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Por que o Covid-19 nos obriga a repensar nossa concepção de educação?

A pandemia do novo coronavírus modificou drasticamente nossa rotina de vida,


lazer e trabalho. Além disso, vem alterando a legislação educacional, a economia, a
mobilidade e, dentre outros desafios, expôs as mazelas sociais e a realidade das nossas
crianças, adolescentes e jovens quando não estão na escola nas outras 18 horas do dia.
Secretarias, conselhos, universidades, gestores, professores, educadores e
especialistas em educação estão se debruçando para encontrarem alternativas
pedagógicas com finalidade de dirimir os impactos do isolamento social na
aprendizagem, na saúde mental e na alimentação. Todas as alternativas, documentos,
propostas e ações são relevantes, necessárias e urgentes, diante do contexto que exige
postura ativa e respostas ágeis. No entanto, propostas paliativas não equacionam os
problemas estruturais que atravessam as vidas dos estudantes. Por isso, o coronavírus e
sua imposição de isolamento social nos obriga ampliar nossa concepção de educação.
Não é apenas um problema de conectividade e acesso aos recursos
tecnológicos. O contexto apenas descortinou e intensificou o nosso abismo educacional.
Como vivem as crianças longe dos olhos docentes? Fome, violência física e simbólica,
abusos e outras tragédias reais, estão nos últimos 60 dias, como feridas ainda expostas, e
não pode mais ser escamoteadas em planos de aulas, merendas sem valor nutricional e
vídeos aulas.
As aulas, tarefas, rotinas irão estancar as feridas e aliviar as dores, são como
máscaras e respiradores, mas ainda não é a cura. A crise sanitária nos exige propor um
projeto de vida em sua diversidade, envolvendo a ampliação do conceito de “educação”
e “escola”.
A pedagogia do vírus (Boaventura Souza Santos) nos ensina que a educação
deve ser para além do capital (Mészáros), pois o importante é a vida (Nietzsche). A
educação pode até ser humanista, mas infelizmente não podemos esquecer que vivemos
em um país racista (Valter Silvério, Kabengele Munanga, Antônio Sergio Guimarães),
onde a desigualdade tem raça, cor e gênero (Marcelo Paixão). Por isso, pedagogias
antirracistas são necessárias (Vanda Machado, Ana Célia da Silva, Nilma Lino Gomes,
Petronilha Beatriz), para que um dia, de fato, possamos nutrir a esperança de que
intelectuais seriam os agentes das mudanças sociais, e que a escola seria um dos
importantes instrumentos para a conquista de uma cidadania (Antônio Gramsci) sem
privilégios, democraticamente acessível à todos e todas (Anísio Teixeira), já que
escolarização não é educação (Mário Sérgio Cortella).
O vírus nos obriga a ampliar nosso conceito de educação para além do currículo.
Nosso currículo e projetos de educação não educam para autonomia e liberdade.
Educação como prática da liberdade para aprender a ler o mundo! É a pedagogia de
Paulo Freire!
Se nossa educação estivesse ancorada nos conceitos, frearíamos os impactos do
isolamento na vida das crianças nos dias atuais; e talvez, seriam menos desesperadores
para os pensadores de políticas educacionais. Por experiência docente, posso supor que
o isolamento é danoso para todos. Porém, aqueles alunos e alunas criativos,
questionadores e insurgentes estão lidado de modo diferenciado, pois ainda que lhe
custassem os injustos jargões de “indisciplinados”, aprenderam a criar algum tipo de
alternativa para enfrentar problemas e adversidades. Não posso afirmar que o impacto
da suspensão das aulas seja menos nefasto para os alunos obedientes, sem autonomia e
copistas.
O que o contexto nos ensina? Não apenas planejar a carga horária, os exames e
prazos, mas pensar sobre as mazelas sociais, as ausências de políticas públicas e as
práticas docentes ditatoriais e altruístas que ceifam a criatividade, autonomia, resiliência
e qualquer possibilidade de liberdade e leitura crítica do mundo.
Será que já paramos para pensar que algumas crianças não sentem um pingo de
saudade daquela escola agressiva, medonha, ditatorial e talvez prefiram ficar em suas
casas, inventando e reinventando, apesar das limitações do isolamento? Será que, em
dias normais, antes de registrar o zero ou sem verificação nas cadernetas, os(as)
professores(as) levavam em consideração o fato de muitos estudantes não terem acesso
à internet, impressão e computadores para a realização dos trabalhos escolares?
Não é apenas uma questão de acesso aos recursos tecnológicos. Os quilombolas,
indígenas, população do campo e outros grupos com escasso acesso aos recursos
tecnológicos e conectividade sabem disso. Estes poderiam nos ensinar tantas outras
tecnologias que não teríamos megabits para fazer downloads. Crianças equipadas com o
mínimo de conectividade e um celular velho são capazes de elaborar ideias criativas ou
passar horas vendo vídeos besteirol no Youtube. Depende do quanto elas foram
estimuladas a desenvolverem sua criatividade e interesse de pesquisa.
Vinicius, aos 9 anos de idade, estudante de uma escola estadual está aprendendo
a ler o mundo, olhando para sua realidade brinca em rede social, faz piada com
seriedade e crítica ao seu café da manhã, sabe o que é ter uma alimentação limitada
“pão com pão1” porque não tem margarina, queijo ou qualquer outro recheio que denote
um café da manhã digno.
Entendendo o contexto e a obrigação de isolamento, Vinícius demonstrou que
sabe ler o mundo respeitando as recomendações de saúde, e fez mais, encontrou uma
estratégia criativa de conscientizar outras pessoas com lives na sua rede social, usando
apenas um celular e uma conexão. Atraiu meio milhão de seguidores, em 3 meses de
conta no Instagram. Vinícus, está em casa, porque aprendeu a diferença entre
obediência e responsabilidade.
Será que Vinicius sentava para estudar e copiar o quadro sem questionar
criticamente a finalidade das atividades? Não sou professora de Vinicius, mas eu posso
imaginá-lo nos corredores da escola liderando uma brincadeira e até mesmo um grupo
de dança/teatro no exato momento daquela aula monótona e tradicional da professora
preocupada com o SAEB.
Vinicius aos 9 anos de idade, autodeclarado boca de 09, tem mais seguidores
que a página oficial das Universidades e Secretarias de Educação. E na abertura dos
seus vídeos, avisa: “Elas que Lutem!”. Sim, nós, secretarias, educadores, especialistas e
professoras que lutemos para encontrar uma resposta pedagógica equânime, propositiva,
eficaz para esse caos que estamos vivendo. Pois enquanto isso, Vini boca de 09 está
gravando seus vídeos e colocando no “zap” e com muita sagacidade influenciando e
entretendo meio milhão de pessoas.
Seria ineficiente avaliar o grau de relevância social nos temas das lives e danças
de Vinicius. Só brincadeira de criança na internet? Não! Ele não deveria ser visto como
passageiro e acidental, mas continuidade. Um exemplo de materialidade de currículo
escolar que educa para a liberdade e para potência da vida. Vinícius já encontrou uma
alternativa relevante e pedagógica para se manter ativo e minimamente seguro. Agora
cabe a nós gestores de políticas e professores pensarmos um currículo capaz e educar
para autonomia e liberdade respeitando a inteligência e potencial de Vinícius e outros
milhares de estudantes sedentos por outra escola.
Vídeos de Vinícius.
Ligando para o coronavírus
https://www.youtube.com/watch?v=K5-S6hnE9d4
2 tentativa ligando para coronavírus
https://www.youtube.com/watch?v=m9XCiu0S2UE

1
Um pão dentro do outro.
Página no Instagram
https://www.instagram.com/vini_do_0800/

Ivanilda Amado Cardoso


06 de maio de 2020.

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