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O CRIAR NA ARTE E NA DANÇA DE PINA BAUSCH – CORPO COM

GÊNERO

Pedro Simon G. Araújo


Universidade Federal de Goiás – Faculdade de Artes Visuais

Criar é parte de um processo que exige uma disposição interna em se deixar descobrir
e ser capaz de respeitar o que a mente e o corpo estão prontos para externalizar. Em entrevista
dada a revista Investigação1, a pesquisadora Kathrin Holzermayr Rosenfield fala sobre o
fenômeno da percepção: “de onde vem a nossa capacidade de sermos atingidos de tal maneira
que notamos.” Um processo que produz o maravilhamento nos espectadores, no caso, por
meio da experiência estética, que segundo ela não é um processo intelectual, mas uma
“diferenciação estética”. Essa arte de apreciação de uma obra ativa uma série de camadas que
são ao mesmo tempo estéticas, cognitivas e sensoriais. Da mesma maneira, quando se pensa
em um processo criativo, todas essas percepções que perpassam pelo sensorial e estético
pululam no criador que a partir daí determina o seu caminho ou não-caminho para a criação.
Como diria Souza (2010), “tudo o que sei, que vejo e que sinto parte de mim, meu corpo é o
marco zero do mundo, é a fresta por onde o percebo, recebo e capturo os fragmentos que me
cercam.”
Falar em processo criativo é algo que reúne uma série de questões, como a estética,
que surge, em seu caráter moderno, a partir do momento em que a arte passa a ser reconhecida
como atividade intelectual, como afirma Jimenez (1999 apud TRONCA, 2011).

A criação artística passou a não ser mais vista como privilégio de Deus, mas
dependente da ação humana. A complexidade passou a estar nas conexões que a arte
proporciona. Para que o processo criativo viesse a acontecer entrou em cena o
reconhecimento dos mecanismos psíquicos e mentais (abstração), resultando na
materialização de algo concreto: a obra de arte. (JIMENEZ, 1999 apud TRONCA,
2011, p.2).

O artesão passar a ser reconhecido como artista é fato marcante para que se possa
compreender o lugar que está estabelecido atualmente como o lugar da arte. Segundo Tronca
(2011. p.6) “passa-se, assim, da habilidade à criação, do artesão ao artista, dos métodos às
estratégias, do tabu ao totem. As transformações históricas levaram à autonomia da estética
1 ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Revista Investigação, vol. I, n.11, p. 12-19, out. 2010. Entrevista
concedida a Guilherme Mautone.
[...], ao surgimento do sujeito-artista.” Para o autor, a força criativa passa a ser individual e
hoje o que se percebe é uma democratização, porém, não totalmente institucionalizada, da
obra de arte e do espaço da arte. Hoje todos são aptos a fazer arte a criar objetos estéticos. A
sua aceitação ou não pelas instituições é uma outra questão, mas esse é o momento
contemporâneo em arte. Falar em educação de arte nos dias de hoje é abrir uma enorme janela
para discussões, uma vez que não há um consenso estabelecido entre profissionais e
instituições de ensino. As abordagens teórico-metodológicas do ensino da arte no país
dependem muito de “como será interpretada e implementada a reforma curricular no Brasil,”
como bem afirma Campello (2012).

Parte do nosso desafio consiste em analisar as diversas interpretações da reforma


curricular brasileira, especialmente no que se refere à educação em arte, inserida em
um paradigma pós-moderno, cuja definição, ainda difusa, abrange, inclusive, a
própria utilização do termo. Considero que o desafio maior que enfrentaremos
consistirá em tentar viabilizar a aplicação de um currículo, elaborado conforme
parâmetros pós-modernos, em uma realidade escolar que continua atrelada a padrões
modernos. (CAMPELLO, 2012, p. 3).

O grande desafio está em formar artistas, alunos que compreendam que a arte é o lugar
que se pode pensar fora da caixa. É mostrar que a arte está presente em todos os contextos, ela
é interdisciplinar e transdisciplinar. A liberdade de criação e as possibilidades e habilidades de
criação partem deste ponto e percorrem todo o processo de vivência em arte que muito é
capaz de mudar e questionar como será apresentado mais a frente dentro das questões sobre
gênero e sexualidade.
Criar é parte de um processo que envolve todo o corpo. A nossa mente é intimada,
assim como o nosso mover, no sentido de agir, também é convidado a se unir a esse “eu-
corpo” neste desenrolar de uma criação. Segundo Locava (2006, p.159) as atitudes criativas
geram um processo de mudança e transformação. Para ela “a criatividade inclui as estruturas
que lidam com a memória, as emoções, as respostas sensoriais, a capacidade cinestésica e a
propriocepção, a intuição, o raciocínio.”
O presente trabalho tem como intuito discorrer sobre a arte a partir de uma estética da
dança e além disso, compreender o papel do processo criativo dentro dessa percepção do que
seja a obra de arte enquanto criação capaz de gerar o fenômeno da percepção, como visto
acima, além de abordar aspectos muito importantes como gênero e sexualidade, frutos desse
processo criativo. A dança-teatro de Pina Bausch e o trabalho de seus precursores também
perpassam essa pesquisa, uma vez que ela juntamente com o seu processo criativo são os
principais objetos de pesquisa.
Dentro da história da dança moderna Rudolf Von Laban muito se destacou.
Obviamente o destaque foi compartilhado por muitos outros nomes como Martha Graham,
Isadora Duncan, entre outros que influenciaram a história da dança em seus períodos e
contextos, no entanto, os estudos de Laban muito inspiraram a carreira e vida artística de Pina
Bausch, objeto de estudo mais específico desse ensaio.
De acordo com Locava (2006) os estudos de Laban (Arte do Movimento) foram e são
essenciais para que se explore a capacidade criativa humana e para que cada um tenha
consciência de seu processo pessoal de criação, uma vez que todas as ações se realizam dentro
desse espaço-corpo. O potencial criativo de cada um é exercido com o que se conhece e com
o que se ignora, pois este também interfere mesmo que não seja perceptível. Laban trazia a
partir de seus estudos uma dança que se baseava no movimento. Desnudando o espaço cênico
(retira cenário, história, personagens e música) o que se destacava era o bailarino e o seu
movimento. Esse movimento ou qualquer atividade corporal, segundo Locava (2006)
apresenta como princípios básicos: compreender o corpo que se move; as qualidades,
dinâmicas e esforços desse movimento; o espaço onde se encontra e as pessoas com as quais
se relaciona e se movimenta. Para Laban a dança era um fato físico.
Nas palavras de Sanchéz (2010), para Rudolf Laban, precursor da dança-teatro nos
anos 20 na Alemanha, a dança era o meio de dizer o indizível, o movimento era uma
possibilidade de exteriorizar os sentimentos interiores. A sua dança buscava estar intimamente
ligada à vida. De acordo com Fernandes (2006, p.192), Laban ao falar de dança-teatro não se
referia a um terceiro tipo de dança, mas à dança em si. O termo fazia referência a uma dança
proposta por uma geração nova de coreógrafos e dançarinos que começavam a explorar o
corpo em interação com esse novo espaço, através da linguagem da dança. Era uma dança que
se baseava nas leis do movimento do corpo em si mesmo, ao invés de enxergá-lo como
instrumento, ou seja, não se via uma separação entre sentimento e forma pois o conteúdo era
compreendido como inerente ao movimento humano. “Para Laban, o movimento corporal não
representa o sentimento. Ao contrário, o movimento é sentimento como forma espacial
dinâmica, isto é, em constante transformação”. Essa revolução na dança de certa forma,
libertou o corpo para que sua própria linguagem e sua própria história fossem criadas, à sua
maneira. Pelas palavras da autora, Laban em seu método também trabalhava com
improvisações e com palavras, a chamada dança-tom-palavra, onde se poderia usar a voz e
pequenos poemas eram criados. Para Laban o movimento e o sentimento eram elementos de
uma contínua transformação.
Segundo Locava (2006, p. 169) cada indivíduo possui um repertório de movimentos
que não exigem para sua realização nenhum empenho especial, pois tratam-se de um
patrimônio pessoal. Entretanto, destaca que é importante que haja uma expansão desse
repertório para outras “qualidades do movimento”, gerando assim novas respostas mentais e
sensíveis dos movimentos, pertinentes a cada novo momento.
Para Sanchéz (2010, p. 41) Laban “trabalha, porém, enaltecendo um pensamento
motriz mais do que verbalizado, em função de experiências vividas, de sensações e reações ao
imediato próprio a cada indivíduo.”

Apesar de não mencionar Rudolf Laban, e atribuir a Kurt Jooss a origem do termo
‘dança-teatro’, Schmidt et al. (2008, p.8) nos indicam dois importantes pontos em
comum entre diferentes produções de dança-teatro: ‘um interesse pelo ser humano e
suas motivações mais íntimas do que pelo movimento puro’ e uma dramaturgia de
contrastes’. (FERNANDES, 2000 apud FERNANDES, 2006, p. 197).

Segundo Sánchez (2010) os exercícios de preparação dentro de um processo criativo,


referente ao teatro ou a dança, partem sempre de um estímulo ao lado humano do ator. Esses
exercícios são direcionados a uma percepção de sensações e imagens que passam por uma
organização interna e depois se transformam em ações externas. Ou seja, há aí um processo de
composição orgânico, a partir do que o próprio corpo do ator conseguiu assimilar.
Dentro do universo da dança encontra-se uma enormidade de modelos e formas de se
desenvolver processos criativos e, cada um, parte de uma perspectiva diferente ou muitas
vezes utilizam de um mesmo fundamento para levantarem trabalhos diversos. Pina Bausch se
aproxima muito dos processos de Laban e Jooss, descritos acima, mas se aprofunda por meio
de um caminho só seu, encontrado durante anos de pesquisa e dança. De acordo com Silva
(2005, p. 123), Pina trouxe para a cena uma fusão entre a dança expressionista alemã e a
dança pós-moderna americana. Seu conteúdo de peças possui um traço claramente
psicológico, segundo a autora, e dialoga facilmente sobre a condição humana por meio de
uma justaposição entre o gesto cotidiano e o abstrato. Para ela, sua representação “perpassa os
diversos meios artísticos e cria uma nova e única linguagem.” Sua obra é questionadora e
provocativa, uma vez que difere do que se tem como teatro ou como dança. Ela traz uma
transcrição do teatro como dança e da dança como teatro.
[...] a dança-teatro de Pina Bausch é um processo complexo, permeado de paradoxos
que se lançam inteligentemente no palco e na plateia, ou seja, um desafio aos atores,
mas principalmente aos espectadores; é um resultado cênico que valoriza o processo
de construção, ao mesmo tempo em que o desnuda; assume o teatro, mas para
criticar certas formas de teatro (o realista, por exemplo); reconhece-se como dança,
mas deixa pistas suficientes para que se possa traduzir a dança como teatro.
(MARFUZ, 1999 apud SILVA, 2005, p. 123).

Pina trabalha a partir de uma montagem que parece ser aleatória, que traz em sua
essência fragmentações e muitas repetições, usadas continuamente. O seu diferencial é não se
ater sempre no movimento como elemento principal, mas além da forma, trabalhar também
com o conteúdo psicológico, suscitado por um determinado gesto. O uso da repetição
constante traz uma potência à situação dramática apresentada o que permite uma
transformação a cada nova repetição, trazendo sempre uma experiência nova ao público e ao
espectador. Para Silva (2005, p. 124) “a construção do papel que vai surgindo, está
diretamente ligada à pessoa do dançarino e não ao personagem que se busca fora de si
próprio, como no processo teatral mais convencional.” Os seus atores-bailarinos, estão em
grande parte das vezes, interpretando a si mesmos.
Esse processo tem início, de acordo com Gil (2002) a partir de perguntas realizadas a
seus bailarinos, como citado anteriormente. Durante semanas e meses Pina trabalhava seus
temas e propostas que nunca apareciam por acaso. Sua lista de possíveis perguntas era enorme
e seus espetáculos nasciam assim, das respostas que seus bailarinos davam às perguntas que
eram realizadas. Todas essas respostas eram registradas e posteriormente passavam por uma
escolha. As improvisações surgidas após as perguntas, a propósito de um tema podem, para o
autor, gerar uma rede de associações de palavras, além de o próprio gesto remeter também a
outros gestos impensáveis.
Para Sánchez (2010, p.42) na dança-teatro de Pina Bausch há o que ela chama de
“matriz-estímulo-pergunta”, de onde nascem a ação, a música, o cenário, o que sugere a busca
por uma “arte total”. Em seu teatro-dança, por exemplo, o texto não é algo pronto que é
agregado, mas deve nascer juntamente com o movimento gerado através da pergunta.

Talvez não seja muito inusitado introduzir aqui a ideia de se pensar em termos de
movimento, em oposição a se pensar em palavras. O pensar em movimento poderia
ser considerado como um conjunto de impressões de acontecimentos na mente de uma
pessoa, conjunto para o qual falta uma nomenclatura adequada. Este tipo de
pensamento não se presta à orientação no mundo exterior, como o faz o pensamento
através de palavras, mas, antes, aperfeiçoa a orientação do homem em seu mundo
interior, onde continuamente os impulsos surgem e buscam uma válvula de escape no
fazer, no representar e no dançar. (LABAN, 1978 apud LOCAVA, 2006, p. 161).

Como afirma Gil (2002, p.169) “de fato, Pina Bausch mostra que as relações gestos-
palavras se tecem em múltiplos níveis de sentido, de consciência e de ação. De onde a lógica
estilhaçada e rigorosa das suas peças-patchworks.”
O autor aponta que quando os bailarinos estavam em cena, suas verdades mais íntimas
eram exprimidas. O papel da emoção colocado acima como fonte para a criação e o
desenvolvimento de processos criativos reaparece em sua fala.

Uma palavra vem sempre rodeada de emoções não-definidas, de tecidos esfiapados


de afetos, de esboços de movimentos corporais, de vibrações mudas de espaço.
Forma-se uma atmosfera não-verbal que rodeia toda a linguagem. Quando Pina
Bausch propõe “ternura” como palavra-chave, desperta nos seus bailarinos essa
camada atmosférica não-verbal. Não se trata do silêncio, mas de qualquer coisa que
não é da ordem nem da ausência [...]. Qualquer coisa que passa entre a fala e o
silêncio e é o murmúrio do corpo que compõe o seu sentido irradiante. (GIL, 2002,
p. 165).

Locava (2006, p.178) coloca algo importante em seus escritos, que muito traduz sobre
o processo de Pina. Segundo ela, mesmo havendo um tema para o estudo dos movimentos,
um roteiro de ideias, a dança não é algo que se possa organizar linearmente. Ela surge da
surpresa, das relações e dinâmicas durante os estudos, de novos modos de pensar, agir e
sentir, da desconstrução de padrões. Como mesmo afirma, “cada dançarino constrói a dança-
pensamento com o que desenha seu caminho na vida.”
Ao se aprofundar um pouco mais em como se desenvolvia o trabalho de Pina, Sánchez
(2010) traz alguns dados muito importantes que engrandecem a pesquisa em relação à dança-
teatro sob a perspectiva de Bausch. Durante o tempo em que passou junto com a companhia
do Wuppertal Tanztheater, Lícia Sanchéz pode observar e participar dos processos de
pesquisa. Durante a criação de um dos espetáculos, “Palermo” (1989) a companhia esteve na
cidade de Palermo na Itália para uma pesquisa de campo, acontecimento que era frequente a
cada novo espetáculo. Ali puderam vivenciar um pouco dos hábitos, crenças e costumes
daquele povo, além de não apenas observar e ver, mas de sentir essa experiência de maneira
viva. Assim sendo, as perguntas ou temas levantados pela coreógrafa aos seus atores-
bailarinos partia dessa experiência, mas nada era dito ou colocado explicitamente. Nas
palavras de Sanchéz (2010, p.53), “cada pergunta tinha o seu foco particular, que, não nos era
revelado.”
Dentro desse processo Pina não buscava a interpretação de nenhum dançarino, pois
dizia que se o fizessem ninguém acreditaria no que estavam fazendo. Durante suas criações a
coreógrafa era muito calada, se comunicava mais com o olhar ou um simples gesto. Em um
determinado trecho de sua obra a autora expõe como enxergava o trabalho:

Não devemos fazer coisas excessivamente simbólicas; não devemos fazer uma
simples associação, mas buscar uma conexão remota, individualizada, com o olhar
interior voltado para os recônditos do nosso ser, na busca de uma forma não usual,
que nos leve a um desligamento da obrigação da representação mimética,
conduzindo-nos a um pensar e agir transcendentes. (SANCHÉZ, 2010, p. 56).

As criações eram muito livres e os comentários de Pina eram feitos de forma muito
natural, nunca em tom de repreensão, pois não existia certo ou errado, de acordo com a
autora. Ela dava apenas alguns direcionamentos muito importantes durante os processos de
criação. O que importava era que cada ator-bailarino fosse verdadeiro com ele mesmo, sem
atuação. Estimulava que investigassem a fundo suas memórias culturais, experiências,
sensações e a partir daí tentassem ser o mais fiel possível ao tema, mas nunca partindo para o
óbvio e também deixando de lado a busca por intelectualizar o movimento. O que Pina
sempre buscava era o simples, mas não o banal. Pensar se iriam entender o que estavam
fazendo era algo também condenável por Bausch. O que importava ali não era uma aprovação
ou reprovação, pois a expressividade deveria ser independente, sem limitações criativas.
Para Campos (2011) o corpo na dança-teatro de Pina Bausch é um corpo carregado de
memória e de linguagem, e seus atores-bailarinos são convocados a se apresentarem como
seres humanos. De acordo com Travi (2012) o que Pina buscava em seus bailarinos, além de
disciplina e talento, era personalidade. Buscava a capacidade de falar de si, de colocar seus
sentimentos como matéria-prima de suas criações. Entretanto, Sanchéz (2010) afirma que não
existem explicações muito precisas sobre o processo. Mesmo a própria coreógrafa dizendo
pouco sobre seu trabalho, ele nada mais é do que o que se vivencia, o que se experimenta ali.
Não existe uma compreensão objetiva.
É interessante notar também que mesmo o processo parecendo ser uma criação
coletiva, onde cada ator-bailarino traz para a peça as suas contribuições, é no papel de Pina
que se encontra a chave para o fechamento desse processo criativo. Não há mais ninguém
opinando no que deve ser recortado ou não. A costura e palavra final são sempre dela.
Uma definição simples de Fernandes (2012, p. 78) sobre a dança-teatro vem quando
ela afirma que ela “não é a apenas a somatória de várias artes, nem apenas o rompimento de
suas fronteiras, mas a descoberta de que a dança está presente em todas as formas de arte e na
vida”. E essa definição se encaixa perfeitamente ao trabalho de Bausch, que não busca
engessar essa prática artística híbrida, mas sim encontrá-la em vários cantos e esquinas de
questões pessoais, de sonhos, fantasias e memórias.
A sua dança-teatro além de tudo é questionadora e leva a seu público constantes
embates com temas e discussões muito pertinentes. O interesse em se aprofundar dentro da
temática de gênero e sexualidade no trabalho de Pina parte inicialmente da leitura realizada da
pesquisa de Caldeira (2010) e posteriormente de outros autores. Dentro dos estudos da autora,
fica claro a presença das relações entre os gêneros nas obras da coreógrafa.

Os jogos de Bausch estão carregados com figuras cujo local de luta é a relação entre
seus corpos culturalmente sancionados por 'capas' de legitimação. As mulheres se
arrastam frequentemente dentro de cintas e sofrem com os sapatos de salto-alto,
mostrando-se para homens inquietos e sem conforto na uniformidade mortal dos
ternos e gravatas. E quando os homens aparecem de vestido, eles igualmente se
comprometem, se arriscam. (CALDEIRA, 2010).
Os figurinos utilizados são típicas roupas de homens e mulheres que desde o início já
questionam suas funções sociais, vestidos, ternos, salto-alto, que ao invés de servirem como
mera estética traduzem uma imagem de ideais de beleza, papéis sociais bem definidos e suas
mazelas. No espetáculo “Cravos” mulheres são protagonistas de violência física e psíquica
mostrando-se para homens medonhos. E o próprio contraponto é levantado por Pina quando
coloca em dois momentos distintos homens em uma vestimenta feminina no espetáculo,
homens que se comprometem, se arriscam e se expõem ao preconceito, tendo em si roupas
como peles, que falham ao esconder medos essenciais de cada um. Segundo Caldeira (2010)
Pina Bausch deixou como legado uma estética de dança que confronta a significação cultural
e histórica dos corpos, que eram os seus textos, que por meio dos atos performáticos estavam
sempre questionando as relações de poder. Os temas de Pina tratam dos comportamentos
humanos, dos medos, do amor impossível, da ternura entre corpos, da violência. Segundo a
autora, suas peças dramatizam a noção dos gêneros, masculino e feminino, mas como um
fenômeno histórico e não natural.
Essa questão colocada por Caldeira (2010) em relação aos gêneros como naturais ou
sociais, é trabalhada por Butler (2001) em sua pesquisa. A autora define que não se pode
identificar o gênero como um construto cultural, que é puramente imposto sobre a superfície
da matéria, seja este um corpo ou um suposto sexo, uma vez que para ela, o gênero são
significados culturais assumidos pelo corpo sexuado. Para Lévi-Strauss (1978) natural é o que
é inato na nossa herança primária, e já cultural é o que é arbitrário e artificial.
O gênero para Butler (2001) são significados culturais assumidos pelo corpo sexuado.
É importante ressaltar o papel da alteridade no processo de formatação do nosso modo de ser,
estar e viver no mundo. O conhecer do outro atinge o indivíduo o que demonstra que a
formação é muito mais social que natural. Não dá para se pautar apenas na vida biológica, que
por si só já é um ato performativo. Segundo Butler (2001), o sexo é um construto e é
culturalmente construído assim como o gênero. O sexo talvez tenha sido sempre gênero, de
maneira que não há distinção nenhuma entre sexo e gênero.
De acordo com Berghauser (2013) a dança é uma das áreas que mais tem se dedicado
aos estudos do corpo em suas mais variadas dimensões, no entanto, o que a pesquisadora
coloca em foco é que a questão de gênero muitas vezes acaba ocupando apenas o lugar de
subtexto nas produções, e esse não pensar nela como argumento discursivo, acaba
contribuindo para uma reprodução de padrões tradicionais que não se queria ou precisaria
manter, por um imaginário sociocultural óbvio e pouco criativo e reprodutor de um discurso
ideológico dominante. A autora questiona se nesse processo constante e recorrente de
repetição desse padrão de comportamento as pessoas não percebem o quão potente é o
instrumento político da arte.
Pensando o corpo como comunicação, com comunicador de conceitos, como
instrumento dessa arte, como corpomídia, a autora traz a seguinte referência:

Das diversas estruturas que atravessam e compõem este corpomídia, como classe,
etnia, raça, idade, fisiologia, etc., estão historicamente evidenciadas as estruturas de
gênero. Diferentes contextos históricos e bio-políticos produziram – ou foram
levados a cabo por – diferentes performatividades de “masculino” e “feminino” na
dança. As técnicas de dança, que normalizam possibilidades corpóreas de expressão,
são tudo menos neutras e ocultam em seus exercícios o que uma determinada
sociedade pensa e acredita com relação ao corpo, ao gênero e à sexualidade
(QUIROZ, 2011, apud KATZ, 2004, p.4).

Berghauser (2013) afirma por meio de Butler que desde os anos 70 os estudos de
gênero e da teoria queer contribuem para que as concepções nas quais se estabelece o
binarismo sexual possam ser cada vez mais problematizadas e desconstruídas nas artes
contemporâneas, no entanto, ainda hoje o que se tem acesso carrega muito desse peso
histórico de uma construção binária. É preciso explorar os processos de subjetivação e
identificação por meio da arte. Esse corpo silencioso que dança, permite uma enorme gama de
argumentações discursivas, outros modos de se fazer gênero.
O que se percebe a partir da história da dança é uma pequena ou quase inexistente
literatura relacionando dança, gênero e sexualidade, o que se mostra como um contrassenso,
uma vez que a dança trata do corpo que se expressa e a sexualidade e gênero estão intrincados
juntamente com ele. Segundo Assis (2012), por muito tempo repetiu-se na dança a imagem da
dominação masculina e submissão feminina através de um amor romântico representado em
movimentos do balé clássico executados por corpos que apresentam comportamentos de
gênero distintos.
Hanna (1999) apresenta um dado importante, ao afirmar que a dominação masculina
na dança sofre uma ruptura com o advento da dança moderna iniciada por mulheres na década
de 60. Até os dias de hoje a trajetória da dança passa por espaços de aceitação e exclusão
tanto dos homens e das mulheres, que têm os seus papéis destacados ou apagados à medida
que os interesses e as formas de pensamento definiam o que queria se dizer através da dança.
A chegada da dança contemporânea traz com ela novas estéticas, novas linguagens,
corpos construídos por relações culturais, também portadores de valores sociais e conteúdos
simbólicos. Segundo Assis (2012) neste momento, ideias codificadas de feminilidades e
masculinidades presentes em cada estilo de dança vão sendo desfeitas, havendo rupturas de
padrões e certos modelos acerca desses papéis na dança, uma vez que realidades e
estereótipos do papel sexual do cotidiano se tornam material e contexto para observação e
entendimento da dança.
Para Pavis (2010) o autor, essa análise da dança enquanto um reflexo da sociedade é
capaz de nos mostrar como se ocupam os valores, hierarquias e posições de gênero. A dança
acaba sendo esse mundo complexo e diversificado em que se vive.

Referências Bibliográficas

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