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SOBRE A MÁ PINTURA

Eco, Umberto. Sobre os Espelhos. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1989.

As grandes mostras retrospectivas são sempre úteis para desfazer as lendas e corrigir
os clichês. Como fomos ensinados a pensar em Hayez como um pintor Kitsch, para corrigir os
meus clichês fui ver a exposição de Hayez. É muito camp, sabe-se, descobrir que o Kitsch
(suposto) era, pelo contrário, arte "verdadeira", assim como, por outro lado, ter a revelação de
que a arte chamada "verdadeira" fosse, pelo contrário, Kitsch, e por isso me apressei a ir ver
Hayez. Um dia antes que fechasse. Não fui lá no início para tomar distância, e por achar que,
se um pintor trabalhou há mais de cem anos, vê-lo um mês antes ou um mês depois é a
mesma coisa.
A surpresa que tive na exposição de Hayez foi que o clichê não devia ser corrigido. E
em termos muito claros, Hayez é um pintor péssimo. Aliás, não é um pintor, é um bom
ilustrador que hoje poderia fazer capas para romances populares, e olhe lá, porque os vários
Frazetta já elaboraram técnicas bem mais sutis. E confesso que me desagradou ver tantos
estudantes a correr por aquelas salas, com guias estaduais que lhes explicavam os mistérios
do romantismo na pintura, porque tive a dolorosa suspeita de que aquelas jovens mentes,
brutalizadas daquele modo na fase mais delicada de sua maturação, aprontam-se para drogar-
se com realismo socialista.
A uma exposição, reage-se instintivamente. Meus instintos estavam muito bem-
dispostos (que prazer eu me prometia com essa revisitação neomedieval!), mas, mesmo
instintivamente, a cada quadro eu me dizia que Hayez fazia uma pintura ruim.
Percebi que não se pode deixar de lado a estética porque, a menos que se reaja a
estas experiências com juízos emotivos (do gênero "aquele tipo eu não suporto", e sem
justificativas que não sejam as razões supremas do desejo), para dizer que um pintor é ruim é
preciso ter uma idéia de Arte.
Percebi que a idéia de arte com base na qual eu rejeitava Hayez ainda era a mesma
que formara há algum tempo, mesmo sem alardeá-la a toda hora. Poderia ainda resumi-la na
fórmula jakobsoniana, auto-reflexividade e ambigüidade, esclarecendo um pouco mais.
Nós estamos habituados a achar que obras de arte são os objetos que a) por um lado
nos obrigam a considerar o modo como foram feitos e b) por outro, nos deixam inquietos,
porque não é assim tão pacífico que queiram dizer o que aparentemente parecem dizer. Neste
sentido a "ambigüidade" não é necessariamente reduzível à deformação, à inovação estilística,
ao rompimento das expectativas; pode ser também isto (e freqüentemente na arte
contemporânea o é ou o era), mas sobretudo quer dizer um "sentido a mais" ou "polissemia",
se quisermos (ou queremos dizer abertura?). A obra está ali—quadro, poesia, romance —
parece contar-nos que existe em algum lugar uma mulher, uma flor, uma colina da qual se
vêem outras colinas, um poeta que ama uma criatura angelical, e ainda assim percebemos que
não nos diz somente aquilo, mas sugere alguma coisa a mais (e às vezes exatamente o
contrário do que parece dizer).
Agora vamos ao ótimo Hayez. Primeira impressão: quando nos diz "eis aqui o doge
Fulano de Tal que recebe o mensageiro do inquisidor" (ou "eis aqui os patriotas gregos que
devem deixar chorando a sua terra"), parece que ele nos diz exatamente essas coisas, e nada
mais. Aquele doge é mesmo um doge (o problema é que normalmente não é aquele doge, mas
um doge, a classe dos doges em geral), não é nada mais do que um doge que ouve os
mensageiros do inquisidor, e como a mensagem lhe é dolorosa (até o título o diz, para evitar
equívocos) o doge está mesmo aflito, e aflitos estão os pajens e familiares ao seu redor (por
implícito, os mensageiros do inquisidor são malvados e traiçoeiros como convém a eles). E que
diabo me interessa a história do doge, cujo nome, felizmente, esqueci? Absolutamente nada, é
óbvio. Hayez não faz a tela "palpitar": mas se a expressão até pode parecer impressionista,
direi que não me sugere a idéia de que no que diz exista um sentido a mais.
Podemos perguntar-nos: existe realmente algum sentido a mais numa bela coluna
dórica, ou num quadrado de Van Doesburg? Por enquanto, façamos de conta que não. Mas
aqui surge um aspecto (complementar) do objeto artístico, a sua auto-reflexividade. Acontece
que nunca me canso, diante do templo e do quadro abstrato, de admirar como a coisa foi bem-
feita. Sei que é difícil dizer o que significa "ser bem-feito", mas diante dessa experiência de
auto-reflexividade, diante do assombro pela dedicação e a admirável paixão com a qual o
artista fez "bem" aquela coisa (talvez até irrelevante, como um cilindro ou um quadrado),
surgeme a suspeita de que o sentido a mais existia, e de que aquela configuração queira
sugerir-me "algo mais".
Posso dizer que a pintura de Hayez é muito malfeita porque me faz lembrar o modo
como eu (diletante em desenho, embora não insípido cartunista para os íntimos) procure
desenhar. Faço uma figura, digamos um monge (em primeiro plano como é meu costume),
depois me envergonho por ser tão vulgar, e desenho outros dois monges em segundo plano.
Como entendo alguma coisa de perspectiva (mesmo que seja a olho) faço os dois monges do
fundo menores do que o primeiro. Mas acontece que tão logo tento sombrear o hábito do
primeiro, com traços de pentel, corro o risco de confundi-lo com o hábito também tracejado dos
outros dois. E então, para dar a entender aos outros (e a mim mesmo) que as três figuras estão
em planos diferentes e são três figuras distintas, contorno, realço as linhas que separam o
primeiro monge do espaço branco infinito, e as linhas que situam os outros dois monges. Em
outras palavras, ao invés de deixar que os corpos apareçam do, nasçam do, definam-se dentro
do espaço luminoso por contrastes de luz e cores, aprisiono-os na armadura de um contorno.
Ora, se vocês fossem ver de perto o que faz Hayez, perceberiam que ele faz a mesma
coisa. Uma perna é uma perna, e para tomar evidente este fato admirável, Hayez contorna a
perna, não com uma linha negra de carvão (porque afinal é um artesão que conhece seu ofício)
mas de fato contorna, separa-a daquilo que não é perna, do resto do universo, e se vocês
olhassem o quadro bem de perto perceberiam também que passou e repassou as linhas da
perna com o pincel, porque a cor e a luz não lhe bastavam. E isto se chama desenhar, e
desenhar a cores, se quiserem, não pintar. Além disso, acho que mesmo desenhar a cores
seja uma outra coisa. E então é claro, com uma perna tão perna (tão "pernosa", diria a Lucy, de
Charlie Brown), como é possível imaginar que exista um segundo sentido? Perna é, perna
permanece.
"Hayez tanto sabe que outros sentidos não existem que, para evitar "equívocos", como
dizíamos acima, tem o máximo cuidado em não representar aquele doge, aquele cruzado,
aquele conde, mas sim a generalização dos doges, cruzados e condes. E para fazê-lo só
precisa pescar no repertório da iconografia do tempo deles, de modo que qualquer uma de
suas meninas, ou qualquer um de seus guerreiros, nos lembra alguém que já vimos, como
aqueles narizes compridos e afilados, aqueles olhos tristes, aqueles cabelos oleosos, lisos e
escorridos: já os encontramos nas belas gravuras dos livros de Sonzogno, em Jeannot, para
sermos claros, e nos seus seguidores. Hayez desenha desenhos e ilustra ilustrações. E
reparem, não me importa que o fizesse antes de outros. O faz.
Porém esta sua infeliz condição nos explica por que, apesar de tudo, tenha parecido
um excelente pintor aos seus fregueses e admiradores do século passado. De fato, não
podemos acreditar que o século XIX não tivesse uma idéia da arte e estivesse disposto a
aceitar tudo. E que o século XIX, pelo menos na Itália, tinha uma idéia própria da pintura como
comentário à literatura e ao teatro. Hayez agradava não por motivos pictóricos, mas por
motivos literários e cenográficos. Agradava porque representava a gestualidade e a disposição
espacial das cenas de melodrama (por isto os seus ambientes são tão monumentais e vazios,
como se esperassem uma invasão de figurantes), porque traduzia na tela, com exatidão,
expressões que eram reconhecidas nas páginas, do tipo "ergueu os olhos lacrimejantes ao
céu" ou em cena, onde se espera ouvir os sons de passos impiedosos.
Alguns anos atrás Aurélio Minonne publicou um belo ensaio sobre "O código cinésico
no 'prontuário das poses cênicas' de Alamanno Morelli" (Versus 22, janeiro-abril 1979), onde
examinava a lógica "cinésica" (a semiótica gestual) dos teóricos do teatro do século XIX, com o
seu código de poses e gestos de significado exata e convencionalmente definidos. O teatro do
século XIX (especialmente o melodrama), vivia destas convenções e, sem entendê-las, corre-
se o risco de confundir Verdi com um trombone. No mesmo ensaio Minonne mostrava que as
mesmas instruções para a cena eram obedecidas pelos pintores italianos do século XIX, de
modo especial (justamente) por Hayez. Prova que os fregueses e o público pediam a Hayez,
quando os pintava, que os fizesse lembrar o teatro. Se esta era a solicitação que os fruidores
faziam à pintura, bem fez a pintura em satisfazer a solicitação e prover, por assim dizer, uma
satisfação vicaria: ela veiculava ocasiões de reviver emoções estéticas experimentadas no
teatro. E como este tipo de experiência (a evocação da teatralidade) era essencial para aquele
público, ela tornavase valor primário, em prejuízo dos outros valores que nós consideramos
hoje fundamentais para definir a pintura como tal. Por isso é necessário questionar-se se para
aquele público a pintura de Hayez não tinha realmente um sentido a mais: ela não falava
daquele doge ou dos doges em geral, mas do teatro que ela não era, e da vida ou da história
como teatro (cantado).
Sendo assim, talvez no século XIX Hayez fosse um artista. Mas certamente hoje é
difícil admitir tal possibilidade.
Evidentemente, no século XIX o chamado intertextual (a pintura como sugestão do
teatro) prevalecia sobre a consideração textual (a pintura como pintura). Talvez Hayez não
fosse pós-moderno, porque —modemíssimo (adequado ao seu tempo) — fornecia ao público a
mercadoria que este lhe pedia, isto é, uma pintura que não falasse de pintura. Mas pode ser
interpretado em sentido pós-moderno como triunfo despudorado da intertextualidade, como
pintor que vivia de citações extrapietóricas.
Tudo é possível, e vivemos numa civilização esteticamente livre, e flexível. Mas se a
idéia de obra ainda tem um sentido, até mesmo o misreading de Hayez, que o toma grande
para nós, pode ser legitimado com base num exame do seu texto pietórico, ainda que seja num
diálogo livre e aberto com o que não é texto, mas ambiente, enciclopédia de uma época.
Porém (e é certo que com o passar dos anos nos tomamos observadores) preferiria
que Hayez fosse apresentado aos jovens como um pintor que não fazia uma boa pintura,
embora num contexto cultural cuja ideia de boa pintura contava muito menos do que a idéia de
"literatura" e de literaturalidade da pintura.
Será necessário explicar por que a Idéia de Arte do século XIX não é mais a nossa —
com o devido respeito a todas as Idéias (desde que não pretendam apresentar-se como a
Idéia).

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