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Michele Sá
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
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All content following this page was uploaded by Michele Sá on 10 June 2016.
O presente trabalho tem por objetivo apresentar, ainda que de maneira superficial,
um dos temas mais ricos da Filosofia do Direito, a saber, o Jusnaturalismo, na visão de dois
de seus grandes expoentes: Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.) em seu De Legibus e
Francisco Suárez (1548-1617 d.C.) em seu Tractatus de legibus ac Deo Legislatore. Apesar
de separados por séculos, ambos integram o esteio dos debates acerca do Direito Natural,
que encontra desdobramentos atualmente em questões relativas principalmente ao direito
internacional (v.g.: conceito de guerra justa) e aos direitos humanos (v.g.: pena de morte,
eutanásia, sacrifícios humanos), para citar apenas alguns exemplos.
Na Antigüidade, na transição da Idade Média para a Moderna ou no dias de hoje,
o estudo do Jusnaturalismo encontra muito espaço. Seja qual for a maneira de se interpretar
o que seja o Direito Natural, ele diz respeito à natureza do próprio homem – por isso, sua
discussão atravessa os séculos.
CÍCERO E O DE LEGIBUS
1 Pontifex maximus – “sumo pontífice”, responsável pelos rituais religiosos. Cf. pons, pontis: eles eram
considerados a “ponte” entre o humano e o divino.
2 Mores maiorum – “costumes dos antepassados”.
1
por volta do ano 450 a.C., que foi uma iniciativa de fixação por escrito do direito em
vigência, o qual deveria estar exposto no Fórum, para público conhecimento. Isto fazia
enorme diferença: um cidadão poderia defender-se contra arbitrariedades de poderosos
inescrupulosos com uma arma muito mais poderosa que simplesmente a tradição e o
costume. Afinal de contas, os procedimentos e as penalidades bem definidas davam maior
segurança a um número maior de pessoas. Isto acarretou um processo que podemos chamar
de laicização do direito insurgente. Já não eram mais os pontífices que detinham consigo o
poder de legislar e julgar, mas sim alguns nobres que foram paulatinamente – e no decorrer
dos séculos seguintes – se especializando na interpretação, na criação e na execução das
leis.
Mudaram as coisas? Em termos. Afinal, a interpretação do direito continuou
privativa de quem detinha o poder na cidade. Também não significa que o caráter sacro das
leis tivesse sido enfraquecido – antes pelo contrário, a lei ganhou força maior por
constituir-se uma forma de manter a ordem interna na Urbs e, depois, no Império
conquistado.
Começam a destacar-se, então, os primeiros grandes pensadores do direito romano –
que serve de esteio para o direito ocidental moderno, direta ou indiretamente. Um dos
principais representantes deste grupo é, sem dúvida, Marco Túlio Cícero, que, embora
tenha se destacado muito mais pelos seus discursos jurídicos e por seu papel de defensor
público, contribuiu de maneira notória para a formulação do conceito e dos elementos das
leis em dois de seus tratados filosóficos: o De Republica e o De Legibus.
Influenciado por Platão, Cícero escreveu o De Republica, na qual defende o modo
republicano de Roma, no qual aos aristocratas mais educados e ricos detinham cabia todo o
poder político. Complementando esta obra, Cícero escreveu o De Legibus, na qual ele
apresenta sua noção a respeito de lei e justifica certas leis romanas de então. O De Legibus
é composto de cinco livros, mas apenas os três primeiros chegaram até nós.
É evidente, ao longo do texto, que Cícero não tem como meta propor uma nova
legislação, antes colaborar com a já existente, até certo ponto tentando refrear mudanças.
No De Legibus, escrito em forma de diálogo, Cícero debate com seu irmão Quinto e seu
amigo Ático sobre a sua idéia a respeito de lei e sobre quais as leis mais importantes para
proteger a religião e a tradição. Note-se que o contexto histórico do De Legibus é o
2
É a natureza que faz com que os homens sejam capazes de discernir entre o bem e o
mal, o honroso do desonroso. Desta forma, na concepção ciceroniana de lei, o agir com
justiça e honestamente é simplesmente seguir a natureza, de acordo com a vontade das
divindades. Dada esta proporção universal/natural da lei, torna-se evidente o motivo pelo
qual a lei romana para Cícero era em si natural e comum a todos os seres humanos, e
justifica a transmissão desta lei a todos os povos através do Império territorial. A lei natural
une os homens entre si e, ao mesmo tempo, une homens e deuses.
Pela sua origem e pelas suas características, a lei natural exclui a necessidade –
embora não negue a existência – de registro escrito:
Por fim, o terceiro livro do De Legibus trata dos poderes e atribuições dos
magistrados romanos, dos quais dependia, segundo Cícero, a conservação do Estado. Não é
à toa que Cícero é conhecido como um dos maiores defensores da República, pois dá suma
importância ao cursus honorum6, uma das características estruturais do sistema. No entanto,
para o presente trabalho, que versa sobre o jusnaturalismo, este terceiro livro encontra-se
em plano secundário, apesar de terem os magistrados prerrogativas de natureza religiosa.
SUÁREZ E O DE LEGIBUS
6 Cursus honorum – a “carreira das honras”, ou “carreira das magistraturas”: cargos públicos estabelecidos
em hierarquia, com mandato de um ano.
7 “O lugar cimeiro de Suárez entre os pensadores políticos do Ocidente que ajudaram a recriar uma ordem
intelectual, resulta de ele ser o derradeiro doutor escolástico a transmitir a herança medieval como também o
inaugurador de um mundo novo, uma evidência habitualmente encoberta pelos lugares comuns da ciência
política, pela argumentação juspositivista ou, tão só, pela ignorância.” HENRIQUES, Francisco Suárez:
Introdução para o leitor do séc. XXI.
5
citações. Até pela maneira como foi elaborada, “a obra de Suárez teve um papel decisivo no
restabelecimento de critérios teóricos no debate do início do séc. XVII, completamente
degradado pelo choque das idéias político-religiosas”8.
Já no prólogo do seu De Legibus, Suárez apresenta a sua justificativa para que um
teólogo se ocupe de leis (um assunto considerado particular aos juristas)9, apresentando três
argumentos básicos, dado que a teologia é sobrenatural e outras ciências (filosofia, direito,
por exemplo) se apropriam das leis divinas em seus estudos: a) De Deus procedem todas as
leis, tanto as divinas quanto as humanas; b) a retidão de consciência está baseada na
observância das leis, ou seja, a lei torna-se vínculo da consciência; c) a medida da
obediência às leis está na fé.
Como Cícero10, Suárez também oferece à filosofia um lugar de destaque,
principalmente na questão da interpretação das leis e da jurisprudência. Para ele, a
jurisprudência nada mais é que “uma aplicação extensiva da filosofia moral em ordem à
direção e governo da conduta cívica dos cidadãos”11. Baseia-se em Cícero e em Platão ao
argumentar que a lei é medida de retidão12, ou seja, preceitos injustos não devem ser
considerados leis, porque é prerrogativa da lei o ser ela justa.
A fim de tratar da distinção entre lei e direito, Suárez parte, tradicionalmente, da
etimologia. Apesar de não apresentar a sua própria etimologia da palavra “lei”, nem sugerir
dentre as apresentadas a que ele considera a mais apropriada, Suárez mostra as várias
possibilidades, pelos argumentos de Tomás de Aquino, Agostinho, Isidoro, Cícero e até por
passagens das Sagradas Escrituras. “Lei” pode advir da mesma raiz de ligare, ou da raiz de
legere, que significa “ler” – pressupõe-se neste caso a norma escrita – ou ainda
“escolher”13.
Em se tratando da origem etimológica de ius, iuris (“direito”), Suárez apresenta
três diferentes explicações e assume a terceira como aquela com a qual ele concorda14. De
acordo com a primeira, ius deriva-se do verbo iungo, iuxtum, que significa “unir”, “atar” e,
por extensão de sentido, “estar bem próximo”. Esta versão corresponde, como podemos
perceber, ao entendimento de que lex provém de ligare. A segunda propõe que ius esteja
relacionada ao verbo iubeo, iussum, que quer dizer “dar ordem”, “determinar”, “mandar”.
A terceira, abraçada por Suárez, deriva ius de iustitia e iustus, -a, -um (e não o contrário, ou
seja, iustitita e iustus de ius). Isto para fazer valer a idéia de que o direito nasce do que é
justo e reto, e da própria justiça em si – até mesmo porque ela era amplamente louvada
entre os romanos, a ponto de ter sido personificada e divinizada numa imagem que perdura
até hoje, uma figura de mulher com uma balança na mão e olhos vendados. Este
pensamento corrobora Suárez afirmar que só é lei de verdade a lei que for realmente justa15.
13 Este é o mesmo entender de Cícero: “Julgam que esta lei deriva seu nome grego da idéia de dar a cada um
o que é seu, e eu julgo que o nome latino está vinculado à idéia de ‘escolher’: pois sob a palavra lei eles
apresentam um conceito de eqüidade e nós um conceito de escolha, e ambos são atributos verdadeiros da lei.”
E ainda: “Para maior clareza, na própria definição da palavra lei, estão incluídos o propósito e a idéia de
eleger o justo e o verdadeiro.” CÍCERO, Das Leis, pp. 40 e 66.
14 SUÁREZ, De Legibus, I, II, 1-3.
15 Após os esclarecimentos de ordem conceitual e etimológica, Suárez escolhe tratar “direito” e “lei” como
sinônimos. Isto se estende, obviamente, às expressões “direito natural” e “lei natural”, as quais ele utiliza
indistintamente. Ibidem, I, II, 11.
16 BEUCHOT, p. 287.
7
ao “direito dos povos”, ou “direito das gentes” (ius gentium), tema que pertence tanto ao De
Legibus de Cícero quanto ao de Suárez.
A própria definição ciceroniana de lei (“a lei é a razão suprema da Natureza, que
ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário”) parte da Natureza, e encontramos este
entendimento ao longo de todo o livro I do De Legibus:
Das quatro categorias de leis estabelecidas por Platão18 – divina, natural, humana e
celeste – esta última não encontra defesa entre os teólogos como Suárez. Quanto às
categorias restantes, Suárez as aceita e sobre elas trabalha uma classificação própria. Faz
equivaler a lei divina à lei chamada eterna pelos teólogos. A lei humana é chamada de
positiva. A lei natural não recebe outro designativo. O mais importante, porém, é que
Suárez diz que tanto a lei natural quanto a positiva (seja ela civil ou eclesiástica) são
também divinas na medida em que são dadas por Deus19.
A lei positiva é incompleta. Disto, Cícero e, mais tarde, Suárez já tinham noção.
Não é à toa que a obra de Suárez se intitula Tractatus de legibus ac Deo Legislatore. A
imagem de Deus como o supremo legislador, o idealizador da própria natureza, reveste de
um caráter de perfeição (logo, retidão e justiça) o que se quer fazer entender por direito
natural.29. Se Deus é o autor da lei, ela deve ser necessariamente reta e boa e deve mandar o
que é de acordo com a natureza racional e proibir o contrário30. Acaso não é a perfeição o
que todos os homens sempre almejaram? Entre todos os povos, não há legislação positiva
que supra totalmente as necessidades – a lei positiva não é perfeita, não é completa. A
imperfeição é da natureza do homem – como é também a busca eterna pela perfeição.
CONCLUSÃO
29 “Por eso Suárez tiene que acudir a un legislador, porque la naturaleza no legisla, y sería abusivo ver sus
hechos como leyes. Ese legislador es Dios, sin el cual la naturaleza sola no engendra la ley natural.”
BEUCHOT, p. 282.
30 SUÁREZ, De Legibus, II, VII, 1.
31 “Sobre gostos e cores não se deve discutir.” – provérbio romano.
12
BIBLIOGRAFIA
2. CÍCERO, Marco Túlio. Das Leis. Trad., intr. e notas de Otávio T. de Brito. São
Paulo: Cultrix, 1967.
3. CICÉRON. Traité des Lois. Paris: Société d’Édition Les Belles-Lettres, 1959.