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Psiquiatrização infantil – Saúde Coletiva

Por Mercedes Duarte e Silva

Palavras-chave: psiquiatrização infantil; psiquiatrização feminina; medicalização.

Esse trabalho pretende abordar a relação entre psiquiatrização infantil e a


psiquiatrização feminina contemporânea. Será apresentado resumidamente as
transformações ocorridas no modo de tratamento e compreensão do lugar da criança e o
movimento da medicina e psiquiatria em direção à apreensão da criança como lócus
privilegiado de exame e controle. Por outro lado, será abordada a psiquiatrização feminina
contemporânea vinculada à nova categoria psiquiátrica emergente: “amor patológico”.
Compreende-se aqui que ambas formas de psiquiatrização estão inter-relacionadas, dado
o vínculo de ambas ao núcleo central de suas justificações: a família.
Tanto a psiquiatrização infantil quanto a psiquiatrização feminina estão inseridas
no que Peter Conrad (2007) chamou de “medicalização”. A medicalização trata-se da
expansão da medicina à âmbitos que não eram considerados de escrutínio médico. Dessa
maneira, determinados comportamentos são tornados problemas médicos, incorporados
examinados e tratados pela medicina. Tais comportamentos, incorporados pela medicina
como problema médico, podem ser considerados desviantes das normas sociais. De
acordo com Conrad e Schneider (1992) a definição do que pode ser considerado desvio é
contextual, pois está sujeito às normas e regras de cada sociedade localizadas no tempo e
espaço. Portanto, a consideração de determinado comportamento como sendo desviante
não é fixa, a-histórica ou universal. Ela depende das relações de poder no interior de dada
sociedade.

Psiquiatrização Infantil

Na contemporaneidade a infância é compreendida como lugar fértil para o


desenvolvimento de síndromes e transtornos, por conta da considerada vulnerabilidade
de seus indivíduos, o que a torna propensa a ser medicalizada, como pode ser demostrado
pelo vertiginoso crescimento do número de crianças que são diagnosticadas com Déficit
de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e que, portanto, fazem uso de metilfenidato
(estimulante vinculado ao tratamento do transtorno) (CONRAD e SCHNEIDER, 1992).
No entanto, nem sempre a criança foi considerada frágil, inocente e carente de
cuidados permanentes. A infância, tal como a concebemos, é um subproduto do
Iluminismo que se desenvolve ao longo de dois ou três séculos (CONRAD e
SCHNEIDER, 1999). Até o século XIX, a família compreendia as crianças como sendo
pequenos adultos, que, portanto, não necessitavam de atenção especial. Entretanto, a
criança não era considerada como um igual pelos adultos, possuía então uma espécie de
segunda natureza, uma “natureza imprecisa, expectante, que se mantinha em estado larvar
até a puberdade” (COSTA, 1999, p.162). Assim, o infanticídio e o abandono foram
prevalentes, bem como as punições severas eram a base da disciplina infantil, passando a
ser considerados problema médico somente a partir de finais do século XIX (CONRAD
e SCHNEIDER, 1992).
Jurandir Freire Costa (1999) faz uma análise acerca dessas transformações tendo
o Brasil como lócus. Toma então a transição entre período colonial e a urbanização como
material de análise. Entretanto, as transformações em curso entre o Brasil colonial e pós-
colonial estavam alinhadas, evidentemente, com as transformações nas sociedades
colonizadoras. Assim, de acordo com o autor, a transformação acerca da imagem da
criança se dá, em parte, com a atuação dos higienistas que, afinados com os interesses da
nação na produção de indivíduos urbanos, saudáveis e produtivos, buscaram inicialmente
combater a alta mortalidade infantil da época.
Dessa maneira, a família colonial, organizada em torno do patriarca que
concentrava poder e propriedades (que incluía mulher, filhos e escravos), torna-se alvo
da intervenção estatal e higienista. A abolição da lei do morgadio (1835), por exemplo,
que garantia ao primogênito a acumulação de todos os privilégios do pai, contribuiu para
o enfraquecimento do modelo da família colonial, de modo a descentralizar o poder do
patriarca.
Os higienistas perceberam que todo o sistema familiar herdado da Colônia
tinha sido montado para satisfazer as exigências da propriedade e as
necessidades dos adultos. Às crianças, tratadas como apêndices desse sistema,
restavam as sobras do banquete. Foi contra esta situação que eles se bateram,
vendo claramente que o inimigo principal era o pai, pivô e fulcro de toda a
organização familiar (COSTA, 1999, p. 169).

A descentralização do poder do patriarca contribui então para uma organização


familiar menos hierárquica, que ao lado da pedagogização higienista das famílias leva à
mãe a ser impelida ao papel de educadora (COSTA, 1999). Assim, a conduta materna -
que era objeto de crítica dos higienistas por conta da “terceirização” aos escravos dos
cuidados e amamentação da prole – passa a ser reformulada pelos higienistas. Desse
modo, a família, em processo de transformação, passa a ser idealizada e a sofrer
intervenções higienistas.
As transformações em curso possuíam dois movimentos num mesmo sentido: por
um lado, as intervenções higiênicas ditavam uma nova configuração familiar, em que o
pai, não mais seria proprietário de seus filhos, mas, assim como a mãe, se tornaria tutor
de indivíduos que serviriam à pátria; por outro, pelo fato da família até então ser vista,
pelos higienistas, como prejudiciais ao desenvolvimento de indivíduos que servissem ao
novo sistema econômico e político, os colégios e internatos ganham importância sem
precedência. É no colégio onde os futuros adultos, e filhos da nação, seriam disciplinados.
Não com castigos físicos, que se tornam impróprios, mas com a inculcação de bons
hábitos, que passam a ser implantados em “corpos tenros”, cujos efeitos seriam mais
duradouros (COSTA, 1999).
Assim, o interesse na criança se vinculava à busca pela produção de adultos
adequados às ordens médica, política e econômica, tornando instrumentos de poder, não
mais em favor da propriedade, mas a serviço do Estado (COSTA, 1999, p. 175).
Existindo, desse modo, um enfraquecimento da autoridade familiar sobre a criança
(CONRAD e SCHNEIDER, 1992).
Esses processos, portanto, são parte da construção da infância, tal como a
compreendemos hoje, a qual leva a uma diferenciação, entre crianças e adultos, referente
a um ciclo determinado da vida. Com efeito, as crianças tornam-se uma classe distinta,
com características, direitos e obrigações específicas, que passam a ser compreendidas
como seres frágeis, inocentes, dependentes e não responsáveis completamente por suas
ações. Portanto, a família torna-se responsável por prover à criança cuidados especiais,
proteção e orientação, e caso não cumpra com suas responsabilidades, é o Estado que
deve garantir tais cuidados e controle (CONRAD e SCHNEIDER, 1992).
Desse modo, o enfraquecimento do controle familiar sobre a criança, aliado à
definição da população como inocente, dependente e não responsável, torna a criança um
grupo de risco da medicalização (CONRAD e SCHNEIDER, 1992). Por outro lado, o
fato de a higienização ter adentrado as instituições escolares abre caminho para
comportamentos considerados desviantes serem encaminhados a instituições médicas
(BRZOZOWSKI e CAPONI, 2007). Assim, comportamentos que não se enquadram às
normas e regras sociais, que não seriam desejados na vida escolar, por exemplo, por
poderem comprometer os processos de aprendizados, possuidores de um determinado
modelo, são passíveis de serem medicalizados (BRZOZOWSKI e CAPONI, 2007).
Como é o caso dos crescentes diagnósticos de TDAH em crianças e seu tratamento com
psicofármacos, que buscam controlar o comportamento infantil.
Com efeito, é possível relacionar a intervenção médica na vida familiar – que torna
a compreensão do “abuso infantil” como um problema médico - com a emergência de
drogas e classificações de desvios, como maneiras de controle social. O que aponta para
a expansão do âmbito médico e de sua intervenção na vida familiar e nos indivíduos em
geral. Desse modo, Conrad e Schneider (1992) apreendem uma relação possível entre o
desenvolvimento de novos mecanismos médicos de controle social, como o metilfenidato
- que precede em vinte anos a categoria que lhe servirá de tratamento (hiperatividade) - e
a emergência posterior de novas categorias de desvio:
the discovery of hiperkinesis brings up most clearly the question of whether
the development of new medical mechanisms of social control (stimulant
drugs) leads to the emergence of new categories or designation of deviance and
the expansion of medical jurisdiction. From the example of hiperkinesis, and
to a less-er extent methadone, as discussed in Chapter 5, the answer appears to
be a tentative “yes” (CONRAD e SCHNEIDER, 1992, p. 161).

De acordo com Brzozowski e Caponi (2007) problemas sociais são tomados como
individuais. Assim, problemas que deveriam ser resolvidos em âmbito social, abrem
caminho para a medicalização dos indivíduos que são cerceados de acordo com as normas
sociais.

A psiquiatrização feminina contemporânea

Nesse processo contínuo de medicalização da vida, as mulheres estão ganhando


uma categoria psiquiátrica que mapeia e reorienta determinados comportamentos. O
“amor patológico” é uma categoria em emergência nos campos psi brasileiros.1
Entretanto, sua construção enquanto transtorno psiquiátrico se baseia em artigos
científicos, especialmente norte-americanos, que buscam legitimar categorias, como
lovesickness ou love-adiction, como diagnósticos válidos para a intervenção médica.
Paralelamente existem pesquisas acerca de psicofármacos anti e pro-amor que estão em

1
Psiquiatras e psicólogos que integram o “Ambulatório de Atendimento ao Amor e Ciúme Patológicos”,
da Faculdade de Medicina da USP produziram artigos que buscam legitimar a categoria amor patológico
enquanto um transtorno do impulso.
fase de experimentos laboratoriais (EARP, et al., 2013). Neuroéticos2 apostam no uso
futuro desses psicofármacos para a manutenção de relacionamentos desgastados ou
interrupção de relacionamentos prejudiciais.
O amor patológico é considerado um transtorno do impulso, sendo definido “pela
atenção e cuidado excessivos com o parceiro, sem controle e sem liberdade de escolha,
no qual o indivíduo é objeto prioritário na vida da outra pessoa, em detrimento de
interesses em outras atividades antes valorizadas”.3 Desse modo, o amor patológico é
considerado especialmente feminino, já que, segundo os especialistas em amor
patológico, as mulheres considerariam a relação amorosa como prioritária em suas vidas.
Em contraste, o homem teria maior tendência a desenvolver transtornos, compulsões,
relativos a atividades impessoais e externas, como jogo, trabalho, esporte, drogas ou
hobbies.
Assim, o que está aqui a ser considerado comportamento desviante, são papéis
sociais de gênero radicalizados. A concepção de transtorno, de desvio da norma, não se
dá pela reprodução desses papéis, mas sim pelo o que seria considerado excessivo.
Portanto, o objeto de intervenção são comportamentos que devem ser mensurados,
equalizados, controlados e enquadrados em uma medida considerada adequada.
Os cuidados na infância, então, são considerados, pelos especialistas em amor
patológico, fundamentais para o desenvolvimento ou não de tais comportamentos
inadequados na fase adulta:
Receber cuidado e afeto durante a infância é fundamental para que as crianças
se desenvolvam com segurança e proteção, necessárias para o desempenho
satisfatório das atividades e das relações futuras, na adolescência e na vida
adulta. (SOPHIA, et al., 2007, p.57)

Com efeito, famílias ou lares considerados “desajustados” seriam extremamente


nocivos ao futuro adulto. A definição de “lares desajustados” se define por “pais distantes
física e emocionalmente, muitas vezes alcoolistas e/ou abusadores, [assim] as crianças
tornam-se carentes desse suporte afetivo e nutrem medo de serem abandonadas pelos
pais” (SOPHIA, et al., 2007, p.57).
Os futuros adultos oriundos de “lares desajustados” tenderiam a repetir o padrão
de relacionamento vivido na infância. Os homens desenvolveriam transtornos como

2
Essas pesquisas laboratoriais geraram ampla discussão de caráter neuroético, encabeçada por um grupo de
neuroeticistas do The Oxford Centre for Neuroethics (OCN) da Universidade de Oxford, a respeito das possíveis
intervenções em humanos relacionadas ao que podemos nomear por medicalização do amor.
3 http://www5.usp.br/39660/ipq-procura-voluntarios-para-tratamento-de-individuos-com-amor-
patologico/
aqueles relatados acima, e as mulheres seriam atraídas por homens distantes
emocionalmente e/ou dependentes químicos. Um importante aspecto desse quadro é
associar as mulheres que se relacionam com dependentes químicos à categoria amor
patológico. Nessa associação está contida, entre outras coisas, o papel que a mulher teria
de auxiliadora na “recuperação” do dependente químico. Assim, a mulher sendo
diagnosticada e tratada poderia melhor apoiar seu parceiro em seu processo de
reestabelecimento, como vemos no fragmento abaixo:

outro aspecto importante, como já citado, é que o comportamento do indivíduo


pode influenciar negativamente o tratamento do parceiro com dependência
química, um padrão freqüentemente associado à co-dependência.
Em 2004, 42 casais americanos (homens alcoolistas e suas companheiras)
foram pesquisados e os autores constataram que, mesmo com vários casos
publicados sobre as particularidades do AP e com os estudos sobre casais
confirmando que a maioria das parceiras, mesmo quando informadas,
costumam manter atitudes facilitadoras para a recaída do parceiro (...), esta
população ainda está sendo assistida apenas como co-dependente nos centros
de tratamento que, em geral, mantêm a antiga e ineficaz proposta de orientá-
las sobre como lidar com os companheiros. (SOPHIA, et al., 2007, p.57)

Há aí uma contradição. Se por um lado a dedicação “excessiva” ao parceiro é o


que constitui a definição de amor patológico, o que estaria alinhado a valores de
equanimidade entre os casais, por outro, há uma vinculação da mulher ao papel de
instrumento de recuperação do homem, e, portanto, ao papel de facilitadora na produção
de uma família “ajustada”. Com efeito, a psiquiatrização feminina, nesse caso, está
atrelada aos papéis de gênero, tradicionais, de mãe cuidadora e esposa auxiliadora. No
fim das contas, é atribuído à mulher a responsabilização pela constituição de uma família
saudável ou não, já que os homens não desenvolveriam transtornos vinculados à família,
e assim não seriam medicalizados a respeito deste âmbito. Consequentemente o
provimento de uma infância saudável, que depende, portanto, de uma constituição
familiar “adequada”, que constituirá um futuro adulto adequado, torna-se
responsabilidade da mulher. Desse modo, a medicalização e psiquiatrização feminina
reproduz as tensões sociais das relações de gênero.

Considerações finais

De acordo com Foucault (2002) é por meio da infância que a psiquiatria se


apropria do adulto, se tornando o princípio generalizador e universal da psiquiatria. Na
criança encontra-se o germe de qualquer desvio, sob o pano de fundo da hereditariedade
e dos padrões de comportamento. Assim, os indivíduos portadores “seja de um estado,
seja de um estigma, seja de um defeito qualquer, podem transmitir a seus herdeiros, da
maneira mais aleatória, as consequências imprevisíveis do mal que trazem em si, ou antes,
do não-anormal que trazem em si” (p.403). Foucault (2002) compreende essa perspectiva
da psiquiatria como um racismo que permite “filtrar” seus indivíduos no interior de dada
sociedade. Desse modo, a psiquiatria assumiria um papel de defesa social generalizada,
de ciência da “proteção biológica da espécie”, por meio da gestão das “anomalias
individuais” (FOUCAULT, 2002).
Em concordância com Bercherie (2001), Foucault (2002), Conrad e Schneider
(1992), a psiquiatria torna-se possível de ser generalizada, e a psiquiatria infantil
instituída (BERCHERIE, 2001) quando se encontra uma medida comum entre a criança
e adulto, soterrando assim o fosso que existia entre eles antes da invenção da infância.
Enfatizando a vulnerabilidade da criança, e, portanto, a linha tênue entre normal e
anormal que a constitui, é possível compreender o adulto parte dessa extensão.
Os problemas sociais, portanto, tornam-se passíveis de medicalização, já que a
psiquiatria ultrapassa o campo de atuação da medicina, vinculada até então a doenças, se
estendendo aos comportamentos que não são considerados adequados em determinados
contextos e sociedades. Desse modo, a as tensões sociais relativas às relações de gênero
são passíveis de serem medicalizadas. No caso específico do amor patológico, não apenas
é visto a medicalização dessas tensões, mas a ênfase na culpabilização da mulher pela
produção de famílias “inadequadas”, “desajustadas” ou “desviantes”, torna a mulher um
indivíduo potencialmente medicalizável.
Referências Bibliográficas

Bercherie, P. A clínica psiquiátrica da infância: estudo histórico. In: CIRINO, O.


Psicanálise e psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.

Brzozowski, F. S.; Caponi, S. N. C. Medicalização dos desvios de comportamento na


infância: aspectos positivos e negativos. Psicol. Cienc. Prof. Brasília, v. 33, n. 1, p. 208-
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Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
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Conrad, P. The medicalization of society: On the transformation of human conditions


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Conrad, Peter; Schneider, Joseph. Deviance and Medicalization: From Badness to


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Costa, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1999. [capítulo 5]

EARP, B. D., WUDARCZYK, O. A., SANDBERG, A., SAVULESCU, J. If I could just


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http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3898540/ Acesso em 25/08/2016.

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