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e constituição da personalidade
* Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC / CED / MEN
** Núcleo Castor. Estudos e A tividades em Existencialismo.
(Brasil)
Fábio Machado
Pinto*
Claudia Félix
Teixeira**
fabiobage@terra.com.br
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1. Introdução
Este texto tentará, ainda que de forma esboçada, retomar e sistematizar estas
discussões realizadas, colocando-as como ponto de partida para a construção de
um instrumental de pesquisa adequado ao esclarecimento de aspectos da
educação do corpo em ambientes escolares, sobretudo naqueles relacionados ao
desenvolvimento e constituição da personalidade. Contudo, apresentamos
primeiramente alguns pressupostos da ainda frágil relação entre as disciplinas
Psicologia e Educação Física no contexto escolar.
O último quartel do século passado foi palco do amplo debate, onde MEDINA
(1986:35) já anunciava que a Educação Física precisa entrar em crise
urgentemente. Precisa questionar criticamente seus valores. Precisa ser capaz de
justificar-se a si mesma. Precisa procurar identidade. Logo se questionou acerca do
estatuto epistemológio da área11, onde as teses ora a defendiam enquanto uma
ciência, ora enquanto um campo de conhecimento que na relação com ou tras
disciplinas científicas procurava se consolidar cientificamente. Das teses
apresentadas destacou-se a dificuldade de se definir um objeto de estudo próprio à
área, que circulavam pelos conceitos de Movimento Humano, Cultura de
Movimento, Cultura Corporal ou ainda, Cultura Corporal e de Movimento. Esta
lacuna levou alguns autores a definir a Educação Física / Ciências do Esporte como
um campo de conhecimento que na busca de um estatuto epistemológico acabou
identificando as ciências que compõem o seu corpo teórico, lhe proporcionando
uma identidade acadêmica.
Desde sua gênese, e por muito tempo, a Educação Física ficou restrita às
abordagens biológicas12. Contudo, é no final do século passado que ampliamos
nossa relação acadêmica para com as disciplinas das áreas das ciências humanas.
Seja na produção ou socialização do conhecimento relacionado às práticas
corporais, as novas abordagens permitiram olhar para o homem como um ser
histórico e social. Considerando os domínios motores, físicos, orgânicos, as
disciplinas de História, Psicologia, Sociologia, Antropologia e Filosofia, entre outras,
demonstraram de formas diversas que o homem que se movimenta é o mesmo
que sente, que pensa, que luta e que se relaciona com os outros, com as coisas e
com o tempo.
Se, por um lado, esta crítica proporcionou uma nova reflexão sobre a totalidade
do trabalho educativo realizado, por outro, contribuiu para a resistência de seus
pressupostos e encaminhamentos metodológicos dentro dos ambientes
educacionais. Assim, a produção acadêmica manteve uma certa distância da Escola
Pública, proporcionado, também, pelo pouco amadurecimento teórico-metodológico
ou, ainda, pela nossa capacidade de enfrentar o debate, bem como a formulação
de novas políticas públicas no campo educacional.
Cabe ressaltar que a Educação Física tem vacilado na busca desta perspectiva
científica. No campo da Psicologia encontramos um vasto material acadêmico tanto
no campo escolar como no de treinamento desportivo.
Na escola, para além desta perspectiva acima citada, tivemos nas décadas de 70
e 80 os movimentos “renovadores” na Educação Física, onde destacamos a
participação da Psicomotricidade. Le Bouche, apud COLETIVO DE AUTORES (1992)
irá desenvolver uma teoria geral do movimento que permite utilizá-lo como meio
de formação, no sentido de desencadear mudanças de hábitos, idéias e
sentimentos. Assim, esta perspectiva pouco inova em relação à anterior, pois
continua centrada na instrumentalização do movimento humano ao mesmo tempo
em que não visualiza as dimensões históricas e sociais da educação.
Assim, o homem para além de ser um ser social, é passado, ou seja, é história
viva que se materializa no presente a partir das totalizações e re- totalizações das
múltiplas relações que foi estabelecendo. Já o futuro é o espaço para onde o
homem se lança, e, através deste mover-se, o mesmo tempo em que lhe é
colocado, ele constitui seu projeto e desejo de ser. O presente, assim, é este
movimento dialético de depassagem do passado para o futuro.
Logo que nasce, o ser humano tem uma consciência23 indiferenciada, ou seja, não
diferencia as coisas e os outros entre si, bem como não se diferencia entre os
outros. É através das relações que estabelece e com a mediação dos outros que a
criança vai aprendendo a diferenciar-se. Este processo desenvolve a consciência
reflexiva que permite aprender as possibilidades e funções das coisas.
Uma aluna é alta, ágil, empolgada com o vôlei, com vasta experiência de
movimentos, tem irmãos esportistas. O pai dela costuma levá -la ao parque onde,
desde pequena, brincam com bola. Com freqüência escuta as histórias esportivas
de seu pai e amigos. Já a outra aluna é mais baixa, franzina, usa óculos, possui
dificuldade em jogar bola. Sua mãe é separada e teve pouco contato com outras
crianças, suas brincadeiras se limitando ao quintal da sua casa, com bonecas. Ela
gosta de vôlei, apesar de não demonstrar a mesma desenvoltura que a outra
aluna.
Por outro lado, levou a outra aluna a fechar a possibilidade de aprender a jogar
vôlei, ou seja, esta passou a se mover no mundo como alguém que não sabia, não
gostava, não tinha jeito, e, indo mais longe, como alguém que não aprenderia a
jogar nem vôlei, nem outros jogos com bola. A sua mediação fechou ou dificultou
um futuro possível. Para esta aluna a possibilidade de saber jogar vôlei ficou
seriamente dificultada, esse saber não vai fazer parte de seus perfis, não fazendo
parte de seu ser, de sua personalidade.
Podemos dizer ainda, que embora este ambiente seja apenas um dos quais tal
aluna circula, nele o conteúdo, a forma, a estrutura, os valores expressos enquanto
trabalho pedagógico dificultam o seu processo de socialização. Neste caso, o que
poderia tornar-se num importante espaço de socialização, inclusive porque a aluna
é a que mais precisa deste, acaba se tornando um complicador.
Olhando mais atentamente estes processos, vimos que a aluna “modelo” foi levada
a ter mais experiências de atração com o vôlei do que experiências de repulsão e,
justamente por ter se apropriado destas experiências como viabilizadoras de seu
ser, que ela vai se lançando para a possibilidade de aprender a jogar vôlei. Essas
experiências e a apropriação destas experiências se dão conforme os meios e as
mediações de que dispõe. Quando a professora a valoriza, quando a chama para
mostrar os toques, quando a olha atentamente, quando os colegas a requisitam,
quando o pai fica orgulhoso e diz que lhe dará uma bola, etc. Isso vai se constituir
em meios e mediações que possibilitam cada vez mais com que ela se lance para
aprender e jogar vôlei. Esse processo de socialização pode engendrar a
sociologização, demarcando-se com limites por dentro, seu espaço frente aos
outros e as coisas. E desta forma ela se lança segura, e mesmo que erre uma ou
outra bola isso não faz dela uma pessoa que “não saiba” jogar vôlei.
Por exemplo, a segunda aluna teve, desde o início da primeira aula prática,
várias experiências de repulsão com o jogar vôlei e foi se apropriando dessas
experiências como alguém que “não tinha jeito com a bola”, ou seja, ela foi se
apropriando como experiências que inviabilizavam seu “ser jogadora”, ou seu “ser
aprendiz” de vôlei. Quando chega por último na corrida, quando erra os toques,
quando nenhuma aluna quer ser seu par, quando a professora a olha com pena,
quando acerta e ninguém percebe, quando a professora não faz questão que ela
jogue, enfim, com infinitas ações e palavras, ela foi ficando sem os meios nem
mediações para lançar-se para o aprender vôlei, ficando cada vez mais insegura de
suas possibilidades. Assim, cada erro confirma mais e mais como ela não pode,
como não tem condições de aprender, enquanto que seus acertos não desmontam
a verdade que já está determinada ela não tem capacidade de jogar vôlei.
4. Reflexões finais
“...há séculos que não se fazia sentir na filosofia uma corrente tão
realista. Eles voltaram a mergulhar o homem no mundo, deram
todo o seu peso às suas angustias e aos seus sofrimentos, às suas
revoltas também.”30
Notas
1. Para WIGGERS (1996), o s Pontos de Encontro foram idealizados pelo professor da Prática de Ensino
de Educação Física Pedro Flores no início da década de 90, sendo desenvolvido pela professora
Ingrid Wiggers Dittrich nos anos que seguem. Trata-se de uma estratégia pedagógica que visa
promover a troca de experiências de estágio, aprofundar temas relevantes e reorientar o trabalho
pedagógico dos estagiários.
2. As disciplinas Prática de Ensino de Educação Física Escolar I e II ocorrem nas 6a e 7a fases do Curso
de Educação Física da UFSC. Estas disciplinas têm como objetivo produzir as condições necessárias
para que se efetive o processo de re-conhecimento do estagiário na posição de professor de
Educação Física, mediador entre o conhecimento da cultura corporal e os alunos, através de uma
inserção teórico-prática na totalidade do trabalho escolar e considerando a formação técnica,
científica e cultural desenvolvida ao longo do curso de licenciatura.
3. Sobre a Organização do Trabalho Pedagógico ler FREITAS (1995).
4. Para PINTO (2002) a avaliação da Prática de Ensino de Educação Física é processual e diagnóstica,
ocorrendo em diversos momentos da Prática de Ensino, avaliando os seus mais variados aspectos e
envolvendo o maior número de sujeitos do processo - professores supervisores, estagiários,
professores da escola, alunos da escola, equipe pedagógica, professores do curso de Educação
Física, pais dos alunos da escola, entre outros.
5. Sobre este assunto ler MARX (1982), SOUZA (1996).
6. Para BERTOLINO (1999) a observação do objeto apresenta-se como o primeiro passo dos Processos
da Ciência - investigação e intervenção. Entendemos a observação como um conjunto de
instrumentos investigativos - entrevistas, observações, análises de documentos, registros em vídeo,
em fotografias, entre outros.
7. Para SARTRE a aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A essência de um
existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste existente: é a lei manifesta que preside
a sucessão de suas aparições, é a razão da série. Introdução de O Ser e o Nada (1997)
8. Esta atividade buscou promover a aproximação entre Universidade, Escola Pública e Movimentos
Sociais, tendo como prioridade a formação inicial de professores de Educação Física, de forma
qualificada e comprometida com a realidade educacional brasileira, mas também com uma leitura da
conjuntura social e política em que se desenvolvem as lutas dos Movimentos Sociais organizados
pelos direitos da criança e do adolescente no Brasil.
9. Este Ponto de Encontro foi ministrado pelas Psicólo gas Claudia Félix Teixeira (CRP 12/ 01378) e Lara
Beatriz Fuck (CRP 12/ 01342).
10. SARTRE vai intensificar seus estudos sobre a teoria da personalidade durante os anos 1933/34,
quando passa um ano no Instituto Francês de Berlim estudando a fenomenologia de Husserl. Em
1936 é publicado o resultado de seus estudos iniciais sobre a personalidade com o título La
transcendance de L´Ego.
11. Este debate contemplou inúmeras teses, das quais destacamos TUBINO (1984), BETTI (1987),
CANFIELD (1988), SOUZA & SILVA (1990), FARIA JÚNIOR & FARINATTI (1992), KUNZ (1991),
BRACHT (1993).
12. Sobre este assunto ler SOARES (1994)
13. Sobre este assunto ler BRACHT (1992) O capítulo III - A criança que pratica esporte respeita as
regras do jogo... capitalista.
14. Entendemos superação enquanto um movimento resultado das categorias de totalidade,
contradição, mediação e a relação entre o universal e o singular próprias da compreensão dialética
da história, do homem e do pensamento.
15. VYGOTSKY intensificou seus estudos sobre a psicologia a partir da revolução Russa de 1917,
preocupando-se sobretudo com o desenvolvimento de uma teoria marxista do funcionamento
intelectual humano.
16. Destacamos aqui os textos de DUARTE (1999 e 2000) e ZANELLA (2001)
17. COLETIVO DE AUTORES (1992:36)
18. Refiro-me a escola sediada em Florianópolis, e que tem como referência intelectual o Filósofo e
Professor Pedro Bertolino Silva.
19. Boa parte das reflexões que seguem estão sustentadas na descrição e análises feitas pela psicóloga
Lara Fuck quando da elaboração da primeira versão deste texto.
20. SARTRE publica em 1934 a Transcendência do Ego resultado dos seus estudos sobre o pensamento
moderno e os diferentes entendimentos sobre o Ego. Na continuidade abordará o imaginário e a
imaginação (1936) e o texto esboço de uma teoria das emoções. Da leitura de Descartes e Kant
admitiu que sempre existirá um Eu no horizonte do Eu penso, e com isso a veracidade do cogito
cartesiano. Em Husserl, adotará, sobretudo, a doutrina da intencionalidade, tendo mais bem
desenvolvida posteriormente em O Ser e o Nada (1943). A crítica da razão dialética (1960) é uma
obra que procura desenvolver a teoria da personalidade, dando a mesma um caráter
universal/singular, ao mesmo tempo em que propõe um método para conhecê-la e intervir sobre
ela, denominado progressivo/regressivo. As biografias escritas no final de uma obra, sobre Gustavo
Flaubert e San Genet, apresentam de forma exemplar as suas principais teses filosóficas.
21. SARTRE (1939:31)
22. SARTRE (1994:83)
23. É importante esclarecer que a consciência, desde Husserl, é a pura relação às coisas, aos outros,
sendo assim não tem conteúdo. Neste sentido, toda a consciência é consciência de qualquer coisa.
“A essa necessidade, que tem a consciência de existir como consciência de outra coisa diferente
dela, chama Husserl ‘intencionalidade’.
24. SARTRE (1994:43)
25. BERTOLINO (1999)
26. BERTOLINO (1999)
27. Sobre As Relações Concretas com o Outro utilizamos as reflexões de Sartre no capítulo 3 da terceira
parte do Ser e o Nada (1997:451)
28. SARTRE (1994:65)
29. As Emoções aqui possuem o entendimento desenvolvido por SARTRE em Esboço de uma teoria das
emoções (1965)
30. SARTRE (1994:82)
Bibliografia