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Os três Cézannes

Meyer Shapiro e Cézanne

As maçãs de Cézanne (1968)

Shapiro logo reconhece que a pintura de Cézanne chamada de O


julgamento de Páris tem um tema inadequado ao nome. O autor questiona
como Cézanne, conhecedor da maçã lendária, pode ilustrar o julgamento com
tantas maçãs. A impressão imediata do autor é de se tratar de um singelo tema
pastoral: Uma figura pagã, o pastor, oferece frutos à tímida amada. Note-se
que em http://www.cezannecatalogue.com, o maior catálogo online com as
obras de Cézanne, só é possível encontrar a tela com o título de Julgamento
de Páris. Shapiro reconhece o tema pelas leituras da poesia latina que
Cézanne fez na escola. E o autor tem seus motivos para desconfiar do tema.
Em uma fonte em Propércio encontrou versos que cantam o amor de uma
moça conquistada por dez maçãs. O historiador afirma então que a tela se trata
de Pastor Enamorado, óleo sobre tela, 1883-85 (Anexo I). Se os versos de
Propércio podem ter originado o tema, permanece inexplicável o papel das
outras figuras do quadro. O autor sugere que por sua presença coletiva, elas
reforçam a inocência do gesto do pastor e aludem a um imaginário em que a
nudez é natural e o desejo do pastor, admitido. Será, então, que aqui Shapiro
vê uma classicidade em Cézanne? É possível que sim. O historiador está
atento ao contexto e ao tema da obra e, desta forma, identifica que embora o
tema seja tipicamente clássico, o tratamento pictórico é bastante moderno. As
figuras humanas são massas de cores mais claras ou mais escuras, como se
apenas para fins representativos, são massas de cor que tendem ao plano e
não à profundidade. Os semblantes mal podem ser vistos, o artista está
preocupado com a sensação da pintura e não com a questão da representação
detalhada.

Seria impossível reconstituir as circunstâncias nas quais foi produzido


Pastor enamorado. Conjectura-se que no princípio ou meados da década de
1880. Cézanne, embora normalmente pintasse naturezas-mortas, talvez tenha
se lembrado, ao ler os poetas latinos, de que uma oferenda de maçãs poderia
conquistar uma moça. O autor especula ainda que os versos latinos reavivaram
nele a esperança muda de que sua pintura pudesse trazer-lhe o amor.

ANEXO I
Para Shapiro, podemos aceitar a ideia entre a pintura de maçãs e as
fantasias sexuais, vez que no folclore, na poesia, nos mitos, linguagem e
religião ocidentais, a maçã tem um conhecido sentido erótico.“É um símbolo de
amor, um atributo de Vênus e um objeto ritual em cerimônias de casamento.”1

Para Shapiro, muito antes de pintar O pastor enamorado, Cézanne já


havia expressado suas fantasias sexuais em versos de idílico tom pastoral. Em
um poema dedicado à Zola, Cézanne perguntava: “Quand donc une
compagne/... viendra Dieux, soulager ma misère?” [Quando, então, virá uma
companheira, Grandes Deuses, aliviar meu infortúnio?] O pintor sonha com
uma pastora e rima compagne com campagne.2 Em Paris, Cézanne
permaneceu tão tímido e inibido quanto em Aix. Da imaginação obcecada do
artista saíram quadros de crua sensualidade, até mesmo de estupro, orgia e
assassinato, como A Orgia, óleo sobre tela, 1864-68 (Anexo II). Shapiro não
faz uma análise desta obra, mas podemos ver vários homens e mulheres,
alguns semi-nus ou até mesmo nus, em volta de uma mesa, se abraçando ou
mesmo fazendo sexo, mas não vemos como Shapiro consegue afirmar que há
estupro. A linha da mesa e da construção nos levam ao canto superior
esquerdo da tela e não ao céu. O tratamento pictórico do céu é bastante
1

?
GRUPPE, O. Griechische Mythologie und Religiongeschichte. Munique, 1906, I, p. 384
2

?
Correspondence, p. 36. 9 de julho de 1858
moderno. Um turbilhão de azul e branco atravessado por um panejamento que
tira do espectador qualquer capacidade para fugir da cena da Orgia, cujos
corpos, volumes construídos por cor, se amontoam por todos os lados,
deixando para trás qualquer ideia de organização composicional. Figura e
fundo se mesclam causando uma vertiginosa e clara ideia da violência da tela.
ANEXO II
No final da década de 60, Cézanne começou a retratar as fêtes-
champêtres típicas do rococó. Foi uma conversão do mundo pastoral mítico
para a vida social moderna, a vida que Cézanne realmente experimentava
mesmo que tentasse se manter recluso. Shapiro aponta que as versões de
Cézanne eram anômalas em dois aspectos: as mulheres nuas entre os homens
vestidos em um piquenique – um devaneio romântico numa pintura realista, a
violência de contrastes, a insatisfação que permeia as imagens de prazer
bucólico. Em Pastoral ou Almoço sobre a relva, óleo sobre tela, 1870 (anexo
III), o autor vê:

“Os desejos implícitos nos pares de figuras nuas e vestidas


reverberam no vigor erotizado das árvores e nuvens e em seu
reflexo no rio, assim como na sugestiva relação entre um copo
e uma garrafa.”3

Também podemos perguntar o que é a relva se não um plano de cor?


Não há maiores detalhes. É apenas um plano de cor. A sombra dos corpos é
definida apenas por uma cor negra insistente e nem sempre coerente com seus
volumes. O rio não corre, não tem movimento, é apenas a consciência de um
rio. Parece tratar-se de um artista lidando com uma batalha entre sua fantasia e
sua realidade.

?
Shapiro, M. Paul Cézanne, Nova York, 1958. P. 22
ANEXO III

Em Uma Olímpia moderna, óleo sobre tela, 1873, (Anexo IV) mostra
uma negra nua e um cachorrinho, uma natureza morta de frutas e garrafas está
posta numa mesinha próxima. Um homem que – segundo Shapiro – é o
próprio artista, olha a negra e a mulher branca desnuda. Como podemos
entender esta pintura? Uma relva ou um carpete verde? Uma negra que
desnuda a Olímpia sobre um pano diáfano cuja construção se deve apenas a
camadas de tinta branca em diferentes direções? É um turbilhão de cores e
planos distintos cujas figuras desproporcionais ditam o tema. O homem – que
Shapiro afirma ser o pintor – está sentado sobre um sofá de costas? Sem as
pernas à mostra? Nada é o tema em si, é a representação da percepção do
autor do que seria o tema. Não há nenhum compromisso com a realidade ou
como ela deveria ser retratada. Cézanne quebra todas as regras para talvez
mostrar seu próprio entendimento do tema.

Os temas abertamente sexuais desaparecem das pinturas de Cézanne


no final dos 1870. Seus últimos quadros de banhistas, os nus são ora rapazes
no rio ou apenas mulheres. Evitando assim confronto dos sexos nas novas
pinturas idílicas. Há uma série de pinturas de banhistas, mas uma das mais
conhecidas é Les Grandes Baigneuses, óleo sobre tela, 1898-1905 (Anexo V),
Shapiro não faz uma análise dessa obra mas podemos ver os nus femininos
abstratos dando tensão e densidade à pintura, as mulheres são
desproporcionais, bem longe dos ideais clássicos. Há uma simetria na pintura
quando os corpos das duas banhistas em pé, uma de cada lado, curvam-se
junto com as linhas das árvores paralelas a elas quase se encontrando no
céu,e abaixo uma construção do outro lado do rio, formando um triângulo.

Os quadros nus de Cézanne mostram – segundo Shapiro,

“que o artista não podia exprimir sem ansiedade seus sentimentos pelas
mulheres. Nas pinturas de mulheres nuas em que não representa uma obra
anterior, geralmente fica constrangido ou violento. Para ele, não há o meio-
termo do prazer simples”4

?
Shapiro, M. A arte moderna: Séculos XIX e XX. São Paulo: EDUSP. 2010. P, 50.
ANEXO IV
ANEXO V
Para Shapiro há um exemplo de associação de frutas com figura erótica,
num processo de desvio e substituição, em uma pintura de nu do final da
década de 80, retrato de uma mulher nua, óleo sobre tela, 1886-90 (anexo VI),
a mulher é tão parecida com figura de Leda e o cisne, óleo sobre tela, 1886
(anexo VII), que é indubitável sua intenção de representar novamente Leda. A
posição de ambas as mulheres é parecida e a expressão facial também. O
autor argumenta que

“Cézanne ao invés de pintar o cisne, pintou uma surpreendente


natureza-morta fragmentada; os contornos curvos e a listra vermelha
da toalha de mesa reproduzem as linhas sinuosas do cisne da primeira
obra e as duas grandes peras lembram a cabeça e o bico do cisne.” 5

A estranha posição da natureza-morta aqui seria o resultado da inversão


da tela anterior para poder utilizar a mesma figura nua. Apesar da aparência
anormal da mesa e das peras, a natureza-morta é parte essencial deliberada
da nova composição. Shapiro vê nisto um exemplo marcante da difusão do
tema sexual pela substituição de uma figura por objetos de natureza-morta.
Entendemos que Leda e o cisne são temas mitológicos. O que mostra que o
autor ainda não abandonou totalmente sua ligação com o passado, mas o
tratamento das pinturas não é clássico. As manchas de tinta no corpo de Leda
mostram como o pintor usa a cor para criar volume ao invés de usar
perspectiva. Leda é composta por pinceladas de variados tons e não tem um
contorno claro. O fundo azul da pintura é feito de diferentes tons dando um
certo ar de irrealidade na cena.

?
Shapiro, M. A arte moderna: Séculos XIX e XX. São Paulo: EDUSP. 2010. P, 51.
ANEXO VI
ANEXO VII

Shapiro afirma que quando a natureza-morta surgiu como um respeitado


gênero independente podiam oferecer mais prontamente símbolos pessoais
latentes e conter sentimentos como os que foram inferidos na obra de
Cézanne. Foi por ter pintado naturezas-mortas e nus, que ele foi capaz, nas
pinturas idílicas e naturezas-mortas puras de simbolizar seus desejos através
das maçãs como elementos dotados de vaga analogia com temas sexuais.
Contudo, o autor afirma que as naturezas-mortas posteriores com maçãs e
toalhas amarfanhadas não possuem esta alusão e que não podemos
interpretá-las como símbolos de um estado pessoal.

A mudança para as naturezas-mortas com frutos sem eloquência nem


autoridade ocorre no início da década de 1870, quando Cézanne passou de
uma pintura sombria, com tons carregados e contrastes violentos para a fatura
impressionista, mais delicada, luminosa e agradável. Tal mudança fez Cézanne
libertar-se da turbulência das paixões em seu trabalho.

Segundo Shapiro, é possível sentir uma característica pessoal não


apenas na importância da natureza-morta como um todo na obra de Cézanne,
mas também em sua insistente preferência por maçãs. Estas são obras
principais, muitas vezes da mesma complexidade e grandeza que suas
composições figurativas mais expressivas. A organização dos objetos, as
mesas e as toalhas, às vezes sugerem um grande terreno de modelado, e os
tons da parede de fundo têm a mesma delicadeza dos céus de Cézanne. Suas
naturezas mortas são fruto de sua consistente pesquisa.

O autor afirma que:

“nas pinturas de maças ele [Cézanne] foi capaz de expressar através de


suas variadas cores e arranjos uma gama mais ampla de sentimentos, da
gravidade contemplativa ao êxtase sensual. Nessa sociedade cuidadosamente
organizada de coisas perfeitamente submissas, o pintor podia projetar as
relações típicas dos seres humanos, bem como as qualidades do mundo visível
maior.”6

Para nós, esta declaração de Shapiro nos mostra um pintor ligado às


questões sociais de sua época, o comportamento humano, suas relações, suas
transformações e o mundo no qual vivia suas experiências. Cézanne vivia
recluso, afundado em suas pesquisas, mas estava atento ao novo mundo

?
Shapiro, M. A arte moderna: Séculos XIX e XX. São Paulo: EDUSP. 2010. P, 73
moderno e talvez visse na representação das naturezas-mortas uma forma de
por ordem em um mundo agora tão caótico.

Cézanne (1959)

Shapiro afirma que após cinquenta anos da mais radical transformação


artística, a pintura de Cézanne mantém-se original e estimulante para os
pintores da época. Cézanne não gerou uma nova escola, mas sua morte
impulsionou direta e indiretamente quase todos os novos movimentos. O poder
do artista de excitar artistas de diferentes tendências e temperamentos, deve-
se, na opinião de Shapiro, ao fato de ter percebido com a mesma intensidade
as diversas facetas de sua obra.

Em Cézanne, o mais impressionante é o caráter abrangente de sua


obra. A cor, o desenho, a modelagem, a estrutura, o toque e a expressão são
levados em sua obra a novas alturas. Cézanne é cativante por suas imagens e
por suas pinceladas inigualáveis que nos mostram que pode haver grandes
qualidades em pequenos toques de tinta. Em suas pinturas, manchas isoladas
do pincel, revelam-se como estranha opção, definindo a unidade de toda uma
região de formas. Cézanne é inventivo e perfeito em muitos aspectos distintivos
de sua arte.

Cézanne herdou – como Delacroix, conservou de Rubens e dos italianos


– o conceito de grandiosidade, não pelo tamanho da tela, mas pelo peso e
complexidade em suas variações. Sua grandeza é despida de retórica e
convencionalismo e repousa na força dramática de grandes contrastes e na
franqueza dos meios. Para nós, esta falta de retórica e convencionalismo do
qual Shapiro fala, trata do moderno em Cézanne. A força dramática e a
franqueza do meio apontadas pelo autor, nos remetem ao futuro da pintura –
no qual a franqueza dos meios fará toda a diferença - .A grandeza de Cézanne
não repousa, segundo Shapiro, na grandeza de obras-primas isoladas, está
também na qualidade de toda a sua realização.

A maestria de Cézanne inclui, além do controle da tela em as


complexidade e novidade, a organização de sua própria vida como artista. Para
Shapiro, a arte de Cézanne tem uma qualidade única de maturidade e contínuo
crescimento. Admitia na tela uma grande gama de percepção e disposição, isto
se evidencia pelo próprio leque de temas, mas também fica claro nas
qualidades pictóricas. Qualidades pictóricas estas que vemos como
francamente modernas, vez que o artista supera as questões tradicionais da
arte através da sua técnica.

Shapiro afirma que a obra de Cézanne não apenas nos dá a alegria da


pintura maravilhosa, também interessa como exemplo de heroísmo na arte, ele
atingira a perfeição numa longa e dolorosa luta consigo mesmo. Shapiro duvida
que o conteúdo pessoal de sua arte clássica torne-se com o tempo tão
evidente quanto o seu resultado estético.

Cézanne, a história da história da arte moderna e o moderno

Jonathan Harris caracterizou a história da arte que se desenvolveu como


uma crítica da história da arte moderna como “radical”, “crítica”,ou “nova”
história da arte. Ele escreve:

“é direcionado indicar o reconhecimento que desde 1970 a história da arte desenvolveu formas
de descrição, análises, e avaliações enraizadas e inseparáveis dos ativismos político-sociais
recentes [maio 68] enquanto isso também se liga ao legado herdado dos acadêmicos e
ativismo político muito anteriores aos séculos XIX e XX ”7

Griselda Pollock, em 1996, chamou atenção sobre a inabilidade da teoria


para trazer mudanças significantes e sobre a resiliência da história da arte
moderna em sua resposta ao The art bulletin sobre “história da arte e suas
teorias”, ela afirmou:

“[...] o que aconteceu historicamente nos últimos quarenta anos foi uma retomada dos
movimentos intelectuais da modernidade, ligações com a linguagem, significado,

?
HARRIS, J. The new art history. A critical introduction. Londres: Routledge, 2001. P. 1
subjetividade, identidade. Todas recortadas nos termos do engajamento criado pela
consolidação global do capitalismo industrial do ocidente [...] A história da arte parece muito
pequena para tomar seu próprio campo, a cultura. Seriamente falha em ver a si mesma como
uma jogadora neste campo histórico, uma resposta reflexiva para a modernidade com sua
cultura de auto-definição e auto-mistificação [...]”.8

Como Jonathan Harris notou, uma das estratégias da nova história da


arte consistiu em revitalizar abordagens metodológicas e pontos de vista do
passado. A institucionalização da história da arte na década de trinta trouxe um
fim ao experimentalismo e diversidade de abordagens metodológicas que
caracterizaram os anos entre as guerras. A história da história da arte era parte
integral do projeto moderno. E este ponto de vista sublinha o fato que sua
organização como conhecimento em disciplinas autônomas é convencional e
não orgânica.

Hans Belting em A história da arte moderna como invenção, declarou:

“A entrada na modernidade desencadeou no início do século XX duas reações totalmente


distintas: os guardiões da história da arte viam aproximar-se o fim da arte e os partidários
negavam a grande ruptura, na medida em que a explicavam como mera etapa no longo e
contínuo caminho da arte [...] ambas as reações passavam ao largo da questão e continham,
contudo, cada qual uma parte de verdade. A arte não acabou, mas se encontrava desde então
num novo caminho: o caminho da modernidade. O rompimento com todos os gêneros
acadêmicos de arte acarretou a perda do antigo ideal artístico que fora representado
simbolicamente por eles.”9

Para Belting, a luta travada no início do século XX foi sentida menos na


arte do que na posse ou na perda daquela ciência da arte recém-estabelecida.
Eram surpreendentes apenas as consequências do período inicial. O que
naquela época ainda não havia se tornado um tema da história da arte também
não se tornou depois, pois diante da onda de novas publicações e em vista da
constante modificação do front no debate não se podia mais evidentemente dar

?
POLLOCK, G. Theory, ideology, Politics, art history and its myths. In: Art Bulletin 58. P. 21
9

?
BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012. P. 291
conta de tudo o que ainda não se tornara uma propriedade da história da arte.
Isso mudara com o tempo, quando não apenas escritores e críticos de arte
como Herbert Read mas também historiadores, como Haftmann e Hofmannn
começaram a escrever nos anos 50.

Belting afirma que com a historização da vanguarda surgiu um problema


novo. Subitamente, não se tratava mais da história da vanguarda, mas da
vanguarda como história. Justamente àquela história contra a qual a vanguarda
fez campanha durante longo tempo. A vanguarda foi alcançada pela lei da
história, em vez de impor a sua lei à história. Porém, desde que a tradição do
novo, como Harold Rosenberg denominou a consciência da modernidade,
assumiu a própria figura da história já encontrada, também é possível
perguntar pela tradição no novo, ignorada por tanto tempo e tão
obstinadamente pelos comentários.

Segundo Hans Belting, as artes antiga e moderna, entre as quais havia


um fosso tão profundo, se deixaram afinal acolher numa narrativa comum, na
qual se confirmam mutuamente as condições e utopias europeias. Depois que
a arte antiga e moderna envelheceram numa tradição, elas não se deixaram
mais jogar uma contra a outra como símbolos de uma visão de mundo. Para
Belting, a arte antiga tornou-se parte integralmente da cultura, que veneramos
por causa de sua beleza e não por causa de sua verdade ou atualidade. Na
modernidade, esse diagnóstico corresponde à discrepância entre o saber
particular acumulado em toda parte e as grandes fórmulas com as quais
habitualmente denominamos os acontecimentos.

Trata-se, para Belting, de saber onde estão as pontes e as vias de


ligação sobre as quais podem reunir-se novamente ambas as narrativas. Afinal,
elas tiveram na Europa um cenário comum em que as coisas; vistas de fora,
possuem uma relação estreita. Vista desse modo, a modernidade não foi uma
cultura própria, mas pertence ao quadro geral daquela cultura histórica que a
produziu.

Entendemos a arte moderna como a designação dada para a produção


artística que surgiu entre o final do século XIX e meados do século XX.
Sucedendo o romantismo e o realismo, a arte moderna começou a se ramificar
em vanguardas, com os pintores do chamado Impressionismo, que se
dedicavam em retratar cenas exteriores da vida cotidiana, como paisagens e
pessoas. A arte moderna seria o primeiro período artístico que abrangeria
novas formas de se fazer arte, como a fotografia e o cinema, que surgiram
durante a Revolução Industrial.

A Modernidade foi um período de transformações vertiginosas e


caóticas, que ficou marcada pela efemeridade e sensação de fragmentação da
realidade. Os chamados artistas modernos acreditavam que as formas
“tradicionais” das artes e da vida organizacional e cotidiana tornaram-se
totalmente ultrapassadas. Devia-se “criar” uma nova cultura, com o objetivo de
transformar as características culturais e sociais já estabelecidas, substituindo-
as por novas formas e visões. A partir da nova concepção da modernidade
cultural, após o declínio do pensamento iluminista, a ideia de “destruição
criativa” passa a ser uma condição essencial da modernidade, e os artistas são
os principais protagonistas dessa época.

No nosso entendimento, os artistas passaram a sentirem-se


responsáveis por representar e definir a essência e a humanidade. As guerras,
as novas tecnologias, a industrialização e as demais “evoluções estruturais”
fizeram os artistas sentirem a necessidade de explorar todas as novidades que
lhes apareciam. Tal condição foi propícia para o aparecimento de várias
vanguardas revolucionárias, que viam na estética artística a oportunidade de
mudar o mundo.

Os movimentos de vanguarda tinham como objetivo tentar resolver ou


achar respostas para os problemas que surgiram na era moderna, fosse no
campo social ou político. Os artistas modernos, a partir dessas novas formas
artísticas que se estabeleciam, desenvolviam as suas técnicas de criação e
reprodução, fazendo surgir subjetivamente uma nova forma de pensar o
sistema vigente. O modo de pensar e o posicionamento do artista perante os
processos da modernidade (a mudança, a efemeridade e a fragmentação),
eram de extrema importância para a formação de uma estética modernista.

Os modernos, compreendemos, experimentavam novas formas de ver e


ideias novas sobre a natureza das matérias e a função da arte. Buscavam
distanciar-se da narrativa – característica do agora então passado – em direção
a abstração, buscavam quebrar com a regra da perspectiva e pensar a função
do artista na sociedade.

Embora se atribua normalmente aos impressionistas a inauguração da arte


moderna, Paul Cézanne é, para muitos historiadores, considerado o pai da arte
moderna. Suas pinturas rompem com todas as tradições acadêmicas e sua
pesquisa profunda dedicada à pintura, mostra um artista em constante
aperfeiçoamento. Em suas pinturas podemos ver massas de cores, poucos
contornos, volumes, luminosidades quentes. Cézanne chega à razão espacial
pictórica, ou seja, ele retrata o espaço pelas cores, pelas massas pictórica, sua
construção se dá através da cor.

Em Cézanne não há espaço vazio, nem o jogo de figura-fundo. Tudo


que vemos são planos que não podemos atravessar. Não há um ponto de fuga
e muitas pinturas sequer respiram. Suas construções são feitas a partir das
sensações conscientes, como Cézanne mesmo afirma, o mundo existe na
consciência. A densidade de suas cores já aponta para o futuro biplanar da
pintura, pois é através da tinta que o artista cria seus ainda-espaços.

Argan irá afirmar que Cézanne chega ao impressionismo integral. Nisso


devemos discordar do autor. O impressionismo se apoiava nas experiências
sensoriais, nas impressões visuais do artista. O que em nada combina com a
pintura de Cézanne, que se dedicava às petites sensations, às correções e ao
seu afinco pela pesquisa. Para nós, em Cézanne, nada é apenas um momento
fugidio, uma impressão, ao contrário, há uma pesquisa dedicada em cada uma
de suas telas, um olhar demorado, atento, para construir cada massa de cor
que molda seus volumes.

Podemos concluir das leituras que fizemos sobre Cézanne e das telas
que vimos que Cézanne nos leva a um patamar diferente da arte. Suas massas
volumétricas, pesadas e distorcidas, seus contornos difusos e sombreados e
suas cores passionais e contrastantes nos remetem a um barroco – como bem
lembra Argan – novo, apaixonado, decidido, cheio de fantasias e um pouco
perturbado. Uma obra entre o sublime arrebatador o belo quando é possível
acessá-lo. Acessar a obra de Cézanne nem sempre é fácil. Exige
contemplação, cuidado e atenção. A obra de Cézanne nos sugere uma
estranha percepção singular de um mundo para o qual o artista não estava
preparado para viver, daí então seu recolhimento, seu refúgio em tempos
passados. Mas sua obra mostra também um artista decidido a conquistar suas
batalhas, aperfeiçoar seu método e pesquisa.

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