais aprofun-
considerados importantes, a ingestão provável dadas nesse campo e com um número maior de
de alimentos sólidos, utilização de eletrólitos atletas amadores de ultramaratonas.
e bebidas com concentração de glicose podem

32
Efeitos fisiológicos do exercício físico prolongado: estudo de caso de uma atleta de ultraendurance

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33
Ticiane Aragão da Silveira Gomes

Modulação nutricional no
transtorno do espectro autista -

um estudo de caso

Nutritional modulation in autism spectrum disorder - a case study

Resumo
O transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio de desenvolvimento neurológico complexo e geneticamente heterogêneo caracterizado
por comprometimento das habilidades sociais, falta de recursos verbais e não verbais, além de alterações comportamentais estereotipadas
e repetitivas. Dentre os problemas mais frequentemente identificados em indivíduos autistas estão patologias gastrointestinais, carências
de vitaminas e de minerais, deficiências nos processos de destoxificação e metilação. Atualmente, várias formas alternativas de tratamento
têm sido propostas, dentre as quais se incluem dietas isentas de glúten e caseína, associadas a suplementações de vitaminas, minerais,
ômega-3, probióticos e antioxidantes, além de enzimas digestivas para auxiliar nos problemas gastrointestinais tão presentes nesses
pacientes. O objetivo do presente estudo foi relatar um caso de um paciente com TEA, com a meta de equilibrar a microbiota, reduzindo
a inflamação intestinal e cerebral, melhorar a digestão e absorção dos nutrientes e reduzir a carga tóxica do organismo, por meio da
implementação de uma dieta de exclusão de alimentos que contivessem glúten e caseína, associada à suplementação individualizada
com micronutrientes que auxiliariam na melhora dos sinais e sintomas. Foram realizadas quatro consultas, compostas de avaliação
nutricional pelos parâmetros antropométricos, bioquímicos, dietéticos e exame clínico nutricional, através da teia das interconexões
metabólicas. Após as avaliações, foi elaborada a prescrição de plano alimentar e de suplementação individualizada. Concluiu-se que a
intervenção nutricional levou a um resultado positivo, com a melhora da maioria dos sinais e sintomas apresentados pelo paciente. Para
estabelecer a conduta nutricional utilizada na prescrição do plano dietoterápico e suplementação foi realizada uma revisão bibliográfica
através das plataformas Scielo, MEDLINE, PubMed e Lilacs, utilizando os seguintes termos: português e inglês, “autismo” relacionado
a “nutrição”, “dieta”, “suplementação”, “distúrbio gastrointestinal”, “eixo intestino-cérebro”, “gestação”.
Palavras-chave: Autismo, nutrição, dieta, eixo intestino-cérebro, suplementação.
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020 doi: 10.32809/2176-4522.46.81.05

Abstract
Autism spectrum disorder (ASD) is a complex and genetically heterogeneous neurodevelopmental disorder characterized by impaired
social skills, lack of verbal and non-verbal resources, in addition to stereotyped and repetitive behavioral changes. Among the problems
most frequently identified in autistic individuals are gastrointestinal disorders, deficiencies in vitamins and minerals, deficiencies in the
processes of detoxification and methylation. Currently, several alternative forms of treatment have been proposed, including gluten-free
and casein-free diets, associated with supplementation of vitamins, minerals, omega 3, probiotics and antioxidants, in addition to digestive
enzymes to assist in gastrointestinal problems, a frequent issue between such patients. The objective of the present study was to report
a case of a patient with ASD, with the goal of balancing the microbiota, reducing intestinal and cerebral inflammation, improving the
digestion and absorption of nutrients and reducing the toxic load of the organism, through the implementation of an exclusion diet of
foods containing gluten and casein, associated with individualized supplementation with micronutrients that would help in the improve-
ment of signs and symptoms. Four consultations were held, consisting of nutritional assessment of anthropometric, biochemical, dietary
parameters and clinical nutritional examination, through the web of metabolic interconnections. After the evaluations, the prescription
of a diet plan and individualized supplementation was prepared. It was concluded that the nutritional intervention led to a positive
result, with the improvement of most of the signs and symptoms presented by the patient. To establish the nutritional conduct used in
the prescription of the dietary plan and supplementation, a bibliographic review was carried out through Scielo, MEDLINE, PubMed
and Lilacs platforms, using the following terms: Portuguese and English, "autism" related to "nutrition", "diet", “supplementation",
“gastrointestinal disorder", “gut-brain axis", "pregnancy".
Keywords: Autism, nutrition, diet, gut-brain axis, supplementation..
34
Modulação nutricional no transtorno do espectro autista – um estudo de caso

Introdução associada, ambiente, medicamentos, prática

O
de exercícios, tipo de parto, comportamentos
O transtorno do espectro autista (TEA) é cognitivos e sociais, estresse, medo e ingestão de
um distúrbio de desenvolvimento neurológico alimentos8.
complexo e geneticamente heterogêneo O microbioma pode produzir efeitos locais
caracterizado por comprometimento das e sistêmicos na biologia do hospedeiro. A
habilidades sociais, falta de recursos verbais e ruptura de uma composição equilibrada do
não verbais, além de alterações comportamentais microbioma intestinal, denominada disbiose,
estereotipadas e repetitivas1,2. pode causar inflamação intestinal crônica, que
Sua etiologia multifatorial envolve uma pode estar relacionada ao TEA 10. O sistema
interação complexa de fatores genéticos e fatores imunológico também atua como uma das rotas
de risco ambientais, com alterações imunes e para a comunicação intestino-cerebral11.
deficiência de conexão sináptica no início da vida.   I n d i v í d u o s c o m T E A g e r a l m e n t e
Evidências sugerem que haja um conjunto de apresentam problemas de saúde gastrointestinal,
múltiplos genes defeituosos e fatores ambientais incluindo problemas de motilidade intestinal,
desempenhando uma ação catalisadora. Segundo autoimunes e / ou outras respostas adversas a certos
Fakhoury3, existe uma desregulação do sistema alimentos e falta de absorção de nutrientes. Esses
imunológico, além de inflamação, exposição problemas podem ser causados ​​ou exacerbados por
a tóxicos e uma relação com a microbiota padrões comportamentais restritivos (por exemplo,
intestinal3,4. preferência por alimentos doces, salgados e/ou
Dados atuais dos Centros de Controle de recusa de alimentos saudáveis). Os indivíduos com
Doenças mostram que o autismo afeta 1 em cada problemas gastrointestinais tendem a demonstrar
58 indivíduos com menos de 21 anos que vivem mais déficits comportamentais (por exemplo,
nos EUA. Isso representa um aumento de 15% irritabilidade, agitação, hiperatividade) e também
na prevalência em relação à taxa anterior de 1 tendem a ter um desequilíbrio na composição geral
em 68, ressaltando a urgência de mais pesquisas do microbioma intestinal, corroborando vários
relacionadas a etiologia do TEA5. Além disso, estudos que implicaram vias cérebro-intestinais
alguns estudos mostram que o TEA ocorre quatro como potenciais mediadores da disfunção
vezes mais em meninos do que em meninas6,7. comportamental12.
Embora o TEA possa ser classicamente De acordo com o manual de orientação da SBP13
pensado como um distúrbio neurológico em sua sobre TEA, aproximadamente 91% das crianças
patologia, estudos relatam que o microbioma autistas apresentam distúrbios gastrointestinais
intestinal tem desempenhado um importante como distensão gasosa, constipação, diarreia e
papel no eixo bidirecional intestino-cérebro, o dor abdominal.
qual integra as atividades relacionadas ao intestino Outros sintomas também relatados nesses
e ao sistema nervoso central. Dessa forma, o pacientes são: dor abdominal, azia, refluxo
conceito eixo microbioma-intestino-cérebro gastroesofágico e flatulência 10. Um estudo 14
tem sido bastante estudado nos últimos anos. Os mostrou que constipação era o sintoma
estudos estão revelando como diversas formas gastrointestinal mais prevalente em crianças
de distúrbios neuroimunes e neuropsiquiátricos com TEA: 85% de acordo com relatos dos pais e
estão correlacionados e ou modulados por avaliações das crianças por gastroenterologistas.
variações no microbioma. Por conseguinte, Crianças autistas com sintomas gastrointestinais
o intestino provavelmente está envolvido na apresentam uma maior prevalência em relação
fisiopatologia de diversas desordens do sistema aos distúrbios do sono, comparadas com o
nervoso central, incluindo o TEA8,9. estado geral da população que não tem sintomas
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Existem muitos fatores que demonstraram ter gastrointestinais e com irmãos15,16. Além disso, os
um efeito modulador no cérebro e na microbiota, sintomas gastrointestinais estão significativamente
incluindo hereditariedade congênita e epigenética correlacionados com insônia e parassonias17.

35
Ticiane Aragão da Silveira Gomes

No estudo de Horvarth e Perman15 O tratamento nutricional sugerido para os


foram descritas alterações patológicas na pacientes com TEA baseia-se no controle dos
permeabilidade intestinal, alteração na acidez sintomas do trato gastrointestinal (TGI) e
gástrica e diminuição da atividade enzimática na implementação de uma dieta de exclusão
digestiva em crianças com espectro autista. (glúten e caseína) associada à suplementação
No estudo de Ashwood e Wakefield18 com 50 individualizada com micronutrientes que irão
crianças autistas com queixas gastrointestinais, auxiliar na melhora dos sinais e sintomas23,24.
foi observada hiperplasia de linfonodos no íleo A dieta demonstrou ser um dos fatores
de 93% e no cólon de 30% das crianças, bem ambientais mais influentes que modulam a
como colite em 88% delas. composição da microbiota intestinal, o cérebro e
Então, o desequilíbrio na microbiota intestinal, o comportamento. Dados clínicos e pré-clínicos
em que microrganismos de baixa virulência mostraram como diferentes fontes de dieta afetam
tornam-se patogênicos, cria condições de maior significativamente a composição da microbiota
permeabilidade, e com a disbiose surge a perda intestinal e o humor em indivíduos diagnosticados
da permeabilidade seletiva, com translocação com transtornos como TEA8.
de produtos bacterianos, alérgenos alimentares O objetivo do presente estudo foi relatar um
e metais tóxicos, gerando reações inflamatórias caso de um paciente com TEA, com a meta de
e imunológicas sistêmicas, além da absorção equilibrar a microbiota, reduzindo a inflamação
reduzida de minerais e vitaminas19. intestinal e cerebral, melhorar a digestão e
Pacientes com TEA frequentemente apresentam absorção dos nutrientes e reduzir a carga tóxica
sintomas gastrointestinais e manifestações do organismo, por meio da implementação de uma
comportamentais significativas associadas, tais dieta de exclusão de alimentos que contivessem
como ansiedade, autolesão e agressão20. Em um glúten e caseína, associada à suplementação
estudo De Magistris et al.21, verificou-se uma individualizada com micronutrientes que iriam
maior porcentagem de anormalidade intestinal, auxiliar na melhora dos sinais e sintomas.
com alterações na permeabilidade em 36,7% dos
pacientes com TEA em comparação com crianças Materiais e Métodos
controle (4,8%). Um aumento da permeabilidade
intestinal resulta em uma carga antigênica mais O presente estudo refere-se a um acompanha-
alta do sistema gastrointestinal, com linfócitos mento nutricional individualizado de um paciente
e citocinas associadas como interleucina-6, pediátrico, do sexo masculino, com diagnóstico
interferon-g (IFN-g) e fator de necrose tumoral pelo neurologista de autismo moderado, baseado
(TNF-a), os quais estão presentes na circulação e na quinta edição do Manual Estatístico e Diag-
atravessam a barreira hematoencefálica. nóstico da Associação Americana de Psiquiatria
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020 doi: 10.32809/2176-4522.46.81.05

Nesse cenário, a mucosa e a microbiota (DSM-V)25. Foram realizadas quatro consultas,


intestinal desempenham um papel importante na nas quais foram aferidas as medidas de peso, altura
maturação e modulação do sistema imunológico. e circunferências de cintura, estando o paciente
O relacionamento entre a microbiota intestinal com roupas leves e sem sapatos.
e o sistema imunológico é bidirecional11. Em Nas consultas foram aplicadas algumas
modelos de camundongos com TEA, ativações ferramentas para avaliação do paciente, dentre
imunológicas resultam em alterações intestinais as quais: avaliação nutricional pelos parâmetros
e microbianas que, por sua vez, trazem como antropométricos, bioquímicos, dietéticos, para
consequência déficits na sociabilidade, na avaliar a presença de cada sintoma baseado em
comunicação e comportamentos repetitivos22. seu perfil de saúde, e exame clínico nutricional
Sendo assim, o controle da microbiota intestinal através da teia das interconexões metabólicas,
desses pacientes é um dos objetivos do tratamento instrumento usado na nutrição funcional para
clínico nutricional, contribuindo para minimizar identificar os possíveis gatilhos, antecedentes
tais sintomas gastrointestinais e comportamentais. e mediadores do caso em questão, excelente

36
Modulação nutricional no transtorno do espectro autista – um estudo de caso

ferramenta de auxílio para ampliar os aspectos balança da marca Inbody®, com capacidade para
integrativos do paciente, já que representa as 250 kg e resolução de 0,1 kg.
interrelações que ocorrem no metabolismo, O critério utilizado para avaliação dos
como os mecanismos bioquímicos, hormonais, resultados dos parâmetros antropométricos foi a
neurológicos, imunológicos e químicos26. classificação pelas curvas de referência da OMS
Após as avaliações, foi proposto um tratamento 200727. Utilizando a idade e valores de peso,
nutricional, com a elaboração de um plano estatura e IMC, foram classificados os indicadores
alimentar e a prescrição de suplementação de P/I, E/I e IMC/I28.
forma individualizada. Dessa forma, o diagnóstico antropométrico
A metodologia empregada na revisão indicou magreza acentuada para a idade (IMC
bibliográfica para embasamento das condutas 11,35 Kg/m2, Escore-z < -3), muito baixo peso
envolveu o levantamento de artigos indexados para a idade (P/I Escore-z < -3) e estatura adequada
através das plataformas Scielo, MEDLINE, para a idade (E/I Escore-z < -1).
PubMed e Lilacs, utilizando os seguintes termos: Em relação à anamnese nutricional, a mãe
português e inglês, “autismo” relacionado a descreveu que a criança era muito seletiva e,
“nutrição”, “dieta”, suplementação”, “distúrbio apesar de não ter problemas com a textura dos
gastrointestinal”, “eixo intestino-cérebro”, alimentos, consumia quase todas as refeições
“gestação”. A pesquisa foi realizada no período por mamadeiras (vitamina de frutas e cereais,
de fevereiro a abril de 2020. Salienta-se que os hortaliças, leguminosas e carnes liquidificadas),
trabalhos encontrados foram triados a partir dos todas adicionadas com leite de vaca integral e
resumos, sendo selecionados para discussão os mucilagens contendo grandes quantidades de
artigos que apresentaram em seu conteúdo uma glúten e açúcar. O paciente apresentava uma
associação direta entre os termos pesquisados, ingestão alimentar abaixo das suas necessidades
tornando-se relevantes para a revisão aqui de macro e micronutrientes.
apresentada. Foram excluídos os artigos que, Em relação aos dados bioquímicos, observaram-
embora contemplassem o tema, não abordassem se as seguintes alterações nos exames: pesquisa
uma consonância científica na sua intervenção de polimorfismo no gene MTHFR indicou
nutricional. mutação heterozigótica no cromossomo C677T,
sinalizando uma baixa atividade enzimática;
Detalhamento do caso estudado hemoglobina glicada elevada de 5,7% indicando
risco aumentado para desenvolver diabetes;
Paciente, sexo masculino, com idade de 5 anos hipertrigliceridemia de 138 mg/dl; ferritina
e 4 meses, residente da cidade de Fortaleza, Ceará. baixa de 7,9 ng/ml; zinco eritrocitário baixo de
Nasceu de parto prematuro, cesárea, com 32 430,6 μg/dl; hipovitaminose D de 16,41 ng/ml;
semanas de gestação, com 1.700 gramas, devido e alumínio elevado de 15,7 μg/l. Além disso, o
provavelmente a uma amniorrexe prematura. exame de coprologia funcional apresentou muco,
Ficou internado na UTI por cerca de 30 dias indicando provavelmente estado inflamatório da
e mamou exclusivo por apenas dois dias. Ainda mucosa intestinal, presença numerosa de fungos
no berçário da UTI, recebeu fórmula infantil e leveduras, flora bacteriana aumentada, presença
antirregurgitação de proteína intacta, apresentou de amido e fibras bem e mal digeridas.
muitas cólicas e distensão abdominal, e a fórmula De acordo com a descrição da mãe, a criança
foi substituída por fórmula infantil extensamente apresentava dificuldades com o sono, despertava
hidrolisada sem lactose. de madrugada e passava horas acordada andando
Referente ao estado nutricional, a medida da pela casa, só vindo a adormecer novamente pela
estatura foi obtida por meio de um estadiômetro manhã. Também rangia muito os dentes enquanto
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digital de parede da marca Inbody®, com dormia.


resolução de 1 mm e altura máxima de 210 cm; Mãe relatou que a criança apresentou dificul-
enquanto o peso foi obtido pela utilização de uma dades de interação social desde o nascimento,

37
Ticiane Aragão da Silveira Gomes

sendo esse o único sintoma até os 3 anos de idade. sobre sinais e sintomas gastrointestinais,
Com 3 anos, começou a apresentar algumas este- preferências e aversões e exame físico nutricional,
reotipias e crises de birra. Com 3 anos e 6 meses, no primeiro momento foi implementado um
parou de falar e perdeu algumas habilidades. Já plano alimentar individualizado, com exclusão
sabia o seu próprio nome completo, o nome dos de possíveis alérgenos e alimentos que formam
pais, o nome das cores, reconhecia os números, compostos opioides que continham glúten,
reconhecia parentes em fotos e respondia sobre caseína, soja e açúcar, por serem proteínas mais
todas essas coisas quando era perguntada. Adorava difíceis de digerir. Além disso, houve redução de
cantar. Com 3 anos e 6 meses perdeu todas essas aditivos químicos e disruptores endócrinos, com
habilidades. o objetivo de equilibrar a microbiota, reduzindo
Pelo exame físico, foram observadas na criança a inflamação intestinal e cerebral, melhorando a
olheiras, distensão abdominal, pele ressecada, digestão e absorção dos nutrientes e reduzindo
saburra lingual e urticária papular causada por a carga tóxica do organismo, adequado às
alergia a picada de mosquitos. necessidades do paciente. A prescrição nutricional
Em relação à função intestinal do paciente, a contou com uma dieta com baixo teor de
mãe referiu histórico de fezes muito volumosas oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos
e dificuldades para evacuar, levando à formação e poliálcoois fermentáveis (FODMAPs) para
de fecalomas algumas vezes. Passou a fazer uso auxiliar a modificar favoravelmente a microbiota
de laxantes e, ainda assim, o paciente ficava às intestinal, diminuir a formação de gases e
vezes por três dias sem defecar. Também foi restaurar as anormalidades nas células endócrinas
relatada flatulência, com evacuação oscilando gastrointestinais.
entre constipação e diarreia, e, conforme a Escala Nessa etapa, destacou-se também a orientação a
de Bristol, suas fezes se encontravam entre os uma dieta ecológica, priorizando alimentos livres
números 1 e 7. de agrotóxicos, pesticidas e aditivos, visando a
No consultório, a criança apresentou compor- melhora da microbiota intestinal. Além disso, para
tamento hiperativo e ansioso, não passando mais eliminar patógenos como fungos e leveduras, foi
do que cinco minutos brincando com o mesmo sugerido adicionar o consumo de óleo de coco,
brinquedo nem parada no mesmo lugar, sempre alho, cebola, orégano, cúrcuma, tomilho, sementes
andando de um lado para o outro. de abóbora e ervas antiparasitárias, antifúngicas
Em relação à teia de interconexões metabólicas, e antibacterianas, associado a um adequado
foram registrados antecedentes como o parto consumo de banana verde e farelo de aveia sem
prematuro e o consumo de fórmulas lácteas desde glúten como fontes de prebióticos e líquidos como
os primeiros dias de vida, gatilhos como disbiose água saborizada e chás digestivos como hortelã,
intestinal, sono inadequado e dieta inflamatória, erva-doce e chá da casca do abacaxi.
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020 doi: 10.32809/2176-4522.46.81.05

apresentando provavelmente excesso de radicais Ainda, foi associada suplementação específica


livres, citocinas inflamatórias e neuropeptídeos com enzimas digestivas e probióticos com as
como mediadores, influenciando nos sinais e seguintes cepas: Lactobacillus acidophilus,
sintomas do paciente. Lactobacillus rhamnosus, Lactobacillus
paracasei, Lactobacillus reuteri e Lactobacillus
Detalhamento da conduta nutridiconal plantarium, e as do gênero Bifidobacterium, sendo
Bifidobacterium bifidum, Bifidobacterium longum e
No acompanhamento nutricional de crianças Bifidobacterium lactis, e Saccharomyces boulardii,
com TEA, tornam-se imprescindíveis a prevenção nesse primeiro momento, por contribuírem
e o tratamento dos fatores etiológicos que podem para uma regulação do processo inflamatório,
estar presentes. Depois de realizada toda a equilibrando as citocinas inflamatórias, e por
investigação dos parâmetros antropométricos, auxiliarem no restabelecimento da barreira
bioquímicos, dietéticos, além da anamnese intestinal, diminuindo fungos e leveduras e, com
alimentar com histórico de alergias, informações isso, favorecendo a melhora da digestão e absorção

38
Modulação nutricional no transtorno do espectro autista – um estudo de caso

dos nutrientes e a diminuição dos sintomas. de levar objetos ou a mão à boca e continuava não
Na segunda etapa, foi mantido o plano alimentar se interessando muito pelas atividades escolares,
com evolução nas texturas, já que o paciente teve apesar de estar interagindo mais com outras
uma boa adesão à conduta sugerida. De acordo crianças, permitindo que os colegas brincassem
com a melhora significativa da maioria dos com ele.
sintomas apresentados, como sintomas gástricos Nesse contexto, a prescrição de probióticos para
e função intestinal, foi incluída a prescrição de: pacientes com TEA, segundo Critchfield et al.29, é
vitamina A, vitaminas do complexo B, vitaminas baseada em três pilares: primeiro, no tratamento
C, D, E, K; minerais como magnésio, ferro, da síndrome do intestino irritável (SII), devido
zinco, vanádio, entre outros; aminoácidos como às semelhanças dos sintomas gastrointestinais
lisina, carnitina, carnosina; fitoquímicos, como presentes em ambas as doenças, uma vez
coenzima Q10, visando a prevenção e correção de que a melhora dos pacientes com SII após os
deficiências nutricionais; e ácidos graxos ômega-3, probióticos já está bem estabelecida, melhorando
por seu papel antinflamatório e imunomodulador, os sintomas gastrointestinais, como distensão e dor
no intuito de auxiliar na melhora dos sinais e abdominais, entre outros; em segundo lugar, pela
sintomas de comportamento, memória e cognição. elevada quantidade de espécies de Clostridium
A exclusão de açúcar também permaneceu, encontrada nas crianças com TEA associadas com
uma vez que ele favorece a disbiose nas crianças problemas gastrointestinais, o comportamento e
autistas. Sendo necessária a restrição por tempo a comunicação melhoraram durante o período
mais prolongado, o açúcar foi substituído por de tratamento, implicando na correção do
edulcorantes naturais à base de esteviosídio equilíbrio microbiano da microbiota intestinal
e taumatina. Da mesma forma, continuou pelo mecanismo de ação dos probióticos29; em
a recomendação para evitar alimentos que terceiro lugar, pelo aumento da permeabilidade
contenham corantes como tartrazina e vermelho intestinal encontrada no autismo, a qual pode
carmoisine, edulcorantes artificiais à base de ser melhorada pelos probióticos, pois eles
aspartame e conservantes à base de benzoato e são capazes de estabilizar a barreira mucosa e
glutamato de sódio19. reduzir supercrescimento bacteriano, sintetizar
As condutas foram orientadas no período de antioxidantes, aumentar a expressão de mucina
dezembro de 2018 a novembro de 2019, sendo e estimular a imunidade da mucosa, melhorando,
cada consulta realizada com posterior reavaliação assim, sua permeabilidade intestinal29.
por um período de 30 dias. Ao longo do acompanhamento nutricional,
o paciente apresentou melhoras nos sintomas
Resultados e discussão gastrointestinais de uma maneira geral, função
intestinal mais controlada (fezes no tipo 3
No decorrer do acompanhamento nutricional, o na Escala de Bristol) e, depois da prescrição
paciente teve uma boa adesão à conduta sugerida. de uma suplementação individualizada de
Na segunda consulta, a mãe do paciente descreveu vitaminas, minerais, fitoquímicos e ômega-3, a
melhora significativa nos sintomas digestivos, mãe relatou que houve uma melhora progressiva
função intestinal mais controlada, e, segundo a no comportamento da criança (mais falante,
Escala de Bristol, as fezes estão nos tipos 3 e 4. dizendo palavras e frases soltas, algumas vezes
Com o uso dos probióticos e da banana verde, além com função e outras não). Também passou a
da suspensão de alimentos com glúten, lácteos, responder bem melhor aos comandos e conseguir
açúcar e da redução dos alimentos industrializados ficar um tempo maior participando de atividades
em geral, o paciente obteve melhora nos sintomas com outras crianças.
intestinais, diminuiu a distensão abdominal e a Importante salientar que, nas primeiras consul-
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constipação, e o sono se tornou mais regular. Mas tas, a prioridade foi remover os alimentos da dieta
ainda apresentava, segundo relato da mãe, crises que estavam causando inflamação e uma provável
de birra, embora menos frequentes, além da mania síndrome desabsortiva, prejudicando o desenvol-

39
Ticiane Aragão da Silveira Gomes

vimento e a saúde da criança, substituindo por uma a base de mandioca (polvilho doce e azedo),
alimentação anti-inflamatória, antioxidante e livre farinhas de leguminosas (grão-de-bico) e de
de glúten, leite e soja. Tratar o aparelho digestivo oleaginosas (amêndoas, castanhas) e amido de
foi o passo seguinte, fornecendo enzimas digesti- milho. Em relação ao leite animal, foi sugerida a
vas por meio da inclusão de chás digestivos (150 troca por um rodízio de leites vegetais, acrescidos
ml após as refeições) contendo alecrim, sálvia, de proteína vegetal, e um aumento no cardápio de
cidreira, canela, erva-doce ou hortelã e frutas como alimentos ricos em cálcio, como gergelim, chia,
abacaxi e mamão, que melhoram a digestão das aveia, grão-de-bico, sardinha e ovos.
proteínas, associados à suplementação de clori- Deficiências no processamento sensorial
drato de betaína, proteases, lipases e sacaridases, também são extremamente comuns, afetando
além de prebióticos, como banana verde e aveia, e muitas áreas da vida diária, incluindo o comer. As
probióticos, recuperando o intestino e restituindo crianças com TEA são frequentemente descritas
os nutrientes23. como seletivas35.
A dieta de exclusão de glúten, soja e caseína é Na primeira consulta, a mãe relatou que
baseada na alteração da permeabilidade intestinal, a criança era muito seletiva: não tinha problemas
a qual torna ineficiente a digestão das proteínas do com a consistência e nem com as texturas dos
leite e do trigo, gerando peptídeos de cadeia curta, alimentos, mas apresentava alguma alteração
estruturalmente semelhantes a opioides, capazes sensorial com a textura de certos tecidos e com
de adentrar o sangue e a barreira hematoencefálica, determinados sons.
trazendo, assim, repercussões negativas30. Vários fatores podem contribuir para a
Ressalta-se que, no cérebro, os opioides seletividade de alimentos, e um número de
gerados pela caseína (caseomorfinas) e pelo explicações têm sido propostas36,31. Um desses
glúten (gluteomorfinas) podem passar através fatores refere-se à sensibilidade sensorial:
da mucosa intestinal e atravessar a barreira tátil, oral e olfativa. Tem sido sugerido que a
hematoencefálica, atingindo o sistema nervoso sensibilidade sensorial pode levar crianças com
central e promovendo ações semelhantes às TEA a restringir a ingestão de alimentos somente
que ocorrem em usuários de morfina, podendo aos preferidos, toleráveis, e texturas agradáveis
afetar os lobos temporais e causar dificuldades por longos períodos37. A textura é identificada
na fala e na integração da audição, redução das como um aspecto fundamental relacionado à
células nervosas do sistema nervoso central e aceitação de alimentos, o que reforça que a
inibição de alguns neurotransmissores. Além sensibilidade sensorial pode ser um fator que
disso, tais compostos opioides são capazes de contribui negativamente para a seletividade de
bloquear receptores dopaminérgicos, causando alimentos.
derramamento de dopamina no líquido Resultados de vários estudos fornecem
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cefalorraquidiano ou na urina, podendo afetar, evidências de que crianças com dietas mais restritas
dessa forma, a fala, a percepção, a emoção, o têm maior risco de inadequações nutricionais, até
humor e o comportamento dos pacientes31,32,19,33. porque a seletividade alimentar severa em crianças
Além disso, tem sido relatado um aumento com TEA envolve a omissão frequente de vegetais
de anticorpos IgA contra a caseína e a gliadina, e frutas38, ressaltando a necessidade de estabelecer
com liberação de citocinas inflamatórias que critérios para definir o alcance e a apresentação de
promovem a inflamação da mucosa intestinal. novos alimentos para essas crianças.
Essa condição, por sua vez, conduz a menor No caso do paciente, foi orientada a
atividade das enzimas, dificultando o processo substituição gradual, padronizada e controlada
de degradação proteica, levando a concentrações dos alimentos com leite animal e dos alimentos
elevadas na urina de pessoas autistas33,31,34. com glúten da dieta, justamente por causa da
Nesse contexto, quanto ao glúten, foi orientada seletividade informada pela mãe e visando a
a substituição nas preparações da farinha de trigo uma redução dos efeitos de abstinência desses
por farinha de arroz, farinha de quinoa, farinhas compostos. Com sua eliminação percebeu-

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Modulação nutricional no transtorno do espectro autista – um estudo de caso

se uma melhora significativa na sociabilidade Tendo em vista os dados mencionados e os


e na comunicação do paciente, bem como estudos relacionados, pode-se notar que o paciente
uma diminuição da seletividade e uma maior obteve melhoras e que a intervenção nutricional
aceitação por novos alimentos. Diante de todas utilizada levou a um resultado positivo, com
as implicações do distúrbio neurológico e a remoção dos possíveis patógenos, alérgenos
metabólico do autista, esse tratamento deve ser alimentares, xenobióticos, poluentes e fatores
aplicado de forma interativa e multidisciplinar, estressantes; com o suporte dado para recolocar,
sendo a nutrição um importante contribuinte no para reinocular probióticos e prebióticos; com a
somatório para melhoria nas características e nos reparação da mucosa gastrointestinal por meio
sintomas da desordem autista. de uma dieta não irritativa, hipoalergênica e com
Pacientes com TEA apresentam uma demanda nutrientes saudáveis, dado o suporte para restaurar
maior de alguns nutrientes tendo em vista sua a homeostase do paciente. Acrescido, por fim, da
disfunção mitocondrial, intestinal e imunológica. reavaliação dos objetivos traçados e das condutas
Sendo assim, com a melhora dos sintomas nutricionais, houve uma melhora da maioria dos
gastrointestinais de uma maneira geral, na terceira sinais e sintomas apresentados pelo paciente e uma
consulta foi prescrita uma suplementação com o melhor evolução nas terapias.
objetivo de restaurar as funções imunológicas,
antialérgicas, anti-inflamatórias, destoxificantes Conclusão
e mitocondriais.
Nesse contexto, além das enzimas digestivas, Os fatores citados podem ser avaliados
prebióticos e probióticos, um suplemento separadamente, porém estão totalmente
vitamínico/mineral, ômega-3, aminoácidos, relacionados entre si, ficando claro o quanto
quercetina e coenzima Q10 foram prescritos, a nutrição é determinante nesse processo. É
com o objetivo da melhora do estado nutricional essencial a restauração do desequilíbrio fisiológico
e metabólico do paciente. e bioquímico, buscando a harmonia dos sistemas
Normalmente as deficiências nutricionais mais de base de funcionamento do corpo humano e
comuns em TEA são de ômega-3, vitaminas do contribuindo com a melhora dos sintomas dos
complexo B, minerais e aminoácidos, que são indivíduos que se encontram no espectro autista.
essenciais na formação de neurotransmissores É muito visível como os fatores envolvidos
e responsáveis por trazer equilíbrio no sistema no autismo estão relacionados com disfunção
nervoso central. Uma suplementação com imunológica e inflamatória, estresse oxidativo,
probióticos, vitamina A, vitamina B6 (piridoxina), alterações gastrointestinais, desequilíbrios
juntamente com a suplementação de magnésio, estruturais, problemas de destoxificação, interações
vitamina B9 (ácido fólico), vitamina B12, corpo-mente e disfunções neuroendócrinas.
vitamina C, vitamina D, zinco, ferro e ômega-3 Faz-se necessário, diante de todas as implicações
têm vindo mostrar efeitos positivos na melhoria do distúrbio neurológico e metabólico do autista,
de alguns dos sintomas do autismo23. que esse tratamento seja aplicado de forma
Estudo realizado por Adams et al.39 com 141 interativa e multidisciplinar, sendo a nutrição
pacientes com autismo utilizou um suplemento um importante contribuinte no somatório para
vitamínico/mineral, o qual foi geralmente bem melhoria na qualidade de vida e na funcionalidade
tolerado e apresentou ótimo benefício nos dos pacientes autistas.
níveis séricos de muitas vitaminas, minerais Para o sucesso do tratamento, é primordial
e biomarcadores. Os autores concluíram que o papel do nutricionista no acompanhamento
a suplementação oral de vitaminas/minerais é nutricional dos pacientes com TEA, implementando
benéfica para melhorar o estado nutricional e dietas individualizadas, calculadas de acordo com
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metabólico de crianças com autismo, incluindo as necessidades nutricionais, estado nutricional,


melhorias na metilação, glutationa, estresse nível sócio econômico e cultural, além de análise
oxidativo e sulfatação desses pacientes. de sinais e sintomas.

41
Ticiane Aragão da Silveira Gomes

Sendo assim, sugere-se novos estudos e as várias alternativas dietoterápicas, incluindo


randomizados e pré-clínicos controlados para principalmente a dieta isenta de glúten e caseína,
uma melhor compreensão dos riscos e benefícios a seletividade alimentar e relação com alergia
relacionados com a suplementação, assim como as alimentar nos pacientes com TEA.
dosagens mais adequadas às diversas faixas etárias 1. KRAL, T.V. et al. Eating behaviors, diet quality, and

Highlights
• O objetivo do tratamento nutricional no TEA é equilibrar a microbiota, reduzir inflamação
intestinal e cerebral, melhorar a digestão e absorção dos nutrientes e reduzir a carga tóxica do
organismo;
• O tratamento proposto inclui uma dieta livre de glúten, caseína, soja e açúcar, associada
a uma suplementação de micronutrientes, respeitando a individualidade bioquímica do paciente;
• O passo número 1 é remover possíveis alérgenos e alimentos que formam compostos
opioides que contenham glúten, caseína, soja e açúcar, para reparar a barreira intestinal;
• O passo número 2 é restaurar a microbiota, com enzimas e chás digestivos, e reinocular
probióticos;
• Com o intestino recuperado e mais equilibrado, associa-se a suplementação de vitaminas,
minerais, ômega-3 e antioxidantes, restaurando as funções imunológicas, antialérgicas, anti-
inflamatórias, destoxificantes e mitocondriais.

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43
Escute o solo, as raízes
e ouça os ventos de Primavesi
José Maria Filho – Jornalista
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

44
Escute o solo, as raízes e ouça os ventos de Primavesi

Solo é vida e é a base da vida. Há muita vida


nele e muita dependência dele”.

Do livro “A Convenção dos Ventos”, da agrônoma


Dra. Ana Maria Primavesi

Apaixonada pela natureza em harmonia com os


seres vivos, a precursora da Agroecologia no Brasil, a
agrônoma Profa. Dra. Ana Maria Primavesi conferiu
ao solo o papel de principal agente propagador da
vitalidade no meio ambiente, valorizando a interação
dos insetos, fungos e nutrientes para o manejo do solo,
que culmina numa agricultura transformadora para a
vida do homem, da fauna e da flora no planeta Terra.

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A agrônoma Dra. Ana Maria Primavesi em vários momentos da carreira, em trabalho de campo.

45
Por: José Maria Filho – Jornalista

Os filhos da Dra. Ana Primavesi, Carin Primavesi Silveira e Odo Primavesi, que também é agrônomo,
contextualizam: “Ela nasceu e se criou em uma propriedade agrícola, nos Alpes austríacos, e que
tinha a integração entre lavoura, pastagem e floresta, tudo como fonte de renda. Naquela ocasião, ela
conta, já havia sinais de esgotamento de alguns nutrientes na terra, e na Universidade Rural de Viena
ela encontrou um professor tutor e outro professor extensionista que se especializaram em recuperar
solos e aumentar sua produtividade utilizando métodos biológicos (e microbiológicos) e nutricionais.
Foram esses dois que mudaram a visão dela para uma mais holística, e que a marcou para sempre. A
ideia era sempre observar a natureza, como ela desenvolvia os solos e como ela resolvia os problemas.
O teste da pá reta (para analisar a raiz e a agregação do solo) era o indicador mais utilizado no caso
dos aspectos biológicos, e os sintomas visuais de deficiência no caso da nutrição mineral das plantas”.

Primavesi via além do simples orgânico, relatam Carin e Odo. “Ela dizia que precisava ser orgânico
em bases ecológicas, ou seja, realizar o manejo do agroecossistema não simplesmente substituindo
insumos, mas verificando quais as causas que estão deprimindo a produção. Em solos de regiões
tropicais, a degradação da matéria orgânica é muito rápida, e o solo logo fica exposto à radiação
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

solar intensa e ao impacto das chuvas tropicais. Era preciso manejar os restos vegetais na superfície,
como a natureza mostra claramente (horizonte orgânico), evitando virar muito o solo. E, analisando o
comportamento de raízes pivotantes, avaliar se havia adensamentos no perfil superior que precisavam
ser eliminados por práticas vegetativas (eventualmente mecânicas também). O solo na natureza
(ecossistemas naturais) é protegido por tripla camada: dossel das plantas diversificadas, a serapilheira
(restos vegetais) e a camada de raízes entrelaçadas. Isso deveria ser repetido nos agroecossistemas”.

46
Escute o solo, as raízes e ouça os ventos de Primavesi

O estudo dos nutrientes do solo adquiriu importância durante os primeiros


estudos na academia
Carin relata ainda que, já na Universidade, a Profa. Primavesi teve um professor muito bom na área de
nutrientes. Isso a estimulou a acompanhar de perto os estudos na área, especialmente de pesquisadores
russos e alemães tanto ocidentais como orientais. Na área animal, ela descobriu trabalhos americanos
excelentes reforçando a visão holística de solo-planta-animal-homem. “O homem depende do que o
solo fornece”.

E como é esse aspecto de alimentos nutricionalmente mais saudáveis para os


animais e as pessoas?

Esse era um aspecto interessante. Primavesi simplesmente mostrava como funciona a natureza, o que
significava algum tipo de deficiência, o que é um solo sadio, sem precisar falar contra os agroquímicos.
Quando se conduz um sistema agroecologicamente, cuidando para que o sistema radicular das plantas
esteja saudável e que o solo seja grumoso (grumos são agregados estabilizados biologicamente contra a
dispersão pela água) e, além disso, diversificado, resulta em uma área com elevada atividade biológica,
que exerce seus controles para evitar deficiências ou excessos minerais, populacionais e outros.

Numa condição de muita vida na área (sobre um solo vivo e não morto biologicamente), as plantas
têm seu estado nutricional equilibrado – exceto em casos agudos de alguma deficiência mineral, quando
se agrega esse nutriente, especialmente em solos marginais lixiviados com deficiências múltiplas de
nutrientes – e têm todas as condições de formar substâncias orgânicas complexas previstas no programa
genético, sem acúmulo de substâncias orgânicas de cadeia curta e, portanto, ricas em substâncias
nutritivas de elevado valor, vigorosas, com todo seu sistema de defesa funcionando (inclusive os
inimigos naturais, por causa da diversidade elevada no campo, de plantas vivas, seus resíduos e sistemas
radiculares vigorosos), não havendo praticamente necessidade de se aplicar grandes quantidades de
fertilizantes e defensivos agrícolas (também no sistema orgânico).

Ana mostrava que não se precisava aplicar defensivos. As chamadas pragas viviam tranquilamente
em meio aos outros seres, sem trazer danos econômicos. Os agroecossistemas bem conduzidos são
eficientes no uso de nutrientes e de água e de captação de energia solar, reduzindo o custo de produção.
No caso dos componentes florestais, ela batalhava para pelo menos haver quebra-ventos nos sistemas
de produção, e, no caso da pecuária, também sombra para os animais.

Visão holística, observação da natureza e biodinâmica do solo

A professora Ana Primavesi não aprendeu sendo agroecologista, mas como uma visão holística, a
partir da observação da natureza, a considerar a biodinâmica no solo, procurar pelas causas primárias,
ver as interrelações entre plantas, organismos associados e organismos independentes, todos eles
dependentes de material orgânico (complexo ou simples) como fonte energética ou mineral.

Para Carin e Odo, a agrônoma Ana Primavesi amava o solo, a natureza, da qual todos nós
dependemos. “Falava com paixão sobre o seu conhecimento adquirido da natureza, conhecimento
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que não tinha lido ou escutado de alguém, mas vivido na prática, portanto falava com autoridade,
com convicção, e isso arrastava as pessoas que quisessem ou não (os defensores da revolução verde,
dos agroquímicos e outros). Ana trazia exemplos, ilustrava fartamente as palestras, e isso facilita o
entendimento dos ouvintes”.
47
Por: José Maria Filho – Jornalista

Sobre a Dra Ana Maria Primavesi

Ana Maria Baronesa Primavesi, nascida Annemarie Conrad, nasceu num domingo, no dia 3 de
outubro de 1920, no Castelo Pichlhofen, distrito de St. Georgen ob Judenburg, no estado da Estíria, na
Áustria. Cursou agronomia na Escola Agrícola de Viena, tendo concluído o curso em 1942. Doutorou-
se em Cultura de Solos e Nutrição Vegetal. Casou-se em 1946 com o diplomata, fazendeiro e também
Doutor Artur Barão Primavesi, e em 1948 vieram para o Brasil, onde continuaram suas pesquisas.
Lecionaram na Universidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, instituição na qual Artur fundou
o Instituto de Solos e Culturas e criou o primeiro o curso de pós-graduação em Produtividade e
Conservação do Solos. Também trouxe para a cidade o Segundo Congresso de Biologia de Solos da
América Latina, patrocinado pela UNESCO.

Primavesi publicou diversos artigos científicos. É autora de livros como: Pergunte ao solo e às
raízes, Manejo ecológico do solo, Manejo ecológico de pragas e doenças, Manual do solo vivo,
A convenção dos ventos – agroecologia em contos, Manejo de pastagens em regiões tropicais e
subtropicais, Agricultura sustentável – manual do produtor rural, Agroecologia – agroesfera, tecnosfera
e agricultura, entre outros.

Dra. Ana Maria Primavesi faleceu em São Paulo, no dia 5 de janeiro de 2020, aos 99 anos.

Depoimentos e desenvolvimento científico inspirados na obra da Profa. Primavesi

O agrônomo Hiroshi Ota, da Fundação Mokiti Okada, fala da importância do solo


como base da agricultura

O agrônomo Hiroshi Ota durante o lançamento O agrônomo Hiroshi Ota no solo de Agricultura
do livro da Dra. Primavesi na sede da AAO-SP Natural, na zona Sul de SP
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

A Profa. Primavesi foi quem começou a dar ênfase para a importância do solo como base da
agricultura. Ela sempre reforçou a observação de como está o solo. Sempre que íamos ao campo
levávamos a pá para cavar e observar os torrões”.

Pensando na prática, na observação do mato como indicador e não como inimigo, para saber o que
está acontecendo no solo dá para tentar descobrir a causa dos problemas e não só cuidar do sintoma
48 com os venenos e muito adubo.
Escute o solo, as raízes e ouça os ventos de Primavesi

Causa e efeito

Dependendo de como cuidamos do solo, as plantas que crescem nele podem ser alimentos melhores
para nós.

A agricultura natural, orgânica ou agroecológica também desenvolve produtos bonitos,


verdadeiramente saudáveis. Primavesi buscava conhecimento do mundo e trazia para a prática de forma
mais fácil e mostrava isso para o agricultor. Ela traduzia para o cotidiano o conhecimento científico
que acumulou com muitos estudos na Áustria e aqui no Brasil, não só focando na produção agrícola,
mas em um estilo de vida que tem sustentabilidade.

Para Hiroshi Ota, a Dra. Primavesi se tornou, com paciência e persistência, uma pessoa importante no
contexto da agroecologia e também para a agricultura natural. “Convivemos mais de 25 anos aprendendo
bastante juntos. A Professora foi consultora da Fundação Mokiti Okada, onde realizávamos encontros
de agricultores, participações em conferências, apresentando resultados e visitando agricultores”.

Hiroshi Ota é agrônomo, gestor da Secretaria de Agricultura Natural e Paisagismo do Solo Sagrado,
na Fundação Mokiti Okada.

Agricultura regenerativa - a importância dos microrganismos para


a proteção do solo

Atividades no Sítio Eco Recanto Lótus O técnico agrícola Marcos Soares e a chef
naturalista Tânia Alves no Sítio Eco Recanto
Lótus, em Pindamonhangaba

De acordo com Marcos Soares, a agricultura regenerativa é um trabalho sistêmico. “Como mostrou
a Profa. Ana Maria Primavesi em seus estudos, os microrganismos desempenham papel fundamental
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para a vitalidade do solo. A primeira ação é a limpeza da terra, que depois não deverá mais ser revolvida
para não descontruir as estruturas produzidas pelos microrganismos. Quando falamos em cultivo, em
produções de alimentos, estamos falando em agricultura regenerativa, como bem pontuava a Dra.
Primavesi. A gente alimenta o solo e o solo alimenta os frutos”.

49
Por: José Maria Filho – Jornalista

A agricultura inicia-se com o solo. No modelo convencional de cultivo, o solo é bombardeado


com química sintética, como agrotóxicos, fungicidas, bactericidas e outros, e o solo fica exposto
safra após safra. Esses insumos sintéticos destroem a vida do solo, a microbiologia, especialmente na
camada superficial, que tem entre 20 a 30 cm e onde se encontra muita vida, tornando o solo pobre e
sem vitalidade. Nesse processo, toda a parte fisiológica da planta se desenvolve muito bem, mas numa
análise nutricional de um tomate produzido nesse modelo agrícola, por exemplo, verifica-se que ele
aparece recheado de nutrientes sintéticos, com potencial malefício ao organismo humano.

A ideia da agricultura regenerativa é regenerar e proteger o solo da temperatura, do excesso de


águas das chuvas, deixar que ele fique coberto e protegido. Sem essa proteção, seus nutrientes são
afetados por esse excesso de temperatura ou água das chuvas, matando toda a camada superficial dos
microrganismos. Os modelos de agricultura sustentável vão inserir no solo não só a alimentação das
plantas, os nutrientes orgânicos, mas proteger os microrganismos que têm o papel de solubilizar esses
insumos orgânicos. Eles é que irão derreter e conduzir no sistema radicular, na boca da raiz esses
nutrientes, que serão solubilizados nos compostos orgânicos, como húmus de minhoca, pós de rocha
à base de fósforo, de potássio, e assim por diante.

Quando existem riquezas e diversidades de famílias de microrganismos no solo, eles protegem


o sistema radicular e não deixam as doenças adentrarem esse sistema. Nesse contexto, o papel da
microbiologia é muito importante, da inserção de matéria orgânica, de insumos orgânicos. O que antes
era considerado um pedaço de terra passa a ser chamado de solo, porque passa a ter todo um equilíbrio na
parte física, química e biológica. O resultado disso tudo é que os frutos e cereais absorvem os nutrientes
orgânicos e ficam preenchidos com esses nutrientes. Nosso organismo interpreta positivamente o poder
dos princípios ativos dos orgânicos e não tem trabalho de quebrar as moléculas desses alimentos que
são ingeridos.

Marcos Soares é técnico agrícola, especializado em cultivos de tomates orgânicos, olericultura


orgânica e bananicultura orgânica. É presidente e administrador da Orgânicos Cooper, cooperativa
do Vale do Paraíba que reúne 26 agricultores orgânicos e duas agroindústrias. É proprietário e
agricultor orgânico e biológico do Sítio Eco Recanto Lótus, que fica no bairro de Cruz Grande, em
Pindamonhangaba.

Agrofloresta - sistema tridimensional também está na obra da Profa. Primavesi

O pesquisador da APTA – Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios – Antônio


Devide fala sobre o tema

O pesquisador Antônio Devide, da APTA – Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios –,


de Pindamonhangaba, fala sobre a importância do trabalho da Dra. Ana Maria Primavesi e seu legado
para a ciência e apresenta o sistema agroflorestal como sistema tridimensional, descrito nos estudo de
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

Primavesi, porque a agrofloresta está conectada ao ambiente físico, para cima da terra e para dentro do
solo e também conectada no tempo. Se observarmos uma floresta se formando numa área abandonada
que era uma pastagem, por exemplo, vamos perceber no início umas graminhas, principalmente,
com alguma vegetação herbácea de porte mais elevado, com mais lignina, mais gravetos, que vai
aumentando, daí um animal pousa ali e defeca e libera uma semente diferente, e assim começa a ter
uma vegetação mais diversa, mais arbustiva e arbórea, e nesse processo de sucessão de vegetação vai
se tornando também mais complexa essa rede de interações para cima e para baixo da terra e no tempo.
50
Escute o solo, as raízes e ouça os ventos de Primavesi

Numa observação em câmera lenta, podemos


verificar que temos uma teia da vida se
desenvolvendo. Em função do sombreamento e
da adição de matéria orgânica, aqueles organismos
que ainda estavam lá em um ambiente perturbado,
que eram os cupins e as formigas cortadeiras, vão
sendo substituídos por organismos com maior
requerimento de vida, ou seja, de qualidade de
vida; com sombra e matéria orgânica, entrarão
fungos e bactérias que fixam nitrogênio associado
ao arbusto leguminoso e vão se desenvolvendo,
formando abrigo para fauna, inclusive.

O princípio inicial da agrofloresta, portanto,


é trabalhar dentro processo de sucessão vegetal,
utilizando questões ligadas ao ambiente natural,
ou seja, espécies que ocorrem na paisagem local
que são mais eficientes na reconstrução do solo,
leguminosas que fixam nitrogênio, plantas que
fazem associação com fungos micorrízicos,
que melhoram a absorção de nutrientes, plantas
funcionais, com arquiteturas diferentes, com tempos de vida diferente. Assim, cabe planejar o sistema
para ter diferentes extratos no tempo, e dentro desse sistema introduzir plantas cultivadas com o
interesse de produzir alimentos, resinas, medicamentos, madeira, nozes, o que seja. Essas plantas
podem ser introduzidas no sistema biodiverso que vai ser manejado ao longo do tempo, de maneira
que seja possível melhorar o meio ambiente, o solo e as conexões que há na paisagem. Essa conexão
evita que a água do solo se evapore, contribuindo para a produção de água nesses sistemas.

Com o solo melhorando, haverá condições de produzir alimentos que antes não se produziam. E
depois que a agrofloresta virar uma floresta, é possível enriquecer o ambiente com frutos do futuro,
por exemplo os nativos da Mata Atlântica, como a palmeira juçara, para utilizar a polpa da juçara,
trabalhar com frutas como cambuci, grumixama, fruta-do-conde, araçá-boi, cabeludinha, frutas de
mesa como cambucá, e trabalhar com geleias e polpas, que têm um bom shelf life e comercializar, o
que agregará valor ao produto agroflorestal.

Sistema de pastagens sustentáveis preconizados por Primavesi

No sistema de pastagem, a arborização, o Pastoreio Racional Voisin e pastejo rotacionado, que


tanto preconiza a Dra. Primavesi, são os mais sustentáveis. Se existe uma diversidade de vegetação
herbácea para o animal se alimentar, este será mais equilibrado nutricionalmente do que se comer apenas
capim, que tem sempre os mesmos elementos minerais. Se há uma variedade na pastagem de ervas
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espontâneas isso favorece, pois muitas plantas medicinais auxiliam o trato digestivo dos animais e a
criar os mecanismos de defesa. Se eu tenho diversidades minerais e micronutrientes que vão funcionar
nos processos de chave e fechadura, esse sistema vai desenvolver rotas metabólicas nos animais para
que eles produzam as próprias defesas.

51
Por: José Maria Filho – Jornalista

Portanto, os princípios da diversidade e da biodiversidade que são defendidos pela Dra. Ana
Maria Primavesi, inclusive nas pastagens, também precisam ser trabalhados ao pensar, utilizar
a arborização principalmente com árvores que fixam o nitrogênio, que colocam matéria orgânica no
solo, que melhoram a qualidade do solo, melhoram a recarga hídrica, e, com isso, se criam condições
de produzir água dentro da pastagem para que a vegetação possa sobreviver no período de estiagem,
como ocorre no Vale do Paraíba.

A agroecologia preconiza a utilização de agricultores para participar no processo: os agricultores


e pessoas em geral participam de mutirões, dias de campo, em que ocorrem trocas de informações,
trocas de sementes e atividades práticas, implantações e manejos de sistemas de produção. O trabalho
com os sistemas agroflorestais teve início em 2010; em 2012, formou-se a Rede Agroflorestal do Vale
do Paraíba, no interior de São Paulo, com disseminação em toda região.

Os sistemas agroflorestais têm como foco reconectar o ser humano ao planeta Terra. Os princípios
da Dra. Ana Primavesi são a base desse trabalho da Rede Agroflorestal, porque o objetivo é manter o
solo coberto com matéria orgânica, base da energia, composto de estruturas complexas de carbono,
hidrogênio, nitrogênio e vários minerais e quando a matéria orgânica é adicionada ao solo. Com a poda
de uma árvore, por exemplo, se enriquece o solo de minerais, trazendo toda uma vida para o solo, o
que se traduz em fertilidade do solo, com estruturação, porosidade, agregação biológica, diversidade
de vida, fungos e bactérias benéficas, equilíbrio biológico, entre outros agentes transformadores do
solo, que evitam os surtos de doenças e pragas. A fertilidade também deve ser vista do ponto de vista
químico, ou seja, o solo tem estoques de nutrientes suficientes para manter a vida se desenvolvendo,
o que se traduz na qualidade do alimento que é produzido, que tem mais energia vital.

“Eu não vejo uma condição de ter vida no planeta se não tiver agroecologia e os sistemas
agroflorestais. Pode parecer romântico, mas é uma condição para a vida. Essa reconexão humana
com as questões mais delicadas está mais ligada à área espiritual, talvez. Nos médio e longo prazos,
verificamos que a produção de alimentos orgânicos vem crescendo, bem como a agricultura urbana
no mundo todo, e o despertar de pessoas com essa reconexão com a terra vem crescendo na mesma
proporção. Vejo uma fuga de pessoas do meio urbano para o interior, em busca de um banho de rio,
de sol, de caminhar no meio da vegetação, é um momento de cada um buscar esse refúgio”.

As plataformas governamentais devem priorizar a agroecologia, a agricultura familiar e a agrofloresta


para que o Brasil possa ser de verdade um celeiro na produção de alimentos, assim como a África
e países em desenvolvimento da América Central também têm esse potencial. Temos que ficarmos
alertas para as questões políticas estarem atreladas à agroecologia como forma de termos um planeta
vivo, para as gerações presentes e futuras.

Antônio Carlos Pries Devide é agrônomo pela UFRRJ (Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro), Mestre em Fitotécnica pela UFRRJ e
Doutor em Fitotécnica também pela UFRRJ. Atua como pesquisador
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

da APTA - Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, no Polo


Regional do Vale do Paraíba em Pindamonhangaba. Membro fundador
da Rede Agroflorestal do Vale do Paraíba, coordena o Projeto Vitrine
Agroecológica, com foco em pesquisas sobre sistemas de produção
de base agroecológica, com ênfase no desenho, implementação,
monitoramento e análise de sistemas agroflorestais.

52
Escute o solo, as raízes e ouça os ventos de Primavesi

Veja no vídeo a seguir o Técnico Agrícola Marcos Soares mostrando um modelo de Agricultura
Regenerativa no Sítio Eco Recanto Lótus, em Pindamonhangaba.

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Ana Vládia Bandeira e Daniel Francisco de Assis

Alimentos Fermentados e Saúde:


Como Fazer Kefir

Nessa oficina culinária, a nutricionista Ana Vládia Bandeira e o Chef Daniel Francisco de Assis,
mostram os benefícios e a forma de preparar adequadamente o Kefir, uma excelente maneira de agregar
probióticos na alimentação, contribuindo para a modulação da microbiota e para a saúde intestinal.
Aprenda o passo a passo da fermentação do Kefir no vídeo a seguir.
Rev Bras Nutr Func; 46(81), 2020

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Normas para Publicação de Artigos Científicos Guidelines for Publication of Scientific Articles

A Revista Brasileira de Nutrição Funcional publica The Brazilian Journal of Functional Nutrition publishes
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desenvolvimento da ciência da nutrição nas áreas de study and development of the science of nutrition, in the
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