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ESTÉTICA DE LOS ELEMENTOS PLÁSTICOS

Osvaldo Lópes Chuhurra


Editora Labor S. A. — Capítulo 6

O ESPAÇO

Deus é o espaço em si mesmo.


El Zohar
O Espaço é a própria experiência do homem.
Pierre Francastel

O problema fundamental que a pintura deve resolver é a criação de um espaço, encerrado na superfície da
tela escolhida pelo pintor.
A terceira dimensão, manifestada pela perfeição de uma “ilusão”, tornará possível o processo de articulação
das manchas coloridas; sem essa profundidade inventada a imagem pintada não aparece. (NÃO)
Para que a realidade chamada quadro se cumpra, é necessário dispor de um espaço. No Renascimento
Patrizzi dizia que: “O espaço é a base de toda a existência”.
Já dispomos de outro elemento importante que responde aos requisitos da obra de arte. A matéria é a
encarregada de criar o espaço pictórico; muitos serão os métodos empregados para estruturá-lo e muitas as
características e a função desta ilusão espacial.
Para Pitágoras, “o espaço se confunde com a matéria”. Vamos considerar esta afirmação à luz da criação
pictórica.
Na pintura, a realidade da matéria e a realidade do espaço criado se confundem. Desta unidade resulta uma
identidade, porque sem a intervenção da primeira o espaço é incapaz de ter realidade, o espaço não é. Partimos
de um espaço bidimensional — o da tela — à procura de uma terceira dimensão, em busca de um espaço
tridimensional; ele é conseguido pela utilização da matéria; o espaço “é” graças à matéria que o constrói.
Tela e cores — segundo S. Langer: “não estão no espaço pictórico; estão onde estavam antes, no espaço real
que habitamos”. É uma verdade, porque a tela e as cores convivem no espaço real da natureza. Mas no caso das
cores às quais se refere a esteta norte-americana, se bem que estejam no ambiente real, também estão no
espaço pictórico em função de ser esse espaço. O espaço pictórico resulta em um ser apresentado pela matéria
que lhe dá existência.
Resumindo, repetiremos o princípio de Pitágoras pelo qual “o espaço se confunde com a matéria”.
A pintura faz alusão a um espaço inventado. É muito difícil encontrar a palavra adequada para caracterizar os
fenômenos; vamos tratar de clarear alguns conceitos.
Francastel sustenta que “o espaço não é uma realidade em si…”. Mas todos nós estamos acostumados a
chamar de espaço o âmbito onde estão e vivem os seres criados. Esse espaço é o que o homem trata de
apreender. Se é um físico, procura vivê-lo imerso em sua própria matéria; se é um artista, trata de modificar sua
aparência (na escultura), ou busca opor à realidade física já dada, uma realidade física inventada (processo que
se relaciona à pintura).
De todas as maneiras a atitude que assume o artista que se defronta com o problema do espaço é a de
concretizar, definir, modelar a intuição que possui de tal elemento. O termo intuição, que usamos, nos recorda
Kant quando fala sobre duas formas da intuição: a do espaço e do tempo.
Falamos sobre definir a intuição do espaço. Sempre nos acostumamos a dizer o contrário, porque supomos
que o espaço seja infinito; de certo ponto de vista ele realmente é. Mas no mesmo momento que enunciamos o
conceito de infinitude, estamos estabelecendo sua limitação. Apesar da intuição não conhecer medida, quando se
trata de “apresentar o espaço”, é necessário dar-lhe uma forma e ela própria estabelece os limites de sua
extensão. Vamos aplicar para a arte o que dizia Gorgias de Leontino: “O espaço não pode ser infinito”. A finitude
não significa que o artista não possa tentar uma solução plástica que o leve a sugerir o espaço infinito. Mas
sempre em todos os casos, a pintura fará referência ao espaço que interessa por sua estrutura — configuração —
plástica, a qual pode aludir a uma infinitude sentida e sugerida.
Quando esta infinitude “toma forma”, se submete aos limites que a estrutura da própria obra carrega. O resto
fica entregue ao jogo da imaginação.
Pintura e Espaço

Ninguém dúvida de que o espaço é um ente e portanto possui uma existência — que, para nós, se situa no
campo das especulações estéticas. Dentro do problema pictórico ele apresenta algumas características especiais.
É lícito afirmar que existe um espaço “real” e outro pictórico. O primeiro poderá ser o sensível, o da natureza
que nos rodeia e que continua — se quisermos — na extensão celeste; ou no espaço pensado, idealizado, tão
caro aos filósofos e cientistas.
Ao contrário, o espaço pictórico é sempre um feito visual, concreto, finito. Este espaço pode apresentar duas
alternativas:
a. espaço cenográfico — é aquele construído à maneira do espaço real da natureza. Ao observar tal
espaço, temos a sensação de se haver preparado “o lugar” apropriado para situar as imagens protagonistas do
quadro. O resultado faz lembrar o teatro; daí sua denominação: “cenográfico”. (perspectiva)
b. espaço plástico — (também chamado virtual, denominação um tanto incorreta porque todo espaço
pictórico é virtual, isto é, não é real). É o espaço que não se vê, mas se advinha, se intui, se deduz. É o espaço
que, na realidade, se manifesta por meio do plano (de onde se origina o termo plástico). Surge por dedução
intelectiva, racional; é o espaço não preparado, aquele que se vai construindo a medida que se colocam todas e
cada uma das manchas do quadro. É a própria forma que vai construindo o quadro. É o espaço que se destrói
cada vez que se retira uma mancha pintada sobre a tela; é ele que melhor se adequa à bidimensionalidade. O
resultado é anti-cenográfico por excelência. É o espaço novo que a problemática da pintura requer. (pode se
tornar cenográfico)
O homem, o artista para nós, é capaz de conhecer uma dupla experiência de espaço. A primeira delas é a que
vive em contato com o espaço da realidade, chamada natureza, ente exterior onde o homem habita (talvez fosse
melhor falar de um “fantasma de um ente”).
Mas por outro lado vamos levar em conta essa outra experiência que faz alusão a um espaço como
“experiência fixada” nas duas dimensões do quadro. Esta só se torna possível, em virtude de uma intuição do
ente, intuição que nasce na forma de uma vivência interior. Então se produz um diálogo entre o artista e sua
própria realidade interior. Isto quer dizer que há sempre um processo de transposição, porque o artista não pode
intuir o espaço se não souber que este existe, se não o viveu e o segue vivendo. A primeira forma de vivência do
espaço é vê-lo como algo que existe fora do ser, que não pertence a ele como uma propriedade. Na outra forma
de experiência, o homem vê o espaço como “seu” espaço, aquele que tem uma presença e uma existência
porque o artista é e existe.
Vamos deter nossa atenção no espaço como problema pictórico. Temos insistido sobre o tópico relacionado à
criação de uma terceira dimensão ilusória, primeiro obstáculo que o pintor deverá suplantar; as outras questões
que irão se interpor mais tarde girarão sempre ao redor desta primeira questão fundamental. Se uma forma se
esforça por ser volumétrica, a dificuldade se resume a fazê-la de tal maneira tridimensional, a ponto de se poder
incorporá-la ao sistema que propõe a presença de duas dimensões; se bem que a luz apresenta suas dificuldades
específicas, não se pode negar que a maior problemática reside em “como atravessar” com ela o plano
bidimensional da tela. Mas atravessar sem desaparecer, quer dizer, penetrar e ficar na superfície do plano.
Disto se deduz que o verdadeiro, o grande problema para o pintor é criar uma nova dimensão (a terceira),
graças à qual poderia sentir-se expressado. Por isso podemos afirmar sem titubear que a “pintura é espaço”.
E justamente vamos abordar este espaço especial que aparece como problema e como solução na superfície
da tela.
Um quadro é uma estrutura de espaço, e é valido dizer que é uma estrutura que o artista conseguiu para poder
inventar o espaço dentro das duas dimensões de que dispõe. Mas a estrutura que conforma o espaço é um
conjunto emergente de formas e volumes visíveis. A idéia de conjunto emergente é adequada porque se
observarmos um quadro temos a clara sensação de que a imagem emerge, surge da tela.
Se trata de conseguir a terceira dimensão para o que se recorre a uma estrutura que emerge; isto pareceria
indicar uma contradição, mas isto não acontece pois tudo que ocorre no quadro se produz a partir da tela em
direção ao espectador (vale dizer, da superfície para fora). Não pode ser de outra maneira porque, como já
dissemos, o quadro é trabalhado agregando-se matéria e cor à tela. Matéria e cor trabalham no espaço real da
natureza, apoiados pela superfície de suporte.
Porém, uma vez que abandonamos os elementos da realidade primeira e observamos essa nova realidade
que é a imagem pintada, podemos comprovar que nem o espaço nem as coisas (específicas da representação)

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existiam antes. Portanto são inéditos e próprios dessa experiência única. Tal realidade — que nada tem a ver com
a outra que chamamos de “primeira realidade” — está feita com a ajuda da tela e das cores, mas estas não estão
no espaço pictórico, mas sim no real; o espaço criado é um sentimento vital do artista que tomou forma concreta,
e a cor e a tela não são o sentimento, mas sim os instrumentos que servem para tornar possível a aparição de tal
sentimento. O quadro resulta então em uma visão.

Velázquez, As MeninasMuseu do Prado, Madri


http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/velazquez/velazquez.meninas.jpg

“O problema da pintura é a criação de um espaço ilusório". Este


exemplo se converte na grande lição destinada a demonstrar a
veracidade da afirmação anterior. A complexidade e o conteúdo
expressivo do espaço velazqueano estão no próprio centro da criação
pictórica.

Se o espaço que o artista cria não é real, deve ser virtual. Com efeito, um quadro é uma aparição de objetos
virtuais em um espaço virtual. Nem os objetos nem o espaço são reais; são inventados, são quadros; possuem
realidade plástica mas são artificiais em sua relação com a verdade da natureza.
Este espaço é a razão de ser da obra; sua não-presença significa impossibilidade da existência da imagem.
Por outro lado, se o pintor pretende “dizer”, expressar a idéia de seu sentimento (idéia que se dá através da
imagem), tem que se valer sempre deste espaço inventado.
Francastel afirma que “não pode haver desaparecimento do espaço plástico. Seria o vazio do pensamento e
da expressão”. A palavra pensamento não deve deixar dúvidas; para compreender o termo em sua acepção
plástica recordemos que em geral não pode haver “comunicação” se não através do pensamento, tome este a
forma que melhor lhe convier (idéias, formas artísticas, orações...). E a comunicação é inerente à expressão
artística, mesmo nos casos de suposta incomunicabilidade. Sempre se diz algo para alguém, mesmo que esse
alguém seja o mesmo que falou.
Vimos que um quadro é uma aparição; mas é também aparição a imagem que se vê num espelho — como
enfatiza Langer. Vejamos a diferença que existe entre as duas aparições.
Quando me coloco diante de um espelho vejo surgir de sua superfície um espaço e um conjunto de formas
visíveis. Mas o que o espelho me dá é a aparição indireta do espaço real e dos objetos que estão diante dele; o
que vejo é o reflexo de uma realidade já dada, que existe independentemente do espelho. De imediato se
estabelece uma relação entre o objeto físico e a imagem deste que se reflete na superfície do espelho. Não se
criou nada. Já estava tudo feito. Provocou-se apenas um encontro entre uma parte do espaço e um objeto capaz
de denunciar sua existência.
No espelho, a aparição necessita da imagem pré-existente; obtém-se então uma “outra aparição”.
Por outro lado o quadro é a aparição mesma em sua primeira instância. É a aparição nascida nesse momento
como realidade em si mesma, que vive sua existência dentro dos limites de sua própria natureza. É a “aparição”
enquanto tal, como estrutura plástica. A aparição de um espaço articulado que se dá por um feliz encontro de
formas em equilíbrio, ligadas entre si por relações dinâmicas.
O resultado é uma energia, uma energia “con-formada”. Isto porque o espaço pictórico tem forma orgânica,
característica que o diferencia do espaço real na medida que este carece de forma.
A forma do espaço pictórico tem valor como criação plástica, sempre que se articularem as tensões até se
alcançar um equilíbrio, uma harmonia, uma unidade. Neste momento o sentimento vital do artista está presente
na forma do espaço. O criador “se mostra”, a obra nasce. O homem e a arte aparecem assim através da história
da humanidade.

A história da arte
como história da criação de um espaço

Os diversos momentos da história tem apresentado soluções particulares e inéditas para o problema criado
pelo espaço.
Na pré-história, que já apresenta vestígios de uma intencionalidade cultural, é interessante notar uma relação
do homem com o animal e do homem com o outro homem. Esta situação de encontro se realiza no espaço. Mas
o homem da pré-história não está preparado todavia para viver a grande experiência espacial; carece da intuição

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que o faria “ver” a existência de um universo — concebido em qualquer dos termos que corresponderiam a sua
condição de ser humano — no qual ele mesmo está participando na qualidade de espectador.
Quando o homem da caverna pinta sobre a pedra não articula nenhum espaço; coloca figuras seguindo um
esquema semelhante ao de uma escrita. Utiliza o desenho, as imagens para dizer algo, porque tais imagens
estão carregadas de uma significação na qual ele está comprometido. A imagem transcende em direção a um
significado que escapa à própria representação.
O que interessará para a forma em si será sua validade plástica, mas a importância de seu significado vital
está relacionada com a caça ou com a guerra. Representa-se o ato (batalha), ou a antecipação do ato (imagens
relacionadas com a caça). O espaço que aparece nada mais é do que o lugar não ocupado pelas imagens.
Por isso, pela ausência de problemática espacial, torna-se difícil chamar estas representações de pinturas
rupestres; quem sabe não seria melhor batizá-las com o nome de desenhos ou formas coloridas. A pintura
apresenta problemas que as paredes e os tetos das cavernas não evidenciam, basta lembrar da vaca de
Lascaux, das grutas dos cavalos (Levante Espanhol) e dos guerreiros da Africa do Sul.
Nas representações pictóricas da primeira grande civilização aparentada com o Ocidente, o Egito (que tantos
contatos proveitosos teve para a Grécia), tampouco aparece explicitado o problema do espaço. O Egito pertence
às chamadas “culturas de oásis”, onde as grandes extensões fazem com que o espaço careça de forma. Nesta
região se produz um fenômeno que denuncia o registro de uma atitude anterior ao estado de “concepção
espacial” (pelo menos em relação àquilo que a representação pictórica se refere).
As motivações que provocam as representações nos papiros ou nos afrescos não exigiam a solução de uma
problemática espacial. Mais uma vez se apresenta a anedota, o relato, a manifestação de um desejo ou de um
motivo de adoração. Escreve-se diretamente por meio de desenhos, aos quais hoje atribuímos um valor plástico
que nunca sonharam ter.
Se falamos de uma atitude anterior ao estado de “concepção espacial” podemos pensar que ela coincide com
o espírito que anima o plano, a bidimensionalidade; característica que a pintura egípcia denuncia. É fácil deduzir
que aqui o espaço se reduz também a lugar, local onde ficam incorporadas as imagens úteis à intencionalidade
que o “artista” se esmerou para alcançar. Esta cultura de oásis, ao desconhecer “o encontro” com o espaço,
oferece uma verdade plástica à maneira de um grande poema de imagens. Basta rever as pinturas da tumba de
Nefertiti, ou os papiros de Hathor e Anubis, para verificar que o que foi dito não está errado.

O espaço medieval

Não é tarefa difícil tentar estudar o espaço pictórico durante a Idade Média, porque: 1) dispomos de obras com
as quais é possível avaliar os conceitos enunciados e, 2) existe uma relação entre homem e Deus que provoca
uma série de questões acerca do espaço e sua representação. (religiosidade idealizada)
Adiantando os conceitos, anunciamos que a criação de um espaço iniciado na Idade Média conhece um
período de transformação no século XIV ao tentar uma claridade que se fará evidente no Renascimento. Mas
estabelecidas as leis de representação (segundo as intenções dos renascentistas), o dito espaço continuará
evoluindo até culminar sua situação nas soluções que o século XX propõe.
Retornando ao medievo militante, devemos enfatizar mais uma vez a importância de que se reveste a relação
direta estabelecida entre o homem e a divindade. Se aquele busca a Deus e faz deste encontro uma aspiração de
identidade, as distâncias não existem; desaparece a ponte que une o mais próximo ao mais distante. O homem
busca aproximar-se de Deus e chega a ele por vias de uma “aparente experiência direta” (aparente será também
a imagem pintada, enquanto toda a representação é inventada: rosto, corpo, atitudes, etc…). E essa experiência
direta especial pressupõe o encontrar-se em um espaço ideal.
Durante a Idade Média se estabelece uma notória diferença entre o espaço onde habita a divindade e este
outro dentro do qual vive o homem. Agora Deus é “a medida de todas as coisas” e se aproxima do ser humano
para ditar-lhe seus preceitos e seus cânones.
Mas ao mesmo tempo, os homens da terra abrigam a esperança de que sua alma transcenda na busca de
uma comunhão com o Ser Superior. Para consegui-lo, terão que dirigir-se a um mundo e a um espaço
imaginados; de onde — e no terreno do pictórico — todo se resolve por via da invenção.
O espaço que o artista cria carece de profundidade (aparentemente). A imagem carrega a intenção de se
expor como portadora de um significado que pouco ou nada tem a ver com os específicos significados plásticos.
A carga religiosa que cada pintura traz em si obriga a supor a presença do espaço ideal, ao qual já nos
referimos, que nada tem em comum com o âmbito que rodeia o homem todos os dias. Daí, talvez a intuição de
um espaço n-dimensional que se contrapõe ao tridimensional da natureza. Além disso, este último indica a
medida da finitude, e as imagens pintadas, que vivem em outra esfera do universo, devem ser imaginadas como
em um espaço não finito (sem medida).

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Uma atitude semelhante nos faz recordar os egípcios; mas enquanto estes desconheciam a “forma do espaço”
no âmbito da vida em um oásis, os medievais sabiam bem o que era o espaço e para que servia. O melhor
exemplo é dado pela concepção que este homem tinha do firmamento: a forma de um tabernáculo ou pavilhão, o
que corresponde a dizer, uma forma essencialmente arquitetônica. E quando quis representar o universo dentro
dos limites de uma concepção particular, posta ao serviço de uma fantasia, construiu a catedral que dedicou a
Deus, a força criadora deste universo no qual estava submerso.
Outra vez a arquitetura, a arte que determina e articula o espaço, elemento ativo que favorece a expressão.
Observados a partir deste ângulo, encontramos a distância que separa o criador medieval do ser que se
expressava nas longínquas margens do Nilo.
Dentro da pintura o espaço medieval assume as características de uma visão intuída, porque sempre faltará a
experiência que conduza ao conhecimento da zona que está mais além da realidade capaz de ser abarcada pelo
homem. Trata-se de “outra realidade” que o artista inventa, procurando alijar-se, dentro do possível da realidade
que o circunda. E com todos os elementos conhecidos imagina e concretiza uma realidade ideal, divina.
Os exemplos que podem demonstrar essas idéias são: o Cristo Pantocrator e os apóstolos do século XII, em
Urgel e especialmente Guido de Siena e Simoni Martini (a Anunciação).

A transição do século XIV

Consideremos um pensamento de Auriol, estudioso do Trecento, para poder explicar, em parte, a atitude dos
artistas dessa época. Ele diz: “É mais nobre uma realidade individual e concreta que aquela que se conhece de
modo abstrato e universal”.
Como todas as reações, esta também aponta para limites extremos. O válido aqui é descobrir essa
preocupação pelo que é concreto (o que chega ao homem por via dos sentidos) e individual, retomando o ser
humano como um valor unipessoal.
Sem dúvida, já se encontram aqui todos os elementos com os quais a primeira metade do século XV irá se
nutrir, e atrevendo-nos um pouco mais, descobrem-se nesse período de transição do século XIV, os primeiros
passos, tímidos, do grande movimento universal do Renascimento.
No que se refere à pintura, os seres celestiais descem até a superfície da terra; mas também a natureza
penetra agora nos domínios da representação plástica. A complicação que significa situar as imagens sagradas
no quadro natural onde vive o homem, provoca talvez um desacordo primeiro entre o que a natureza está
mostrando e a forma de expressá-lo plasticamente. O espaço não é então nem bidimensional nem definitivamente
tridimensional. Todavia existe o temor em abandonar o espaço da época precedente para substituí-lo por esse
outro que se vê e se percebe como uma verdade necessária.
A solução oferece uma terceira dimensão insinuada, conseguida pelo aproveitamento de alguns elementos
tomados da mesma natureza, aqueles que por sua disposição especial são capazes de sugerir a profundidade
perseguida. Um exemplo típico são as colinas em forma de planos ascendentes, orientadas no sentido “adiante-
atrás”.
O artista dirige seu olho em direção à natureza que o rodeia: torna-se naturalista. Mas seu olhar é curto,
abarca o espaço limitado pelas próprias coisas; tudo termina dentro do mensurável imediato, sem pretender
abarcar a totalidade.
Corresponderia denominar de lugar essa zona onde vivem e se movem as imagens da narração. É verdade
que os pintores dessa época representam o espaço, mas sem considerá-lo contudo como um elemento
problematizador. A natureza que convém ao quadro se apresenta ingenuamente, para criar um espaço dentro do
qual se situam as formas que protagonizam a narração. Retornou-se à terra mas não se mergulhou na esfera
onde mora o pensamento. Este outro passo será o emblema que o século vindouro irá ostentar.
A Fuga para o Egito e A Deposição de Giotto e A Adoração de Taddeo di Bartolo, ilustram o que foi exposto de
maneira bastante eloqüente.

Renascimento

Nos primeiros anos deste período se evidencia a intenção de penetrar no campo das especulações espaciais.
Ao estudar a Pré-História, o Egito, a Idade Média, fizemos uma análise que se propunha mostrar o
aparecimento de um espaço aparentado diretamente com o plano, quer dizer, que se resolve com o auxílio da
geometria plana. Mas quando o homem abandona um pouco a idéia de Deus como o princípio e a razão de ser de
tudo que existe, e descobre o alcance de suas possibilidades e de sua projeção, o conceito sobre o espaço
adquire outras características.

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A partir deste “descobrimento”, pensa em uma realidade chamada espaço, e ao pensar penetra nele para
saber que coisa é.
A intuição de um espaço, somada à experiência espacial (resultado de uma observação) darão como fruto a
“idéia de espaço”.
Enquanto idéia, o espaço deve ser claro, preciso, desprovido de todo dado que denote uma determinada
subjetividade. É verdade que o espaço é uma intuição que nasce na pessoa que o experimenta. Porém “o
espaço” pintado dessa maneira, diz respeito ao geral, ao objetivo e não ao particular ou subjetivo.
Durante o Renascimento, o espaço adquire uma dimensão particular. Serão buscadas e estudadas todas as
leis possíveis que façam alusão a sua atraente existência. Essas leis que ordenam o universo comprometem
inclusive a presença divina. A partir de então a Divindade ingressa no espaço concebido pelo pensamento do
homem, nascendo de uma realidade imediata que aspira transformar-se em uma realidade permanente e eterna.
O espaço já não é a própria infinitude; todo pensamento “próximo de…” implica numa limitação. Dentro desta
limitação — sem limites em alcance e importância — aparecem os seres de mais além vestidos com o traje do
humano. O homem ama e respeita os seus seres divinos mas os faz conviver com sua paisagem, com seu
mundo circundante. Ao transformar-se em epicentro do mundo, aspira a que seu próprio espírito abarque a
totalidade cogniscível. Então introduz em seu ser toda a realidade e a verdade do mundo; vive-o como
experiência íntegra e o comunica na forma de uma experiência interior objetivada. O mundo vivido assim,
experimentado e expresso, se apresenta como uma realidade invariável. As leis do universo são eternas. Então
não existe possibilidade de mudança: o que varia é o intranscendente, o transcendente é imutável.
A realidade de todos os dias sofre um eterno processo de transformação; porém concebida em termos
abstratos ela se apresenta com nítida definição e estabilidade.
Respeitando estas características, ajusta-se o espaço que é transposto para a tela; que por isso é claro,
conciso, estático. Representa-se, em conseqüência, a idéia do espaço; o responsável é o pensamento do
homem. Todo pensamento carrega o limite de seu próprio alcance; considerando o que disse M. de Cuza certa
vez: “O cosmos é infinito. Qualquer ponto é seu centro”, essa infinitude abarcada pelo homem que então passa a
ocupar um centro, torna-se finita, tem uma limitação visual.
Em virtude de poder manipular a concepção do espaço dentro do mundo das idéias (idéias que se concretizam
em uma realidade plástica), torna-se possível buscar e por em prática uma técnica especial para obter sua
determinação. Se a realidade é imutável, não é nada difícil aplicar um sistema de relações — uma técnica — que
faça alusão à dita realidade. Nasce assim esse processo ordenador que inclui a linha do horizonte, o ponto de
vista (observação), o ponto de fuga, etc.; quer dizer, todo instrumental necessário para levar a cabo uma
operação tão delicada como a de “construir um espaço” intuido, pensado e concebido pela mente do homem
artista.

Mantegna, O Calvário Museu do Louvre, Paris


http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/mantegna/calvary.jpg

“O espaço é uma experiência do homem. O espaço concebido em


termos de idéia, procura abarcar a totalidade espacial. A redução ao
tema particular não desvirtua o sentido conceitual que se traduz em
cada um dos detalhes do quadro. Espaço claro e finito, como a idéia
que quer fazê-lo "surgir".

Temos falado de uma realidade imutável; se ela não muda será uma realidade estática. O dinâmico implica
mudança; se o mundo então se apresenta desta maneira, a totalidade do universo aparece com um horizonte
fechado para o futuro. É a realidade do presente, neste lugar de sempre e para sempre. Tudo ficou submetido à
idéia que o homem construiu para si próprio da realidade, concebida à sua imagem e semelhança.
O impulso gerador e propulsor desta “cosmologia humana” está orientado “da terra em direção a…”, nunca do
cosmos em direção à terra. Em certo sentido o homem se sente com o direito de submeter todas as forças do
universo às ordens de sua força construtiva. Por isso ao organizar o espaço (em sua forma plástica), não se
afasta de seu próprio mundo natural — quer dizer, apóia-se na natureza na qual vive e pensa — e quando o
constrói chama este reino de sua criação bem como todas as suas criaturas do céu e da terra.
Agora poderíamos responder a M. de Cuza dizendo que “o centro do infinito é a terra e o centro da terra é o
homem”.

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Às vezes, e sem perder o caráter de tridimensional, cúbico, conciso, claro, estático, o espaço se faz muito
complexo, anunciando em certos casos as novas postulações que servirão para soluções futuras. Poderíamos
tomar cinco exemplos onde aparecem algumas características peculiares que se apropriaram do espaço:
1. Se considerarmos o espaço do Renascimento como um todo unitário, como uma unidade que aspira
encerrar a totalidade espacial, vamos notar que em uma paisagem de Patinir, por exemplo, o espaço inventado no
quadro perde em aparência sua estrutura unitária, porque o pintor buscou o sentido de profundidade através de
um fracionamento progressivo, obtido por meio de um jogo de planos (que trabalham como biombos ou
divisórias).
2. Quando Ticiano pinta sua Vênus e Cupido ou a Vênus de Urbino divide o espaço total (seja na relação
interior-exterior, para o primeiro exemplo, ou na concentração no ambiente interior, no segundo) em uma série de
sub-espaços para conferir hierarquia ao âmbito onde estão colocadas as imagens. O espaço fica dividido em
primeiro, segundo ou terceiro planos. A complexidade, a riqueza que se obtém ao seccionar a totalidade, é a
resultante do fracionamento do espaço, uma vez que ele havia sido construído.
Da simples cena da Virgem com Pintassilgo (Rafael) com um espaço único, cenário construído para situar
as imagens sagradas, passou-se a um espaço múltiplo — podemos chamá-lo assim —, a maneira de um cenário
com cenas simultâneas.
3. Um elemento que pode modificar a natureza do espaço estudado é a “atmosfera”. Quando ela aparece
temos a sensação de que o espaço é um corpo com densidade, que tem peso. Claro que isto é apenas uma
aparência, mas de todo modo, para a experiência visual é uma “realidade visual”. Quando a atmosfera passa a
atuar, o espaço perde nitidez e o lógico seria que todas as imagens que participam de tal atmosfera também a
perdessem.
Contudo, quando Giorgione pinta a sua Tempestade as imagens acusam a claridade que corresponde a um
quadro que se ajusta ao rigoroso sistema do século XV.
O que parece menos claro, menos conciso, é o fragmento que nos fala de uma tormenta; a natureza então,
serviu para criar uma atmosfera dentro do espaço, mas sem modificar as aparências das estruturas. Não houve
um interpretação do atmosférico, mas sim uma transposição da atmosfera (que é própria de uma tempestade).
4. Em contrapartida, Leonardo da Vinci se atreve a envolver com uma bruma a paisagem de A Gioconda,
conseguindo que as imagens percam nitidez e definição formal, e faz surgir de um mundo de penumbras a figura
de São João Batista; neste momento o espaço perde muito do que tinha de físico e de científico. Se o pintor o
concebeu de acordo com todas as leis que considerou importantes e imprescindíveis, se preocupou bastante em
dissimulá-lo.
O novo elemento que penetra na tela é a atmosfera; sua presença transtorna a claridade e concisão do
espaço. O espaço científico entra em crise; a cena da plástica espacial embarca em uma aventura desconhecida.
5. Por fim Tintoretto, nascido um ano antes da morte de Leonardo, irá oferecer uma versão distinta do
espaço que havia preocupado os homens do Quatrocento e ainda do Cinquecento. Para isso elege um tema que
muito lhe convém: pinta o Paraíso, e como esta esfera do universo não pode ser trazida para a realidade na
natureza cotidiana, evoca um local sem determinação de lugar, um outro lugar onde se respira e se vive uma
atmosfera distinta.
Inclusive a disposição das imagens provoca uma relação diferente de coordenadas. A curva conquista o
primeiro plano e o espaço aparece adotando essa forma. À divindade retorna a sua morada nas alturas; está
nascendo outra concepção espacial.

Tintoretto, O lava-pés
Museu do Prado, Madri
http://www.artchive.com/artchive/t/tintoretto/tintoretto_maundy.jpg

No espaço construído aparentemente de antemão, situam-se as imagens


protagonistas do quadro.
A imagem total tem semelhança com uma cena de teatro; preparada a cenografia,
os personagens da ação podem ser incorporados ao espaço criado.

O Barroco

Como se fora um ciclo completo de sístole e diástole, a cultura apresenta o eterno jogo de um verso e um
reverso.
O Renascimento havia reduzido a realidade — a de cima e a de baixo — ao terreno humano. Havia se
revitalizado a famosa frase de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Mas a vida em seu

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contínuo devir oferecia não a oportunidade, mas sim a “necessidade” de retornar à esfera celestial, que reclamava
seus direitos e privilégios.
A pintura passa a ter um parentesco com a Reforma, o Concílio de Trento, a Contra Reforma. Na ânsia de
recuperar uma fé posta em perigo a cada dia, a visão do sobrenatural deve adquirir uma força similar àquela que
emana do Novo Testamento. Torna-se iminente a revalorização dos seres divinos, e convém dispô-los em
paisagens atraentes.
Porém como todo este novo acontecimento está dirigido aos sentidos — para que as propostas resultem mais
diretas e mais efetivas — as imagens devem estar carregadas de uma sensualidade, fácil de conseguir, se nos
voltarmos para a matéria, para a cor, para o movimento.
O problema religioso é considerado então em primeiro lugar. A fé e o destino do homem são colocados em
jogo; e daí se procura obter uma nova interpretação.
Na ânsia de conseguir esse objetivo, os olhos se dirigem a um horizonte distante, a um ponto tal como se
fossem penetrar nas zonas do infinito. Produz-se uma volta a estas regiões, e dizemos “volta” porque a Idade
Média também sabia e se expressava com a infinitude, porém através de outro sistema de representação do
espaço.

El Greco, O Batismo de Cristo


Museu do Prado, Madri
http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/greco/baptism-1597.jpg

Dois espaços em busca de um amálgama plástico-conceitual. A invenção do desconhecido faz


alusão a outra realidade, situada em um plano superior, desconhecido pelo homem. Uma
atmosfera especial conseguida com o emprego de certas técnicas pictóricas se encarrega de
transformar em natural a cena bivalente. Definitivamente, um só espaço pictórico, rico em
conotações e significados de índole distinta.

O homem deste período — chamado barroco — sente uma atração deslumbrante pelo mundo que opera em
um plano situado mais além dos limites humanos. O artista barroco intui o infinito, o que significa dizer que ele
intui o que está mais além. Tal intuição tem como força geradora um sentimento que se caracteriza por ser
indefinido e pode, portanto, abarcar uma área sem medida. A partir disso, se relacionarmos este sentimento do
“mais além" com sua onipresença e sua extensão, vamos descobrir que ambos tem como característica a
“indefinição”, ou seja, o não definido com clareza, o que não é expresso com precisão. Do exposto podemos
deduzir que neste momento se estabelece uma relação intrínseca entre a “indefinição emocional" (essa falta de
clareza que acompanha a experiência de todo estado emocional, acentuada, neste caso, pela própria natureza do
sentimento religioso) e a "indefinição espacial" (o espaço que o ser humano intui dispersa-se em uma esfera que
desconhece).
Buscando traduzir este novo modo de "sentir" em imagem espacial, o criador aprofunda-se na busca de novas
dimensões (extraterrenas), cuja resultante é a verdadeira conquista da pintura barroca (sem esquecer dos
elementos plásticos que participam do problema criador).
A solução é um espaço que não perdeu a sua tridimensionalidade, porém sem dúvida aspira a perda das três
dimensões, porque já penetra nas esferas ilimitadas. O barroco pode representar o primeiro passo para a criação
de um espaço cósmico, porém entendido, está claro, como espaço divino. Neste sentido opera com elementos
opostos aos manipulados pela Idade Média. Partindo do espaço cúbico, vai trabalhar por meio da ilusão,
disposto a destruir o cubo, em beneficio de um espaço que “alargue” a área de sua superfície e volume.
A Idade Média havia partido dessa superfície; aí esta a diferença entre as duas concepções. É precisamente
com a ajuda de todos os recursos ilusionistas que o Barroco trata pela primeira vez de tornar acessível um
espaço ilimitado e de tornar exeqüível o infinito. Esse sistema lhe permite manifestar o mistério que caracteriza a
essência do divino, mistério que se perde no caos da infinitude.
As forças que agora estão em vígência escapam às leis mecânicas que ordenam a natureza. Mais além da
experiência e do conhecimento existe uma zona não mensurável regida por leis universais. À análise e a síntese
são abandonadas para penetrar no eixo de uma outra engrenagem; em conseqüência as soluções próximas serão
inéditas.
Dentro desta nova esfera operativa surgirão "imagens de espaço" que têm algo em comum e muito de
diferenciado. Bastam umas poucas observações para provar isso.
a. Sem abandonar a concepção tridimensional do espaço, modifica-se a visão do mesmo, porque se
passa de um espaço "modelado" (no sentido do realmente tridimensional) ao "modulado" (semelhante ao que
Cézanne, mais tarde, buscará implantar); nestas circunstâncias não se discute a presença do plano. Para
escolher um exemplo recordamos de El Greco em sua Crucificação e em seu Cristo na Cruz.

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b. Rubens trabalha temas religiosos no século XVII, com um sentido tão especial da liberdade, que faz a
verdade do Cristianismo cambalear. Se o tema pagão tem papel preponderante na "representação”, nem por isto
o espaço permanece indiferente. As pinturas do pintor flamengo convivem em um espaço que insinua e assinala
uma infinitude muito particular, atraída mais pela indefinição '*sensual", que pela não definição do âmbito divino.
Um exemplo apropriado para verificar tal afirmativa, seria sua famosa Trindade.
c. Van Dyck segue o mestre, e permanece fiel ao que é característico de sua época. Às vezes situa suas
imagens em um espaço real finito, quase identificável; porém tratando de dar a ilusão da existência de outro
mundo, inventa o não finito, aquilo que está no céu, distante da terra. Então tudo resulta na intuição de um lugar
desconhecido, fruto de uma suposição consciente ou inconsciente. O melhor exemplo disto é a Pietà.
d. O céu, como morada de tudo que e divino, santo, é um lugar que não conhecemos; no momento de
“apresentá-lo", a fantasia terá que intervir. Murillo consegue dar a visão do céu como o reflexo de um espaço
inventado, onde coloca suas imagens: virgens, anjos e demais confrades da irmandade divina. Tomemos como
exemplo A Concepção, no Escorial.
e. Mas também o mundo terreno participa destas relações sobre-humanas. Às vezes, os dois mundos
convivem, movendo-se em um espaço real e outro inventado por obra da intuição; encontro e diálogo, entre a
realidade cotidiana e a esfera de uma pura idealização.
As pinturas do século XVIII e grande parte do século XIX não apresentam, do ponto de vista espacial,
nenhuma proposta diferente. Os dois séculos se alteram com este binômio de solução visual: o espaço como algo
definido, claro, conciso, e o espaço com testemunho do impreciso, do não mensurável, do indefinido.
O Barroco criou uma atmosfera que já vinha anunciada no período anterior e por sua vez, antecipou uma
forma de visão do espaço que vai ser aproveitada no final do século XIX, indicando obviamente soluções distintas,
porque as circunstâncias que vão ser consideradas também resultam muito diferentes.
Existe, em meio a esta polaridade, um exemplo que pode ser instrutivo para poder observar a antecipação de
um espaço atmosférico. Watteau é o pintor que se encarrega de oferecer a antecipação de um “espaço tornado
atmosfera". Basta lembrar seu Juízo de Paris.
Chegamos assim a um ponto crucial no caminho que nos é proposto pelo elemento plástico que nos preocupa.

O Impressionismo

Por volta do final do século XIX a observação com um olho que pretende ser “físico" em grau superlativo capta
a realidade de uma atmosfera que envolve todas as coisas da natureza. O ar se corporifica, como já dissemos, e
se antepõe às coisas ao mesmo tempo que se confunde com elas.
Esta relação entre a natureza fixa e a atmosfera que é cambiante em razão da distância e, além disso,
segundo a variação que a luz sofre durante o dia, determina uma nova maneira de figurar o espaço. Estamos
entretanto lidando ainda com a visão espacial do Renascimento (insinuado no século XIV); mas naquela época, o
espaço proposto era resultante de um processo "sensível-racional”, enquanto que o de agora, o dos
impressionistas, é o espaço observado, vivido não como uma experiência da mente, mas como uma experiência
dos sentidos.
A nova maneira de figurar o espaço, nascida da observação da natureza exige uma configuração especial.
Recorre-se ao “toque” — la touche dos franceses — de “cor-luz" (sustentado sempre por uma matéria); o toque
é um plano, a totalidade da obra será a articulação plástica de infinitos planos. Desta maneira se produz,
naturalmente, uma modificação do espaço tridimensional.
Já se passa então a “sentir” mais através do plano que do volume, como o demonstra o uso do toque que
caracteriza esta maneira de pintar. Então o espaço começa a perder profundidade (ainda que não seja regra geral
para todas as obras do período; como também, nem todos os pintores que se agruparam ao redor de Monet
foram verdadeiros impressionistas), mas essa perda fica compensada pela proximidade que se produz entre a
imagem e o espectador.
O homem que trabalha frente à natureza, englobando um horizonte "mais amplo", sente necessidade de
assinalar uma distância menor entre o fundo e o primeiro plano. Da construção cúbica passamos a construção em
forma de paralelepípedo, onde o ponto de fuga já não nos preocupa, e onde a "janela" do Quattrocento perde seu
reinado.
Afirmou-se muitas vezes que o impressionismo aparece como o "canto do cisne" de um sistema figurativo que
nasce no Renascimento. Não podemos deixar de "ver", sem dúvida, que esse canto anuncia um novo sistema de
representação, aquele que vai corresponder ao nosso século.
Nada mais expressivo nesse aspecto que os Barcos ou Regatas de Monet; ou que toda a época
impressionista de Renoir.

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Pós-Impressionismo

Este momento da história da pintura caracteriza o surgimento de uma nova visão de mundo. Porém uma vez
mais se retorna aos princípios, à revelação do que se inicia, do que é inédito desde a intenção até a formulação
concreta.
Cézanne, verdadeiro criador do sistema com o qual se manejará a evolução da pintura contemporânea,
procura recriar um mundo pictórico, mas começando pelo miolo das coisas (coisas da natureza ou espaços, que
também são coisas). Em sua concepção, que desde sua origem vai em direção à superfície (e sua maneira de
pintar não contradiz este conceito), se encerra o desejo de voltar a compor um universo. Cézanne e os pós-
impressionistas não podem prescindir, da relação figura-fundo. Todavia permanecem presos a um passado
imediato e a outro distante; neste sentido pode-se considerá-Ios "homens-ponte" porque unem uma margem do
passado, que já apresentou suas soluções, com as praias de uma região ignorada, mas onde grandes mudanças
serão produzidas.
Estes são os momentos marcantes nos quais as possibilidades mais importantes do ser humano são postas
em jogo. São as surpresas da grande curva num giro audaz, comprometido. Uma vez que o caminho tenha sido
indicado, a marcha se torna natural e fácil. Em lugar do homme engagé de Sartre, diríamos o "grupo
comprometido" e responsável de sua geração e das seguintes.
Com o pós-impressionismo o espaço manifesta abertamente seu desejo de perda da tridimensionalidade. A
“voz" do espaço e a “voz" das imagens soam em um contraponto de acordes mais próximos. Ao mesmo tempo
que a relação figura-fundo busca uma situação de igualdade no que se refere ao plano de importância dentro do
quadro, surge o espaço elíptico sugerido pela curvatura que se descobre na sua conformação.
Surge outra solução para o problema proposto por um espaço que não mais deseja ser o "receptáculo" da
imagem representada. Chegou o momento de pintar com elementos plásticos que sejam "exatamente isso",
plásticos e nada mais. Deve-se inventar um sistema de formas expressivas, significantes no sentido mais
rigoroso. Imagens e espaços são, definitivamente, partícipes de igual importância a partir do ponto de vista
pictórico.
Se todos os elementos assumem a mesma hierarquia, se não se estabelecem diferenças continente e
conteúdo — dentro das limitações que o mesmo tema exige — é lógico que se consiga uma unidade de visão. A
“aparição" que é o quadro, apresentará uma figura e um fundo, fundidos na unidade desejada. De acordo com o
mesmo critério, podemos considerar o valor de uma mancha que atua no fundo do quadro, junto com outra que
desenha a figura pregnante. O Fauvismo — movimento que irrompe no ano da teoria da relatividade — pode
ingressar perfeitamente no contexto desta revolução plástica. E se havíamos falado de uma "unidade de visão",
nos convém citar Matisse, em cujas obras a significação plástica toma as características de um "acorde perfeito
maior".
Com o desenrolar dessas experiências a importância da imagem figurativa em relação ao fundo se
transformará e se produzirá um fenômeno de simbiose no qual a identidade entre figura e espaço será
evidenciada.
Cumpre-se assim um ciclo importantíssimo que engloba uma produção que vai de Cézanne ao Fauvismo. O
Mestre de Aix aspira fazer do impressionismo uma arte de museu; ele encontrou em seus parentes próximos os
vocábulos plásticos que o ajudaram a expressar-se, mas utilizados para escrever uma nova sintaxe. É a sintaxe
que persegue a permanência, o imutável, aludindo ao "ser" mesmo do que foi criado.
Com Gauguin (Visão depois do Sermão), Van Gogh (Jardim do Dr. Gachet), Bonnard (Coin de table) , Vuillard
(No leito), uma vez mais a tridimensionalidade espacial entra em crise.
Gauguin, Van Gogh e seus companheiros de luta — personalidades independentes em sua expressão —
seguirão respondendo com sua obra à problemática proposta. O espaço perderá sensivelmente seu volume em
beneficio da expressão do plano. Finalmente, os fauves mais representativos comprometerão o espaço; numa
visão que aponta decididamente para a bidimensionalidade, onde a leitura do quadro se faz sem ter que
"penetrar” muito na superfície da tela. Gauguin foi o mestre que marcou o caminho da nova conquista.
Aparece assim o espaço curvo (tão relacionado com os enunciados da Física do século XX), como o
demonstra Meninos no Campo de Derain.
Os elementos do quadro são aplicados na obtenção da unidade da visão; e por conseguinte, em uma
identificação "figura-espaço". Rouault com seu Noturno Cristão manifesta uma solução de acordo com estas
proposições.
No período compreendido entre Cézanne e o Fauvismo se propõe e se determina a sorte do primeiro — e
autêntico — movimento pictórico do nosso século: o Cubismo.

Pintura Contemporânea

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Quando o cubismo aparece confirmam-se todas as tentativas realizadas em busca de uma maneira plástica
que a nova visão da realidade, e agora do universo, exigem. No século XX se abandona a natureza enquanto
aparência tangível das coisas que nos rodeiam; abandona-se o espaço como uma experiência que se pode
expressar na forma de uma realidade observada, ou como uma “idéia de espaço" que se concretiza na imagem
da natureza. O artista se faz dono de uma concepção decididamente abstrata, onde o espaço é uma realidade
sentida como pura intuição. Diríamos que se produz uma passagem que vai da natureza (manifestada em todas
as suas formas) à geometria (ajudando ao mundo abstrato que excede os próprios limites da natureza).
Esta nova visão do universo não é um privilégio da pintura; é uma realidade experimentada pelo homem desse
século, esse ser que ousa em direção ao cosmos para penetrá-lo, descobri-lo e interpretá-lo.
Einstein afirmou que é impossível a existência de uma perspectiva absoluta, e que portanto não existe o
espaço absoluto. Se tratamos de aplicar esta verdade à realidade espacial que um quadro apresenta, vamos
aceitar conscientemete a ausência de um ponto de observação, e logo a ausência definitiva de um ponto de fuga.
O homem pretende situar-se no centro da perspectiva total, onde não existem limitações; a partir do seu centro
abarcará todas as direções em um giro de 360º.
O olho gozará de uma visão global e contínua desta realidade chamada espaço. Cada vez se produzirá uma
experiência direta com as forças da natureza, porque aí esta a relação homem-cosmos como uma primeira e
única experiência; cada vez se produzirá uma percepção inédita "de contato" com a verdade espaço.
O espaço pictórico do século XX deve corresponder, à era da exploração polisensorial do mundo, traduzido
nas polidimensões exploradas através das experiências de Riemann e tornadas realidade na geometria astral de
Schweikart, através de uma linguagem elaborada com termos e escalas astronômicas.
Estas são as escalas que governam o sentimento vital do homem de hoje, e por isso a aventura plástica
penetra em zonas que vivem dentro dos limites de outra realidade. É talvez uma forma distinta de apresentar um
mundo desconhecido mas intuído, modificando a imagem e o lugar do sobrenatural.

Pollock, Lavander Mist No. 1. 1950


http://www.nga.gov/feature/pollock/lm1024.jpg

Do "espaço-lugar" da pré-história, passando pela cenografia renascentista, chegamos à idéia de


infinitude espacial. Pollock certifica precisamente que "a pintura é espaço". Manejando elementos
puramente plásticos (matéria e cor), articula um campo espacial que não começa nem termina:
que é o espaço.

O homem volta a ser um elemento da realidade cósmica, que aspira conhecê-la através de uma experiência
que se concretiza e define a medida que se vai vivendo. Produz-se então um enfrentamento com o "suceder", um
acontecer que anuncia um espaço e um tempo conjugados. O polisensorial se confunde outra vez com o
bidimensional; o antes e o depois se identificam. O espaço é tudo; até os corpos são evidência espacial. “A
manifestação do espaço não se pode separar dos corpos", dizia Einstein.

Piet Mondrian, Composição no 10, 1939/1942


http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/mondrian/comp-10.jpg

O artista consegue criar a imagem de um espaço quase bidimensional. A tela recobraria assim os
caracteres primeiros de uma superfície. O infinito está enunciado na falta de alusões
tridimensionais e na sugestão de uma continuidade marcada pelas ortogonais que chegam às
margens da tela. O espaço, como idéia pictórica, resulta bastante eloqüente.

Chegamos a conclusão de que o espaço se eleva como elemento expressivo da pintura. A conquista do
espaço — como a conquista dos astronautas — nos conduziu à obtenção de uma identificação, todavia, mais
surpreendente. Agora é o espaço aquele que se expressa utilizando a pintura, arte cuja problemática aponta para
a invenção de um espaço. A culminância da arte pictórica de século XX está representada — no nosso entender
— por Pollock e Mondrian; o primeiro encarnará a experiência polisensorial, o segundo a bidimensionalidade. Se
havíamos estabelecido uma identificação entre poli e bidimensionalidade, é evidente que os dois artistas encaram
o mesmo problema: criar um espaço sem lugar e sem tempo.
Mondrian, com ajuda da razão que está além da contingência primeira das coisas, consegue fazer da imagem
um expoente claro da bidimensionalidade (dentro dos limites aceitáveis), outorgando-lhe com isso seu autêntico
valor de superfícies, origem real de toda experiência pictórica.

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