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INFÂNCIA 1
Alice Anne Ferreira2
Caio Proite Lombardi3
Rafaela Almeida de Sousa4
Yuri de Jesus Costa5
Resumo: Este trabalho teve como objetivo compreender as relações de poder envolvidas no
processo de medicalização da infância. Para tal, utilizamos a metodologia pesquisa bibliográ-
fica por meio da qual os temas infância, patologização e medicalização foram correlacionados,
a fim de compreendermos e discutirmos a importância de um diagnóstico dos possíveis trans-
tornos psicológicos encontrados na infância, de modo contextualizado, a fim de que a lógica
patologizante e medicalizante seja superada; uma vez que os resultados da pesquisa apontam
ser urgente um posicionamento crítico quanto aos processos psicodiagnósticos; E é de grande
importância que a infância seja compreendida de maneira singular, e os transtornos psicopato-
lógicos sejam investigados de maneira contextualizada. Desse modo, provavelmente, seja pos-
sível enfrentarmos as relações de poder envolvidas no processo de patologização da vida infan-
til.
Palavra-chave: Infância, Medicalização, Patologização, Psicodiagnóstico, Comportamento.
Abstract: This work aimed to understand the power relations involved in the process of medi-
calization of childhood. The methodology used was bibliographical research through which the
themes childhood, pathologization and medicalization were correlated, in order to understand
and discuss the importance of a diagnosis of possible psychological disorders found in child-
hood, in a contextualized way, so that the pathological and medicalizing logic is overcome. The
research results indicate that a critical position regarding the psychodiagnostic processes is ur-
gent. It is very important that childhood is understood in a unique way and that psychopatho-
logical disorders are investigated in a contextualized way. In this way, it will probably be pos-
sible to face the power relations involved in the pathological process of childhood life.
Keywords: Childhood, Medicalization, Pathologization, Psychodiagnosis, Behavior.
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Trabalho apresentado como requisito parcial de avaliação para obtenção do título de bacharel no curso de Psicologia no Centro
Universitário Una, sob a orientação da professora Dra. Fabiola Fernanda Patrocínio Alves.
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Graduando em psicologia pelo centro universitário UNA. Email: lyceanne@gmail.com
3
Graduando em psicologia pelo centro universitário UNA. Email: caio.proite@outlook.com
4
Graduando em psicologia pelo centro universitário UNA. Email: rafaela-asp@outlook.com
5
Graduando em psicologia pelo centro universitário UNA. Email: costayuri120@gmail.com
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1. INTRODUÇÃO
Ao longo da nossa formação como psicólogos, atendemos como estagiários entre os
anos de 2016 e 2019 na clínica-escola do Centro Universitário UNA, que oferece atendimento
psicológico gratuito para a comunidade, como requisito obrigatório para a nossa formação.
Neste período em que atuamos como estagiários, chamou-nos a atenção o encaminhamento de
crianças com demanda escolar para investigação de suspeitas de Transtornos como o Transtorno
do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), definido pela 5ª versão do Manual Diagnós-
tico e Estatístico de Saúde Mental (DSM 5) com “um padrão persistente de desatenção e/ou
hiperatividade-impulsividade que interfere no funcionamento e no desenvolvimento”. Dentre
as queixas apresentadas, destacam-se aquelas relacionadas ao comportamento, como agressivi-
dade, inquietude, falta de atenção, conversas fora de hora, entre outras. Diante desse cenário
nos despertou o interesse em investigar qual o mecanismo envolvido no aumento das queixas
em relação ao comportamento das crianças.
Manifestado o interesse dos autores pelo tema, o presente estudo foi organizado, tendo
como objetivo geral compreender as relações de poder envolvidas no processo de medicaliza-
ção da infância. Para tanto, foram elaborados os seguintes objetivos específicos: compreender
o contexto histórico acerca do conceito de infância na sociedade; debater sobre o conceito de
normalidade e sua influência na avaliação do comportamento infantil; analisar as relações de
poder envolvidas no processo de patologização da infância; com a pretensão de responder, por
meio desta pesquisa, quais as relações de poder envolvidas no processo de patologização da
infância.
O debate sobre a infância é uma discussão recente. Os principais estudos sobre o tema
começaram a surgir a partir do século XVII pois foi identificada a necessidade de um olhar
mais atento para as crianças devido ao alto índice de mortalidade infantil. Com o passar dos
anos e o advento da ciência moderna, observa-se a busca pela definição do que é normal e
esperado no comportamento infantil. Há um avanço nos estudos sobre a infância e os transtor-
nos que ocorrem nesta fase da vida. Em contrapartida, não houve uma evolução no modelo
educacional, que segue a mesma lógica do modelo criado no século XVIII, sustentado por uma
lógica positivista que instituiu certa normalização em torno dos modos de vida infantil.
Com o aumento dos estudos sobre transtornos da infância, como o TDAH e o interesse
da indústria farmacêutica por este novo público, há um aumento do número de pacientes diag-
nosticados, e em consequência aumento na venda de medicamentos, como o metilfenidato. Es-
tudiosos da infância, como Moysés e Collares (2013) criticam o elevado número de
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diagnósticos e dão a esse processo o nome de patologização da infância, que seria o processo
de nomear como transtorno as variações comportamentais típicas da infância.
Para o desenvolvimento da nossa argumentação, o artigo está organizado da seguinte
forma: após esta introdução, na segunda seção, será apresentada a metodologia da pesquisa. Na
seção três, será feita uma breve contextualização acerca do conceito de infância na sociedade e
sobre a forma como o comportamento infantil vem sendo analisado na sociedade. Na quarta
seção, discutiremos sobre o processo de psicodiagnóstico, a tentativa de estabelecimento de um
conceito de normalidade e sua relação com o processo de patologização da infância. Na quinta
seção, realizaremos uma análise sobre as relações de poder envolvidas no processo de patolo-
gização infantil e a forma como a psiquiatria se relaciona com este processo. Por fim, estabele-
ceremos nossas considerações finais a respeito do tema.
2. METODOLOGIA
O presente estudo foi construído por meio de uma revisão de literatura. Este método é
definido por Mendes, Silveira e Galvão (2008) como um método de pesquisa que permite, atra-
vés da sistematização dos estudos disponíveis na literatura, a análise e síntese de um determi-
nado tema. Cooper e Hedges apud Mancini e Sampaio definem a revisão de literatura como
Para a construção do presente artigo, foram retirados materiais de bases de dados online
como Pepsic e Scielo, bem como foram utilizados materiais de propriedade pessoal dos autores,
como o livro “Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais” do autor Paulo Dalgalar-
rondo, em ambas as edições utilizadas e o livro “Psicodiagnóstico V” da autora Jurema Alcides
Cunha.
Priorizamos artigos que tinham como ênfase os séculos XVII em diante, pois foi a partir
desse período que a infância passou a ser considerada. Em relação às áreas de conhecimento,
selecionamos aqueles que se pautavam no estudo da educação, da psicologia sócio-histórica e
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da medicina. Quanto aos temas avaliados, optamos por aqueles que tinham como foco o tema
patologização da vida, preferencialmente dando enfoque à patologização da infância.
Os descritores utilizados nas bases de dados para localização dos artigos foram: “Histó-
ria da Infância”; “Patologização”; “Psicodiagnóstico”; “Normatização”; “DSM” e “Medicali-
zação”.
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Considerando a dependência que as crianças têm em relação aos adultos, seja para in-
terpretá-las, seja para representá-las, Corrêa (2010) declara uma realidade atual acerca da pri-
vação que os adultos acometem as crianças, com o objetivo de discipliná-las, pontuando tam-
bém, que, mesmo com o avanço científico em relação ao tema da infância ainda se trata com
desprezo as necessidades específicas que estes sujeitos apresentam. Segundo Queiroz, Maciel
e Branco (2006) existem muitos estudos que discutem e comprovam a importância do brincar
no processo de desenvolvimento infantil, mostrando que por essa via a criança pode se entender
como sujeito, além de criar sua identidade, conseguir elaborar melhor as situações reais da vida
e criar estratégias e ideias a partir do imaginário.
Cordazzo e Vieira (2007) apresentam diversas influências que a brincadeira tem para o
desenvolvimento da criança e destacam como a atividade predominante e principal na fase da
infância. Além disso, citam autores que elucidaram sobre o processo de desenvolvimento in-
fantil e subsidiaram o entendimento sobre a importância das brincadeiras neste processo. Em
suas palavras:
Vygotsky (1991) ressalta que a brincadeira cria as zonas de desenvolvimento proximal
e que estas proporcionam saltos qualitativos no desenvolvimento e na aprendizagem
infantil. Elkonin (1998) e Leontiev (1994) ampliam esta teoria afirmando que durante
a brincadeira ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico
infantil. Para estes autores a brincadeira é o caminho de transição para níveis mais
elevados de desenvolvimento. [...] A característica social, de acordo com a perspectiva
sócio-cultural, é vista como a mola propulsora para o desenvolvimento infantil. Le-
ontiev (1994) afirma que na atividade lúdica a criança descobre as relações existentes
entre os homens. (CORDAZZO; VIEIRA, 2007, p.93)
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Considerando o fato exposto anteriormente, em que a brincadeira deveria ser algo pre-
servado e incentivado na fase infantil, Corrêa (2010), chama a atenção para a forma como os
adultos têm disciplinado as crianças, demonstrando demasiado desprezo para com as necessi-
dades específicas da infância.
Corrêa (2010) utiliza o termo controle como algo relevante em sua obra, para elucidar
esta ideia e sua relação com o desenvolvimento infantil, resgata estudos de Michel Foucault
(1926 – 1984), evidenciando a força da produção do conhecimento médico que se naturalizou
nos mais diversos meios de convivência (incluindo escola e família) e muitas vezes é visto
como verdade inquestionável, normatizando e regulando as relações sociais. A normatização é
colocada, como uma força que opera funções de exclusão, uma vez que estabelece critérios para
desagregar os indivíduos, classificando-os como os que atuam ‘dentro’ ou ‘fora’ da margem da
norma. Nesse sentido, é possível identificar práticas que tentam garantir que todos cumpram, a
norma da performance individual máxima, produzindo uma série de prescrições de toda ordem,
a partir da abordagem bioquímica de saúde, fazendo então a manutenção do controle mais ab-
soluto possível de comportamentos.
Segundo Corrêa (2010), os mecanismos de controle social se mostram efetivos e pre-
sentes nas relações pessoais, por exemplo: na relação adulto-criança, o adulto responde pela
criança e tem função de cuidar/controlar e representá-lo; na medicina-psicologia, a concepção
biologicista acerca do sujeito é a mais aceita e prevalente, e por fim; a perspectiva ‘dentro-fora
da norma’, que serviria para subsidiar o entendimento sobre o funcionamento humano, e propor
estratégias de equidade, na verdade dá continuidade para a lógica de controle que promove a
utilidade dos corpos e adestramento dos indivíduos. Sendo assim, o controle do adulto sobre a
criança passa de um fator de proteção para o desenvolvimento infantil, tornando-se muitas ve-
zes em um fator que priva a criança de um desenvolvimento saudável.
Vagostello et al. (2017) realizaram estudos de acordo com os as demandas que chega-
vam em uma clínica-escola em São Paulo, no período entre 2007 e 2013. Os dados obtidos
proporcionaram a análise estatística das demandas, queixas, público entre outras informações.
Segundo as autoras:
As queixas escolares (27,0%) foram as mais frequentes em crianças do sexo mascu-
lino (N=101), seguidas por agressividade (18,8%), dificuldade no controle dos impul-
sos (18,8%) e reações emocionais às relações familiares. É importante esclarecer que
muitas crianças apresentaram mais de uma queixa, razão pela qual o número de quei-
xas é superior ao número de crianças inscritas [...] (VAGOSTELLO et al., 2017, p.47)
É possível notar, então, que normalmente, uma criança apresenta mais de uma queixa,
justamente o que Moysés (2013) questiona quanto à Medicalização da Infância, quando critica
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os novos critérios de avaliação e formas de punição que surgem de forma requintada. A autora
também contribuiu com o CRPSP (2019) na construção do conceito patologização.
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Pensando nessa privação, na qual mencionam Moysés e Collares (1997), que destacam
a escola como agente importante, Vagostello et al (2017), realizaram seus estudos em uma
clínica-escola na cidade de São Paulo, porém, também realizaram uma busca de dados e levan-
tamentos documentais de estudos em outras cidades do Brasil. O resultado das análises feitas
apontou que a escola é uma das principais demandantes do psicodiagnóstico infantil e a princi-
pal fonte de encaminhamentos de crianças para a psicologia clínica, revelando uma relação
entre escola e patologização e que, além disso, pode ser tratada então como uma questão de
cunho nacional.
Podemos relacionar também a realidade constatada por Vagostello (2017), com a ideia
de Esteban (2019), no que tange à escola como marco essencial da infância e extremamente
relevante na história do fracasso escolar. No estudo de Vagostello (2017), a escola mostra-se
como principal representante, tanto no que diz respeito ao demasiado índice de encaminha-
mento de crianças ao psicodiagnóstico (27%), quanto no que diz respeito à identificação de
condições de vulnerabilidade na qual a criança possa estar submetida. As autoras ressaltam a
partir dos estudos feitos em clínicas-escola que é possível relacionar a classe social do público
atendido com a inacessibilidade aos serviços públicos de saúde mental.
Partindo, então, do pressuposto de que a classe social de baixa renda é mais negligenci-
ada pelo sistema público educacional e de saúde pública, Esteban (2019), como pedagoga, cri-
tica práticas idealizadas para o sistema educacional brasileiro e considera-o como um sistema
que estimula e evidencia um movimento de exclusão social. A autora considera que para os(as)
profissionais da educação têm-se “[...] um movimento de redução da função da escola e de
redução do que se compreende que seja educação escolar, do que seja escolarização, do que
seja educação.” (ESTEBAN, 2019, p.31).
No texto em questão, Esteban (2019) utiliza, como exemplo, o movimento ‘Escola sem
Partido’, um sistema que reforça a tendência de uniformização ou normatização de professo-
ras(es) e alunas(os). Uma das sugestões deste movimento é que crianças, adolescentes e jovens
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sejam submetidos, num determinado período, ao mesmo exame e “[...] terão os seus desempe-
nhos verificados a partir das mesmas perguntas, das mesmas respostas e da mesma escala de
classificação.” (ESTEBAN, 2019, p.31), será, portanto, um exame elaborado e aplicado de ma-
neira padronizada.
Temos aí um sistema que se estrutura, que se consolida, começando aos sete anos.
Essas crianças estão fazendo provas em que têm de preencher cartão resposta. Há toda
uma defesa para isso e já tem um movimento em curso de expansão para educação
infantil. Imagino eu que as crianças da educação infantil não farão as provas de múl-
tipla escolha, mas esse olhar do exame, é um olhar que padroniza, classifica e, por-
tanto, segrega e exclui. Então, é desse lugar que eu venho pensando essas relações que
estão tão naturalizadas e intensificadas que nós quase não percebemos que elas vão
abarcando a quase totalidade das crianças. (ESTEBAN, 2019, p.31)
A realidade atual mencionada por Esteban (2019) assemelha-se de fato com uma reali-
dade antiga ressaltada por Barbosa e Magalhães (2008) em que até o final do século XVIII,
muitos pensadores não apoiavam a ideia de que o ensino deveria se estender a todos, propuse-
ram que a educação deveria ser diferenciada de acordo com as classes sociais. Antes, os centros
(conhecidos hoje como escolas) tinham como objetivo uma formação de caráter técnico e não
pedagógico, além de acolher pessoas de qualquer faixa etária; por esse motivo, os centros aca-
bavam sendo frequentados apenas pelos jovens. Essa política de educação diferenciava e jul-
gava as crianças em vários sentidos, principalmente as menores, que eram vistas como fracas
ou incapazes, principalmente aquelas que pertenciam às classes baixas, isso justificava uma
entrada tardia no ambiente escolar.
É possível perceber que a visão de Esteban (2019) contrapõe-se a esta proposta antiga,
vista pela autora como uma forma de retrocesso. Em suas palavras, a autora elucida sua ideia
de que a escola assume um papel para além da profissionalização de indivíduos:
Vou pensar aqui a escola como um espaço de reexistência, como um espaço potente,
exatamente pelas microrrelações que ela pode estabelecer. Não que esteja à margem
da dinâmica mais ampla, mas é ainda um espaço que possibilita encontros múltiplos,
encontros diversos e, portanto, pensar e praticar outras possibilidades com enfrenta-
mento, com o debate e com avanço e retrocessos, mas entendo que ainda é um espaço
que tem essa possibilidade. (ESTEBAN, 2019, p.32)
Ressaltando que todo indivíduo é um ser biopsicossocial e que passa por um processo
de subjetivação, assim como diz Machado (2019), é possível compreender a subjetivação como
uma dimensão que se expressa também como prática política. Portanto, o papel social da cri-
ança; a eclosão e apropriação do debate acerca da infância; as relações de poder envolvidas
acerca do tema; a discussão sobre a vulnerabilidade social; a relevância do controle social e da
escola na compreensão das demandas de atenção psicológica para crianças e o fracasso escolar
que presume uma tendência a patologização e medicalização da infância, são todas ideias
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expostas nesta seção, que consideramos extremamente necessárias para entender o que é de fato
a criança e a infância, como esses sujeitos se colocam no mundo e são vistos e tratados pela
sociedade, além de como estão envolvidos na lógica patologizante e seus mecanismos de ma-
nutenção.
Para entender a lógica patologizante é necessário que esclareçamos sobre o que significa
o conceito patologização e sobre como esse fenômeno acontece. E para compreender o tema da
patologização é preciso definir antes aquilo que se compreende como patológico/doença ou
normal. Conforme afima Dalgalarrondo (2008), mais de um critério já foi utilizado para definir
a normalidade e anormalidade; e todos eles passam por questões diretamente ligadas à cultura
local e suas opções filosóficas e ideológicas. Dentre vários critérios, alguns deles definem a
normalidade como ausência de doenças
Segundo Dalgalarrondo (2008), conforme os estudos construídos sobre psicopatologia
foram avançando, novos conceitos e questionamentos sobre a normalidade surgiram. Entre tan-
tos, uma das definições do que seria “ser um ser humano normal”, vigorou a idéia de que esse
indivíduo seria aquele que não apresentava sinais, sintomas ou comportamentos que o enqua-
drassem em algum transtorno mental. A normalidade como ausência de doenças, é um de nove
critérios de normalidade definidos por Dalgalarrondo, os demais, sobre os quais não entraremos
em maiores detalhes, são: normalidade ideal; normalidade estatística; normalidade como bem-
estar; normalidade funcional; normalidade como processo; normalidade subjetiva; normalidade
como liberdade, e normalidade operacional. Logo, tamanha é a diversidade do que é normal
que nos faz refletir sobre a extensa complexidade ou perigo de pressupor e apontar: a doença
psíquica é pertencente a algum grupo que se desvia do ser considerado ‘normal’ em um deter-
minado período da história. Por exemplo, Dalgalarrondo (2008) afirma, que se analisarmos na
perspectiva da normalidade como ausência de doenças, podemos aprofundar a percepção deste
ponto de vista que tal critério é falho por se basear em uma definição negativa e redundante, a
qual não define ao certo o que é ser supostamente normal, mas, sim por aquilo que não é ser
normal, aquilo que falta à normalidade. O autor ainda ressalta que:
[...] o comportamento e o estado mental das pessoas não são fatos neutros, exteriores
aos interesses e preocupações humanas. Não se fica indiferente perante outros indiví-
duos, ao lidar com seus comportamentos, sentimentos e outros estados mentais. [...]
Assim, o debate sobre normalidade em psicopatologia é um debate vivo, intenso, in-
teressado, repleto de valores (explícitos ou não), com conotações políticas e filosófi-
cas (explícitas ou não) e conceitos que implicam o modo como milhares de pessoas
serão situadas em suas vidas na sociedade. (DALGALARRONDO, 2019, p.42 e 43)
É compreensível que há casos que não apresentam tanta dificuldade para que se defina o limite
entre normal e patológico. Trata-se de casos extremos, cujo sofrimento mental é intenso, que
apresentam disfunções graves no dia a dia e que as alterações nos comportamentos e pensa-
mento são de grande evidência e de duração longa. Como refere-se Dalgalarrondo (2008), tais
casos podem ser exemplificados como psicoses graves e formas mais avançadas de doença.
Porém, existem casos que se mostram mais complexos em sua definição devido ao fato de terem
características menos claras em relação a se situar no campo do normal ou do patológico. Para
o referido autor:
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Nessas situações, o conceito de normalidade em psicopatologia e saúde mental ganha
especial relevância. Na CID-11, o transtorno leve de personalidade (mild personality
disorder) é um exemplo infeliz de criação de entidade nosológica que, por ser muito
próxima ao comportamento de um grande número de pessoas em geral tidas como
normais (p. ex., que, em apenas alguns contextos sociais, apresentam problemas não
graves na identidade, alguma dificuldade em relações interpessoais, desempenho no
trabalho e em relações sociais), poderá gerar diagnósticos psicopatológicos exagera-
dos e medicalização inapropriada (DALGALARRONDO, 2008, p.31).
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naturalmente presentes no desenvolvimento, frequentemente são vistas e tratadas como trans-
torno ou uma somatória de sintomas que devem ser revertidos a priori, cada vez mais através
da medicação. Além disso, as propostas terapêuticas oferecidas às crianças têm sido muitas
vezes inapropriadas, assemelhando ao percurso de tratamento oferecido aos adultos; e como já
foi ressaltado, apresentam outra dinâmica de funcionamento assim como outras necessidades
práticas da intervenção terapêutica.
Acerca da infância, questionamos: como devem ser tratados os comportamentos que
pertencem à infância? Assim como aponta Meira (2012), quais critérios estão sendo utilizados
para justificar o exacerbado aumento de diagnósticos de crianças nos últimos anos, como por
exemplo os de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), que se destacam
em quantidade e índice de medicalização precoce? Moysés e Collares (2013) também questio-
nam que não há evidencias que comprovem que o uso de medicamentos seja realmente benéfico
ao logo prazo.
Meira (2012) menciona uma estratégia utilizada pela Associação Brasileira do Déficit
de Atenção (ABDA) que disponibiliza em seu site: um questionário (SNAP-IV) que teorica-
mente auxilia pais e profissionais da educação a identificarem sintomas de TDAH. Esse ques-
tionário contém perguntas e afirmações sobre os comportamentos infantis, o qual os adultos
respondem de acordo com seu próprio julgamento, sem uma análise crítica, a intensidade ou
relevância de tal comportamento para a criança que está “sendo avaliada”. Além disso, a ABDA
(2010) também afirma que a maioria dos casos de TDAH é tratada com a inclusão de medica-
mentos.
Moysés e Collares (2013), em seu texto Controle e Medicalização da Infância, relacio-
nam o uso desnecessário de medicações com uma tendência à dependência química na fase
adulta. Conforme as autoras, “[...] podemos afirmar que o Brasil é um dos países em que esse
processo é mais intenso, pelo fato de ser o segundo maior consumidor mundial de metildeni-
dato, substância psicoativa comercializada com o nome de Ritalina” (MOYSÉS; COLLARES,
2013, p.16). Em suas palavras:
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Afetam todos os aparelhos e sistemas do corpo humano [...] (MOYSÉS; COLLARES,
2013, p. 16)
Araújo e Neto (2014) apontam que a Organização Mundial da Saúde influenciada por
um documento elaborado pelo Exército norte-americano para atendimento de ex-combatentes,
incluiu uma seção destinada aos Transtornos Mentais no CID-6. Como alternativa ao CID-6,
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em 1952, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) desenvolveu o primeiro DSM que se
baseava em uma compreensão da “doença mental” e baseava-se na reação do sujeito com os
problemas da vida. Como influência da psicanálise no manual, eram frequentemente emprega-
dos conceitos como “neurose”, “conflito neurótico” e “mecanismos de defesa” (RUSSO;
VENANCIO, 2006).
O DSM-II foi publicado em 1968 e diferenciava-se do primeiro manual por pequenas
alterações na terminologia (ARAÚJO; NETO, 2014). O domínio da psicanálise no campo psi-
quiátrico, portanto, manteve sua hegemonia, como apontam Russo e Venancio (2006, p.464):
o modo psicanalítico de compreender a perturbação mental tornou-se ainda mais evi-
dente. Nele foram abandonados tanto o uso da noção de “reação” quanto a concepção
“biopsicossocial” dos transtornos mentais, surgindo em seu lugar um modo específico
de conceber a doença mental, que corresponderia a níveis de desorganização psicoló-
gica do indivíduo.
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diagnósticos ocorrendo paralelamente à produção de novos medicamentos (RUSSO;
VENANCIO, 2006, p. 466).
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algum transtorno mental, além de viabilizar a comunicação entre profissionais de diferentes
áreas, pois permite uma padronização da linguagem em Saúde Mental. Mas é importante dis-
cutir a quem interessa o processo de medicalização da infância.
Ao falar sobre as relações de poder envolvidas no processo de medicalização, é impor-
tante entender o conceito de biopoder a fim de entender a quem interessa a patologização da
vida. Decotelli et al. (2013) citam Foucault ao definir biopoder como o poder sobre a vida, e
que faz viver ou deixa morrer. Guarido (2007, p. 59) acrescenta que para Foucault o biopoder
configura “a passagem do poder soberano sobre a morte ao poder político de ‘gerir a vida’”. O
autor relaciona o saber médico ao biopoder ao afirmar que Foucault coloca a medicina como
“participativa dos discursos que compõe a própria experiência humana na modernidade. A me-
dicina não como soberana no exercício de um poder, mas como discurso que compõe as estra-
tégias de políticas de gestão da vida.” (GUARIDO, 2008, p.22). Na mesma direção, Moysés e
Collares (2013, p. 12) ressaltam que:
Com o advento da ciência moderna esta passa a ocupar os espações discursivos do saber e do
poder, tornando-se a autoridade investida de poder para exercer as mesmas ações, agora re-
nomeadas: identificar, avaliar, tratar e isolar. A medicina será o campo científico a ocupar,
privilegiadamente, esse espaço, passando mais e mais a legislar sobre a normalidade e a anor-
malidade [...] através dessa atuação normatizadora da vida, a medicina assume, na nova or-
dem social que surge, um antigo papel. O controle social dos questionamentos.
Barbosa e Leite (2020) destacam que primeiramente o biopoder se deu de uma maneira
mais ampla, a partir do Estado para a especificação do poder sobre o corpo individual, sem
deixar de atuar na população de modo geral. Os autores citam ainda duas estratégias sobre as
quais é exercido o poder sobre o corpo: a disciplina e a biopolítica. Para Kohan (2005) apud
Barbosa e Leite (2020, p.5):
[...] a disciplina é uma criação conceitual de Foucault que nos permite pensar os mecanismos
e o funcionamento de algumas instituições modernas e as relações entre o saber e o poder nas
sociedades que comportam tais instituições nas quais circulam as crianças. O pesquisador
ainda destaca que as principais técnicas do dispositivo disciplinar são: o exame, a vigilância
hierárquica e a sanção normalizadora. Esta, por sua vez, compara, hierarquiza, diferencia,
homogeneíza e exclui aqueles que apresentam comportamentos considerados inadequados,
tais como: atrasos, falta de atenção, desobediência, descortesia, gestos impertinentes e des-
cuido.
Em termos de infância e educação, Kupfer (2001), apud Guarido (2007) destaca que o
modelo de escola como conhecemos hoje deriva do século XVII, criada para atender às exigên-
cias político sociais da burguesia da época. Para o autor, a consistência do conceito de criança
no discurso social se deve ao fato de estar submetida a uma educação que implica vigilância,
disciplina e segregação. Barbosa e Leite (2020) apontam que a instituição escolar foi se
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desenvolvendo de modo a servir aos interesses do capital, promovendo a criação de hábitos,
disciplinamento e moralização.
No âmbito da família, Decotelli et al (2013) apontam que no fim do século XVIII e
início do século XIX o saber médico adentra o espaço escolar e volta sua atenção para as famí-
lias. A medicina, partindo do pressuposto de que as famílias não sabiam educar suas crianças,
submete a família moderna à tutela dos especialistas considerados capazes de recuperar a civi-
lidade e o equilíbrio. Esta intervenção é justificada pelo discurso protetivo, que servirá como
princípio para a criação de documentos garantidores dos direitos das crianças.
A criação do ECA, em 1990, transformou a criança em um ser valorizado e portador de
direitos e necessidades básicas específicas, criando assim um fundamento para que se possa
exercer o biopoder sobre as famílias a partir da criação de instituições responsáveis pelo poli-
ciamento das famílias. A criança passa então a ser responsabilidade da família e do Estado que
devem zelar pelo cumprimento de seus direitos (DECOTELLI et. al., 2013).
Quais as relações de poder envolvidas no processo de patologização da infância? Diver-
sos autores ao debaterem o assunto concordam que o processo de patologização da infância
deriva da tentativa de controle social exercida pelo Estado através da medicina. Este movimento
beneficia e é incentivado pela indústria farmacêutica. Ao buscar respostas para a variabilidade
do comportamento das crianças no âmbito escolar, familiar e na vida em sociedade, a medicina
fornece às instâncias de controle social a solução para corrigir o comportamento das crianças
que desviam do padrão que está estabelecido. Passa então a ser aceita, socialmente, a ideia de
que: a criança que não corresponde às expectativas de desempenho, obediência e características
infantis está enquadrada, de alguma forma, em um quadro psiquiátrico. Esse movimento dá
margem para o aumento de diagnósticos realizados, muitas vezes, sem observância do contexto
no qual a criança está inserida.
Tendo em vista todos esses fatores, faz-se muito importante que nós, enquanto profissi-
onais da Psicologia, tenhamos uma postura crítica em relação ao aumento crescente de demanda
de crianças encaminhadas pelas escolas. O processo de psicodiagnóstico realizado pelos pro-
fissionais de psicologia, deve ser abrangente e atencioso. Devemos lançar mão de todas as fer-
ramentas necessárias para que este processo de patologização da infância possa deixar de ser
uma realidade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Consideramos que este artigo proporciona um pensamento reflexivo sobre as relações
de poder envolvidas no processo de patologização e medicalização da infância. Apontamos,
diante de um percurso histórico, diversas contingências que corroboram para a edificação de
mecanismos de controle social que modelam o comportamento das crianças e a vivência da
infância. Gradativamente, a forma como a sociedade lida com as crianças está sujeita a meta-
morfose de novas práticas que, ao longo dos séculos, acompanham as mudanças da normativi-
dade do comportamento humano.
Compreendemos que tais mudanças ocorrem dentro de um processo da evolução cultu-
ral de uma sociedade que acompanha a transição de ideais; ideologias; valores; princípios mo-
rais; crenças e, não menos importante: o conhecimento científico.
As relações podem se tornar, se já não o são, tendenciosas nos espaços de interesse e
desejo de todos os envolvidos no processo: o Estado, a medicina, a clínica, a escola ou até
mesmo a família. Nenhuma destas instituições passa desapercebida quanto ao interesse do do-
mínio da infância para a objetificação do exercício de poder, com a finalidade de instrumenta-
lizar o controle social a partir de uma forte tendência à rotulação patologizante do comporta-
mento das crianças e manipulação da infância.
A interdisciplinaridade entre os profissionais da área da saúde e da educação é de suma
importância para observar, identificar, compreender, manejar e intervir com cuidado redobrado
o comportamento das crianças que nela vivenciam, como uma fase da vida que não conseguem
determinar por elas mesmas o sentido para infância.
Consideramos, ao pesquisar sobre as relações de poder envolvidas no processo de me-
dicalização da infância, que há uma necessidade maior de se dar continuidade a novos estudos
sobre a temática. Ainda há várias perspectivas a serem investigadas, a fim de que as questões
relativas às relações de poder no psicodiagnóstico infantil continuem a ser problematizadas.
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