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Medicalização do amor: tratamentos e aprimoramentos de condições e fases da vida

Por Mercedes Duarte e Silva

Vivemos desenvolvimentos tecnológicos sem precedentes. O estudo do cérebro e


suas intervenções químicas mediante biotecnologias estão em crescente avanço nas
últimas décadas. Ainda que o estudo do cérebro e, sobretudo, as tentativas de manipulação
dos comportamentos e sentimentos façam parte de nossas práticas ao longo dos tempos,
determinadas tecnologias, tais como a neuroimagem e técnicas de biologia molecular,
contribuem para a elevação do cérebro a um patamar de autonomia e deslocamento do
restante do corpo e para uma possível transformação na compreensão das subjetividades
e em como entendemos a constituição mesma do que vem a ser humano (EHRENBERG,
2009; ORTEGA, 2007).
Ao lado da promoção do cérebro a órgão central do comportamento humano,
emergem substâncias neuroquímicas para intervirem no funcionamento cerebral e
consequentemente no funcionamento do corpo e do comportamento humano. Condições
e fases da vida que outrora eram consideradas “normais”, tais como a estatura do
indivíduo, o envelhecimento e o amor, que será abordado aqui, são passíveis de serem
consideradas disfuncionais e, portanto, intervindas quimicamente (CONRAD, et all,
2004; ROHDEN, 2016).
Alain Ehrenberg, em O sujeito cerebral (2009), aponta para este fenômeno social
como resultado da expansão da neurologia, e, por conseguinte da consolidação das
neurociências. Essas disciplinas que dão centralidade ao estudo do cérebro passam a
tomar como objetos de laboratórios as emoções, comportamentos sociais e sentimentos
morais, de modo a serem compreendidos como um complexo de sistemas neurais. O
cérebro então é promovido a uma espécie de ator social, já que estaria na base do
comportamento humano. Essa compreensão naturalista sai dos laboratórios e entranha o
tecido social, por meio de divulgação científica e comunicação jornalística e publicitária,
transformando assim o entendimento acerca das emoções e comportamentos.
Rogério Azize (2010), em sua pesquisa intitulada “A nova ordem cerebral: a
concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica”, busca compreender a difusão das
neurociências e a visibilidade que o cérebro toma para além das discussões acadêmicas.
Azize aponta que qualquer experiência, física ou moral, ganha uma explicação baseada
no cérebro. O cérebro então ganharia uma status explicativo para as sensações e
experiências cotidianas. O autor se refere a esse fenômeno por “cerebralismo”, que seria

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um fisicalismo radicalizado, sendo o cérebro considerado superior em relação ao restante
do corpo.
Nikolas Rose (2011) compreende esse fenômeno como uma nova roupagem da
biopolítica de Foucault, nomeando-o por biopolítica molecular, ou neuropolítica. Essa
nova configuração teria transformado o entendimento do self: de um profundo espaço
interior, fonte de nossos mais íntimos desejos a serem desvendados, passa a ser
compreendido como um espaço mais raso, passível de manipulação. Assim, consoante
com o autor, nos tornamos sujeitos neuroquímicos “seres cuja individualidade é, ao
menos em parte, fundada dentro de nossa carne, na existência corporal, e que
experimentamos, articulamos, julgamos e agimos sobre nós mesmos em parte na
linguagem da biomedicina” (p. 20). Desse modo, as intervenções neuroquímicas
emergem com a promessa não apenas de tratar patologias, mas de aprimorar aspectos do
desempenho humano, já que o cérebro passa a ser considerado flexível e moldável.
Portanto, distintas neuroterapias (WOLPE, 2002) participam do cenário
contemporâneo biomédico, tais como psicofármacos, estimulação cerebral, implante de
microplaquetas do cérebro, estimulação magnética transcraniana, imagens cerebrais, etc.
Assim, há a formação de uma rede constituída por diversos atores - entre eles está a
indústria farmacêutica, laboratórios, pesquisadores, médicos, empresas publicitárias,
divulgação científica, mídia e sujeitos em busca de intervenções medicamentosas
(COHEN, 2001) - que se torna elemento chave para o surgimento desse “novo” indivíduo
que lança mão de “drogas de estilo de vida” (RACINE, et al, 2010) e de aprimoramento.
Entretanto, essa configuração suscita uma gama de debates éticos acerca de sua dinâmica,
demonstrando a preocupação com a definição dos contornos das intervenções
neuroterapêuticas e hormonais, já que seus desdobramentos a longo prazo não são
conhecidos.
Uma das discussões éticas fundamentais se situa em torno da distinção entre
tratamento e aprimoramento (WOLPE, 2002), pois envolve questões relativas a ideia de
transformação ou potencialização de determinadas características humanas, ou da
construção de diagnósticos para legitimar determinado tratamento. Peter Conrad, et all,
(2004) enfatiza que essa fronteira é fluida, e que é necessário nos perguntarmos se aquilo
que é considerado aprimoramento é uma prática desejável, quais seriam os limites e
consequências a médio e longo prazos.
Muitos medicamentos que são desenvolvidos para tratar determinadas doenças
são utilizados, segundo a bioética, para manter, restaurar ou aprimorar a forma e a saúde

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humanas, no último caso, para além do funcionamento normal (CONRAD, 2007). De
acordo com este prisma, tratamento e aprimoramento teriam fronteiras nítidas: de um lado
estaria a doença a ser tratada, e de outro o corpo e a performance a serem aprimorados.
Entretanto, como salienta Peter Conrad, et all, (2004), numa perspectiva sociológica as
definições do que são funcionamento normal, anormal, saúde e doença não são universais,
variando com o contexto cultural, social e histórico de determinada sociedade. Desse
modo, tampouco temos um consenso acerca da concepção de aprimoramento, ou mesmo
de substâncias ilícitas.
Assim, Conrad, et all, (2004) defende que o contexto das intervenções define não
apenas o que é aprimoramento, mas o que é intervenção aceitável ou ilícita. Como
ilustração, o autor utiliza um exemplo de David Frankford:

physicians may be obliged to prescribe Cognex for memory loss from


Alzheimer’s Disease, while they merely tolerated or even precluded from
prescribing it to improve a child’s college admissions test scores. International
chess players, on the other hand, might be banned from using Cognex to
strengthen their match play. In the first instance, Cognex intervention could be
deemed a necessary medical treatment, in the second, a permitted means of
betterment, while in the third it would be deemed an illegitimate performance
enhancement (2004, p.185).

Um outro exemplo, este acionado por Wolpe (2002), é o questionamento de


bioéticos sobre o uso do hormônio HGH somente em crianças com deficiência na
produção de hormônio do crescimento, deficiência essa considerada uma doença e,
portanto, um problema médico. Por que não abranger o uso do hormônio também para
crianças com baixa estatura idiopática, já que ambas, crianças baixas e crianças com
deficiência na produção do hormônio do crescimento, sofrem da mesma condição
biológica que seria a baixa estatura? Dessa forma, configura-se o borramento da fronteira
entre aprimoramento e tratamento. Por outro lado, pode-se apresentar tais questões:
intervir na baixa estatura idiopática não estaríamos tornando um problema social em um
problema médico, nos termos de Conrad, et all, (2004), já que é uma condição
desvalorizada socialmente?
Conrad, et all, (2004) detecta no hormônio do crescimento (HGH) um bom
exemplo de intervenção para refletir acerca dos distintos contextos e, portanto, usos feitos
com uma mesma intervenção. O HGH emerge inicialmente como reparador à deficiência
da produção do hormônio de crescimento, considerado um problema médico, e
posteriormente aparece tanto como um aprimoramento em potencial da baixa estatura
idiopática, como um agente antienvelhecimento, bem como um instrumento de

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aprimoramento do desempenho atlético. Assim, o contexto não apenas das intervenções,
mas também cultural e histórico determinariam o que é tratamento ou aprimoramento.
De acordo com Conrad (2007), a medicalização é entendida como condições e
comportamentos que passam a ser definidos como problemas médicos passíveis de
tratamento, que não eram anteriormente abarcados pela jurisdição médica. Desse modo,
Conrad (2007) aponta para o movimento de entrada e saída da jurisdição médica de
determinadas condições, de modo que aprimoramentos passam a ser considerados
tratamento terapêutico, respaldados por novos diagnósticos médicos.
Com efeito, a indústria farmacêutica é alimentada por uma parceria entre ciência
e comércio, que produz novas intervenções e cria, ou encontra, mercados para tais
tecnologias (Conrad, et all, 2004). Assim, a necessidade de diversas intervenções é
passível de ser problematizada. Alguns pesquisadores, portanto, demonstram este
processo de ampliação do mercado pela construção e reconstrução do diagnóstico, que
repercute na expansão do raio de alcance das intervenções medicamentosas, capturando,
desse modo, uma população cada vez mais abrangente (ORTEGA, 2010; ROHDEN 2011,
2016; FARO, 2017).
O metilfenidato, por exemplo, como demonstra Francisco Ortega (2010),
comercializado desde 1950, não possuía um diagnóstico específico para seu uso, sendo
prescrito para evitar a fadiga, especialmente de idosos. Entretanto, a prescrição da
substância passa a ser quase que restrita à categoria Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH), que surge e se expande a partir dos anos 70. Considerada uma
desordem infantil, torna as crianças alvo privilegiado de intervenções medicamentosas
com o metilfenidato. Apenas mais tarde foi considerado que o transtorno duraria a vida
inteira, de forma que adultos também se tornam alvo de tal prescrição contínua, bem como
passam a demandá-la para lograrem maior concentração e aprimoramento cognitivo.
Livi Faro, et all, (2017) apontam para a expansão da população de mulheres a ser
alvo de ensaios clínicos com adesivos de testosterona (Intrinsa), acarretando na ampliação
do mercado de hormônio para mulheres. Essa ampliação pressupôs transformações na
construção dos diagnósticos, passando a abranger não apenas a menopausa cirúrgica,
devido a retirada do útero e ovários, mas também a pré-menopausa e a menopausa
considerada natural, associando, desse modo, a intervenção hormonal ao combate dos
efeitos do envelhecimento e à promoção do “bem-estar”.
Fabíola Rohden (2011), em “’O homem é mesmo a sua testosterona’: promoção
da andropausa e representações sobre sexualidade e envelhecimento no cenário

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brasileiro”, aborda a recente construção do diagnóstico da andropausa, “doença” que
afetaria homens a partir dos 35-40 anos, ensejando um novo modelo de envelhecimento
masculino. Tal diagnóstico vem associado à necessidade de reposição hormonal que,
ainda que não existam dados concretos, contribuiria para o retardamento do
envelhecimento e para uma vida sexual ativa. Com essa pesquisa a autora argumenta
sobre a patologização de determinadas condições, vinculada, neste caso, à recusa do
envelhecimento, fase essa considerada parte do curso normal da vida.
De acordo com Marshall (2010) envelhecer, o que seria considerado normal,
torna-se um processo disfuncional que pode ser tratado, o que está em sintonia com um
crescente avanço da medicalização da sexualidade especialmente, expressa na expansão
do mercado de drogas para disfunção sexual feminina e masculina. Essa busca crescente
por aprimoramento em termos biomoleculares (ROSE, 2011) se traduz em distintas
substâncias, que em princípio são destinadas a tratar alguma disfunção ou doença, e
posteriormente tornam-se substâncias direcionadas ao combate do envelhecimento
(FARO, et all, 2017 ROHDEN, 2011; CONRAD, et all, 2004). O imperativo de tornar-
se sempre melhor, mediante biotecnologias, tem se espraiado vertiginosamente. Portanto,
envelhecer prejudicaria o intento de aprimoramento e funcionalidade crescentes.
Conforme Marshall (2010) defende, o modelo de concepção de saúde baseado no par
normal/anormal, que reconhecia o envelhecimento como um fenômeno normal, parte do
curso “natural” da vida, está em transição para o par funcional/disfuncional. Com efeito,
lutar para atingir a funcionalidade máxima se torna parte central de uma cultura
pressuposta pela linguagem biomédica, ainda que o envelhecimento, todavia não seja
considerado anormal.
Assim, segundo Wolpe (2002), o crescimento da medicalização, ou seja, de uma
nova norma cultural fundada na linguagem da biomedicina, suscita perguntas que
tencionam a concepção que temos de nós mesmos, tais como: devemos alterar nosso
consenso acerca do que é considerado funcionamento normal, ou típico, humano? Se
determinados sentimentos e funcionamentos do corpo considerados “naturais” ou
‘normais”, que são socialmente indesejáveis, podem ser alterados, eles serão, ou deverão
ser tornados patológicos? Se a tristeza e a disfunção erétil parte do envelhecimento, por
exemplo, podem ser evitadas ou postergas, se transformarão em doenças e, por
conseguinte, serão alvo de tratamento e não mais de aprimoramento? Acrescentaria: se o
sofrimento causado pelo amor pode ser evitado transformaremos o próprio amor em um
sentimento patológico?

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A bioquímica do amor

O entendimento do funcionamento humano na linguagem da biomedicina avança


a passos largos, passando a abarcar cada vez mais nossos comportamentos e sentimentos.
O amor, ou seja, os sentimentos e comportamentos associados às relações sexo-afetivas,
estão sendo estudados em laboratórios por cientistas que compõem as neurociências. O
intuito é de compreender o funcionamento desse sentimento e transformá-lo em objeto de
intervenção. Larry Young, neurocientista norte-americano, diretor da Divisão de
Neurociência Comportamental do Centro de Pesquisa Yerkes, da Emory University
(EUA), divulgou, através de artigos1 e entrevistas2, os principais resultados da pesquisa,
em que buscou intervir na dinâmica do vínculo e copulação de ratazanas mediante
manipulação de seus sistemas cerebrais, de modo a lograrem alterar a intensidade do
vínculo entre os animais. Ainda que não tenha sido comprovado, de forma conclusiva,
que o sistema hormonal das ratazanas seja equiparável ao dos humanos, no que diz
respeito ao apego (attachment), acreditam que a seleção natural teria “conservado” o
mesmo sistema bioquímico, o que possibilitaria, da mesma maneira, o aumento ou
diminuição do vínculo sexo afetivo entre humanos (EARP, et al, 2013).
Estudiosos sobre a dinâmica bioquímica do amor e seus desdobramentos (INOUE,
BURKETT, YOUNG, 2013; FISHER, 1993, 2004; EARP, 2012, 2013, 2015),
convergem com a compreensão de que o amor possui três fases, a saber: desejo sexual,
atração e apego (formação do vínculo afetivo associada à “fidelidade”). De acordo com
Brian Earp (2013), bioeticista da Universidade de Oxford, para cada fase já existem
biotecnologias para sua interrupção. As duas primeiras fases (desejo de gratificação
sexual e atração) são associadas aos hormônios estrogênio e testosterona e correspondem
à atenção fixada ao objeto da “paixão” (podendo ocorrer pensamentos obsessivos).
Nessas fases os antidepressivos inibidores de serotonina; naltrexona, para o tratamento
de alcoolismo ou dependência de opióides; bupropiona, para compulsão alimentar; anti-
hipertensivos, para pressão arterial; estatinas, para controle do nível de colesterol e
antiácidos, para gastrite, seriam recomendados para interromper as duas primeiras “fases
do amor” por conta de seus efeitos colaterais de redução da libido. Os antidepressivos
também reduziriam os pensamentos obsessivos e induziriam a um embotamento

1
http://www.ctsn.emory.edu/Publications/index.html
2
E.g.: http://istoe.com.br/356120_O+AMOR+PODE+TER+CURA/

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emocional dos sentimentos, os quais levariam à terceira fase, a do vínculo. Os inibidores
da terceira fase, que seria de um vínculo mais duradouro, associada aos neuropeptídios,
ocitocina e vasopressina, e à dopamina, estão em fase de experimentos, como é o caso
das pesquisas de Larry Young, que, entre outras, busca interromper a produção de
ocitocina nas ratazanas, tornando-as, de acordo com o experimento, polígamas, induzindo
assim a interrupção do vínculo afetivo.
Como vimos é comum, em casos de aprimoramento, o surgimento de novos
diagnósticos que alargam o alcance do uso de medicamentos que são desenvolvidos
inicialmente para o que seria considerado uma doença. Não à toa tais substâncias citadas
acima poderiam ser prescritas por conta de seus efeitos colaterais para a tentativa de
interrupção de um relacionamento sexo-afetivo considerado problemático. Entretanto, as
definições - entre o que seria considerado um relacionamento que merece ser mantido,
desejado socialmente, e, portanto, aprimorado, e outro que indesejável socialmente, que
deve ser interrompido - são frágeis, já que o amor em termos neurocientíficos é
considerado um vício natural e universal, que nos atira para “fora” da normalidade.
De acordo com Helen Fisher (2004) - antropóloga norte-americana, também
formada em psicologia e física, e pesquisadora do comportamento humano da Rutgers
University – o amor é um “vício natural”. A pesquisadora, em 1996, conduziu um estudo
com neuroimagens (imagem por ressonância magnética funcional - IMRf) para
compreender a experiência de se estar apaixonado. Em sua pesquisa, contou com
neurólogos, radiólogos e psicólogos, para mapear a atividade cerebral de centenas de
pessoas que viviam um relacionamento apaixonado, quanto com pessoas não
correspondidas por seu objeto de desejo. Os pesquisadores encontraram similaridades
entre a descarga do amor e a da cocaína, por exemplo, já que as duas ativariam o sistema
de produção de dopamina, que é responsável pelas respostas às dependências em geral,
como o jogo e as drogas. Portanto, as substâncias utilizadas para o tratamento de
dependências amenizariam a dependência amorosa.
Helen Fisher (2004) declara que buscou com a pesquisa não apenas compreender
os mecanismos cerebrais do que é chamado por amor, mas também encontrar maneiras
de controlar este sentimento. Quando o sentimento não é correspondido, a pesquisadora
fala da eficácia de distintas técnicas, corporais, acompanhamentos terapêuticos e
psicofármacos para amenizar o sofrimento causado pela fixação no objeto do desejo.
Características como “atenção concentrada”, semelhante à compulsão e obsessão,
“pensamento intrusivo”; “mudanças de humor: do êxtase ao desespero”; “mudanças de

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prioridades”; “dependência emocional” e “intensificação da paixão mediante a
adversidade”, são aspectos comuns do amor, ressaltados pela pesquisadora.
Uma outra abordagem do amor, encabeçada por categorias médicas como amor
patológico (SOPHIA, et all, 2007) e love-adiction (SIMON, 1982; TIMMRECK, 1990),
que pressupõe a possibilidade da existência de um amor saudável, compreende
determinados comportamentos vinculados ao parceiro sexo-afetivo como patológicos. Os
comportamentos considerados patológicos se circunscreveriam, grosso modo, à
dedicação “repetitiva” ao parceiro em detrimento de outros interesses anteriores à relação
(SOPHIA, et all, 2007). Essa acepção traz exatamente as definições de Fisher (2004) do
que seria o amor humano.
Desse modo, apreende-se a existência de duas abordagens que concebem
expressões distintas do “amor”: de um lado uma abordagem que considera a existência
saudável do amor em contraposição ao love addiction ou amor patológico, que seriam
formas de dependência que apenas alguns indivíduos sofreriam, e de outro lado consta a
ideia de que todos os indivíduos são dependentes em potencial do amor. Tal dissenso é
resolvido por bioéticos da Universidade de Oxford (EARP, et all, 2017) que defendem,
independentemente da abordagem, a utilização de psicofármacos (que inibiriam a
circulação da ocitocina no cérebro, por exemplo) em casos em que o bem-estar esteja
ameaçado. Assim, é possível vislumbrar um alargamento da possibilidade de
medicalização do amor, já que, em última instância, qualquer indivíduo apaixonado
poderia recorrer a substâncias neuroquímicas para interromper sua condição.

Considerações finais

O que parece ser importante pontuar aqui é a intolerância ao sofrimento ou a


indivíduos que não estejam em plena funcionalidade. O amor, como ressaltado por Fisher
(2004) pode causar alteração de humor, pensamentos intrusivos, etc., o que poderia
comprometer o desempenho de um indivíduo em suas tarefas cotidianas. Questões como,
para qual tipo de sofrimento devemos legitimar sua interrupção química?; qual sofrimento
deve ser considerado patológico?; o sofrimento pode, ou deve, deixar de ser considerado
parte da existência humana?; é possível então, ou desejável, evitar toda sorte de
sofrimento?, são centrais face ao crescimento vertiginoso de aprimoramentos mediante
psicofármacos.

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Como vimos o envelhecimento e a baixa estatura, por exemplo, tornam-se
condições passíveis de intervenções químicas. De acordo com Conrad (2004, 2007) a
baixa estatura é uma condição que está em desacordo com os padrões culturais de beleza,
assim como o envelhecimento passa a ser considerado uma fase da vida estigmatizada
por conta dos altos padrões de funcionalidade, em que a beleza e a juventude são normas
a serem perseguidas (MARSHALL, 2010; ROHDEN, 2011; FARO, et all, 2017). Do
mesmo modo, amor, não por acaso, torna-se um problema médico que deve ser
controlado. Assim, vemos valores sociais transformando fases e condições que eram
consideradas fases e experiências da vida em problemas que devem sofrer intervenção
médica (CONRAD, 2007).

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