Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Por
__________________________________________________
Maringá-Pr
2007
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ
SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
DEPATAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Maringá-Pr
2007
2
Se queres ser universal,
Começa antes pela tua aldeia.
(Dostoyewski)
3
DEDICATÓRIA
4
preservação da Capoeira Angola contra as investidas do capital: axé! Eu peço
a sua benção.
5
AGRADECIMENTOS
A Olorum;
À força do axé ancestral;
À Capoeira;
A Mestre Pedro, que me apresentou à Capoeira;
A Mestre Come Gato, que me apresentou à Capoeira Angola;
A Mestre Lito, que, embora rapidamente, me deu a honra de conhecê-lo;
A João Tiririca, que me ensinou a desconfiar;
A Seu Geraldo;
À Dona Arminda;
À Nazareth;
À Rossana;
À Vera;
Ao Artur;
À Janaina;
À Giovana;
À Luiza;
À Júlia Cacá;
À Sofia Acotirene;
A Rogério;
À Verônica, minha orientadora;
À Elma Júlia,
Aos colegas do PDE, especialmente às professoras e professores da
Educação Física;
Aos alunos que tive nestes vinte anos na profissão de professor da disciplina
de Educação Física escolar e que me ensinaram a dar aula,
Muito obrigado!
6
Resumo
Esta pesquisa pretendeu contribuir de forma preliminar para a afirmação dos
fundamentos pedagógicos afro-descendentes presentes na Capoeira Angola como
justificativa à sua inserção nas aulas de Educação Física escolar na condição de
componente da cultura corporal de movimento. Procurou fornecer um aporte
necessário ao entendimento dos interesses hegemônicos que se aglutinaram na
modernidade - e ainda continuam se aglutinando na pós-modernidade - em torno das
questões culturais. Estudando a possibilidade da inclusão da Capoeira nas aulas de
Educação Física, procurei interrogar o passado à busca do respeito ao ancestral, aos
"antigos mestres" angoleiros, tidos como guardiões da sabedoria comunitária. Estudei
o itinerário histórico da capoeiragem no período da transição entre os séculos XIX e
XX até os dias atuais, interrogando suas apropriações pela indústria cultural, pelo
eugenismo/militarismo - do nacionalismo da Era Vargas -, pelo processo de
esportivização da cultura corporal de movimento e, finalmente, pela globalização da
vida econômica e cultural na pós-modernidade. Quando da abolição da escravidão, os
negros foram substituídos pelo imigrante italiano e migraram para as cidades em
busca de sobrevivência. Nas cidades, tiveram de morar em morros, nas periferias,
construindo barracos com restos de construção, originando as favelas. Não se dava
emprego ao negro ou ao mestiço (mulato), pois isso significaria deixar de dar esse
emprego ao branco imigrante. Libertos no papel, os negros e mestiços não podiam
sequer vender a única coisa que possuíam: sua força de trabalho. Tiveram de roubar
para não morrer de fome. A Capoeira foi largamente utilizada, tornando bastante
subversiva ao sistema, acabando por ser proibida por lei. Getulio Vargas assume a
presidência após comandar a Revolução de 1930. Seu governo caracterizou-se pelo
nacionalismo e pelo populismo. Como se fazia na Europa da época, Getúlio queria
uma ginástica genuinamente brasileira, um tipo ideal de homem brasileiro, uma luta
brasileira. O índio não podia ser, pois tinha sido massacrado. O mulato (maioria
populacional) carregava o peso da escravidão e das “desordens” das Maltas de
Capoeira. Aquela Capoeira e aquele afro-descendente não poderiam ser
representantes do Brasil. Eram muito subversivos e rebeldes. Mas era o que restava.
A saída então era criar outra Capoeira, menos rebelde, menos malandra, mais
embranquecida. Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, cria, então, a chamada
Capoeira Regional. Embora fosse negro, a maioria de seus alunos eram brancos,
estudantes universitários. Após apresentar seu estilo de Capoeira a Getúlio Vargas,
Bimba consegue que a Capoeira seja retirada da ilegalidade. Aos poucos, a Capoeira
Regional abandona antigos ritos e costumes da capoeiragem e se transforma de jogo,
dança e luta em esporte. Outro grupo de mestres capoeiristas, entretanto, permaneceu
fiel aos antigos princípios da Capoeira, à mandinga (malícia, malandragem), aos ritos
e à tradição de luta do afro-descendente por justiça, igualdade e liberdade. Esta forma
de Capoeira, mais tradicional, ficou conhecida por Capoeira Angola. Sob os olhares
atentos de uma perspectiva crítica e emancipatória para a Educação Física, a inserção
da capoeiragem na escola, deve refutar os proclames sedutores e falaciosos da
indústria cultural em processo de mundialização. Neste sentido, a Capoeira Angola,
fiel à tradição de um passado de lutas por libertação e contra a segregação não só
racial, mas, fundamentalmente econômica, comparece como possibilidade inequívoca
de espaço de criticidade e superação das agruras sociais e humanas.
7
SUMÁRIO
Resumo..........................................................................................................p. 07
Sumário..........................................................................................................p. 08
Introdução......................................................................................................p. 09
globalizado.....................................................................................................p. 12
brasileiro........................................................................................................p. 72
Referências..................................................................................................p. 166
8
INTRODUÇÃO
9
da sociedade urbana/industrial, tornam-se escravos felizes de um sistema de
dominação que aporta, para além de suas consciências alienadas e reificadas,
na mercantilização da cultura.
10
numa perspectiva de subsidiar o educando com os meios e elementos
necessários à sua emancipação social e humana.
Axé ao PDE!
11
CAPÍTULO 1
12
estiveram tão distantes uns dos outros. Mais do que nunca vale lembrar
McLuhan: "Os homens criam as ferramentas e as ferramentas recriam os
homens." (JORNAL DE DEBATES, 2007). Ou, metaforizando as palavras de
Marx e Engels, “Os produtos de suas cabeças acabaram por se impor às suas
próprias cabeças. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações.”
(MARX; ENGELS, 1991, p. 17).
13
seus rituais, de suas características identidárias e das possíveis contribuições
para uma educação física que se coloque numa perspectiva emancipatória.
14
historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais
amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser
apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber,
andar, falar, silenciar e assim por diante (BURKE,1989, p. 25).
15
uma noção de pertencimento a um mesmo estado, a uma mesma nação. De
acordo com Hall (1998, p. 51),
16
do que eu disse sobre a natureza vicária de qualquer
aspiração à presença ou à autonomia. No entanto, o que está
implícito em ambos os conceitos do subalterno, e na minha
opinião, é uma estratégia de ambivalência na estrutura de
identificação que ocorre precisamente no intervalo elíptico,
onde a sombra do outro cai sobre o eu. [...] É o "entre" que é
articulado na subversão camuflada do "mau-olhado" e na
mímica transgressora da "pessoa desaparecida". A força da
diferença cultural e, como disse Barthes certa vez sobre a
prática da metonímia, "violação do limite de espaço
significante, ela permite no próprio nível do discurso uma
contra-divisão de objetos, usos, significados, espaços e
propriedades (grifo meu).
17
enriquecida e a outra debilitada em alguns de seus elementos,
perdidos ou desfigurados.
18
mais a integração da economia mundial, enquanto a revolução
tecnológica se difundia rapidamente, porém de forma desigual,
mesmo entre as principais economias avançadas. Em tal
quadro, a competitividade de firmas e nações parece estar
cada vez mais correlacionada à sua capacidade inovativa,
cenário onde a mudança tecnológica tem se acelerado
significativamente e as direções que tomam tais mudanças
são muito mais complexas. No contexto internacional da
década de 1990, uma das características principais das
intensas mudanças observadas nos processos produtivos
relaciona-se à crescente intensidade de investimentos em
conhecimento. De fato, observa-se uma transformação
fundamental no significado relativo dos investimentos em
conhecimento e investimentos em capital fixo. Como uma
conseqüência, em vários setores os gastos anuais em P&D
das empresas líderes já são maiores que seus investimentos
em capital fixo, o que requer uma mudança de perspectiva
também fundamental para quem está acostumado a ver o
investimento em capital fixo como o motor do crescimento
econômico.
19
identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim
chamada “crise de identidade”'' é vista como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as
estruturas e processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos
uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2003, p.7)
20
Na vida no campo, onde se encontra inserido o comentário de
Rubem Alves, ainda existe – e resiste - a identidade enquanto o sentimento de
pertencimento social. Não qualquer identidade, mas a identidade cultural do
povo, genuína, espontânea, que dá sentido de aproximação, de comunidade. A
apologia da técnica, como prerrogativa de desenvolvimento, afastamento do
rural, rumo à civilização, à cidade e à indústria, exige o esgotamento do homem
no esforço de trabalhar; exige que o indivíduo vá aderir a uma vida destituída
de espontaneidade. E é nesse ponto que podemos iniciar uma reflexão sobre
os laços entre cultura e identidade.
21
integração e globalização da realidade” (social). O Brasil se insere tardiamente
no mundo capitalista e, consequentemente, só vai iniciar sua busca por uma
identidade nacional no século XIX. Mas, afinal, como e a partir de quais
elementos pode-se dizer da existência de uma identidade nacional brasileira?
O que é ser brasileiro? É possível afirmar a existência da nação brasileira? Se
forem focalizados apenas os aspectos geográficos, jurídicos ou políticos a
resposta é fácil. Mas, é preciso verificar um pouco mais do que isso para se
definir a identidade brasileira, como, por exemplo, o conjunto dos indivíduos
que vivem dentro do Brasil. Como avaliar, por exemplo, numa perspectiva
identidária, as diversas especificidades regionais que diferenciam grandemente
formas culturais populares de norte a sul do país. Efetivamente, não se pode
dizer que a cultura gaúcha tenha o mesmo conteúdo que a cultura baiana.
Também é difícil se avistar consenso num país tão marcado, historicamente,
por consideráveis desigualdades econômicas, culturais e políticas. Documenta
esta afirmação o fenômeno relativamente recente no país do enclausuramento
da classe média alta em seus “condomínios fechados”, fenômeno que parece
assinalar uma sociedade com forte vocação parta a estratificação social.
22
humana. Este é um processo que não faz distinção de classes sociais. Com
efeito, a miséria humana não é tanto uma miséria econômica; é, sobretudo,
uma miséria de consciências. A apregoada defesa dos “valores nacionais” não
se pergunta sobre os esforços que vem empreendendo para alimentar os
“membros da nação” sem que essas medidas ensejem detrimento a outros
povos.
23
universais. Por outro lado, o mundo atual, infelizmente, não apresenta um jogo
simples, equilibrado ou mesmo leal no que se refere à difusão das formas
culturais. A globalização apresenta-se como uma preocupante tendência à
hegemonização cultural.
24
comportamento das pessoas não é acidental. Exprime características
peculiares, que obedecem às condições históricas, étnicas, religiosas, éticas e
econômicas que lhes conferiram existência. Nesse sentido, a cultura norte-
americana, por exemplo, parece ser assinalada por um padrão cultural
cimentado na luta pela conquista de status social e econômico, valorização
exagerada do dinheiro, apologia da competitividade em substituição à
cooperação, busca de conforto material, valorização pragmática da família,
segregação racial e econômica, espírito colonizador, predador e imperialista
em relação aos demais países, em especial aos do terceiro mundo, predileção
por aparelhos e artifícios mecânicos, além de uma tendência em querer
impressionar pelo tamanho e quantidade.
25
que se pode dizer que somos ninguém. Segundo Carlos Drumond de Andrade,
“nenhum Brasil existe”.
26
os tipos circulam ao redor do duradouro diálogo sobre quem somos nós, os
brasileiros. Ribeiro (2005, p 19), considera que:
27
deles, separados por um abismo econômico e cultural. Um Brasil miserável e
outro rico: há um Brasil formado por um encontro formidável de culturas, onde
existem museus com Van Goghs e há um outro Brasil que reflete ainda hoje as
conseqüências maléficas de seu processo histórico de descoberta e
colonização. Contra a paradoxalidade existente entre esses dois Brasis,
levanta-se uma poética crítica no samba “O Gás Acabou” (1970), de Luiz
Américo e Braguinha, diante da terrível e sedutora realidade social brasileira,
que exala um doce suor amargo.
E aqui estou eu
Pedindo carona pra ir trabalhar
Pensando na nega mãe dos meus moleques
Que nunca se queixa
E está sempre a cantar
Seja lá o que Deus quiser
Pobre é esse sofrimento
Recebe só vale no seu pagamento.
28
retransformação através de outros canais. (COHEN, 2004, p.
87).
29
de grandes propriedades rurais etc. Abaixo desses bolsões,
formando a linha mais ampla do losango das classes sociais
brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos
chamados marginais, principalmente negros e mulatos,
moradores das favelas e periferias da cidade. São os
enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as
empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase
todos analfabetos e incapazes de organizar-se para
reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que
sendo impraticável, os situa na condição da classe
intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper
com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-
la. (RIBEIRO, 2005, p. 208-209)
30
que estabelece um confronto direto entre o imaginário e o real, entre o
desenvolvimento técnico-científico e a própria existência humana. Nessa dança
interminável de invenções, o “homem do povo” torna-se sujeito passivo de uma
nova e estranha constelação de signos e conceituações globalizantes:
mundialização, interculturalismo, multiculturalismo, internet. De acordo com
SILVEIRA (2001, p. 92),
31
espaço, ensejando uma homogeneização cultural entre os Estados.
Notadamente, a cadeia de fast food McDonald's, por exemplo,
32
apropriadas, surgidas com apoio popular e em oposição à hierarquia feudal. A
partir desta constatação, uma armadilha ao encontro da qual podem ir
intelectuais postados à esquerda é a de ver na crise atual dos Estados um
elemento associativo à questão identidária, aderindo ao multiculturalismo em
detrimento das perspectivas identidárias.
33
ventos e tempestades de outras culturas. Entretanto, é preciso remeter um
olhar crítico para as sedutoras propostas de redenção proclamadas pelo
mundo global. Só pode haver liberdade numa sociedade igualitária, onde não
haja lugar para grandes desigualdades entre as pessoas. E não me parece ser
esse o ideário das sociedades construídas a partir do modo de produção
capitalista. Assim entendendo, e num rápido balanço destas últimas décadas,
seria legítimo afirmar que a globalização estaria permitindo as mesmas
oportunidades a todos? Ou estaria ela concedendo privilégios a pequenos
grupos sociais economicamente abastados?
34
As relações sociais de dominação, reinventadas no mundo
globalizado, precisam ser analisadas com olhares mais inquiridores. Afinal, "o
que possibilita a existência da sociedade?" Responder à pergunta clássica da
Sociologia torna-se imprescindível quando se observa que as experiências de
vida de diferentes setores da população são tão díspares quanto
incomensuráveis. O brasileiro que passeia sossegadamente na Avenida
Champs-Élysées e depois almoça no restaurante Jules Verne, a 57 metros de
altura na torre Eiffel, degustando o famoso e caro vinho Romanée Conti, tem
muito pouco de semelhança com o brasileiro que trabalha como operário da
construção civil em São Paulo.
35
capitalista mostra o quanto sua essência se esgota na finalidade de gerar
lucro. É emblemático o apelo das tantas formas de loteria e sorteio que
advogam a possibilidade de qualquer um ascender socialmente. Em que pese
a ínfima e desprezível quantidade de ganhadores em relação ao universo
vastíssimo daqueles apostadores que permanecem toda uma existência sem
ganhar nada, a própria imagem da possibilidade de ganho por qualquer um já
é usufruída pelos indivíduos como o próprio prêmio: uma fantástica realização
do desejo não realizado.
36
Com a conclusão dessas primeiras observações, no próximo
capítulo procurarei por uma análise reflexiva sobre as possibilidades de
reconstrução identidária diante das forças emanadas da indústria cultural
associadas aos procedimentos da globalização. Em que pese a multiplicidade
de diferenças entre o processo de globalização do mundo contemporâneo e os
estágios anteriores do modo de produção capitalista, ainda pairam sobre a
humanidade as promessas (neo)liberais de que todos estão livres para fazer o
que quiserem de suas existências. Perdurando desde a década de 1940, as
tecnologias da indústria cultural ainda tendem a dispensar aos consumidores
um tratamento orientado no sentido da sua manutenção em um estado
permanente de menoridade e manipulação. Desde o colapso do modo de
produção feudal e a traumática consolidação do modo de produção capitalista
paira sobre a humanidade a crença fraudulenta de que a imensa rede de
indústrias ainda possibilita espaço para o exercício da liberdade individual.
37
CAPÍTULO 2
38
O trecho da música “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, é
instigador: o sentimento identidário precisa voltar a querer sambar; querer o
pandeiro, o surdo, o cavaquinho, o tamborim, o réco-réco e o violão. E querer
também o Maculelê, a Ciranda, o Samba-de-roda, o Bumba-meu-boi, o Côco-
de-Roda, o Jongo, o Caxambu, a Folia de Reis, o Maracatu, a Congada, o
Frevo, o Forró, a Marujada, o Caboclinho, a Catira, o Cateretê, a Capoeira...
Tantas festas, tantos momentos populares de encontro e pertencimento. É na
alteridade de suas diferentes identidades culturais que o brasileiro precisa ver-
se novamente refletido, resistindo à lógica pós-moderna do capitalismo
contemporâneo que postula o fim das identidades, coisificando-as,
banalizando-as e, finalmente, descartando-as como um mero detrito de um
mundo que se decompõem a olhos vistos.
39
A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
40
Cabe aqui recorrermos mais uma vez a Darcy Ribeiro para uma explicação
mais satisfatória. O autor fala de cinco Brasis: 1) o Brasil da cultura sertaneja
do nordeste e do centro, baseada na produção do couro e do gado; 2) o Brasil
da cultura crioula do litoral, baseada nos engenhos de açúcar; 3) o Brasil da
cultura cabocla da Amazônia, baseada nos seringais e na pesca dos rios; 4) o
Brasil caipira do sudeste e centro, baseado na economia do café e da
subsistência e nascida dos bandeirantes; 5) o Brasil da cultura gaúcha das
estâncias de gado e da cultura agrícola dos imigrantes no sul do país.
(RIBEIRO, 2005) Estes cinco “Brasis” se construíram a partir da união das
diferenças e da capacidade de integração entre etnias e culturas em meio à
desigualdade social.
41
com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-
la. (RIBEIRO, 2005, p. 208-209)
E aqui estou eu
Pedindo carona pra ir trabalhar
Pensando na nega mãe do meu moleque
Que nunca se queixa
E está sempre a cantar
Seja lá o que Deus quiser
Pobre é esse sofrimento
Recebe só vale no seu pagamento.
42
nada mais restasse, senão o fim da humanidade. A ânsia de substituir o
homem pelo computador não só na produção, mas em todas as esferas da vida
social demonstram que a tão proclamada redenção pelos saberes apontam
sempre para a desqualificação do que já existe, numa velocidade vertiginosa
que estabelece um confronto direto entre o imaginário e o real, entre o
desenvolvimento técnico-científico e a própria existência humana. Nessa dança
interminável de invenções, o “homem do povo” torna-se sujeito passivo de uma
nova e estranha constelação de signos e conceituações: globalização,
mundialização, interculturalismo, multiculturalismo, internet. De acordo com
SILVEIRA (2001, p. 92),
43
Chama-se globalização, ou mundialização, o crescimento da
interdependência de todos os povos e países da superfície terrestre. Alguns
autores falam em “aldeia global”, pois parece que o planeta está ficando menor
e todos se conhecem. Isto significaria que todos os indivíduos poderiam fazer
parte de um mesmo mundo, de uma mesma realidade social, política, cultural e
econômica. ORTIZ (2005, p. 16), nos define o conceito de globalização como
sendo:
44
deles - às forças assim liberadas. Nas palavras de Bourdieu (2001, p. 90), esse
processo pode ser entendido como:
45
mundo todo. Privadas do seu território, do local onde praticam os seus
costumes, e finalmente, industrializadas, essas identidades culturais
transgredidas perfazem uma homogeneização cultural estadosunidense voraz
e violenta que afasta o indivíduo de suas raízes em nome de um relativismo
axiológico. O multiculturalismo não levou ao internacionalismo, mas a uma
nova forma de nacionalismo onde os EUA tendem a impor sua identidade sob a
camuflagem de um discurso com vocação para a alteridade. A luz no final do
túnel proclamada pela multiculturalidade não foi outra senão a de um trem
vindo em alta velocidade e no sentido contrário.
46
consciência comumente experimentados no jogo de Capoeira, onde não há
perda da consciência, mas uma iluminação da percepção que potencializa os
sentimentos e a consciência do capoeirista. No mundo atual, existe uma
aniquilação dos valores universais, onde os lugares para a transcendência
tornam-se rarefeitos.
47
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade [...]
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
48
Diante do absurdo mundo contemporâneo, a desbarbarização da
humanidade é o pressuposto imediato de sua sobrevivência. A necessária
resistência às falaciosas ofertas atuais do capital remete à urgência de se
enfrentar o seu vasto emaranhado de conceitos pós-modernos, na perspectiva
de que se possa atingir um satisfatório entendimento do mundo e dos homens
dentro dele. Para tanto, faz-se necessário olhar este mundo com os olhos da
história, buscando nos cantos esquecidos das páginas do passado os meios e
elementos que o tornaram tal como ele se apresenta hoje. Mas, o que pode,
afinal, a história dizer às sociedades contemporâneas, na medida em que elas
são muito diferentes daquelas do passado? Para responder a esta pergunta,
recorrerei a Hobsbawn (2000, p. 42-43), que faz a seguinte consideração:
49
preço da produção tornou-se maciçamente maior que o da venda. A crise da
superprodução teve como um dos seus grandes marcos o dia 29 de outubro de
1929, do crack da bolsa de valores de Nova York, que funcionava como
termômetro econômico do mundo capitalista. As ações das grandes empresas
caíram vertiginosamente, perdendo quase todo seu valor. Inúmeras indústrias e
bancos faliram da noite para o dia. Quem não faliu reduziu ao máximo o ritmo
de produção. Houve demissões em massa e a crise alcançou o mundo.
50
dirigido e manipulado. Na esfera do consumo, (na qual se tem
a impressão de que o indivíduo expressa livre escolha),
também ele é dirigido e manipulado. Se no consumo de
comida, de roupas, de bebidas, de cigarros, de propagandas
de rádio e televisão, um poderoso aparelho de sugestão
trabalha com dois propósitos: aumentar constantemente o
apetite individual para novas comodidades, e, segundo lugar,
dirigir tal apetite aos canais mais proveitosos para a indústria.
O homem é transformado no consumidor, no eterno pimpolho
da mama, cujo único desejo é consumir, cada vez mais,
“melhores” coisas. Nosso sistema econômico precisa criar
homens que se adaptem às suas necessidades, homens que
cooperem harmoniosamente, homens que desejem consumir
cada vez mais. Nosso sistema precisa criar homens cujos
gostos sejam padronizados, homens que possam ser
influenciados com facilidade, homens cujas necessidades
possam ser conhecidas com antecipação. Nosso sistema
precisa de homens que se sintam livres e independentes, mas
que, apesar disso, estejam dispostos a fazer o que deles se
espera [...], que possam ser guiados sem o emprego da força.
51
personalidade estivesse em contato direto com o cerne natural
profundo. Mas, infelizmente, não é esse o caso: o nível
superficial da cooperação social não se encontra em contato
com o cerne biológico profundo do indivíduo; ela se apóia num
segundo nível de caráter intermediário, constituído por
impulsos cruéis, sádicos, lascivos, sanguinários e invejosos. É
o “inconsciente”, ou “reprimido” de Freud, isto é, o conjunto
daquilo que se designa, na linguagem da economia sexual,
por “impulsos secundários”.
52
Está claro, hoje em dia, que o “fascismo” não é obra de um
Hitler ou de um Mussolini, mas sim a expressão da estrutura
irracional do homem da massa. [...] Estamos hoje mais
próximos da compreensão do anseio orgástico das massas do
que estávamos há dez anos, e já se generalizou a impressão
de que o misticismo fascista é o anseio orgástico restringido
pela inibição mística e pela inibição da sexualidade natural.
(REICH, 1972, p. XXVII)
53
mercadológica, baseada na descartabilidade das coisas, vai incidir também
sobre as relações pessoais. A existência de casamentos infelizes que duravam
uma vida toda são drasticamente substituídos, num extremo oposto, pelo
“ficar”. Ocorre uma “coisificação” das pessoas, que banaliza a relação e
impossibilita definitivamente a entrega. A existência torna-se tão metamorfa
que a necessidade do capital agora pode ser entendida como a necessidade
de destruir coisas e pessoas “coisificadas”.
54
manifesto como no modelo Fordista, tornando-se anônimo – e,
verdadeiramente, diabólico.
55
trabalho (subemprego) subsidia a expansão capitalista e a existência de um
mundo onde proliferam as empresas multinacionais e no qual o ser humano
torna-se cada vez mais um objeto descartável. Entrementes,
56
Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 65), relatam que: [...] “a cultura ‘é o perene
protesto do particular frente à generalidade, na medida em que esta se mantém
irreconciliada com o particular”.
57
atos, apenas adquirem a ilusão disso. Continuam alijados de cultura, com sua
adesão viciada, compulsiva, a uma cultura industrializada que inibe a
possibilidade da real emancipação.
58
CAPÍTULO 3
Identidades urbanizadas
59
espelha no shopping center como o novo lugar específico onde são
reformuladas as relações sociais de reconhecimento identidário.
60
Em que pese a dificuldade de se conceituar a pós-modernidade,
segundo Loureiro e Della Fonte (2003, p. 15-16),
61
Pentium é seu sonho. Meses mais tarde, a mãe do garoto, que
também é consumida pelo consumo e só pensa em ganhar
mais dinheiro para possuir “coisas”, realizada, diz:
“Compramos o Pentium. Agora, ele tem uma companhia. Sei
que é uma máquina, mas não deixa de ser uma companhia.
Ele tem momentos de alegria com seu micro mais do que
comigo, que tenho tanta dificuldade de descobrir o meu
instinto materno.” [...] A famosa frase “Penso, logo existo!”, de
Descartes, poderia ser modificada para “Consumo, logo
existo!”.
62
O hábito dos antigos “bate-papos” de fim de tarde metamorfoseou-se na
marginalidade, na insegurança, no trânsito caótico, na poluição e nas
verdadeiras colméias de prédios que, paradoxalmente, obstaculizam o
encontro. A barulhenta sociedade industrial, onde prepondera o efêmero,
orienta o ser humano para a indiferença em relação ao outro e uma
existência baseada na artificialidade e na banalização do sentimento de
empatia. Na urbe, com a ajuda da antena parabólica, o homem simples
conheceu, com seus próprios olhos, as mazelas da sociedade em que vive. As
novas feições urbanas não conseguiram demover o triste espetáculo das
desigualdades sociais. Mas conseguiram transgredir o belo e a capacidade
humana de senti-lo e de pensar sobre ele. No texto “Eu sei, mas não
devia”, a escritora Marina Colasanti descreve o ser humano treinado para
se defender da própria existência diante das armadilhas de um mundo
baseado na revogação da condição humana.
63
lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a
não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a
não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. [...]
64
identidades individuais, mas, sobretudo as identidades nacionais e culturais
passam por significativas transformações a partir dos deslocamentos
engendrados pela globalização. Argumenta o autor que, antes de qualquer
coisa, é necessário se considerar que:
65
produzidos na era da modernidade tardia”. (Hall, 2003, p. 89) De acordo com
as conclusões defendidas por Hall, na pós-modernidade, o esfacelamento
nacional dialoga com esforços contrários que buscam recuperar a unidade
identidária do estado, presentes ao redor do que o autor conceituou como
“Tradição”. Hall cita como exemplos o ressurgimento do nacionalismo na
Europa Oriental e o crescimento do fundamentalismo. Estes são efeitos
bastante inesperados, afirma o autor, pois tanto o capitalismo quanto o
marxismo apostavam, de diferentes modos, na ascensão de valores e
identidades mais universais. (HALL, 2003) Essa questão encerra um paradoxo
bastante interessante inerente às ambigüidades trazidas pelo avanço das
medidas globalizantes, de onde emergem dúvidas e questionamentos, como o
trazido por Manuel Castells:
66
não podem ser concebidas separadamente das relações sociais de poder e
dominação. É preciso não esquecer que, como adverte Woodward (2000), as
diferentes identidades têm causas e conseqüências materiais. “A identidade é
marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças [...] são vistas
como mais importantes do que outras, especialmente em lugares particulares e
em momentos particulares”. (p.11)
67
Culturalmente, a década de 1990 trouxe consigo uma geração
desconfiada das ideologias e confiante no mercado e no indivíduo. A
comunidade, como vivência coletiva, destituída de seu lugar de encontro e
pertencimento se reencontra num certo “paraíso sem limites”, cujo personagem
central é o jovem da “geração coca-cola”, habitante dos shopping-centers, sem
rosto e sem identidade, fruto da pós-modernidade, da globalização e do
multiculturalismo. É uma geração esquizofrênica que se depara com um não
saber-se ou um saber-se temporário, devorada e asfixiada pela provisoriedade
dos relativismos pós-modernos.
68
esquece ou finge esquecer que essa moda visa precisamente
ao aniquilamento do significado. Com a cultura, a religião e o
rock-caridade, não é a juventude que é tocada pelos grandes
discursos, é o próprio universo do discurso que é substituído
pelo das vibrações e da dança" (Finkielkraut, 1988, p. 156).
69
O shopping center faz emergir novas identificações e códigos sob
o signo do consumo associado ao lazer, que solidifica o sentido do “eu” e cria
novas identidades. Esses lugares migram seu status de centros comerciais
para fontes de felicidade e pertencimento. Estão excluídos desse local de
pertencimento, obviamente, os pobres e miseráveis. A reconfiguração das
identidades a partir dos espaços urbanos, obedece, historicamente, a uma
produção social. Assim, segundo Padilha (2006, p. 36), [...] “se a organização
social é regida e determinada por uma racionalidade capitalista, e o capitalismo
é um sistema essencialmente de contradição e de distinção entre grupos
sociais, o espaço urbano sobre o capitalismo reflete contradição e distinção”.
70
capacidade de adquirir e consumir mercadorias. O meio urbano destitui-se,
desse modo, do sentido de participação na vida da coletividade. Também o ato
de morar passa a ser identificado como o consumo de um imóvel/mercadoria
cujo valor fetichizado se acha maximizado em relação ao valor de uso.
Resgatar o sentido de urbanidade, de convergência, encontro e
participação, a ágora grega, significa buscá-la onde ela resiste aos apelos do
capital, onde ela ainda acontece de forma densa e onde as identidades
culturais ocorrem plenamente. Esses locais, funcionando como ágoras sociais
ilhadas no processo de urbanização/industrialização da vida social,
representam a urbanidade em sua essência, conferindo paradigmas de uma
utopia cultural urbana a ser construída.
71
CAPÍTULO 4
72
celestial como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e
robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas terras
para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até
as premissas dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e
pesca, como a um Deus tutelar. (ANDRADA E SILVA, 2000, p.
32)
73
as marcas do avanço das ciências, a intelectualidade desse período se rebelou
contra a pieguice, o exagero e o nacionalismo ufanista, reivindicando uma
postura crítica diante da “realidade”. O marco desse movimento é o ano de
1881, quando Machado de Assis lança “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e
Aluísio Azevedo publica “O Mulato”, inaugurando, entre nós, respectivamente,
o Realismo e o Naturalismo. O retorno ao passado é abandonado e a obra de
arte é invadida pelo meio, pelo momento e pela raça.
74
livro narra o ardente trajeto de um romance singular entre a jovem Lenita e
Manuel, marcado por encontros e desencontros, prazer e violência, desejo e
sadismo, batalha entre mente e carne. No final trágico, Lenita, grávida de três
meses, sentindo-se traída por Manuel, resolve abandoná-lo. Manuel, não
suportando o abandono, suicida-se. Eis um trecho do livro:
75
elemento brasileiro. A mestiçagem simbólica traduz, assim, a
realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto. Dentro
dessa perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do
povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal
nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro, ou
seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira.
É na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os
estigmas das ‘raças inferiores’, o que politicamente coloca a
construção de um Estado nacional como meta e não como
realidade presente (Ortiz,1994:21).
76
Essa ideologia branqueadora, na qual encontram-se tatuados os
signos e as marcas do racismo, foi disseminada na mentalidade nacional e
compartilhada, inclusive, por intelectuais como Monteiro Lobato:
77
cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e o
futebol. O que era mestiço torna-se nacional.
78
O modernismo brasileiro pretendeu não só cortar as ligações
entre as raízes culturais brasileiras e a Europa, como também pretendeu
destruir, no homem brasileiro idealizado, o ideal de homem europeu. Nas
palavras de Zilá Bernd, essa busca por uma identidade brasileira se revestir de
duas funções:
79
Assim entendida, a ideologia, de um modo mais amplo, significa
sentido a serviço do poder (Thompson, 1995). Neste sentido, a malandragem,
nas palavras de Da Matta (1997, p.269), está
80
Mulher, mulher
Não tenha medo do seu marido
Se ele é bom na faca
Eu sou no facão
Se ele e bom na reza
Eu na oração
Se ele diz que sim
Eu digo que não
Eu sou Zé Pelintra
Ele e Lampião
81
diante das forças opressoras da sociedade. Diante das agruras impostas pela
lógica do capital, o mestiço, transmutado em malandro, sobrevive manipulando
pessoas, enganando autoridades e driblando leis. Em dissertação acerca da
Capoeira praticada no Rio de Janeiro de 1890 a 1937, Antonio Pires afirma que
“as relações de conflito e solidariedade na capoeiragem estiveram
permanentemente relacionadas com os conflitos mais gerais da sociedade”.
(PIRES, 1993, p. 143) questões específicas da arte dispensavam discussões
acerca da identidade nacional.
82
[...] Você quer levar a vida
Tocando viola de papo pro ar
E eu me mato no trabalho
Pra você gozar
83
senzalas, dos quilombos, da malandragem, estabelece a possibilidade de
superação do pesado fardo de procedimentos seculares de negricídio.
84
O momento histórico das disciplinas é o momento em que
nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o
aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua
sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo
mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente. Forma-se, então uma política de coerções que
são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de
seus elementos, de seus gestos de seus comportamentos. [...]
A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e corpos
exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças
do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). [...] Se a
exploração econômica separa a força e o produto do trabalho,
digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada.
85
inexorabilidade da própria miséria. Se há, não pode situar-se noutro campo
senão o da debilidade psíquica. De acordo com Reich (1972, p. 18),
86
Revolução Russa de 1917, como primeira grande tentativa da humanidade em
tomar nas mãos as rédeas de seu destino; as traumáticas conseqüências de
uma guerra mundial; o crack da bolsa de valores de Nova York (1929) e os
primeiros esboços da indústria cultural. Na Itália, Mussolini estabelece, em
1925, um Estado totalitário de extrema direita. O desemprego e a desilusão
popular desencadearam, ao final da década de 1930, a Segunda Guerra
Mundial que apresentou ao mundo o holocausto nazista. Na Espanha acontece
uma Guerra Civil (1936-1939), com a Alemanha nazista e a Italia fascista
apoiando Franco. Picasso pinta Guernica em 1937 e, em 1939, Sartre escreve
seu “Diário de uma Guerra Estranha”. No ano de 1945 a Alemanha se rende e
os Estados Unidos despejam duas bombas atômicas sobre Hiroshima e
Nagazaki.
87
CAPÍTULO 5
(Erik Hobsbawn)
88
As cantigas e ladainhas das rodas-de-Capoeira denunciam a
existência de uma sociedade marcada por um percurso histórico de
desigualdades onde ainda se rareficam as condições minimamente dignas de
existência para um polpudo segmento social economicamente marginalizado e
composto majoritariamente por afro-descendentes.
Treze de maio
(Mestre Moraes)
89
contemporânea, abrandadas por meio do contato das imagens
fornecidas pela industrialização e mercantilização dos
produtos simbólicos numa escala universal. Diante disso,
tornam-se compreensíveis, mas não aceitáveis, argumentos
que identificam como progresso o fato de que atualmente
milhões de pessoas têm contato com a produção cultural. Nas
sociedades capitalistas poucos podiam despender os recursos
materiais e espirituais exigidos para a contemplação das
manifestações artísticas, tais como concertos ou peças de
teatro. Mas, será que esta massificação simbólica tem
somente um caráter progressista? Será que as condições
objetivas atuais proporcionam condições para que as
promessas e concretizações da felicidade, imanentemente
contidas na cultura possam se tornar realidade?
90
Não obstante as marcas de tragédia deixadas no caminho
percorrido pela globalização, Paiva (1998) considera, ainda, que esta talvez
não seja uma via de mão única. Este reinado de engodos não é onipotente.
Por entre as frestas da indústria cultural, a Capoeira comparece como
estratégia de esquiva, negativa, defesa e contra-ataque, uma vez que a fuga
não é mais possível e os quilombos não se fazem mais presentes.
91
A estrutura das relações travadas entre os homens em sociedade
alicerça-se a partir da economia, do mundo material, e não ao contrário. O que
eles, os homens, imaginam ser e o que pretendem ser tornam-se secundários.
Neste sentido, importa perceber os diversos conceitos contemporâneos como
produto do meio onde são concebidos. As atualizadas discussões em torno do
termo identidade, por exemplo, tornam-se relevantes na medida em que a
dissecação desse termo ajuda a compreender as razões atuais que levam à
sua própria relevância: o fundamento dos conflitos econômicos é deslocado
para o terreno da cultura a fim de esvaziá-lo. Isso é discernível a partir da
maneira como o multiculturalismo afirma reconhecer a exploração econômica,
mas foca seu interesse nos conflitos entre as identidades culturais.
92
vieram os negros que, mais tarde, criaram a Capoeira no Brasil com base no
N’golo, ou “jogo da zebra”. De acordo com MACEDO (2006, p. 427),
93
[...] noções de mérito e responsabilidade individual, elementos
da ideologia igualitária. Após a Revolução Francesa, se o seu
lugar permanece central nesse sistema ideológico, a função
que ela exerce se altera radicalmente: a noção de aptidão, a
partir daí, serve progressivamente de suporte para justificar a
manutenção das desigualdades sociais e escolares que as
traduzem e perpetuam. Como a nova sociedade e as
instituições escolares são colocadas como igualitárias, a
causa das desigualdades só pode ser atribuída a um dado
“natural”. (BISSERET, 1978, p. 31)
94
classe operária. Para manter sua hegemonia, a burguesia
necessita, então, investir na construção de um homem novo
[...]. A construção desse homem novo, portanto, será integral,
ela “cuidará” igualmente dos aspectos mentais, intelectuais,
culturais e físicos.
95
Desenvolver e fortalecer física e moralmente os indivíduos era,
portanto, uma das funções a serem desempenhadas pela
Educação Física no sistema educacional, e uma das razoes de
sua existência. Outra forte razão era seu caráter científico [...].
Numa sociedade me que a ciência transforma-se numa nova
“religião”, o caráter científico conferido à Educação Física
constituía-se em fator determinante para sua consideração e
respeito no interior do sistema educacional. [...] As aulas de
Educação Física nas escolas eram ministradas por instrutores
físicos do exército, que traziam para essas instituições os
rígidos métodos militares da disciplina e da hierarquia. Esse
fato é a base da construção da identidade pedagógica da
Educação Física escolar, calcada nas normas e valores
próprios da instituição militar. Constrói-se, nesse sentido, um
projeto de homem disciplinado, obediente, submisso, profundo
respeitador da hierarquia social. No Brasil, especificamente nas
quatro primeiras décadas do século XX, foi marcante no
sistema educacional a influência dos Métodos Ginásticos e da
Instituição Militar. Ressalta-se que o auge da militarização da
escola corresponde à execução do projeto de sociedade
idealizado pela ditadura do Estado Novo. (COLETIVO DE
AUTORES, 1992: p. 52-53).
96
capital, a padronização motora, a obediência às regras e a busca de
rendimento e de vitória acabam determinando os rumos do desenvolvimento da
Educação Física. A idéia de vencer através da prática dos esportes - ou das
atividades físicas desportivizadas - se sobrepõe a qualquer outro objetivo.
Referindo-se ao processo de desportivização das práticas corporais, Silva
(1994, p. 33), considera que:
97
foram muitas vezes reprimidos pelo poder público, como ,
aliás, também foi o caso de uma prática corporal das classes
populares brasileiras, a capoeira, que sofreu uma perseguição
violenta por parte das autoridades nas décadas de 1910 a
1930. [...] Vai ser nas escolas públicas que aqueles jogos (o
caso clássico é o futebol) vão ser regulamentados e aos
poucos assumir as características (formas) do esporte
moderno.
98
Parece-me claro que a forma hegemônica da cultura corporal
de movimento é o esporte. Isto é, o esporte é a forma da
cultura corporal de movimento que é funcional para a atual
hegemonia. Para reforçar esta hipótese podemos, entre outros
argumentos, indicar para a tendência de desportivização da
cultura corporal de movimento. Outras razões seriam, por
exemplo, a possibilidade de sua comercialização, seu caráter
de espetáculo que acentua sua afinidade com os meios de
comunicação de massa, etc. Se aceitarmos esta (hipó)tese,
não é difícil analisar a história da Capoeira a partir dos
esquemas propostos por Oliven (1938) e Meneses (1980).
Reprimida, tolerada e domesticada – ou em vias de – via
esportivização. (BRACHT, 1997, p. 65),
99
[...] é uma prática pedagógica que no âmbito escolar,
tematiza formas de atividades expressivas corporais
como: jogo, dança, ginástica, esportes, formas estas que
configuram uma área de conhecimento que podemos
chamar de cultura corporal. [...] Mas o que ela vem
sendo?
100
comparece Valter Bracht, citando Vinnai (1970), em seguimento e ampliação
da avaliação de Taffarel sobre o esporte:
101
relações de produção humana em dados momentos históricos.
A capoeira é um dos fenômenos sócio-culturais da alta
relevância no Brasil e constitui o processo civilizatório. Está
situado dentro da divisão social internacional do trabalho e
portanto, neste momento histórico sofre também o processo de
degeneração, decomposição e destruição. Isto é visível quando
observamos o empresariamento da capoeira
internacionalmente – no sistema de franquias. A
mercadorização da capoeira, vista nos empórios e centros
turísticos, a espetacularização da capoeira visita na mídia e
nos fantasiosos espetáculos, na esportivização da capoeira, na
construção de confederações, federações com finalidades
competitivas, necessidade imperiosa do capital. (TAFFAREL,
2004, p. 17)
102
20, é um dos países onde essa famosa
indústria cultural deitou raízes mais
fundas e por isso mesmo é um daqueles
onde ela, já solidamente instalada e
agindo em lugar da cultura nacional,
vem produzindo estragos de monta.
(Milton Santos)
103
[...] é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo
entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa
palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões
diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como
uma imitação: palavra sem-cerimônia, que pretende a
consistência e ignora sua própria insistência. Nietzsche fez o
reparo de que a “verdade” não era outra coisa senão a
solidificação de antigas metáforas. Pois bem, de acordo com
isso, o estereótipo é a via atual da “verdade”, o traço palpável
que faz transitar o ornamento inventado para a forma
canonical, coercitiva, do significado.
104
à cultura popular, como prática oriunda das camadas subalternas, sua busca
por satisfação torna-se o principal algoz que os enclausura numa pseudo-
gratificação objetivada pelo mercado. A capoeira angola, entendida como
manifestação autêntica da cultura popular, situa o angoleiro, a exemplo de
Ulisses, como conhecedor dos mecanismos de funcionamento desses cantos
de sedução hipnotizante, porém, sem se deixar sacrificar por completo.
105
Regional. E, ao fazê-lo, não apenas serviu de solo fértil à desportivização da
capoeiragem como também dotou essa prática de signos mercadológicos
novos e ampliados, recriando, pois, o esporte, ao sabor da contemporaneidade.
No mundo atual, o esporte é de tal modo transformado para servir as
necessidades da indústria que se torna lícito afirmar que a nova ordem o
reinventou.
106
CAPÍTULO 6
107
esponsalício. [...] Os escravos das tribos do sul que foram
através do entreposto de Benguela levaram a tradição de luta
de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição
tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que
os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil. [...] Outra
das razões que me levam a atribuir a origem da Capoeira ao
N’Golo é que no Brasil é costume os malandros tocarem um
instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos
hungu ou m’bolumbumba, conforme os lugares, e que é
tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos
pastoris até a Swazilândia, na costa oriental da África.” Estes
relatos ilustram hipóteses quanto às origens da Capoeira. Note-
se que essas danças são conhecidas no Brasil apenas através
da literatura sobre o assunto. A história da Capoeira aguarda
pesquisa minuciosa em terras africanas com o objetivo de
constatar nessas danças os possíveis elementos formadores
da Capoeira. (CAMILLE ADORNO, 1999, p. 19),
108
uma rica produção cultural que recriou sua autonomia a partir do
estabelecimento de identidades culturais e étnicas contidas nas memórias
trazidas da África. Tais apontamentos lançam luz sobre o processo de
invenção da Capoeira no colo dos processos da tradição, como fatores
modelares da experiência cultural. De acordo com Rego (1968, p. 31),
109
nossa terra - exilado por Napoleão III - para retratar os
costumes da nação que se formava: “No sábado à noite, finda
a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que trazem
folga e descanso, concedem-se aos escravos uma ou duas
horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se,
agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira,
espécie de dança pírrica, de evoluções atrevidas e combativas,
ao som do tambor do congo”. (CAMILLE ADORNO, 1995, p.
19)
110
Desde a década de 1940, afirma Luiz Renato Vieira (1998),
antropólogos como Herskovits têm apontado para a existência
de “danças de combate” que trazem semelhanças com aquilo
que conhecemos hoje como capoeira, não só na África - como
o Muringue, em Madagascar -, como também em vários pontos
da América, nos locais em que a diáspora negra se instalou.
Relatos sobre o Mani em Cuba, e a Ladja na Martinica são dois
exemplos dessas práticas. Sobre a Ladja, Vieira mostra a
impressionante semelhança com a capoeira, verificada não
somente do ponto de vista da execução de movimentos e
golpes, como, o que é mais importante, o fato de congregar
aspectos lúdicos, musicais (pratica-se ao som de atabaques) e
de combate corporal. (ADIB, 2004, p. 94)
111
Nas palavras de Ribeiro (1968, p. 31),
112
escravidão, como a praticaram em larga e proveitosa escala. O
padre Vieira, a quem se deve tanta indignação contra a
exploração dos índios, colocado certa vez diante do dilema de
ficar ao lado dos escravistas do Maranhão ou do lado dos
silvícolas, não fugiu à conclusão de que era “fácil conciliar a
consciência com o interesse”. Foi assim que tivemos
desde o século XVI o Poder Temporal e o Poder Espiritual
conciliando a consciência com o interesse, a cruz com o
arcabuz, a castidade com o estupro, a fraternidade com a
escravidão, o direito com a força. (CAMILLE ADORNO, 1999,
p. 13-14)
113
Na esteira do tom igualitário das narrativas filosóficas, políticas e
econômicas vindo da Europa e dos Estados Unidos, incendeia-se no Brasil as
idéias abolicionistas. Luiz dos Santos Vilhena, em seu escrito da época,
intitulado “Notícias Soteropolitanas e Basílicas” (apud MONTENEGRO, 1989,
p. 35), referindo-se ao terror do homem branco diante das multidões de
escravos reunidos assim descreve a situação:
114
Ali [na rua] encontravam a diversão, combinavam encontros
ou se reuniam por acaso nos ambientes acessíveis e
familiares das praças, parques e mercados. [...] Assim, para os
pobres, os lugares predominantemente sociais, onde forjavam
relações e se associavam em atividades que os aproximavam
uns dos outros, eram os locais públicos da rua [...]. Em termos
de dia-a-dia, os lugares [procurados] eram a taverna ou a
venda da esquina. (GRAHAM, 1992, p. 77).
115
negro fugia momentaneamente do seu dono. Neste documento histórico que os
pincéis de Rugendas eternizaram, a capoeiragem documenta rua e praça como
lugares predominantemente sociais, onde se forjavam relações identidárias
entre escravos através de atividades que os aproximavam uns dos outros,
fazendo circular os diferentes costumes, assim como o faziam os batuques,
onde se misturava em meio à festa, o sagrado e o profano.
116
sobrevivência de um povo seqüestrado, escravizado, humilhado e subsumido à
condição de inferioridade econômica.
117
mulatas. Freqüenta os pátios das tabernas, os antros da
maruja para os lados do Arsenal. Usa e abusa da moral da
ralé, moral oblíqua, reclamando pelourinho, degredo e às
vezes, forca. Tem sempre por amigo do peito um falsário, por
companheiro de enxerga um matador profissional e por
comparsa, na hora da taberna, um ladrão. No fundo, ele é mau
porque vive onde há o comércio do vício e do crime.
Socialmente, é um cisto, como poderia ser uma flor. Não lhe
faltam, a par dos instintos maus, gestos amáveis e
enternecedores. É cavalheiresco para com as mulheres.
Defende os fracos. Tem alma de Dom Quixote. E com muita
religião. Muitíssima. Pode faltar-lhe ao sair de casa o aço
vingador, a ferramenta de matar, até a própria coragem, mas
não esquece do escapulário sobre o peito e traz na boca,
sempre, o nome de Maria ou de Jesus. Por vezes, quando a
sombra da madrugada ainda é um grande capuz sobre a
cidade, está ele de joelhos, compassivo e piedoso, batendo no
peito, beijando humildemente o chão, em prece, diante de um
nicho iluminado, numa esquina qualquer. Está rezando pela
alma do que sumiu do mundo, do que matou. É de crer que,
como sentimento, o capoeira é realmente um tipo encantador.
118
mercados exportadores internacionais. O escravo era basicamente conhecedor
das formas agrícolas de subsistência em vigor na África. O europeu, por seu
lado, já desenvolvera meios tecnológicos da produção em larga escala. Os
antigos barões cafeeiros preferiram empregar a mão-de-obra do imigrante
italiano, mais qualificada. Além desse fato, no horizonte das transformações
mundiais do século XIX, o Brasil figurava como último bastião do escravismo, já
abolido em todos os países. Acrescente-se a isso o número vertiginoso de
insurreições negras, cada vez mais freqüentes nos últimos idos da escravidão,
a minimização do poder imperial, a entrada paulatina de imigrantes europeus
no país e os olhares enamorados da burguesia local para a perspectiva de
industrialização da economia nacional.
119
sobrados e viveram a vida tão bem descrita por Gilberto Freyre
(1935). [...] A abolição, dando alguma oportunidade de ir e vir
aos negros encheu as cidades do Rio e da Bahia de núcleos
chamados africanos, que se desdobraram nas favelas de
agora. A crise de desemprego que ocorre na Europa na
passagem do século nos manda 7 milhões de europeus.
Quatro e meio milhões deles se fixaram definitivamente no
Brasil, principalmente em São Paulo, onde renovaram toda a
vida econômica local. Foram eles que promoveram o primeiro
surto de industrialização, que mais tarde se expandiria com a
industrialização substitutiva de importações. (RIBEIRO, 2005,
p. 193-194)
120
Embora as maltas fossem tradicionalmente formadas por negros
e mulatos, os brancos também se faziam presentes. Eis as maltas mais
destacadas: Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha, Glória, Lapa,
Moura, dentre outras. No período da Proclamação da República duas grandes
maltas estavam consagradas: os Nagoas e os Guaimums. Os primeiros
atuavam na periferia, a Cidade Velha, e estavam ligados politicamente aos
monarquistas conservando uma tradição escrava e africana. Os segundos
atuavam na região central, a Cidade Nova e estavam ligados aos republicanos,
apresentando uma tradição mestiça, absorvendo brancos imigrantes, crioulos,
homens livres e intelectuais. Os chapéus diferenciavam os integrantes das
duas grandes maltas: os Nagoas usavam um chapéu com uma cinta de cor
branca sobre o vermelho e as abas para frente e para baixo.
Os Guaiamuns usavam um chapéu com uma cinta de cor vermelha sobre a
branca e as abas para frente e para cima.
121
proibida em todo o território nacional em 11 de outubro de 1890 pela
promulgação da Lei nº. 487, de autoria de Sampaio Ferraz, que previa uma
punição de dois a seis meses de trabalhos forçados na ilha de Fernando de
Noronha. No artigo 402, que tratava "dos vadios capoeiras”, lia-se:
Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade
e destreza corporal conhecidos pela denominação
capoeiragem; andar em correrias, com armas ou
instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal,
provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa
certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena -
prisão celular de dois a seis meses. Parágrafo único: é
considerada circunstância agravante pertencer o
capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças
se imporá a pena em dobro.
122
resultado numa civilidade para os ricos construída sobre as agruras da falta de
saneamento e de estrutura urbana para a majoritária parcela pobre da
população.
123
CAPÍTULO 7
124
aninharam, gestadas sob a égide da religiosidade e obedientes, em última
instância, aos ditames predatórios do capital.
125
A despeito De acordo com os estudos de Marx, a infra-estrutura -
origem das riquezas e do desenvolvimento tecnológico e base material da
sociedade capitalista - compreende o conjunto dos meios sociais de produção
e das forças produtivas. Sobre a infra-estrutura, desenvolve-se a
superestrutura, que abarca a esfera da vida política, espiritual e cultural. Não é
possível compreender os aspectos superestruturais da cultura para além da
base material sobre a qual ela encontra-se alicerçada.
126
Na contra-mão desta reflexão, a emergência da sociedade capitalista
globalizada, mundializada, industrializada, informatizada, multiculturalizada,
pós-modernizada, anuncia as “boas-novas” de uma sociedade da felicidade,
marcada pela exacerbação técnica e por uma vertiginosa comunicação entre
as identidades culturais do mundo todo.
127
A universalização da condição humana, por meio da
mundialização da cultura transmutada em mercadoria, ao invés de provocar
emancipação é causa e conseqüência de isolamento e insensibilidade. O
rompimento radical dos contatos humanos diários torna a maior parte dos
habitantes da sociedade industrial empobrecidos culturalmente e encapsulados
na promessa da felicidade vinculada à mentira do consumo de produtos
efêmeros fetichizados como essenciais. Este tipo de conduta é cotidianamente
reforçado pela mídia. De acordo com Birnbaum (1969, p. 124), “A sensibilidade
estética, o sentimento religioso (acima de tudo, a crença na transcendência), as
emoções entre as pessoas, a própria sensualidade foram transformados pelo
novo ambiente industrial”. O homo faber fragmentou-se diante da santificação
do consumo que a tudo e a todos devora vorazmente.
128
prazer prometido que nunca acontece. Antes mesmo de o mercado fazer a
pergunta, o consumidor já se sabe de antemão a resposta: como se deve
comportar, deixar conduzir. Esta é a lógica na qual os fatos suplicam pela
reprodução da mesmice, onde a aparência caminha de mãos dadas com a
servidão voluntária diante do horror de um mundo marcadamente desigual e
desumano em sua desigualdade. Mas que se apresenta como igualitário. Um
mundo de escravos felizes.
129
possibilidade de fazer qualquer concessão à atitude
epistemológica idealista para a qual a denominação que
empreguemos para caracterizar nossa sociedade dependa do
“olhar” pelo qual focamos essa sociedade: se for o “olhar
econômico” então podemos falar em capitalismo, se for o
“olhar político” devemos falar em sociedade democrática, se
for o “olhar cultural” devemos falar em sociedade pós-moderna
ou sociedade do conhecimento ou sociedade multicultural ou
sei lá mais quantas outras denominações. Essa é uma atitude
idealista, subjetivista, bem a gosto do ambiente ideológico
pós-moderno. Eu reconheço, e não poderia deixar de fazê-lo,
que o capitalismo do final do século vinte e início do século
vinte e um passa por mudanças e que podemos sim
considerar que estejamos vivendo uma nova fase do
capitalismo. Mas isso não significa que a essência da
sociedade capitalista tenha se alterado [...]. A assim chamada
sociedade do conhecimento é uma ideologia produzida pelo
capitalismo, é um fenômeno no campo da reprodução
ideológica do capitalismo. Assim, para falar sobre algumas
ilusões da sociedade do conhecimento é preciso
primeiramente explicitar que a sociedade do conhecimento é,
por si mesma, uma ilusão que cumpre uma determinada
função ideológica na sociedade capitalista contemporânea.
(DUARTE, 2003, p. 36)
130
trabalho educativo na escola -, levando o indivíduo à superação dos conceitos
cotidianos pelos conceitos científicos, conhecendo de forma mais concreta,
pela mediação das abstrações, a realidade da qual faz parte (DUARTE, 2003,
p. 82).
Diante do exposto, tornam-se compreensíveis – mas nem por isso
aceitáveis – os argumentos que identificam como um processo libertário o fato
de que na contemporaneidade milhões de seres humanos têm acesso à
informação e à cultura. Na esteira da complexidade cada vez maior do capital,
a significação do próprio conceito “cultura” aceita o abismo existente entre os
seres humanos e os produtos da atividade humana, notadamente marcado
pela divisão do trabalho, que também marca a cultura industrial/urbana. A
cultura já não se concretiza a partir de relações comunitárias, de
pertencimento. No mundo do trabalho, a falta de tempo para diálogo entre os
indivíduos, como significado residual da indústria, transporta o ser humano
para um local distanciado de suas vidas, onde o todo não existe e o contato se
transforma num diálogo de surdos.
131
Entre conhecimento e poder não existe apenas uma relação
de lacaio, mas também uma relação de verdade. [...] Muitos
conhecimentos são fúteis, se desproporcionados à relação de
forças, ainda que formalmente possam ser corretos. Quando o
médico emigrado diz: “Prá mim, Adolf Hitler é um caso
patológico”, é possível que, no fim das contas, os exames
clínicos confirmem sua asserção, mas a desproporção que há
entre essa frase e a catástrofe objetiva que se abate sobre o
mundo em nome daquele paranóico torna ridículo tal
diagnóstico, através do qual quem diagnostica quer apenas
pavonear-se. Talvez Hitler seja “em si” um caso patológico.
Mas, com toda certeza não “para ele”. A vaidade e a pobreza
de tantas declarações de emigrados contra o fascismo estão
intimamente ligadas a isso. As pessoas que pensam nas
formas de juízo livre, distanciado, desinteressado, foram
incapazes de encaixar a experiência da violência naquelas
formas, experiências que realmente anula tal pensamento. A
tarefa quase insolúvel consiste em não se deixar imbecilizar
nem pelo poder dos outros, nem por nossa própria impotência.
(ADORNO, 1993, p. 48)
132
carente de alfabetização. Há uma procissão interminável de signos sociais e
valores definidos pelo mundo da produção e do consumo onde estão -
habilitados pelas leis do mercado - comportamentos, crenças, dúvidas,
certezas insólitas, informações e conhecimentos a serem adquiridos na esteira
da sucedânea infinda dos modismos da globalização. Desse modo, o ato de
educar se afirma, historicamente, diante das significações da sociedade onde
acontece, reproduzindo-a.
133
Vem prá mim toda contente
"Pai vou me matricular"
Mas me diz um cidadão:
"Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar"
Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer [...]
134
computadores acessíveis aos alunos; auditórios; e professores bem
qualificados, bem pagos e bem interessados. No rumo desses fatos, o ensino
tornou-se alvo de zombarias, as mais excêntricas, enquanto a opinião pública
se compadece ante os penosos salários dos profissionais da educação.
135
(...) o princípio de prazer (...), do ponto de vista da
autopreservação do organismo com relação às dificuldades do
mundo externo, é, desde o início (...) altamente perigoso. Sob
a influência dos instintos de autopreservação do ego, o
princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade.
(...) O princípio de realidade não abandona a intenção inicial
de obter prazer, mas (adota) (...) uma série de possibilidades
para obter esse prazer. (...) Não pode, porém, haver dúvida de
que a substituição do princípio de prazer pelo princípio de
realidade só pode ser responsabilizada por um pequeno
número – e de modo algum as mais intensas – das
experiências desagradáveis. (...) No curso das coisas,
acontece repetidas vezes que instintos individuais , ou parte
de instintos, se mostrem incompatíveis, em seus objetos ou
exigências, com os (códigos de conduta social). (...) Os
primeiros são, então, expelidos dessa unidade pelo processo
de repressão, mantidos em níveis inferiores de
desenvolvimento psíquico e afastados, de início, da
possibilidade de satisfação. Se, subseqüentemente, alcançam
êxito – como tão facilmente acontece com os instintos sexuais
reprimidos – em conseguir chegar por caminhos indiretos à
uma satisfação indireta ou substitutiva, esse acontecimento
se, em outros casos, seria uma oportunidade de prazer, é
sentida pelo ego como desprazer. (...) Esse desprazer (...) é
reconhecido como “perigo”. (...) A “ansiedade” descreve um
estado particular de se esperar o perigo, ou preparar-se para
ele, ainda que possa ser desconhecido. (FREUD, 1976, p. 17-
24),
136
todos. E, a bem da verdade, percebe-se mesmo uma fecunda inexistência de
idéias – quaisquer que sejam elas - em grande parte dos espíritos.
Na realidade, no exercício da vontade individual, já está
presente a vicissitude que resta: o conformismo com o fato de
que a própria debilidade é atenuada mediante a percepção de
que, certamente, alguém se encontra em pior estado. [...] O
fim do desespero condiciona-se à esperança de que, ao
comprar determinada mercadoria, o indivíduo obtém
concomitantemente os atributos propagandeados pelos
comerciais de rádio, cinema e, principalmente, televisão. A
capacidade do sujeito receber os dados imediatos e sobre eles
exercer reflexão crítica rarifica-se cada vez mais. (ZUIN;
PUCCI; RAMOS-DE-OLIVIERA, 2000, p. 63)
137
O corpo é apropriado pela cultura. Vai sendo cada vez mais
um suporte de signos sociais. É modelado como projeção do
social. As instituições assumem seu papel. Como dizem, é
necessário a preparação (do corpo) para o convívio em
sociedade. É preciso aprender as regras sociais. Começa a
divisão. O corpo da criança vai sendo violado por um conjunto
de regras sócio-econômicas que sufoca, domestica, oprime,
reprime, “educa”.
138
pontos. Havia certa flexibilidade com as regras do voleibol de
competição, no entanto, este era o modelo. (CRUZ DE
OLIVEIRA, 2006, p. 48-49)
139
Esta, com ares de desprezo, retrucou baixinho: “Não vou
reprovar...”, demonstrando que, para ela, as aulas de EF não
tinham a menor importância e nem possibilidade de reprová-la.
[...] Com o passar do tempo comecei a perceber que o fato da
não participação na aula dava-se, principalmente, pela
vergonha da exposição. Meninas e meninos tinham vergonha
de fazer a aula, fosse por características físicas - que pelas
próprias transformações morfofuncionais da adolescência
começavam a ficar evidentes - ou por auto-avaliação de que
não “levavam jeito” para o esporte.
140
textos e livros, que exigem tempo de atenção e concentração maiores, torna-
se, nesse processo, intolerável para muitos alunos. Disso decorre uma
“infantilização” do espectador que congrega a expectativa de receber de modo
simplificado e resumido informações que não necessitem reflexão. Diante da
provisoriedade e da ligeireza pós-modernas, o vídeo-clip substitui o filme, a
cópia xérox de capítulos substitui o livro e a novela substitui os
relacionamentos.
141
exótico, indesejado, incômodo ou doente. Tal repetição vem
camuflada com outros produtos que, não obstante a variação
aparente, repetem os mesmos modelos, esquemas ou
características impostas, tendendo a manter o público sob
controle, cada vez mais massificado, inconsciente e
compulsivamente preso à corrente de produção. (Reis, 1996,
p. 44-45)
142
ABIB; Pedro J. Cultura Popular e o Jogo dos Saberes na Roda.
Tese de Doutorado em Ciências Sociais aplicadas à Educação. Unicamp.
Campinas, 2004;
143
SOARES, C. E. L. A negregada instituição: os capoeiras no Rio
de Janeiro, 1850—1890. Secretaria Municipal de Cultura. Rio de Janeiro,
1994;
144
revogadas e substituídas por outras categorias mais “sintonizadas” com o
mercado, tais como: “mercadoria étnica”, “folia”, “competição”, “rendimento”,
“malhação” e “espetacularização”, dentre outras. (VASSALLO, 2003).
145
Neste sentido, importa perceber que o desenvolvimento da
capoeiragem ocorreu – e continua ocorrendo - no seio da luta de classes. Com
isso, pretendo argumentar em favor da necessidade de uma atitude
pedagógica para a Educação Física que se insira no projeto de transformação
da sociedade. A tematização pedagógica da capoeiragem no interior das aulas
de Educação Física, neste sentido, deve partir de um mergulho nas páginas de
sua história de onde se possa perceber, no sopé dos lampejos da
industrialização, a ressignificação da capoeiragem, pois, “[...] Compreender o
fenômeno é atingir a essência.” (KOSIK, 2002, p 16).
Capoeira é “mardade"
(Mestre Bimba,1900-1974)
146
saberes convertidos em novas significações. Saberes que atravessando o
Atlântico se fizeram o sal do alimento que manteve o africano, silenciado pela
escravidão, culturalmente vivo em nosso país. Diferentemente do sábio da
tradição ocidental, que esqueceu os pequenos prazeres do abandono no
processo de abstração, o mestre, na cultura afro-descendente, nunca esquece
as pequenas singularidades que emanam de energias da natureza chamadas
de "orixás" (sagrados).
Quando os últimos raios de sol deixavam a Praça da Matriz
em São Filipe, cidade fumajeira do Recôncavo Baiano, as
crianças sumiam porta adentro à espera do café com pão que
era engolido às pressas, porque estava quase na hora de
Eulina começar a contar suas histórias. Eram histórias de reis,
rainhas, casas mal-assombradas e bichos falantes. Eulina era
uma mulher negra retinta, braços fortes e uma voz forte e doce
que prendia a atenção da gente, o tempo que ela quisesse.
[...] Eulina tinha braços tão fortes que agüentava torrar e pilar
café todos os dias da semana. [...] Um jeito agradável de falar,
um sorriso aberto, mostrando uma alegria retirada do fundo da
sua alma negra, encantavam principalmente as crianças.
Quando chegava a noitinha, depois de suas múltiplas
atividades, chegava a hora do sagrado compromisso de contar
histórias para as crianças da vizinhança. Naquela hora
ninguém faltava, ninguém chegava atrasado, ninguém dava
um pio. Nunca esqueci Eulina e suas histórias, porque eram
interessantes e muitas vezes parecidas com a vida que a
gente vivia. (MACHADO, 2007, p. 01)
147
simbologias interiores revestidos de emoção e afeto, gerando um
reconhecimento maior da própria identidade na perspectivas do contato com o
outro. Entretanto, como bem lembra Brandão (1986, p. 154), a identidade
somente se torna presente na consciência e na cultura de um povo na medida
em que este se vê ameaçado pelos mega-poderes da sociedade de classes.
148
inicialmente, é a religião que batiza como sagrados os
símbolos que ela mesma cria, num segundo momento, tais
símbolos passam a ser o caráter definitivo da religião.
Substituindo uma abordagem essencialista da religião, R.
Alves propõe outra, mais dinâmica em que “o religioso seria
uma qualidade inerente ao símbolo ou à prática como tal, mas
estaria relacionado com as suas funções... A função religiosa
é uma integração entre biografia e historia, indivíduo e
cosmos... (produzindo) uma integração emocionalmente
satisfatória entre o indivíduo e a totalidade.
149
esportivizadas –, num constante reconhecimento do outro como necessário à
brincadeira, à diversão. Esta perspectiva dionisíaca possibilita vislumbrar uma
capoeiragem identificada com uma nova forma de entender o homem e a
sociedade, para além da velocidade vertiginosa proclamada pela
industrialização de tudo e de todos.
150
É na empatia, na solidariedade e na cooperação que se
encontram caminhos para a solução dos problemas sociais em ebulição na
pós-modernidade. A resistência da cultura popular na voz da Capoeira Angola
aos apelos sedutores da indústria cultural mundializada é anunciadora de uma
vida que ainda não existe. As condições adversas do capitalismo presentes na
desportivização e na mercadologização na cultura corporal de movimento
obstaculizam as possibilidades de uma pedagogia integrada ao projeto social
de superação do modo de produção capitalista. Nessa perspectiva, a
introdução da capoeiragem angolana na escola através das aulas de Educação
Física se apresenta como:
151
natureza da luta travada atualmente pela humanidade;
em segundo lugar, qual o espaço ocupado pela classe
explorada nesta luta; em terceiro lugar, qual o espaço
que deve ser ocupado por cada adolescente; e,
finalmente, é que cada um saiba, em seus respectivos
espaços, travar a luta pela destruição das formas inúteis,
substituindo-as por um novo edifício. (PISTRAK, 2003,
p.31)
E complementa:
152
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Fio da Navalha
153
a obstaculização dos fatos históricos: por ocasião do governo do presidente
Deodoro da Fonseca, o então ministro da fazenda, Rui Barbosa, em 1890, à
guisa de apagar de nossa história as lembranças da escravidão, determinou
que se queimasse toda documentação referente ao período. Obviamente que a
íntima relação mantida entre capoeiragem e escravidão não ficou imune a esse
estranho procedimento de “limpeza” histórica. Disso resultou que o que se tem
hoje concernente ao histórico da Capoeira é baseado em tradições orais, e
poucos documentos que escaparam à famigerada incineração.
154
As aquisições apresentadas nesta pesquisa são recorrentes dos
campos de conhecimento presentes na capoeiragem e surgidas da Educação
Física, área acadêmica no interior da qual este trabalho adquire seus
contornos. Os estudos indicam a existência de uma submissão da Capoeira
aos signos assumidos pela Educação Física na sua ação pedagógica e, por
extensão, aos ditames históricos da lógica do capital. A marginalização sofrida
pelos capoeiristas no Brasil dos períodos colônia e império teve seu berço na
escravidão negra. Enquanto que o desejo de docilizar o mestiço identidário na
figura emblemática do malandro carioca seguiu o cumprimento das disposições
políticas militaristas, autoritárias e nacionalistas vigorantes no período getulista.
Esses valores, ao serem incorporados pela Capoeira, a transfiguram em
ginástica e, depois, na década de 1970, em esporte. Este é um processo
absolutamente obediente aos padrões econômicos hegemônicos na sociedade
brasileira nas referidas temporalidades.
155
bens culturais de um povo. E a compreensão desses bens é um bom ponto de
partida para a transformação das consciências rumo à construção da liberdade,
de um novo mundo, onde não haja lugar para a exploração do homem pelo
homem. Um mundo onde a cultura popular genuinamente brasileira seja
privilegiada como forma de se valorizar a identidade rítmica de nossa gente,
impressa no jongo, na capoeira, no samba, no frevo, na lambada, na pernada
carioca, no batuque, no maxixe, o maculelê, no maracatú, no xote, no forró, no
xaxado, enfim, num sem número de manifestações afro-brasileiras desse
nosso Brasil amarelo, branco, negro, mulato, de todas as cores.
156
da roda, da orquestra de instrumentos e de tudo mais à sua volta. Neste
processo não existe diminuição de consciência, mas sim uma ampliação do
estado de consciência. Não há mais temporalidade e o capoeira passa a agira
como se conhecesse ou percebesse simultaneamente o passado, o presente e
o futuro. Este é um estado de transcendência, absolutamente subversivo em
relação ao mundo pós-moderno da técnica, da apologia da racionalidade
científica, da globalização e da indústria cultural, que obedece a uma lógica
inequívoca e inflexível: a exploração do homem pelo capital.
157
dignidade humana, da igualdade, da justiça, e da felicidade. Pensar o mundo
de hoje é pensar o mundo da danação. Um mundo do descartável, onde as
próprias pessoas são vistas como peças substituíveis. A lógica do capital é
metabólica: a forma com que se explora o trabalho hoje é diferente daquela do
século XIX. Hoje ela é mais sutil. Na Revolução Industrial os trabalhadores
eram chicoteados; hoje são eles mesmos que se chicoteiam.
158
A necessidade de uma crítica radical ao mundo do capital, como
postura intelectual, emana, nessas condições, do reconhecimento da
impossibilidade de uma mudança estrutural na forma predatória pela qual a
cultura popular tem sido tratada. Sem o enfrentamento das contradições reais
sob as quais se materializam os novos problemas da educação, cultura, escola
e sociedade continuarão a mercê da indústria. Isto porque o trabalho
pedagógico é uma prática que não existe isoladamente da prática social.
Conseqüentemente, as formas que o trabalho pedagógico costumeiramente
assume na escola tendem a reproduzir os ideais de uma sociedade
competitiva, voltada ao rendimento e mantida sob a égide do fetiche, da
reificação e da alienação.
alcançar?;
sua prática?;
159
das atividades da cultura corporal, em especifico a Capoeira, é construído e
produzido socialmente.
160
realização da qualidade desejada para a educação pública no Paraná. Em
perseguição à utopia de uma educação crítica, coletiva, coletivista,
transformadora e de qualidade, o PDE viabiliza o retorno do professor às
Instituições de Ensino Superior e o contato deste profissional com os suportes
tecnológicos necessários ao desenvolvimento de pesquisas pedagógicas que
irão ensejar sua intervenção na realidade escolar de um modo revigorado,
ressignificado a objetivação das possibilidades de transformação da realidade
social.
161
esse dilaceramento social se manifesta na escola é muito interessante. É o
que procurei buscar nesta pesquisa: entender os paradoxos do modo de
produção capitalista e seus reflexos na escola e, especificamente, na cultura
corporal de movimento aqui representada pela Capoeira, para que desse
entendimento se possa almejar o enfrentamento necessário às políticas de
opressão e desigualdade. Um enfrentamento que não signifique, emprestando
as palavras de Adorno em “Mínima Moralia”, jogar fora a criança com a água
do banho, ou seja, renunciar aos avanços tecnológicos que o capitalismo foi
capaz de produzir. Entretanto, há que se socializar essas novidades. Digo
socializar e não sociabilizar somente. O bolo já está pronto. E aguarda há
algum tempo. É preciso reparti-lo igualmente entre todos. Antes que venha a
apodrecer.
162
igualdade real e pela emancipação humana devem ser
incorporadas na luta para a construção de novas relações
sociais e na construção de novas relações de produção. Na
perspectiva da aliança entre a questão racial e a questão de
classe, concluímos este trabalho lembrando a solidariedade e
ação dos trabalhadores.
163
ANEXOS
164
Boa viagem
E com Nossa Senhora
Boa viagem
Adeus
Boa viagem Cajuê
Adeus Vo Manda lecô
Boa viagem Cajuê
Adeus, Adeus Vo Manda loiá
Boa viagem Cajuê
Adeus E menina Linda
Cajuê
Venha me buscar
Cajuê
Ai! Ai! Aidê! Leco
Ai! Ai! Aidê! Cajuê
Aidê! Aidê! Aidê! Loia
Ai! Ai! Aidê! Cajuê
Joga bonito que eu quero ver
Ai! Ai! Aidê!
Joga bonito que eu quero aprender
Camungerê
Camungerê
Como ta como ta
São Bento me Chama Camungerê
Ai, ai, ai, ai Como vai voismicê
São Bento me chama Camungerê
Ai, ai, ai, ai Eu vou bem de saúde
São Bento me leva Camungerê
Ai, ai, ai, ai Pra mim é um prazer
São Bento me prenda Camungerê
Ai, ai, ai, ai
São Bento me solta
Ai, ai, ai, ai
Me chamou que vou
Ai, ai, ai, ai Dona Maria Como Vai Você
São Bento me qué. Vai você, vai você
Ai, ai, ai, ai Dona Maria como vai você
Pra jogar capoeira Vai você, como vai você
Ai, ai, ai, ai Dona Maria como vai você
E me joga no chao Olha joga ligeiro que eu quero ver
Ai, ai, ai, ai Dona Maria como vai você
E se joga no chão Joga bonito que eu quero aprender
Ai, ai, ai, ai
165
REFERÊNCIAS
ADIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos
saberes na roda. Tese de Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas à
Educação. UNICAMP - UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS -
FACULDADE DE EDUCAÇÃO. Campinas, 2004.
ALVES, Rubem. In: vídeo viva a Cultura Popular Brasileira. Goiás, março de
2007. Acesso em: 12-10-2006 http://www.youtube.com/watch?
v=0yv6Dw1L8d0
166
ANDRÉ, A. M. A voz de um saber: o papel do velho entre os povos Kimbundu.
In: GUSMÃO, N. (Org.). Infância e velhice: pesquisa de idéias. Alínea,
Campinas, 2003.
AREIAS, Almir das. O que é capoeira. 2 ed. Brasiliense. São Paulo, 1987
(coleção primeiros passos)
BARROS, Manoel de. Capoeira, Qual é a Sua? Angola, Regional ou
Contemporânea. Disponível em:
http://www.ime.usp.br/~salles/ceaca/capo1.html
Acesso em: 07/09/2007.
167
BROWN, G. Jogos Cooperativos: Teoria e prática. São Leopoldo, Sinodal,
1994.
BURKE, Peter. A Nova História: seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter
(org.). A Escrita da História: novas perspectivas. UNESP. São Paulo, 1992.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. Companhia das letras. São
Paulo, 1989.
168
COHEN, Renato. Performance Como Linguagem. Perspectiva. São Paulo,
2004.
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rocco. Rio de Janeiro, 1996, pág.
09.
169
Acesso em 25/09/2007. Disponível em <http:www.scielo.br/scielo.php?
pid=S0102-71822006000200006&script=sci_arttext>
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX. Companhia das
Letras. São Paulo, 1995.
HOBSBAWM, Eric, Sobre História. Companhia das Letras. São Paulo, 2000.
HUIZINGA, J. Homo Ludens. 2ª ed. São Paulo, Perspectiva Estudos 42, 1980.
170
IÓRIO, Laércio Schwantes; DARILDO, Suraya Cristina. Educação Física,
Capoeira e Educação Física Escolar: possíveis relações. Universidade
Estadual Paulista – Campus Rio Claro. Revista Mackenzie de Educação
Física e Esporte – 2005. Acesso em: 10/07/2007. Disponível em: <
http://www.mackenzie.com.br/editoramackenzie/revistas/edfisica/edfis4n4/art9
efis4n4.pdf>.
171
LOUREIRO, Robson; DELLA FONTE, Sandra Soares. Indústria Cultural e
Educação em Tempos Pós Modernos. Papirus, Campinas, 2003.
MARIO, Pedrosa. In: ARANTES, Otília. Política das Artes. Textos Escolhidos I.
Edusp. São Paulo, 1995.
MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. Tomo III. Edições Progresso, Lisboa,
1983.
172
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Círculo do Livro. São Paulo, s/
d.
PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 11 ed. Cortez,
São Paulo, 2000.
173
PIMENTEL, Sidney Valadares. Feitiço contra o feiticeiro (Histórias em
quadrinhos e manifestação ideológica). Cegraf/UFG. Goiânia, 1989.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. Companhia das Letras, São Paulo, 2005.
174
RUMNEY, Jay; MAIER, Joseph. Manual de Sociologia. 6. ed. Trad: Octavio
Alves Velho. (Biblioteca de Ciências Sociais). Zahar, Rio de Janeiro, 1968.
SILVEIRA, José de deus luongo da. As Várias Faces do Direito: uma crítica ao
discurso jurídico tradicional. UEL, Londrina, 2001.
175
SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: Raízes européias e Brasil. 2 ed.
Autores Associados, Campinas, 2001.
176
Junio 1999. Acesso em 07/08/2007. Disponível em:
<http://www.efdeportes.com/>
177