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Um mundo que se reinventa à luz do poder disciplinar e do biopoder

• Na Europa, entre o final do século XIX e início do século XX, transformações


no registro epistêmico possibilitaram o surgimento de novos campos de
conhecimento que traziam o homem como objeto de investigação, como a
biologia e as ciências humanas. A partir daí a adolescência surgiu como objeto
de estudo das ciências médicas e psicopedagógicas.

• Os mesmos discursos científicos que inventaram a infância e a adolescência


recriaram as instituições apropriadas para o seu amparo e a sua vigilância, como
as escolas seriadas e secundárias, as instituições jurídicas e correcionais
especialmente desenhadas para essas faixas etárias, e o modelo da família
burguesa, centrada na educação de seus filhos.

• Dessa forma, a problematização da infância e, quase um século depois, da


adolescência surgiu pela necessidade de um contínuo e cuidadoso investimento
físico, pedagógico e moral com o intuito de produzir um adulto ideal.

• À medida que novas relações sociais e econômicas passaram a ser orquestradas


pela sociedade burguesa emergente, estabeleceram-se novas relações de poder
que atuavam também nos espaços fechados das instituições modernas, como a
escola, a fábrica, a prisão, o hospital e o espaço doméstico.

• Conforme Foucault detectou, a maior eficácia de um conjunto de poderes que,


em vez de negar e reprimir, atuavam discretamente na produção de realidades e
efeitos desejados por meio de processos disciplinares e normalizadores que
tinham o corpo como seu alvo central.

• O poder disciplinar e o biopoder não mais se afirmavam com base no direito


soberano de determinar a morte dos súditos, mas configuravam-se como formas
de poder que organizavam, gerenciavam e investiam produtivamente sobre a
vida humana, atuando sobre os corpos individualizados e sobre o corpo de
populações inteiras.

• Além da disciplina, Foucault também observou o surgimento de outra forma de


poder: o biopoder, um poder disciplinador e normalizador que se concentrava na
figura do Estado e se exercia como política estatal para administrar a vida e o
corpo da população.

• Foucault descobriu um corpo social produzido pelo investimento produtivo de


uma complexa rede de micropoderes disciplinares que atuavam de maneira a
gerir e administrar a vida humana, tendo em vista tornar possível a utilização dos
corpos e a exploração otimizada de suas capacidades e potencialidades. Objetivo
= otimizar e docilizar a força e os movimentos do corpo apreendidos nas redes
institucionais para integrá-los em sistemas de controle eficazes e econômicos.

• O sexo e a própria vida se tornaram alvos da atuação do biopoder, que já não


buscava simplesmente regrar comportamentos individuais, mas pretendia
normalizar a própria conduta da espécie, bem como regrar, manipular, incentivar
e observar macrofenômenos sociais. O que se produz por meio da atuação do
biopoder não é mais apenas o indivíduo dócil e útil, mas a própria gestão
calculada da vida do corpo social (implantação de um gerenciamento planificado
da vida das populações).

• Assim, a disciplina e o biopoder compuseram conjuntamente todo um arsenal de


aparatos, medidas, normas, discursos e práticas que orientaram a atuação das
instituições sociais que sustentaram a idade moderna sob uma forma específica
de governo que Foucault chamou de governamentalidade. A partir de então,
interessava ao poder estatal estabelecer políticas higienistas e eugênicas por
meio das quais se poderia sanear o corpo da população, depurando-o de suas
infecções internas.

• A partir de então a sexualidade passou a ser a chave para a análise e a produção


da individualidade e da coletividade.

• A criança e o jovem representam a possibilidade de continuidade e manutenção


do modelo ideal de homem instaurado pela sociedade burguesa.

• O processo de disciplinarização normativa dos corpos determinou diversas


transformações que se fizeram sentir para além da esfera pública, instalando-se
em torno da família nuclear.

• A instituição familiar passou por profundas transformações, que culminaram na


idealização da noção de intimidade. A vida doméstica constituiu-se como objeto
de investigação das ciências e de intervenções institucionais, não só para a
burguesia mas também para os pobres.

• O controle da sexualidade foi um alvo fundamental para as políticas de


higienização, visto que por meio do controle do sexo seria realizado um controle
efetivo da população.

• Com relação ao processo disciplinador, o que diferenciou os pobres e os ricos


foram os tipos de dispositivos utilizados e as instituições empregadas para cada
grupo: os filhos da burguesia foram objetos das instituições escolares, enquanto
as crianças pobres tornaram-se objetos consagrados das instituições correcionais
e de assistência, que naturalizaram e patologizaram a pobreza.

O médico e a mãe: a medicalização dos espaços domésticos

• A partir do século XIX: discurso médico com grande poder – atribuição feita
pelo caráter disciplinar da sociedade europeia;

• Além de estar presente nos projetos de urbanização e higienização das


metrópoles, o poder médico também participou do delineamento da nova
família, a qual deveria apresentar cuidados, educação física, intelectual e moral
aos filhos;

• Passaram a ser feitos manuais de cuidados com os filhos, os quais eram


direcionados às famílias burguesas;

• Tais famílias burguesas eram contra a presença das amas-de-leite e de outras


pessoas estranhas à família – contrapondo o modelo de família tradicional
anteriormente observado na sociedade – pois acreditavam que essas pessoas
poderiam marcar negativamente a educação das crianças;

• Na família burguesa, a mãe, orientada pelos médicos, passou a ser a pessoa


responsável pela nutrição, higiene, educação inicial e hábitos morais das
crianças;

• A ligação orgânica entre o médico e a família teve por consequências:

◦ O fechamento da família contra influências negativas do antigo meio


educativo, contra os métodos e os preconceitos dos serviçais, contra os
efeitos das promiscuidades sociais;

◦ Aliança privilegiada com a mãe, a qual passou a ser reconhecida como


mulher devido a sua utilidade educativa;

◦ Utilização da família pelo médico contra as antigas estruturas de ensino,


a disciplina religiosa e o hábito do internato;

• A reestruturação das famílias pobres ocorreu da mesma forma e a mãe recebeu


novas regras de higiene social e a tarefa de retirar os maridos do cabaré e as
crianças da rua, lugar mal visto pelo olhar higienista das metrópoles;
• O planejamento educacional dos filhos passaria a ser um investimento caro e de
longo prazo e houve um pequeno aumento do interesse pela educação das filhas,
já que seriam futuras mães;

• A criança passou a receber lugar de destaque em decorrência de sua


problematização nos meios médicos;

• A medicina, ao se inserir no seio familiar, passou também a ter influência nas


políticas de Estado, ocupando-se com tarefas da dinâmica social da vida urbana,
determinando uma forma de intervenção higienista nas esferas pública e privada;

• As transformações familiares e sociais – diminuição do poder patriarcal,


aumento do poder do Estado laico, nascimento da política médico-higienista –
contribuíram para que a ciência se tornasse uma fonte privilegiada de explicação
e reprodução dos velhos controles morais;

• O futuro dos filhos da classe média emergente na Europa industrial dependia da


família, mas também da escola, pois somente através da educação seria possível
o alcance de posições sociais confortáveis;

• Família e escola, auxiliadas pela medicina higienista e pelas práticas


disciplinares da ortopedia educacional, representaram a possibilidade de se
constituir o adulto ideal – caucasiano, heterossexual, reprodutivo, livre de
doenças e anomalias e proprietário;

• A independência ou a resistência dos filhos dos pobres e trabalhadores pobres,


os quais permaneciam nas ruas sem controle da família e da escola, foi vista
pelos especialistas como prova de inferioridade biológica e fonte de problemas
sociais.

As etapas graduais da invenção da adolescência

• A invenção da adolescência perpassa pelas políticas médicas e pela


psicopedagogia.

• Então, para psicopedagogia, além de se ter um adolescente higiênico e


disciplinado, era necessário analisar a falta da aplicação dos dispositivos
educacionais como a delinquência juvenil, e a sexualidade adolescente, isso era
visto como grave problema a ser investigado e solucionado pela ciência.
• A culpa pelos eventuais fracassos dos indivíduos na maturidade era direcionada
a ambas as instituições: dispositivo médico-higienista e o dispositivo
psicopedagógico.

• Na Europa do séc XX, algumas organizações surgiram com a ideia de


fortalecimento corporal e moral dos jovens, e uma dessas necessidades
salientadas pelos especialistas, foi a prática da educação física e dos esportes em
equipe, norteador pela ideia da produção de um corpo saudável que refletisse
uma mente sã.

• Nesse contexto intervencionista, os jovens foram submetidos a um estado de


dependência absoluta, tanto em relação aos pais, como em relação às instituições
sociais e ao Estado.

• Para a psicopedagogia, o conceito de adolescência deve ser pensado em relação


a um conceito de maturidade que ao ser atingido (como a independência
financeira e afetiva), o adolescente está apto para constituir sua própria família
tendo condições de provê-la adequadamente. E pelo ponto de vista de sua
institucionalização, adolescência constitui-se como fase cronológica do
desenvolvimento humano durante o qual o processo de maturação iria iniciar e
concluir.

Normatização e higienização dos trópicos


• No Brasil a problematização da adolescência na literatura psicopedagogia foi um
fenômeno relativamente tardio em comparação a produção científica dos EUA

• Na produção científica, em sua maioria, traduções de textos europeus, tinham o


discurso sobre como a adolescência se relaciona a uma ideia de “crise” ou
“problema”, vinculada às imagens de delinquência e da sexualidade, sempre
enfatizando uma normalização da conduta física, psíquica, social e sexual

• A influência que o Brasil recebeu da Europa industrializada, foi irradiada por


meio das ciências positivas

• Dificuldade da implementação das ideias e saberes relativos aos problemas da


família, por conta da estrutura intrínseca do Brasil, a escravidão.

• Começou-se a criar uma atmosfera de intimidade que antes era inexistente na


família, na qual deveria passar a se interessar pelo desenvolvimento físico e
sentimental dos filhos.
• As mudanças que ocorreram foram:

◦ O aleitamento dos recém nascidos pelas próprias mães desempenha um


papel importante, para além do seu aspecto nutricional, pois se torna um
vínculo de transmissão de amor, além de ser mais uma porta de entrada
para o saber médico higienista no interior dos lares.

• Mudança no modelo ideal de pai, que não era mais o pai severo déspota
da colônia, e sim aquele comprometido com a saúde dos filhos e
conhecedor de regras e normas determinadas por um saber externo ao
universo familiar.

• Filhos precisavam ser vistos como fruto de um investimento permanente,


onde o modelo ideal de pai seria substituído pelo poder do estado-
sanitário.

• A pedagogia higienista através das receitas sobre alimentação, vestimenta e


hábitos a serem desenvolvidos para com os filhos procuravam atingir os adultos.
"O interesse pelas crianças era um passo na criação do adulto adequado à
ordem médica”

• As políticas médico-higiênicas tinham o objetivo de reproduzir um modelo de


infância investido pelo ideal de um corpo saudável, assim, foi reconhecida como
uma fase e destacada no desenvolvimento humano, passando a ser o principal
objeto de atenção dos médicos no Brasil.

• A preocupação com a sexualidade nos colégios e internatos deu-se por meio da


higiene sexual, assim a ciência tomava o lugar da moral ao ditar as regras de
comportamento que não mais distinguiam entre o moral e o imoral, mas sim
entre o normal e o patológico.

• Com isso, a masturbação foi vista como matéria prima para a produção de
discursos de controle dos corpos dos jovens no espaço das micropolíticas de
produção do sujeito ideal.

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