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um fisicalismo radicalizado, sendo o cérebro considerado superior em relação ao restante
do corpo.
Nikolas Rose (2011) compreende esse fenômeno como uma nova roupagem da
biopolítica de Foucault, nomeando-o por biopolítica molecular, ou neuropolítica. Essa
nova configuração teria transformado o entendimento do self: de um profundo espaço
interior, fonte de nossos mais íntimos desejos a serem desvendados, passa a ser
compreendido como um espaço mais raso, passível de manipulação. Assim, consoante
com o autor, nos tornamos sujeitos neuroquímicos “seres cuja individualidade é, ao
menos em parte, fundada dentro de nossa carne, na existência corporal, e que
experimentamos, articulamos, julgamos e agimos sobre nós mesmos em parte na
linguagem da biomedicina” (p. 20). Desse modo, as intervenções neuroquímicas
emergem com a promessa não apenas de tratar patologias, mas de aprimorar aspectos do
desempenho humano, já que o cérebro passa a ser considerado flexível e moldável.
Portanto, distintas neuroterapias (WOLPE, 2002) participam do cenário
contemporâneo biomédico, tais como psicofármacos, estimulação cerebral, implante de
microplaquetas do cérebro, estimulação magnética transcraniana, imagens cerebrais, etc.
Assim, há a formação de uma rede constituída por diversos atores - entre eles está a
indústria farmacêutica, laboratórios, pesquisadores, médicos, empresas publicitárias,
divulgação científica, mídia e sujeitos em busca de intervenções medicamentosas
(COHEN, 2001) - que se torna elemento chave para o surgimento desse “novo” indivíduo
que lança mão de “drogas de estilo de vida” (RACINE, et al, 2010) e de aprimoramento.
Entretanto, essa configuração suscita uma gama de debates éticos acerca de sua dinâmica,
demonstrando a preocupação com a definição dos contornos das intervenções
neuroterapêuticas e hormonais, já que seus desdobramentos a longo prazo não são
conhecidos.
Uma das discussões éticas fundamentais se situa em torno da distinção entre
tratamento e aprimoramento (WOLPE, 2002), pois envolve questões relativas a ideia de
transformação ou potencialização de determinadas características humanas, ou da
construção de diagnósticos para legitimar determinado tratamento. Peter Conrad, et all,
(2004) enfatiza que essa fronteira é fluida, e que é necessário nos perguntarmos se aquilo
que é considerado aprimoramento é uma prática desejável, quais seriam os limites e
consequências a médio e longo prazos.
Muitos medicamentos que são desenvolvidos para tratar determinadas doenças
são utilizados, segundo a bioética, para manter, restaurar ou aprimorar a forma e a saúde
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humanas, no último caso, para além do funcionamento normal (CONRAD, 2007). De
acordo com este prisma, tratamento e aprimoramento teriam fronteiras nítidas: de um lado
estaria a doença a ser tratada, e de outro o corpo e a performance a serem aprimorados.
Entretanto, como salienta Peter Conrad, et all, (2004), numa perspectiva sociológica as
definições do que são funcionamento normal, anormal, saúde e doença não são universais,
variando com o contexto cultural, social e histórico de determinada sociedade. Desse
modo, tampouco temos um consenso acerca da concepção de aprimoramento, ou mesmo
de substâncias ilícitas.
Assim, Conrad, et all, (2004) defende que o contexto das intervenções define não
apenas o que é aprimoramento, mas o que é intervenção aceitável ou ilícita. Como
ilustração, o autor utiliza um exemplo de David Frankford:
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aprimoramento do desempenho atlético. Assim, o contexto não apenas das intervenções,
mas também cultural e histórico determinariam o que é tratamento ou aprimoramento.
De acordo com Conrad (2007), a medicalização é entendida como condições e
comportamentos que passam a ser definidos como problemas médicos passíveis de
tratamento, que não eram anteriormente abarcados pela jurisdição médica. Desse modo,
Conrad (2007) aponta para o movimento de entrada e saída da jurisdição médica de
determinadas condições, de modo que aprimoramentos passam a ser considerados
tratamento terapêutico, respaldados por novos diagnósticos médicos.
Com efeito, a indústria farmacêutica é alimentada por uma parceria entre ciência
e comércio, que produz novas intervenções e cria, ou encontra, mercados para tais
tecnologias (Conrad, et all, 2004). Assim, a necessidade de diversas intervenções é
passível de ser problematizada. Alguns pesquisadores, portanto, demonstram este
processo de ampliação do mercado pela construção e reconstrução do diagnóstico, que
repercute na expansão do raio de alcance das intervenções medicamentosas, capturando,
desse modo, uma população cada vez mais abrangente (ORTEGA, 2010; ROHDEN 2011,
2016; FARO, 2017).
O metilfenidato, por exemplo, como demonstra Francisco Ortega (2010),
comercializado desde 1950, não possuía um diagnóstico específico para seu uso, sendo
prescrito para evitar a fadiga, especialmente de idosos. Entretanto, a prescrição da
substância passa a ser quase que restrita à categoria Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH), que surge e se expande a partir dos anos 70. Considerada uma
desordem infantil, torna as crianças alvo privilegiado de intervenções medicamentosas
com o metilfenidato. Apenas mais tarde foi considerado que o transtorno duraria a vida
inteira, de forma que adultos também se tornam alvo de tal prescrição contínua, bem como
passam a demandá-la para lograrem maior concentração e aprimoramento cognitivo.
Livi Faro, et all, (2017) apontam para a expansão da população de mulheres a ser
alvo de ensaios clínicos com adesivos de testosterona (Intrinsa), acarretando na ampliação
do mercado de hormônio para mulheres. Essa ampliação pressupôs transformações na
construção dos diagnósticos, passando a abranger não apenas a menopausa cirúrgica,
devido a retirada do útero e ovários, mas também a pré-menopausa e a menopausa
considerada natural, associando, desse modo, a intervenção hormonal ao combate dos
efeitos do envelhecimento e à promoção do “bem-estar”.
Fabíola Rohden (2011), em “’O homem é mesmo a sua testosterona’: promoção
da andropausa e representações sobre sexualidade e envelhecimento no cenário
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brasileiro”, aborda a recente construção do diagnóstico da andropausa, “doença” que
afetaria homens a partir dos 35-40 anos, ensejando um novo modelo de envelhecimento
masculino. Tal diagnóstico vem associado à necessidade de reposição hormonal que,
ainda que não existam dados concretos, contribuiria para o retardamento do
envelhecimento e para uma vida sexual ativa. Com essa pesquisa a autora argumenta
sobre a patologização de determinadas condições, vinculada, neste caso, à recusa do
envelhecimento, fase essa considerada parte do curso normal da vida.
De acordo com Marshall (2010) envelhecer, o que seria considerado normal,
torna-se um processo disfuncional que pode ser tratado, o que está em sintonia com um
crescente avanço da medicalização da sexualidade especialmente, expressa na expansão
do mercado de drogas para disfunção sexual feminina e masculina. Essa busca crescente
por aprimoramento em termos biomoleculares (ROSE, 2011) se traduz em distintas
substâncias, que em princípio são destinadas a tratar alguma disfunção ou doença, e
posteriormente tornam-se substâncias direcionadas ao combate do envelhecimento
(FARO, et all, 2017 ROHDEN, 2011; CONRAD, et all, 2004). O imperativo de tornar-
se sempre melhor, mediante biotecnologias, tem se espraiado vertiginosamente. Portanto,
envelhecer prejudicaria o intento de aprimoramento e funcionalidade crescentes.
Conforme Marshall (2010) defende, o modelo de concepção de saúde baseado no par
normal/anormal, que reconhecia o envelhecimento como um fenômeno normal, parte do
curso “natural” da vida, está em transição para o par funcional/disfuncional. Com efeito,
lutar para atingir a funcionalidade máxima se torna parte central de uma cultura
pressuposta pela linguagem biomédica, ainda que o envelhecimento, todavia não seja
considerado anormal.
Assim, segundo Wolpe (2002), o crescimento da medicalização, ou seja, de uma
nova norma cultural fundada na linguagem da biomedicina, suscita perguntas que
tencionam a concepção que temos de nós mesmos, tais como: devemos alterar nosso
consenso acerca do que é considerado funcionamento normal, ou típico, humano? Se
determinados sentimentos e funcionamentos do corpo considerados “naturais” ou
‘normais”, que são socialmente indesejáveis, podem ser alterados, eles serão, ou deverão
ser tornados patológicos? Se a tristeza e a disfunção erétil parte do envelhecimento, por
exemplo, podem ser evitadas ou postergas, se transformarão em doenças e, por
conseguinte, serão alvo de tratamento e não mais de aprimoramento? Acrescentaria: se o
sofrimento causado pelo amor pode ser evitado transformaremos o próprio amor em um
sentimento patológico?
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A bioquímica do amor
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http://www.ctsn.emory.edu/Publications/index.html
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E.g.: http://istoe.com.br/356120_O+AMOR+PODE+TER+CURA/
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emocional dos sentimentos, os quais levariam à terceira fase, a do vínculo. Os inibidores
da terceira fase, que seria de um vínculo mais duradouro, associada aos neuropeptídios,
ocitocina e vasopressina, e à dopamina, estão em fase de experimentos, como é o caso
das pesquisas de Larry Young, que, entre outras, busca interromper a produção de
ocitocina nas ratazanas, tornando-as, de acordo com o experimento, polígamas, induzindo
assim a interrupção do vínculo afetivo.
Como vimos é comum, em casos de aprimoramento, o surgimento de novos
diagnósticos que alargam o alcance do uso de medicamentos que são desenvolvidos
inicialmente para o que seria considerado uma doença. Não à toa tais substâncias citadas
acima poderiam ser prescritas por conta de seus efeitos colaterais para a tentativa de
interrupção de um relacionamento sexo-afetivo considerado problemático. Entretanto, as
definições - entre o que seria considerado um relacionamento que merece ser mantido,
desejado socialmente, e, portanto, aprimorado, e outro que indesejável socialmente, que
deve ser interrompido - são frágeis, já que o amor em termos neurocientíficos é
considerado um vício natural e universal, que nos atira para “fora” da normalidade.
De acordo com Helen Fisher (2004) - antropóloga norte-americana, também
formada em psicologia e física, e pesquisadora do comportamento humano da Rutgers
University – o amor é um “vício natural”. A pesquisadora, em 1996, conduziu um estudo
com neuroimagens (imagem por ressonância magnética funcional - IMRf) para
compreender a experiência de se estar apaixonado. Em sua pesquisa, contou com
neurólogos, radiólogos e psicólogos, para mapear a atividade cerebral de centenas de
pessoas que viviam um relacionamento apaixonado, quanto com pessoas não
correspondidas por seu objeto de desejo. Os pesquisadores encontraram similaridades
entre a descarga do amor e a da cocaína, por exemplo, já que as duas ativariam o sistema
de produção de dopamina, que é responsável pelas respostas às dependências em geral,
como o jogo e as drogas. Portanto, as substâncias utilizadas para o tratamento de
dependências amenizariam a dependência amorosa.
Helen Fisher (2004) declara que buscou com a pesquisa não apenas compreender
os mecanismos cerebrais do que é chamado por amor, mas também encontrar maneiras
de controlar este sentimento. Quando o sentimento não é correspondido, a pesquisadora
fala da eficácia de distintas técnicas, corporais, acompanhamentos terapêuticos e
psicofármacos para amenizar o sofrimento causado pela fixação no objeto do desejo.
Características como “atenção concentrada”, semelhante à compulsão e obsessão,
“pensamento intrusivo”; “mudanças de humor: do êxtase ao desespero”; “mudanças de
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prioridades”; “dependência emocional” e “intensificação da paixão mediante a
adversidade”, são aspectos comuns do amor, ressaltados pela pesquisadora.
Uma outra abordagem do amor, encabeçada por categorias médicas como amor
patológico (SOPHIA, et all, 2007) e love-adiction (SIMON, 1982; TIMMRECK, 1990),
que pressupõe a possibilidade da existência de um amor saudável, compreende
determinados comportamentos vinculados ao parceiro sexo-afetivo como patológicos. Os
comportamentos considerados patológicos se circunscreveriam, grosso modo, à
dedicação “repetitiva” ao parceiro em detrimento de outros interesses anteriores à relação
(SOPHIA, et all, 2007). Essa acepção traz exatamente as definições de Fisher (2004) do
que seria o amor humano.
Desse modo, apreende-se a existência de duas abordagens que concebem
expressões distintas do “amor”: de um lado uma abordagem que considera a existência
saudável do amor em contraposição ao love addiction ou amor patológico, que seriam
formas de dependência que apenas alguns indivíduos sofreriam, e de outro lado consta a
ideia de que todos os indivíduos são dependentes em potencial do amor. Tal dissenso é
resolvido por bioéticos da Universidade de Oxford (EARP, et all, 2017) que defendem,
independentemente da abordagem, a utilização de psicofármacos (que inibiriam a
circulação da ocitocina no cérebro, por exemplo) em casos em que o bem-estar esteja
ameaçado. Assim, é possível vislumbrar um alargamento da possibilidade de
medicalização do amor, já que, em última instância, qualquer indivíduo apaixonado
poderia recorrer a substâncias neuroquímicas para interromper sua condição.
Considerações finais
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Como vimos o envelhecimento e a baixa estatura, por exemplo, tornam-se
condições passíveis de intervenções químicas. De acordo com Conrad (2004, 2007) a
baixa estatura é uma condição que está em desacordo com os padrões culturais de beleza,
assim como o envelhecimento passa a ser considerado uma fase da vida estigmatizada
por conta dos altos padrões de funcionalidade, em que a beleza e a juventude são normas
a serem perseguidas (MARSHALL, 2010; ROHDEN, 2011; FARO, et all, 2017). Do
mesmo modo, amor, não por acaso, torna-se um problema médico que deve ser
controlado. Assim, vemos valores sociais transformando fases e condições que eram
consideradas fases e experiências da vida em problemas que devem sofrer intervenção
médica (CONRAD, 2007).
Referências bibliográficas
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