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MUNIZ SODRÉ
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A COMUNICAÇÃO ELETRÔNICA
É EPISTEMÓLOGA
O intelectual carioca faz uma prévia do recém-lançado livro A Ciência do
Comum e fala também sobre classes sociais, afeto e a formação
do jornalista
Por Rafael Grohmann
Fotos José Geraldo de Oliveira
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U
m dos maiores nomes do nica é, ela própria epistemóloga. teorias. Eu sei da escola de Palo
campo da Comunicação O que interessa à comunicação é Alto e do pensamento de Bateson
e das Ciências Humanas estudar os vínculos, as relações. e vários outros pensadores que
no Brasil e na América Latina. In- Muniz Sodré põe o dedo da pensaram na comunicação de um
telectual no sentido forte do temo, ferida ao mostrar a ainda atua- modo melhor. Mas o funcionalis-
Muniz Sodré de Araújo Cabral, lidade das teorias funcionalistas mo, portanto, a escola da socio-
consegue transitar entre diversas da comunicação e falar da finan- logia da comunicação em massa
áreas: cultura popular, educação, ceirização da comunicação. Para americana serviu à indústria da
televisão, jornalismo e estudos de ele, a comunicação é peça central mesma forma que serviu ao go-
raça. nos processos atuais do chamado verno e atendeu à demanda de
Desde o livro As estratégias “turbocapitalismo”, como ideo- pesquisa sobre o conhecimento
sensíveis, de 2006, tem provocado logia que move um novo tipo de dos públicos. Só que eu acho que
o campo da comunicação a pen- força de trabalho. isso passou. Eu acho que a era da
sar de forma complexa a ques- comunicação de massa acabou.
tão do “afeto”. Para ele, é o afeto Esse baiano de fala mansa seja em Eu acho que essa era passou. E
que nos dá a pré-compreensão russo, alemão, francês ou iorubá de certo modo foi a internet e a
do mundo e que ninguém morre recebeu a PARÁFRAGO no inter- comunicação eletrônica, o acaba-
somente por ideias. Depois, lan- valo do 5º Seminário Teorias da mento da comunicação eletrônica
çou em 2009 o livro A narração Comunicação: Quinta Essencial na internet que sepultou isso.
do fato, sobre o jornalismo, e em – Pensadores da Comunicação
2012, Reiventando a educação. ocorrido na Faculdade Cásper É preciso repensar a comunica-
Nesse mesmo ano, foi home- Líbero, onde conversou sobre fi- ção? Acho que a comunicação
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nageado em várias universidades nanceirização da comunicação, eletrônica, ela própria é uma epis-
brasileiras por causa de seu sep- classes sociais, afeto e a formação temóloga, é uma máquina episte-
tuagenário. Agora, aos 73 anos, do jornalista. Leia agora os princi- mológica também, que nos leva
acaba de lançar seu novo livro: A pais pontos dessa entrevista. a pensar a comunicação de outra
ciência do comum: notas sobre o maneira. Não mais como um pa-
método comunicacional, que che- PARÁGRAFO Eu queria pergun- radigma funcionalista de emissor
gou às livrarias em dezembro de tar sobre algo que o senhor tem que provoca efeitos e esses efeitos
2014. escrito em seus últimos artigos, são analisados, mas antes a comu-
Quem o lê se impacta da mes- como “Comunicação: uma ciên- nicação como organização das re-
ma forma que quem assistiu a al- cia em apuros”, da revista Ma- lações sociais.
guma de suas recentes palestras: trizes, e que está presente no seu
admiração e espanto. Um bom novo livro, A ciência do comum”. Por que? Houve alterações no
espanto, diria, tocando em pon- Gostaria de saber como o senhor modo de produção capitalista. O
tos polêmicos e necessários. Mu- relaciona o ainda predomínio turbo-capitalismo hoje é predo-
niz Sodré está no melhor de sua hoje das teorias funcionalistas na minantemente financeiro. Não é
forma, sem medo de dizer o que comunicação ou qual a atualida- que o industrialismo tenha acaba-
pensa, o que pode ser notado nes- de desse pensamento dominante. do, senão não estaríamos vestindo
sa entrevista. Como relacionar isso à financei- roupas, comendo. Mas não é mais
Em A ciência do comum, está rização da comunicação? a dominância ideológica. A domi-
mais inteligível do que em An- MUNIZ SODRÉ Primeiro eu nância ideológica são as finanças,
tropológica do Espelho, mas não acho que essas teorias funciona- no mundo inteiro. Mesmo com
menos complexo. O autor procu- listas deslancharam a questão da a crise financeira americana, as
ra contribuir para o debate epis- comunicação nos anos 1940 e finanças continuam. Duas coisas
temológico e metodológico do foram incorporadas não só por fortes no Brasil, o agronegócio e
campo da comunicação, ao colo- americanos, mas também por as finanças. Mas é um pouco no
car a comunicação como uma ci- franceses, alemãs e pela América mundo inteiro, com diferenças
ência pós-disciplinar. O que é afi- Latina inteira. Eu acredito nisso. de grau. É menor na Alemanha,
nal, pensar a comunicação nesse Mas é preciso dizer que, mesmo na China onde o industrialismo
tempo do “novo bios midiático”? nos Estados Unidos, isso não foi ainda tem muita vez. Ora, en-
Para ele, a comunicação eletrô- unanimidade com relação a essas tão a financeirização do mundo,
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que é muito estudada por Marx, Marx pensava assim. Mas há uma no Brasil. O problema disso é a
não com esse nome, mas com o homologia, uma analogia de se- ilusão de ascensão, de que a pas-
nome de “capital fictício”, no ter- melhança, de espírito entre o que sagem de classe se dá por mora-
ceiro volume d’O Capital. Essa ocorre na economia, na política e dia plena, saúde, educação... Isso
financeirização tem característi- na vida. É como se o tempo, ou, não tem. O consumo faz transitar
cas intrínsecas: são as caracterís- no argumento hegeliano, se tives- imaginariamente para outra clas-
ticas da comunicação tal como se se um espírito, há um espírito do se. Mas as classes sociais, ao meu
pratica hoje, com a dissolução de tempo, e esse espírito é da ordem entender, continuam.
barreiras, a liquefação do mundo. da flexibilidade, da liquefação. É
Daí aparecem metáforas que ge- ai que eu vejo a comunicação, eu Nesse mundo marcado pela fi-
ram livros como os de Bauman vejo a comunicação e a informa- nanceirização, como o senhor vê
sobre a modernidade liquida ou a ção como um biombo ideológico hoje o papel do pesquisador em
reatualização da frase de Marx lá da financeirização. comunicação na ciência brasi-
no Manifesto do Partido Comu- leira pensando no país como um
nista de que “Tudo que é sólido Nesse mundo em transformação todo, no valor social e político da
se desmancha no ar”. Esses des- ainda faz sentido pensar o tema ciência? Eu acho que não é ques-
manches das substâncias sólidas da classe social na comunicação? tão de constituir uma disciplina,
no ar, essa flexibilidade das pes- Totalmente. Eu acho que o tema nem uma ciência rígida, mas eu
soas, dos comportamentos, dos de classe, no meu entender, é mais acho que existe uma ciência da
comportamentos de gênero, por atual do que nunca. Só que as clas- comunicação e ela é pouco pen-
exemplo, vão dissolvendo suas ses são menos visíveis. E esse é um sada. O que acontece? Acontece
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barreiras rígidas. Todo esse mo- dos efeitos do turbo-capitalismo, com a comunicação uma coisa
vimento dos homossexuais, das é tornar menos visíveis essas dico- que aconteceu com a antropolo-
mulheres no mercado de trabalho tomias rígidas. Os pobres, vivem gia no inicio. A antropologia tem
é novo, inclusive no jornalismo, um sentimento de desclassifica- uma diversidade de temas que
da metade do século XX pra cá. ção. Desclassificação é o seguinte: você não sabe exatamente quem é
Não que a mulher não trabalhas- o sentimento de que não pertence o antropólogo. Ele não é só o cara
se antes, mas não tinha essa coi- à nenhuma classe social defini- que vai ouvir índio, é um método
sa massiva. Essa flexibilização de da, subalterna, porque por meio que não tem unidade. As pessoas
barreiras e das dicotomias rígidas, do consumo, da aquisição, dos fazem coisas muito diversas e, cla-
como masculino-feminino, capi- objetos, das roupas, ele transita ro, recorrem sempre a metodólo-
tal-trabalho, o que mais for, é ho- imaginariamente, para outra clas- gos ou a métodos como Turner e
mólogo e isomórfico à financeiri- se social. Então, as classes sociais a questão dos rituais. Ao Lévi-S-
zação. Portanto, eu penso nessas continuam. Mas as posições de trauss já não se recorre mais, que
transformações como resultados classe são mais móveis, transitam foi muito citado nos anos 1970 e
de uma homologia. Quero dizer, mais do que a própria situação de 1980. São antropologias portanto,
não é que o modo de produção classe. Então é preciso fazer uma no plural. Você poderia dizer que
econômico, o capitalismo, deter- diferença bem marxiana, entre si- são comunicações, mas aí o termo
“
mine mecanicamente as nossas tuação de classe e posição de clas- é confuso, pois o campo é enor-
condutas, a vida e a mídia. Nem se. Eu posso estar em uma situa- me. E essa dispersão, se é uma vir-
ção de classe social subalterna e tude do campo, é uma virtude que
me comportar como uma posição ameaça muito as ciências sociais,
de classe média alta. Isso ocorre a sociologia (a própria antropo-
Há um espírito do tempo,
e esse espírito é da ordem
da flexibilidade e da liquefação”
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logia não dá muita bola), a psico- é que o comum – e esse pra mim interna porque essa economia de
logia. A comunicação é invasiva, é objeto da comunicação – como informação é economia interna).
mas isso tem um problema por é que se constrói o comum, em E depois, o que eu chamo de me-
outro lado: a própria respeitabi- vários níveis. Eu ponho o vínculo tacrítica, uma crítica de natureza
lidade do campo. Nesses institu- e a vinculação em um nível origi- filosófica, de natureza reflexiva
tos de ciências sociais, você tem nário da comunicação. Trata-se filosófica da comunicação, pois,
um antropólogo, um psicólogo, do laço coesivo social, o vínculo pra mim, a comunicação sugere
um sociólogo. Mas não tem um, social que não passa necessaria- uma nova filosofia, uma nova ma-
eu não diria um comunicólogo, mente por mídia, embora a mídia neira de pensar o homem nesse
mas não tem alguém da área da possa estar presente na influên- novo tipo de sociedade arranjado
comunicação, pois o campo tam- cia desse vínculo. Então, como o pelo turbo-capitalismo. Um pou-
bém se fechou. Ele é extenso, mas vínculo passa pelo seu corpo, sua co como ocorreu na Grécia quan-
também se fechou. E ele examina família, as relações amorosas, as do surge a filosofia pra pensar o
exaustivamente tudo, não há nada relações comunitárias, as rela- novo homem grego: filosofia com
que você possa pensar que não ções também de culturas que não educação. Precisa educar o ho-
possa colocar sobre a égide da co- são hegemônicas e dominantes, mem grego para transformação
municação, pois a comunicação e que estão presentes no territó- da sociedade grega, passando pelo
é, no fundo, uma perspectiva. É rio e que eu chamo de cultura de período micênico, pela realeza e
uma “cor especial” que você põe arché. Um dos meus trabalhos é chegando à democracia. É nessa
em cima do objeto. Por exemplo, nesse sentido, de cultura negra. passagem que surge a filosofia.
você tem um livro de psicanálise. Então, primeiro a vinculação, eu Filosofia, portanto, é um instru-
A cor verde é Freud, a cor verme- acho essa dimensão muito im- mento de educação, de combate.
lha é Jung. Se eu jogo a cor ver- portante. Depois, é o nível da re- A filosofia hoje é acadêmica, é
melha sobre o livro, ele passa de lação social, que são as relações tudo menos combate. É especu-
freudiano para jungiano. A comu- secundárias, rearranjadas e fabri- lação, um jogo de xadrez. É boni-
nicação é uma perspectivação, é cadas por mídia, ai é o nível dos ta, necessária, mas é um jogo de
um “botar as coisas em perspecti- estudos de mídia, da economia xadrez. Às vezes, é um modo de
va”. Que perspectiva é essa? Como interna da comunicação (eu digo distinção de classe social. Fulano
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se diz filosófo, o que é um pouco tórrido, e ela foi apaixonada por pensava que devia transformar
ridículo dizer isso assim, como se ele pela vida toda. Mas ele não usa as relações de explorações, rela-
a carteira de trabalho, de profis- a palavra amor. Quem usa a pala- ções capitalistas. E antes de você
são, tivesse filosofia no rol de pro- vra amor é Scheler. Mas amor até conhecer mesmo Marx, é esse
fissões. Filosofia é o que você faz pode ser, mas no sentido amplo, sentimento que lhe leva a querer
quando pensa, e claro, você pode pois a palavra amor já está muito entender isso. Quem morre real-
dar uma dominância a isso, ser comprometida com a questão da mente por ideias? Ninguém mor-
professor de filosofia. Mas a filo- relação amorosa, com o cristia- re por ideias. O sujeito morre por
sofia como essa distinção de espí- nismo. E não é amor nesse senti- afeto, você briga por afeto. É isso
rito eu não acredito não. Todos os do, é o envolvimento da presença que te faz ir na direção da morte,
grandes filósofos pensaram, em- do homem por relações de proxi- da guerra. Hoje ninguém mais faz
bora de modo inatual, não colada midade onde entra o psiquismo, a isso, pois ninguém mais é bobo
à história em movimento, pensa- avaliação estética do mundo, este- de morrer por pátria, mas estão se
ram a sua sociedade, o seu tempo. sia como proximidade. Isso é ori- matando aí, todas essas religiões
ginário, na verdade, isso preexiste fundamentalistas que surgem. É
No livro As Estratégias Sensíveis, a dominância dos signos e da lin- afeto. Tem uma razão aquilo, tem
o senhor fala da importância de guagem. Nós nos juntamos so- um retrocesso do ponto de vista.
estudar o afeto na comunicação, cialmente primeiro por relações Lógico, é uma barbárie, é um re-
como podemos compreendê-lo de coexistência, de proximidade. trocesso, mas as pessoas catalisam
sem ser reapropriado de uma Isso aí é afeto. Estar simplesmen- as massas com isso.
maneira simplista, como muitas te junto ainda que se odeie. Estar
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vezes a gente acaba vendo. Como junto e brigar com quem não quer Com o que? Não é nem com Deus
o senhor vê a complexidade do estar junto e fazer guerra. Essa mais, é com o afeto magnético
afeto na comunicação? Eu penso relação, mesmo de força, ainda pelo pastor. Então, eu acho que a
o afeto como a condição originá- é afeto. Isso significa que afeto é mídia eletrônica é isso. Portanto,
ria do vínculo. Esse afeto não é tudo o que escapa à racionalida- por a exemplo, é um erro avaliar
o amor. O amor pode estar con- de instrumentalizada pelo signo, televisão pelos conteúdos e ver
tido nisso. Esse afeto são as rela- pela palavra. Ora, isso aí é origi- somente como rebaixamento.
ções intersubjetivas, as relações nário. É o afeto que nos dá a pré- Existe o rebaixamento como re-
sociais, são as relações humanas -compreensão do mundo. Nós só gra, mas o rebaixamento retórico:
presididas por aquilo que Hei- compreendemos depois de uma o bathos, que é a figura de rebai-
ddeger chama de Befindlichkeit, pré-compreensão, ou seja, aqui- xar um conteúdo complexo para
onde estão as Stimmung, que são lo que avaliamos institivamente, poder pegar um público mais am-
as tonalidades afetivas. Heidegger aquilo estabelecemos o vínculo e, plo, eu acho que é a jogada da te-
não usa em nenhum dos seus tex- se você prestar bem atenção, isso levisão, por exemplo. Mas eu não
tos a palavra amor. Isso é curioso, é originário, mas também é se- posso julgar essa captação de gen-
embora estivesse num momen- cundário no sentido de que todas te, essa fascinação, simplesmente
to em que esteve apaixonado ou as relações humanas essenciais por um rebaixamento de conteú-
“
pelo menos objeto da paixão de envolve essa pré-compreensão, do, pois aí eu estou dando a deter-
Hannah Arendt, que foi um caso envolve isso que estou chamando minação na alta cultura, no livro.
de tonalidades afetivas. Eu estudei É preciso ver a lógica do afeto, e
Marx, e estudo, porque sonhava, o porquê do êxito da televisão até
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