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LOU CARRIGAN

BRIGITTE MONTFORT

MORRER É UM PECADO
UM
Festa de aniversário

Não parecia que aquele dia fosse ser exatamente melhor


da vida de Brigitte Montfort, a sensacional jornalista e espiã
magistralíssima, conhecida por todos os serviços secretos
mundiais pelo apelido de “Baby”, da CIA, embora fosse o
de seu aniversário: 2 de julho.
Quantos anos?
Era muito jovem e qualquer pessoa lhe daria menos
idade ainda: vinte e dois, vinte e cinco anos. Mas às vezes
sentia-se como se tivesse cinco séculos.
Este pensamento era conseqüência de sua intensa vida
de espiã. Mas, na realidade, não tinha de que se queixar e, já
que era seu aniversário, resolvera reunir alguns amigos para
celebrá-lo com champanha e cerejas em seu apartamento do
Crystal Building.
Entretanto, não pudera localizar nenhum deles, pelo que
teria que tomar o seu champanha sozinha. Bom, sozinha,
não. Havia Peggy, sua fiel, bonita e simpática empregada. E
havia “Cícero”, o diminuto cãozinho chihuahua, que Frank
Minello lhe trouxera do México anos atrás.
De qualquer modo, sentia-se desiludida, deprimida,
enquanto voltava para casa ao volante de seu carro. Como
era possível que seus amigos tivessem esquecido seu
aniversário? Sobretudo o explosivo Frankie, seu colega de
redação, que a adorava?
Mas não localizara Frankie. E Miky Grogan, o diretor do
Morning News, onde trabalhava, tinha saído de Nova
Iorque. Charles Pitzer, o tio Charlie, chefe do Setor Nova
Iorque da CIA e seu chefe direto, por conseqüência, tivera
que, acompanhado pelo simpático Johnny, seu assistente,
voar para Washington. E Mr. Cavanagh, chefe do Grupo de
Ação da CIA, tinha que assistir a uma importante reunião,
também em Washington.
— Talvez “ele” tenha vindo — tentou consolar-se.
Tampouco. Número Um, seu grande amor, não viera
felicitá-la pessoalmente. No lobby do Crystal Building, o
velho porteiro Pete, tão logo a viu chegar, aproximou-se
para entregar-lhe um telegrama.
— Obrigada, Pete.
Tomou o telegrama com o pensamento de que também
aquele velhote esquecera a data. Bem, tinha que resignar-se.
Leu o telegrama procedente de Malta:
LAMENTANDO NÃO PODER IR
DESEJO-LHE FELIZ ANIVERSÁRIO STOP
AMOR
Angelo

— Miss Montfort.
— Sim, Pete? — ela ergueu a cabeça, guardando o
telegrama.
— Permita-me que a felicite pelo seu aniversário.
Ao dizer isto, o velho estendeu-me uma rosa vermelha,
corando um pouco. Tinha-a na mão direita, que mantivera
escondida nas costas.
Brigitte recebeu a flor sorrindo docemente e colocou-a
no decote do seu vestidinho de verão.
— Pete, você é um amor de velhote.
E beijou-o em ambas as faces.
O velho corou de uma vez.
— Você está convidado a tomar uma taça de champanha
comigo — acrescentou ela. — De acordo?
— Oh, sim, sim, miss Montfort! — rejubilou-se Pete. —
Tenho ainda algumas coisas que fazer, mas subirei dentro
de poucos minutos. Está bem?
— Claro que está. Eu espero você.
Elevador. Vigésimo-sétimo andar. Chave. A porta é
aberta e fechada.
Peggy vindo sorridente pelo corredor.
— Boa noite, miss Montfort.
— Olá, Peggy. Alguém telefonou?
— Não. Ninguém.
— Ah. Bom, o Pete vai subir. Pôs o champanha no gelo?
— Eu preparei tudo, miss Montfort, como se todos
fossem vir...
— Não se aflija, querida. Certamente tiveram motivos
importantes para faltar. Além disso, é tolice celebrar
aniversário, você não acha? Cada um deles é menos um ano
de vida que nos resta...
— Também podemos pensar que cada um deles é mais
um ano que vivemos, miss Montfort — retorquiu Peggy,
lógica. — E que este ano ninguém nos pode tirar.
— Excelente filosofia... — sorriu Brigitte.
Caminharam juntas pelo corredor e Peggy retardou-se
um pouco ao chegarem ao luxuoso living. Brigitte entrou
sozinha, acendeu a luz...
PARABÉNS A VOCÊ,
NESTA DATA QUERIDA!
MUITAS FELICIDADES!
MUITOS ANOS DE VIDA!
O coro de vozes masculinas entoou a canção com
galhardia e depois estalaram. palmas entusiásticas.
A espiã mais perigosa do mundo olhava para todos com
os maravilhosos olhos muito abertos, verdadeiramente
surpreendida. Todos os que não pudera localizar estavam
ali, esperando-a! Charles Pitzer, com uma gravata nova e
bem penteado; Johnny, seu assistente, com um sorriso
carinhoso no rosto simpático; Miky Grogan, decidido a
submeter sua úlcera a um tratamento de canapés de caviar e
champanha francês; Mr. Cavanagh, que devia ter deixado
sem sua presença a reunião de altos chefes em
Washington... E estava também Mc Gee, o velho,
encurvado, desgrenhado, míope e sabe-tudo Mc Gee, o
técnico da CIA que tantos e tantos truques lhe havia
proporcionado durante sua carreira de espiã! E Frank
Minello, naturalmente, que naquele momento estava
gritando, trepado no sofá:
— Viva a mais estupenda beleza do mundo! A imagem
sensual que povoa alucinante nossas noites de insônia...!
Talvez estivesse começando a fazer um discurso, à sua
maneira.
— Você é um grosso, Frankie... — sorriu Brigitte. — E
deixe de dar saltos no meu sofá!
E mais não pôde dizer, pois na verdade sentia-se
emocionada... e porque todos se lançaram para ela,
abraçando-a, beijando-a, desejando-lhe felicidades,
enchendo-a de presentes... Quase não os podia ouvir, pois
Minello aproveitava a ocasião para, abraçado a ela, dar-lhe
beijos e beijos e beijos... Até que conseguiu desvencilhar-se
de seus fortes braços.
— Quieto, Frankie, quieto! — reclamou. — Aprenda a
comportar-se com Mc Gee, que ainda não me deu um beijo
sequer.
Todos riram, olhando para o químico, que se mantinha
algo afastado, expressas tímida.
— E por que hei de aprender com um boboca, que não
sabe tirar partido da situação? — perguntou Minello.
Mais risos. Brigitte foi a Mc Gee e ofereceu-lhe a face.
Ele pigarreou, inclinou-se, roçando com os lábios aquele
lindo rosto...
— Barbaridade! — estrugiu Minello. O pobre coitado
nem sabe beijar! Vou ensinar-lhe como é que se faz...!
E já se precipitava para Brigitte, que o deteve com um
gesto.
— Você fique aí, Frankie. Eu me encarrego disso.
Vejamos, Mc Gee, é assim... — beijou-o numa face, depois
na outra. — Viu como é?
— Vi... — murmurou o químico.
— Bem. Pois então, beije-me agora...
Mc Gee pôs-se a beijá-la alternadamente em ambas as
faces, enquanto ia perguntando:
— Assim?... Assim?... Assim?...
— Esse cara é um sem-vergonha! — denunciou-o
Minello. — Puxa vida! Está gastando o rosto de Brigitte...
Um tipo abusado, não há dúvida!
Risos.
— O Frankie tem razão, Mc Gee — sorriu Brigitte —
você é um abusado.
— Sou — admitiu ele. — Mas abuso com mais astúcia
que esse mastodonte.
Uma gargalhada geral, enquanto Minello parecia
desconcertado, olhando com desconfiança para Mc Gee.
— Vá alguém se fiar nesses espiões... — comentou.
— Ouça — perguntou-lhe Brigitte — você não me
trouxe nenhum presente, Frankie?
— Mulher, como ia eu trazer o iate a este apartamento?
Brigitte ficou estupefata.
— Iate? Você vai me dar um iate?
— Quem? — pasmou Minello. — Eu?
— Você disse que não podia trazer o iate aqui, não é
verdade?
— Sim, é verdade.
— Compreendo isso, claro. Mas se você me comprou
um iate, deve estar em alguma parte...
— Eu lhe comprei um iate? A que vem semelhante
absurdo?
— Mas você disse... Todos ouviram!
Todos assentiram energicamente, olhando para Minello,
que parecia espantado ante a tolice do gênero humano.
— Você disse, sim — grunhiu Miky Grogan.
— Claro que disse! — reforçou Johnny.
— Eu também ouvi — afirmou Cavanagh.
— E eu também, embora seja um pouco surdo —
acrescentou Mc Gee.
— Todos estão loucos! — bramiu Minello. — Onde
arranjaria eu o dinheiro para comprar um iate?
— Mas você disse! — insistiu Brigitte. — Disse que ia
me dar um iate!
— Não, não... Devo ter-me explicado mal. O que eu
queria dizer...
— Ai! — gemeu Brigitte. — Ele vai se sair com uma
das suas!
— ... é que você merece que eu lhe dê um iate, mas
como não seria possível trazê-lo aqui, resolvi lhe dar isto...
— tirou um pacotinho do bolso. — Que há? Por que me
olham todos dessa maneira?
— Você merecia que o enforcassem, Frankie! —
resmungou Grogan.
— É possível — admitiu Minello. — Mas tenho certeza
de que o meu presente é o melhor que Brigitte já recebeu
na. vida.
— Bobagem! Seu presente será alguma...
— Que é? — interveio Brigitte. — Que é, Frankie?
— Um pedaço de meu coração.
— Santo Deus! — pasmou Mc Gee. — O rapaz é
mesmo idiota...
— O bolo! — avisou Johnny, esfregando as mãos. — O
bolo, cavalheiros!
Brigitte virou-se e viu Peggy entrando com um grande
bolo adornado de velinhas azuis, já acesas.
— Parabéns a você! — Minello reencetou a canção de
aniversário, com sua poderosa voz. Todas as outras vozes se
juntaram. Brigitte inclinou-se e soprou as velas. Palmas.
— O pedaço maior para mim! — exigiu Minello,
empurrando todo o mundo.
— Cínico! — xingou Grogan. — Seu presente foi o
menor e você quer o maior pedaço de bolo.
— Pode ser que tenha sido o menor, mas é o mais
valioso!
— Cavalheiros — riu Brigitte —, queiram servir-se
enquanto eu ajudo Peggy na cozinha.
Deixou-os cortando o bolo e discutindo, e foi para a
cozinha com Peggy, a qual olhava-a com surpresa, pois
certamente não necessitaria de ajuda....
— Eu sei, eu sei... — sorriu-lhe Brigitte, adivinhando
seus pensamentos. — Só vim ver o que Frankie me deu.
Enquanto. isso, vá servindo o champanha.
Desembrulhou o pacotinho e abriu o pequeno estojo que
continha, encontrando um simples cartão:

FRANK MINELLO
Jornalista
Declara uma vez mais que sempre
estará reservado para você o pedaço
maior de seu coração. Ou todo ele, se
preferir.
Frankie

Quando ela ergueu a cabeça, Peggy já saíra da cozinha,


mas ali estava Mr. Cavanagh, olhando-a atentamente, em
silêncio, com um envelope na mão.
— A CIA também lhe faz um presente, Brigitte —
murmurou.
— Não diga! — ela abriu o envelope e tirou um cheque
de cem mil dólares. — Expresse meus agradecimentos à
CIA, chefe. Mas, na verdade, prefiro o presente do Frankie.
Estendeu-lhe o cartão e Cavanagh, depois de ler,
devolveu-o, dizendo:
— Estou de acordo com você, querida. Eu bem quis
recusar esse cheque em seu nome, mas pensei também no
destino humanitário que você decerto lhe dará.
— Sem dúvida... — Brigitte olhou um momento seu
chefe supremo. — Veio à cozinha só para me entregar o
presente da CIA?
— Não... Claro que não deixaria de vir cumprimentá-la
por seu aniversário, mas... surgiu um pequeno caso que
gostaríamos que você nos resolvesse.
— Que espécie de “pequeno” caso, chefe?
Cavanagh consultou seu relógio e sorriu.
— O helicóptero virá buscar-nos no terraço deste
edifício às duas e meia da madrugada, para levar-nos ao
meu escritório. Até lá, o melhor será divertir-nos um pouco,
creio.
— De pleno acordo — sorriu a agente “Baby”.
***
— Me... me di-diverti co-como nu-nunca... em mi-minha
vida, ami-niigos.... — tartamudeou Minello. — E o cham-
champanha estava de-delicioso.. Vo-vou de-deleitar vocês
co-com uma nova dan-hip-ça de mi-minha invenção, que é
assim...
Estava despenteado, tinha o laço da gravata torcido e um
pouco de caviar na ponta do nariz, que vez por outra olhava,
provocando a hilariedade de todos. Mas a hilariedade
aumentou quando ele se pôs a dançar, requebrando-se,
dando pequenos saltos, fazendo piruetas e emitindo “hips”.
— Cha-chama-se “Requebra, nega, que o Carnaval
taí”.... e vo-vou pa-patentear no Rio de Janeiro.
— Por falar em negras — Mc Gee inclinou-se para
Brigitte, sorrindo —, como se comportou o Blackcolor no
seu último trabalho?
— Oh, foi um autêntico êxito? 1 — afirmou ela. —
Vejam isso! Frankie, tome cuidado, que o Miky é capaz de
se apaixonar por você!
— Diabos! — exclamou Minello deixando
imediatamente de dançar e de fingir de bêbado. — Essa
não! Eu não o suportaria como amante nem que ele me
desse um iate!
Quem estava encantado da vida era o velho Pete, que
nem remotamente suspeitava encontrar-se em companhia da
espiã mais implacável do mundo e de seus chefes. Não,
como suspeitaria ele semelhante coisa? Miss Montfort uma
espiã? Nunca! Tampouco mister Pitzer, que era proprietário
de uma floricultura; tampouco aquele senhor distinto que
claudicava ligeiramente e que naquele momento estava
consultando seu relógio...
Cavanagh olhou para Brigitte, que assentiu com a
cabeça.
— Amigos — disse ela —, se não terminarmos com a
festa, os vizinhos vão chamar a Polícia...
— Eu me encarrego dos vizinhos! — exclamou Pete.
— Não, não, Pete. São duas horas da manhã... Um
bocado tarde!
O que mais protestou foi Minello, que partiu por último,
cantando urna paródia do famoso tango:
— Adiós, hermosa compañera de mi vida, niña querida,
niña adorada.
Brigitte fechou a porta, rindo, e voltou rapidamente ao
living, onde Peggy começava a arrumar o “campo de
batalha”.
— Pronta minha bagagem, Peggy?
1
Ver A FAVORITA DO SULTÃO
— Sim, miss Montfort. Tive tempo de sobra para
prepara-la... e para rir. O Frankie estava impagável!
— Isso quer dizer que ele hoje não beliscou você?
— Claro que beliscou... Mas é tão simpático, que
ninguém pode se zangar com ele... Oh! — interrompeu-se,
ouvindo tocar a campainha musical da porta. — Alguém
deve ter esquecido alguma coisa. Ou são esses senhores
da...?
— São — murmurou Brigitte.
Peggy foi abrir, voltando segundos depois com Mc Gee
e Cavanagh. Este perguntou:
— Pronta?
— Assim é a CIA — suspirou “Baby” — por um lado,
felicita-me pelo meu aniversário; por outro, faz o possível
para que seja o último.

DOIS
A onda-chave “Europa 9999-191”

A festa de aniversário havia ficado para trás Agora era o


dia 3 de julho e, às 19 horas, o possante reator pousaria no
aeroporto de Orly.
Paris. Mais uma vez, Paris.
Já estavam tão perto que foi pedido aos senhores
passageiros que colocassem. os cintos de segurança e
deixassem de fumar, por favor, please, s’il vous plait...
Brigitte colocou o cinto, não porque tivesse ouvido as
recomendações, mas por ver que os outros passageiros o
faziam. Tinha a mente muito ocupada, lembrando as
explicações de Mr. Cavanagh. Umas explicações
surpreendentes, sobre um plano a que ela quisera se opor
desde o principio. Mas a CIA lançara mão de uma brutal
chantagem: se ela não se encarregasse de apoiar o assunto,
mandariam outro agente.
Com o que ficava claro que, lhe agradasse ou não, estava
disposta a prosseguir com o plano. E este era de tal
envergadura que ela não teve mais remédio senão aceitar.
— Não sairá bem — dissera a Cavanagh. Lembre-se de
que não faz muito os russos tentaram algo parecido com o
seu agente Uri Tepokov e a jogada fracassou.2
A réplica de Cavanagh fora taxativa, porém matizada
por um amistoso sorriso:
— Os russos se saíram mal porque lutavam contra você.
Nós nos sairemos bem porque você está do nosso lado.
— Eu não estou do lado da CIA — salientara ela —,
mas do lado desse pobre rapaz, desse Johnny que vai
arriscar a vida de um modo tão... tão absurdo.
— As coisas se farão bem, não absurdamente. Por isso
queremos contar com você. Por outro lado, nosso agente
James Nelson não é nenhum... rapaz, mas um espião
completo. Sabe muito bem o que vai fazer e aceitou
voluntariamente.
— Se os russos se dão conta, matam-no de imediato. E
não serei eu quem os possa censurar por isso.
— Bom, você vai persegui-lo como traidor e quero
deixar bem claro que se trata de um agente bem treinado,
muitíssimo perigoso. É cerebral, frio, tenaz, duro corno aço,
não teme nada nem ninguém. Foi escolhido justamente por
isso.
— Ele vai arriscar a vida.

2
Ver ESPIONAGE STORY
— Você já arriscou a sua centenas de vezes. Acaso não
tem ele o direito de fazer o mesmo?
— Está certo, chefe — resignara-se ela James Nelson
tem o direito de arriscar a vida. Que espécie de informação
tem que introduzir na espionagem soviética?
— Interessa-lhe esse detalhe? — surpreendera-se
Cavanagh.
— Não... Não me interessa, realmente. Bem, farei o
melhor que puder.
Cavanagh mexera-se inquieto em sua cadeira.
— Tome muito cuidado, Brigitte. Nós a utilizamos
corno detalhe de convicção absoluta para os russos, mas
você não deve cair, está claro. Se tal puder acontecer, peço-
lhe que abandone o assunto e afaste-se o mais possível dos
russos.
— Não sou nenhuma tola — sorrira ela, friamente. —
Além disso, já que Nelson age de modo próprio, eu não
poderia acusar os russos do assassinato de um companheiro.
Assim, se as coisas se puserem de tal modo que eu não me
sinta capaz de resolvê-las, escaparei da Europa mais que
depressa. Proteger ou vingar meus Johnnies está bem, mas
seria tolice morrer por um que quer arriscar sua vida dessa
maneira.
— Vejo que compreendeu. Quando chegar a Paris, lhe
dirão onde está James Nelson. O resto dependerá de você e
dele. Naturalmente, para estreitar o cerco, você mobilizará
todos os nossos agentes de Paris ou da França inteira, se
necessário, com os quais poderá estar em contato pelos
meios comuns. Se ocorrer algo que lhe pareça escapar às
suas possibilidades de controle, ou se precisar de ajuda
especial, não recorra aos nossos sistemas habituais de apoio:
utilize a chave “Europa 9999-191”.
— Quem me atenderá?
— Um homem chamado Waldo Jackson. Pode confiar
absolutamente nele. Cabe também a possibilidade de que
seja ele quem, por determinada circunstância, recorra a
você, chamando-a por essa onda-chave cada hora em ponto.
De modo que, cada hora em ponto, você colocará o seu
rádio nessa chave. Quanto ao resto, as instruções completas
são as seguintes...
Tinham sido umas instruções alucinantes. Tanto, que se
podia pensar que os russos engolissem o anzol. Estava tudo
tão bem planejado... Sim, talvez os russos caíssem na
armadilha que lhes preparavam.
Tudo era possível no mundo da espionagem.
***
O homem aproximou-se sorridente.
— “Baby”? — perguntou.
— Olá, Johnny! Como está?
— Otimamente. E você também, ao que vejo.
— Não posso me queixar da vida — sorriu ela. — Você
parece uma pessoa bem-humorada.
— Procuro ser. Nesta nossa vida, de espiões, é melhor
assim, não acha?
— Claro que acho. Você faz muito bem.
— Eu me encarregarei de sua bagagem. Dê-me o talão.
Cinco ou seis minutos mais tarde, ambos rodavam no
carro de Johnny-Paris, chefe da CIA na capital francesa, que
disse:
— Vou levá-la para o meu apartamento no Quai Saint
Bernard. Não é mau e do terraço vê-se o Sena. Um bom
lugar para um passeio sem caminhar muito, pois perto
temos o Jardin des Plantes...
— Onde está. James Nelson?
Johnny passou a língua pelos lábios.
— Num, pequeno apartamento da Rue Mazarine, no
Quartier Latin. O número do prédio é 22. Chegou ontem.
— E...?
— Não. Não aconteceu nada ainda. Mas posso lhe dizer
que o matarão. Os russos. Isto não pode sair bem.
— Eu penso o mesmo, Johnny, mas na Central me
disseram que ele sabe o que faz... Nós o temos sob
controle?
— Naturalmente. O que de certo modo é uma
imprudência, pois os russos podem se dar conta de que
estamos perto... Farejamos muito bem uns aos outros.
— Supõe-se que por isso vim eu a Paris: para afastar
vocês do alcance do olfato russo.
— Quer dizer que nos afastaremos e será você quem se
manterá perto de James Nelson?
— Sim, exatamente.
— Não me agrada — resmungou Johnny. — Este golpe
de introduzir agentes em outro serviço secreto já é muito
velho, “Baby”. E com todos os diabos, os russos não são
idiotas!
— Essa mesma opinião tenho eu deles. Mas não
percamos a calma. Chegaremos até onde nos seja possível
chegar e nada mais... Oh, são sete horas em ponto!
Abriu a maletinha vermelha adornada de minúsculas
flores azuis e tirou o rádio de bolso. Com uma espécie de
pinça apensa ao próprio radinho, variou a disposição das
pequenas chapas deste, colocando-as na onda-chave
“Europa 9999-191”. Deixou o pequeno aparelho no colo e
acendeu um cigarro, enquanto pensava que em certas
ocasiões era escrupulosa demais. Acabava de chegar a Paris
e já previa a possibilidade de que seu misterioso apoio, o
homem chamado Waldo Jackson, no qual devia confiar por
completo, pudesse chamá-la. Era perder tempo, mas...
Bip-bip-bip-bip... chamou o radinho.
Realmente surpresa, ela o olhou atônita, antes de apertar
o botão de admissão.
— Alô — murmurou.
— N.Y. 7117? — perguntou uma voz masculina, grave,
sumamente agradável.
Brigitte pestanejou. Sim, claro, esse era seu nome oficial
nos arquivos da CIA.
— Com efeito — respondeu.
— Digo-lhe meu nome, ou sabe quem sou?
— Sei quem é você, já que chama por esta onda. Que
aconteceu?
— Nosso... traidor já enviou seu primeiro telegrama.
— Já se pôs em contato com os russos?
— Digamos que está dando os primeiros passos. Salvo
excessiva suspicácia por parte deles, não creio que o contato
direto demore mais de dois dias. Inclusive poderia ser
amanhã mesmo, pelo que não se descuide você.
— Obrigada pela informação — replicou ela, um tanto
friamente —, mas pode ter a certeza de que não costumo
descuidar-me.
— Tão excessiva segurança em si mesma, a meu ver,
reflete uma extraordinária dose de orgulho... que pode lhe
causar sérios problemas. Entretanto, direi que estou
encantado de trabalhar com você. E vou permitir-me insistir
em minha recomendação: não se descuide nem um só
instante... O minuto terminou.
Brigitte abriu a boca para responder, mas a comunicação
tinha sido cortada. Fez o mesmo, franziu a testa e guardou o
rádio na maletinha, que tomou a deixar a seus pés.
— Quem era esse? — perguntou Johnny.
— Ninguém.
Ele aceitou a incrível resposta. Sabia que, estando a
agente “Baby” em Paris, ele deixava automaticamente de
ser o chefe na capital francesa. Tampouco se sentia zangado
com sua famosa colega, compreendendo perfeitamente seu
estado de animo: todos estavam preocupados com a sorte do
companheiro suicida James Nelson. Porque uma coisa era
certa: não enganaria os russos e estes o matariam. James
Nelson teria que ser um imbecil para ignorar isto.
— Gostaria de saber — pensou Johnny — como se sente
esse rapaz. Deve estar morrendo de medo...

TRÊS
Uma loura fácil

James Nelson saiu em pijama à pequena sacada sobre a


Rue Mazarine, aspirou fundo, olhou um instante o belo sol
da manhã, o céu azul muito límpido...
— Que bonito dia! — disse em voz alta, alegremente. —
Sente-se uma nova vontade de viver!
Esteve uns minutos contemplando divertido os
apressados transeuntes do Quartier Latin, terminando por
dar de ombros. A vida muda, nada permanece igual, o que
em certas ocasiões é lamentável. Por exemplo, lembrava-se
daquele filme que vira quando garoto. Intitulava-se “Um
Americano em Paris” e era protagonizado pelo dançarino
Gene Kelly. Formidável! Nas ruas de Paris viam-se flores,
pessoas pitorescas e amáveis que comunicavam seus
segredos de sacada a sacada, que sempre riam, que se
ajudavam umas às outras e flutuava no ar um fluido magico
de amor romântico...
— Há coisas que não deveriam mudar — disse para si
mesmo. — Mas vá você agora, meu amigo, dizer a essa
gente que se dedique a trocar amabilidades em ruas cheias
de flores... Diabo, nem sequer há flores!
Sorriu e entrou no pequeno apartamento. Assobiando,
foi ao banheiro minúsculo e mambembe.
— Sou um refinado — riu.
Banhou-se e barbeou-se.
— Estou bacana — opinou, olhando-se no espelho.
Era de fato um belo tipo. O tempo diria que outras
qualidades tinha o agente James Nelson, mas seu aspecto
magnífico estava à vista: alto, musculoso mas elegante,
louro, olhos castanhos, boca risonha, testa lisa... Bacana,
sem dúvida.
Resolveu que o menos que merecia um homem como ele
era quebrar o jejum como Deus manda. Ou seja, com ovos e
presunto. E algumas xícaras de café muito preto.
O que lhe deu o que pensar. Um bom espião devia
adaptar-se a. tudo, até mesmo ao café au lait avec
croissants dos franceses. E supunha-se que ele era um bom
espião. O melhor da CIA, no momento... depois da agente
“Baby”, claro.
— Não é formidável? Encarregam-me de uma missão
das mais interessantes e, como se ainda fosse pouco, vou
trabalhar nem mais nem menos que com a nossa querida
bonequinha! A sorte lhe sorri, rapaz!
E para estar à altura das circunstâncias, cometeu o ato
intrépido de optar pelo desjejum francês de café com leite
acompanhado de pãezinhos em forma de crescente. Não
queria ter nada de que se envergonhar quando terminasse
aquele trabalho.
Era este o estado de ânimo de James Nelson às nove da
manhã daquele 4 de julho.
***
As seis menos sete da tarde, hora pouco precisa, mas a
que indicavam as instruções tão prolixamente enviadas de
Washington, ele chegava, ao famosíssimo “Café de la Paix”
e ocupava uma das redondas mesas da calçada.
Ah, Paris, Paris...!
— Bom — fez-se sério — e que tem de extraordinário
Paris? Uma cidade grandalhona e incômoda. Claro que se
nos dedicamos a visitar museus e salas noturnas, talvez
encontremos algo diferente...
— Monsieur? — indagou um garçom.
— Whisky on the rocks.
As sete e três, quando estava saboreando o uísque,
pareceu reparar na presença dos dois homens que ocupavam
uma mesinha próxima, à qual tinham chegado apenas meio
minuto depois dele. Os dois o olhavam fixamente e ele
passou a língua pelos lábios, como aproveitando até a
última gota do uísque, enquanto fazia um imperceptível
sinal com a cabeça. Um daqueles homens fez o mesmo,
depois dirigiu o olhar à beira da calçada. Nelson tomou a
assentir com a cabeça. Tinha compreendido: fora localizado
e logo um carro se deteria ali por um instante, devendo os
três torná-lo. Okay: o mecanismo estava em. pleno
funcionamento.
Às sete e quatro, apareceu a garota loura. Chegou a pé,
olhou para todos os lados e casualmente seus olhos fixaram
os de James Nelson. A garota sorriu. Ele era um homem e
não podia fazer outra coisa: sorriu também.
Ela ampliou o sorriso e aproximou-se, embora ainda um
pouco hesitante.
Era sensacional, belíssima, estupenda... embora talvez
um tanto espalhafatosa com aquela exígua minissaia que
deixava totalmente a descoberto suas pernas douradas, a
blusinha quase transparente e de amplo decote, deixando-
lhe quase totalmente à mostra os seios. Depois, a
maquilagem exagerada, em tona vermelhos, verdes...
Claro, todos os homens a olhavam quando ela se deteve
diante da mesa de James Nelson.
— Senhor — disse em francês —, este é o Café de la
Paix?
James surpreendeu-se magistralmente.
— Sim, claro. Está escrito ai... — indicou a tabuleta.
— Oh, é que... não sei ler. E sou nova em Paris.
— Ah... Pois este é o Café de la Paix, sim.
— Tenho que esperar aqui uma amiga... Chama-se
Colette. Só há dois dias cheguei de Marselha, compreende?
— Naturalmente. Não quer sentar-se? Estamos
chamando muita atenção, “Baby”.
A loura sorriu e toda a sua atitude foi de triunfo: estava
convencida de que aquele dia tinha encontrado um
“cliente”. Sentou-se à mesa de James, dando as costas para
a dos russos, cuja expressão era agora impenetrável.
— Muito bem, monsieur Nelson — continuou falando a
loura, em francês —, vamos ao assunto. Em primeiro lugar,
os russos são esses dois que estão às minhas costas?
— São — sorriu ele, como se estivesse aceitando uma
boa idéia para passar a tarde em Paris.
— Bem. Olhe, monsieur Nelson....
— Por favor: chame-me James. É mais intimo e
agradável.
— De acordo, James... — sorriu ela. — Rapaz, você se
dá conta do que está fazendo?
— Claro: estou realizando minha missão.
— Olhe, há missões e missões. Por exemplo, se na CIA
tivessem pedido um voluntário para ir a Moscou roubar a
piteira do camarada Brejnev, talvez até eu aceitasse, pois
seria divertido e os russos têm senso de humor, pelo que
não me fariam nada. Mas isso de querer introduzir-se na
espionagem soviética enganando-os não lhes vai agradar em
absoluto.
— Ignorarão a jogada. Tudo está bem planejado.
— James, nunca subestime o inimigo, e a pior coisa que
pode fazer um espião.
— Que quer tomar? — sorriu ele.
— Um martini.
James olhou para o garçom mais próximo, mas este já
tinha ouvido e afastou-se para ir buscar a bebida.
— Escute, “Baby”: nada de sermões, de acordo? Sei
muito bem o que estou fazendo, quais são os fiscos, minhas
possibilidades e também que os russos não são tolos. Mas
aceitei este trabalho e pronto. Agora, enquanto todos
pensam que estamos contratando umas horas de amor,
sejamos objetivos. Primeira pergunta: você está preparada
para morrer?
— Estou, não se preocupe por isso: já morri várias
vezes.
— Sim? Pois eu nenhuma — ele pôs-se a rir. — Nem
penso em morrer, por ora. Tudo sairá bem... se você não me
falhar.
— Seria a primeira vez que tal aconteceria, James.
— Sempre há uma primeira vez.
— Certo. Vejamos se estou ao corrente de tudo, ou se na
Central me enganaram a respeito de você: há uma
determinada informação que interessa à CIA passar ao
MVD, mas sem que este possa suspeitar nem remotamente
que exista tal interesse, caso em que não daria importância à
informação. Assim, inventou-se este truque do agente
americano que se passa para os russos por dinheiro,
oferecendo-lhes um informe verídico e importante. Claro, se
tudo sair bem, eles darão crédito integral ao informe em
questão. É isso?
— Exatamente — sorriu James, como se tivesse
conversando sobre assuntos sexuais com a loura.
— E você se ofereceu para fazer esse trabalho.
— Lá vem outra vez você, “Baby”...
— Não tome a pronunciar esse nome, pois sei ler as
palavras nos lábios de quem as pronuncia e esses dois
russos talvez tenham idêntica habilidade. Assim, se o
“virem” pronunciar a palavra “Baby”, dê-se por morto
muito antes do que poderíamos temer. Está claro?
— Está — conseguiu sorrir James.
— Muito bem. Segundo entendo, você tem trinta anos, é
solteiro e não tem família de nenhuma espécie. Foi
excelente estudante, bom desportista e nunca teve
dificuldades com a Polícia. É inteligente, correto, digno da
mais completa confiança etc... E agora, diga-me: tem
realmente esperança de que os russos acreditem num
homem que está traindo sua pátria por uns quantos rublos?
— Eles não sabem nada de mim, portanto...
— Pelo amor de Deus! Que quer dizer com isso de que
não sabem nada de você? Vamos, James! Antes de sequer
lhe dizer “bom dia”, os russos vão investigar até a hora do
nascimento do cidadão americano James Nelson. Eu lhe
direi o que vai acontecer: eles decerto o levarão a Moscou,
o tratarão muito bem, lhe sorrirão e um deles lhe será
especialmente simpático porque falará muito bem o inglês,
terá vivido nos Estados Unidos, terá praticado os mesmos
esportes que você... Mas esse mesmo bom moço e os outros
lhe esvaziarão o cérebro, grão por grão, como se faz com
uma espiga de milho, assenhoreando-se da absoluta
totalidade dos seus pensamentos... enquanto, nos Estados
Unidos, agentes especiais do MVD dedicam-se a investigar
a fundo, sem medir despesas, a vida e os motivos que
levaram você à deserção. Isso se eles, os russos, resolverem
ser amáveis. Agora vamos supor que, desde o princípio, eles
desconfiem de que você esteja querendo fazer-lhes uma
falseta, caso em que, querido James, o pedaço menor que
restará de você caberia numa caixinha de fósforos.
Expliquei-me bem?
— Você está carregando muito nas tintas.
— Como pode você ser tão ingênuo, James? Já lhe disse:
vá a Moscou tentar subtrair a piteira de Brejnev, e é
possível que os russos vejam a coisa com simpatia. Mas,
pílulas, não tente burlá-los, não tente impingir-lhes uma
informação que favoreceria planos da CIA! Será que você
não entende?
— Escute — resmungou James Nelson, com um sorriso
que lhe custava algum esforço sustentar —, você está de
que lado, da CIA ou do MVD?
— Do seu, James. Apenas do seu. Quanto tempo faz que
se dedica à espionagem?
— Três anos e meio.
— Oh... Um veterano, sem dúvida! Eu comecei a fazer
pequenas coisas quando tinha dezessete e fui admitida na
CIA aos vinte e três. Sou espiã há muito mais tempo que
você. E vou lhe dar um conselho: venha agora comigo,
abandonemos Paris imediatamente e esqueçamos este
assunto. Do contrário, pode considerar-se condenado à
morte.
Por um instante, só um instante, apareceu nos olhos dele
urna expressão de medo, mas logo em seguida sua vontade
se manifestou.
— Quero concluir este trabalho que comecei — disse.
Brigitte Montfort, aliás “Baby” e agora uma prostituída
garota das ruas de Paris, fechou os olhos.
— Que Deus o proteja, James. Oh, meu martini... —
pôs-se a rir e, quando o garçom colocou o martini sobre a
mesinha, bebeu-o de um trago. — Que bom! Mas, querido,
eu tenho um sortimento completo em minha morada... —
talvez se ouvisse excessivamente sua voz. — Inclusive uma
garrafa que só abriria para você.
— Faria isso por mim? — sorriu James Nelson,
beliscando-lhe o queixo.
— Claro que sim, meu bem!
— Obrigado — James piscou um olho. —Em sua
morada deve haver outras coisas que um homem não
poderia desdenhar... A propósito, como é seu nome?
— Poupée.
— Um nome muito apropriado... Ei, pode nos chamar
um táxi?
— Parece que querem falar com o senhor na outra mesa
— replicou o garçom.
— Bom serviço... Ai tem, com gorjeta e tudo... e vá para
o inferno!
Poupée deu uma risadinha e levantou-se, imitando
James, que lhe passou um braço pela cintura, dirigindo-se
os dois para a beira da calçada, expondo ele uma nova idéia
que, a julgar pelo seu tom de voz, parecia-lhe excelente:
— E se primeiro fôssemos passear pelo Sena numa
lancha? A noite é jovem!
— Oh, mas eu preferia.
***
Os dois russos sentados no Café de la Paix nada mais
puderam ouvir, porém, pela atitude autoritária do
americano, parecia que sua vontade ia prevalecer. Por uns
segundos, viram-nos caminhar pela Place Vendôme, depois
entreolharam-se.
— Isto não me agrada, Ilya — murmurou um deles.
— Nem a mim, Alex... Mas — o outro levantou-se e
deixou uma cédula sobre a mesa — vamos segui-los.
Alex também se levantou, cenho carregado.
— É uma jogada dos americanos —afirmou.
Ilya deu de ombros e indicou o par, que estava se
afastando demasiado deles.
— Será melhor que nos separemos — disse. — Avisarei
Piotr para que esteja perto de nós com o carro, por via das
dúvidas.
— Está bem.
Cada um por um lado, foram atrás do casal.
Atravessaram a praça e, cada um por uma calçada, a. Rue
Castiglione, de modo que chegaram à Rue Rivoli. James
Nelson e a marselhesa chamada Poupée, de braço dado, já
alcançavam a Place de la Concorde...
Ilya tirou do bolso um rádio diminuto e abriu o canal,
colocando o aparelho diante da boca com toda a
naturalidade.
— Diga — ouviu.
— Piotr, algo esquisito está se passando com o
americano, que se dirige com uma mulher fácil para o Sena.
Atravessamos agora a. Place de la Concorde e logo
chegaremos ao cais... Está nos vendo?
— Não. Mas localizo vocês em segundos.
— Faça isso. Nem Alex nem eu estamos gostando da
coisa.
— Fiquem tranqüilos: estarei por perto quando
precisarem de mim... se este maldito trânsito de Paris
permitir. Já estou farto daqui!
— Venha direto ao Cais das Tulherias: parece que
esperam encontrar algo lá.
Ilya fechou o radinho, guardou-o e olhou para Alex, que
caminhava a uns vinte metros à sua esquerda, como um
tranqüilo transeunte. O olhar que ambos trocaram foi de
autêntico mau humor e expressava claramente que, se
dependesse deles, aquele americano que fosse para o diabo.
Mas talvez... talvez o americano tivesse qualquer coisa
que valesse a pena.

QUATRO
Novos personagens em cena

— Tudo Vi bem — riu Poupée, algo escandalosamente.


— Os dois estão nos seguindo, James.
— Bom — riu também este —, creio que chegou o
momento da grande comédia... Ou deveríamos dizer
tragédia?
— Você gosta mesmo de brincar, hem? Estamos
chegando e dentro de alguns segundos tudo começará... Boa
sorte, rapaz.
— É a primeira coisa agradável que você me diz desde
que entramos em contato — riu o espião, apertando-lhe com
força a cintura.
— É muito possível que seja a última que você ouça na
vida.
— Bah! Já estragou tudo... Aí vêm eles. Até a vista,
“Baby”.
— Deus o permita...
Estavam muito perto da amurada que bordeia o Sena e,
súbito, James empurrou rudemente Poupée para ela,
enquanto levava a mão direita à axila esquerda. Retirou-a já
empunhando a pistola com silenciador e, justamente quando
Poupée ia de encontro à amurada, disparou... Ela soltou um
grito, levantou os braços e, impulsionada, pela força da
bala, transpôs a amurada e precipitou-se no rio...
Um instante antes tinham aparecido três novos
personagens em cena. Três homens, cada um por um lado.
Um deles lançou um grito, sacou também sua pistola e
atirou contra James Nelson, que estava como hipnotizado
depois de ver Poupée saltar por sobre a amurada. Mas o
balaço o fez reagir: virando-se rapidamente, pôs-se a correr,
coxeando de modo visível.
Dois dos três homens correram para o rio e lançaram-se
à água sem hesitar. Imediatamente esquecidos de James
Nelson. O terceiro correu atrás deste, pistola na mão,
espalhando o pânico entre os passantes, que se desviavam
para todos os lados em busca de refúgio. O truque estava
perfeitamente montado: James virou-se, tomou a atirar e o
único homem que ia em sua perseguição tropeçou, caiu,
perdeu a pistola mas arrastou-se atrás dela e voltou a
empunhá-la...
Atirou justamente quando Ilya se aproximava de James,
fazendo-lhe desesperados sinais... Ilya girou sobre si
mesmo, tombou e levantou-se, enquanto Alex intervinha,
disparando contra o homem que perseguia James, o qual se
apressara a arrastar-se para trás de um dos bancos de pedra.
O carro apareceu como por arte de magia. Alex o
indicou e correu a ajudar o companheiro, cuja dificuldade
em caminhar era cada vez mais notória. O primeiro a entrar
no carro foi James Nelson, com o rosto crispado e a perna
direita ensangüentada.
— Depressa! — gritou ao motorista daquele carro. —
Saiamos daqui agora mesmo, era uma cilada...!
Piotr não lhe fez o menor caso. Saiu do carro, correu
para seus camaradas e, num instante, ele e Alex colocaram
Ilya na parte traseira. Alex sentou-se a seu lado, enquanto
Piotr tomava ao volante e dava a partida...
— Me encontraram... — ofegou James — e me armaram
uma cilada! Aquela mulher...!
— Cale-se — cortou secamente Alex. — Piotr, cuidado:
se correr demais, algum guarda nos fará parar.
— Como está Ilya? — perguntou Piotr, voz crispada.
— Não sei. Vou examiná-lo... Guie com cautela para a
mais próxima saída de Paris.
— Se escaparmos desta, irei beijar as bochechas de Mao.
Que sejam malditos todos os americanos do mundo! Não
devíamos...!
— Cale-se você também e guie com cuidado! Ilya está
sangrando!
Piotr começou a resmungar, mãos crispadas no volante,
mas conduzindo o carro com extrema cautela. Nenhum
outro parecia segui-los.
— Vou sair por Neuilly — disse.
— Está bem — aceitou Alex.
— Embora talvez convenha, antes de tudo, conseguir um
médico para Ilya.
Ele já não precisa.
Piotr ficou lívido. James Nelson lançou uma exclamação
e olhou para o cadáver do russo, o qual Alex, também
lívido, estava fazendo deslizar para o piso do carro. Feito
isto, Alex sentou-se adequadamente e seus olhos frios
cravaram-se nos do espião americano.
— Era... era “Baby” — balbuciou James. — Eu não
sabia...
— “Baby”? — sobressaltou-se Alex. —Ela interveio
nisto?
— Tenho certeza de que era ela! Não sei como pôde
acontecer, mas me localizaram e enviaram “Baby”, ignoro
para que...
— Ignora? — surpreendeu-se Alex. — Esta é boa! Está
bem claro que o querem caçar e, ao que parece, não se
contentavam com você: queriam saber a quem via, o que
fazia... Ou não?
— Não sei... Sim, suponho que sim. Ela... Pensei que
fosse uma garota qualquer e estive a ponto de mandá-la ao
diabo, mas dei-me conta de que não era assim...
— Por que se deu conta? Por qual detalhe? Ou ela
mesma lhe disse?
— Não, não. Não me disse. Mas descobri... Na CIA
todos sabemos que os olhos de “Baby” são verdes e dizem
que, quando olham para alguém, esse alguém sabe se ela
está querendo matá-lo. E os olhos daquela mulher...
— Nunca a tinha visto antes?
— Nunca. Mas sei que era ela! Compreendi que estava
perdido, que ela estava brincando comigo e quis conseguir
uma oportunidade. Imaginei que os outros estivessem perto
do café e por isso a afastei de lá, não só por mim, para
tentar escapar, como por vocês.
— Por nós? — interveio Piotr.
— Sim... Não compreendem? Se me haviam localizado,
deviam ter visto vocês também!
— Ah... Teve muita consideração conosco, hem?
— Se me indispusesse também com vocês, quem ia me
ajudar no futuro?
— Rapaz esperto — replicou secamente Alex.
— Devemos partir o quanto antes... Me arrependo de
tudo isto, fui um idiota! Como pude pensar que
conseguiria...?
— Que é que você tem para nos vender? — cortou Alex.
James Nelson olhou-o vivamente, primeiro alarmado,
depois com visível desconfiança. Apertou os lábios e não
respondeu.
— Como queira — Alex deu de ombros. — Mas não
esqueça que procurou contato conosco. Muito importante
tem que ser sua mercadoria para que pedisse tanto dinheiro.
Só por isso nos interessou. E agora que Ilya está morto, será
melhor para você que o assunto tenha valido a pena.
— Está me ameaçando? — retrucou James.
— Ilya morreu — disse Alex, como resposta. — Quanto
a isso de que você tenha eliminado “Baby”... Bom, Nelson:
se não estivesse a meus pés o cadáver de Ilya, eu teria que
rir.
— Que quer dizer?
— Espero que entenda minha explicação: se aquela
mulher era “Baby”, não morreu, e se morreu, é porque não
era “Baby”. Compreende?
— Não...
— Escute, estamos há um tempão procurando “Baby”
por todo o mundo e nunca conseguimos fazer-lhe sequer um
arranhão, e agora vem você, um homem da CIA, e mata-a
diante de nossos narizes! — Alex bufou, furioso. — Com
quem pensa que está tratando? Com cretinos?
— Não... Bem, pode ser que não fosse “Baby”, mas eu a
matei e... Tinha que ser ela, pois seus olhos me pareceram
de gelo e dizem...
— Oh, cale-se — grunhiu Piotr — você parece um
menino recitando muito mal uma lição.
— Acham que estou mentindo? — empalideceu James.
— Isso veremos. E será melhor que você esteja
preparado, Nelson.
— Escutem: não estou mentindo a vocês: tenho a
mercadoria, é um microfilme, que explica... Eu não estou
mentindo!
— Diga-me uma coisa: tem esse microfilme no bolso?
— Não, não....
— Oh, que surpresa! — ironizou Piotr.
— Onde está? — indagou Alex.
— Longe daqui... Muito longe.
— Onde?
— Na Alemanha.
— Na Alemanha?! — bufou Alex.
— Enviei-o para um lugar onde estive há dois anos. Está
lá, juro!
— A Alemanha é menor que a Rússia — deslizou Piotr
—, mas ainda assim não será fácil ir lá e localizar um
microfilme. Além disso, há duas Alemanhas... E qual delas
e onde exatamente?
— Não estou mentindo — tremeu a voz de James —
enviei-o a uma pensão, para Richard Walf... Basta que eu vá
buscá-lo.
— Que pensão, de que cidade?
— Isso não digo... Não digo!
Alex olhou-o longamente, em silêncio. Depois acendeu
um cigarro e durante alguns minutos rodaram sem dizer
palavra. Chegaram à Place de Verdun. Diante deles, ampla
e reta, estava a Avenue de Neuilly. Não tardariam muito a
sair de Paris...
— Eu a matei... — disse de súbito James, voz crispada.
— Santo Deus, matei “Baby” e estou condenado à morte!
— Console-se — troçou Alex — se você a matou, em
Moscou lhe darão seis milhões de dólares.
— Não chegarei vivo a Moscou, não poderei chegar
vivo a parte alguma....
— Conosco você está seguro.
— Com vocês? Ao contrário: eles sabem que meu
contato foi com os russos!
— E daí?
— Vocês não estão entendendo... Por Deus, matei
“Baby”! Toda a CIA da Europa vai se pôr em movimento,
todos os agentes russos, seus contatos, seus canais de
informação e transporte vão ser tão estreitamente vigiados
que vocês não poderiam contrabandear nem um cigarro...
Vocês não entendem o que “Baby” significa para a CIA em
todo o mundo! Vão virar a Europa pelo avesso e, quanto a
mim...
Não disse mais. Mordeu os lábios e seus olhos
pareceram contemplar imagens horrendas. Escondendo o
rosto entre as mãos, deu um soluço que estremeceu todo o
seu corpo. Alex o olhava impressionado e inclusive Piotr
virou a cabeça para examiná-lo com espanto e desdém.
— Preciso fumar... — murmurou James.
Alex e Piotr pareceram não o ter ouvido.
O americano sacou o maço de cigarros, colocou um
entre os lábios, acendeu-o, guardou o maço... e quando
tomou a sacar a mão, após desviá-la velozmente para a axila
esquerda, a pistola estava nela, firmemente apontada para a
cabeça de Alex, que se sobressaltou e empalideceu um
pouco.
— Continue guiando! — gritou James, que captou o
movimento de cabeça de Piotr. — Não tire as mãos do
volante!
— Que nova jogada é esta? — perguntou Alex.
— Já disse: não quero estar com vocês por nada no
mundo. Darei um jeito para chegar à Rússia por meus
próprios meios: sozinho, a CIA não me encontrara.
— Está louco? — pasmou Alex. — Pretende atravessar
metade da Europa sozinho e ferido?
— Conseguirei. Você aí, pare — Piotr obedeceu e James
moveu a pistola, sempre apontando-a para Alex. — E você,
saia do carro.
— Mas... Vai deixar-nos aqui?
— Só você. Saia! E se tenciona atirar quando nos
afastarmos, eu lhe direi o que acontecerá: primeiro, meterei
uma bala na cabeça do seu amigo e, depois, lembre-se de
que estarei protegido dentro do carro, enquanto que você...
— Entendo, entendo... — grunhiu Alex.
— Sobretudo, deixe de nervosismo, Nelson. Vou lhe
obedecer. E lembre-se que, nas atuais circunstâncias, não
lhe convém inimizar-se conosco. É uma advertência
amistosa.
— Saia.
Alex assentiu e saltou do carro. James fechou a porta,
deslizando no assento de modo a não poder ser baleado de
fora.
— Siga em frente — ordenou.
Piotr não opôs resistência. Continuou conduzindo o
carro, sempre em direção oposta a Paris. Decorridos cinco
minutos, já quase de noite, James deu-lhe instruções para
que abandonasse a estrada, mostrando-lhe um grupo de
árvores. Quando o veículo se deteve junto a estas, ordenou:
— Ponha as mãos na cabeça e saia do carro.
Inclinando para a frente, abriu a porta dianteira e o russo
saiu. James o imitou e, aproximando-se dele por trás, tirou-
lhe a pistola.
— Agora, tire o seu companheiro morto do carro e leve-
o para o meio das árvores.
Sempre em silêncio, Piotr obedeceu. Carregou nas costas
o cadáver de Ilya, caminhando para o meio das árvores,
onde já quase nada se via. Depositou-o no chão... ao mesmo
tempo que recebia na cabeça uma coronhada que o levou à
plácida região dos sonhos.

CINCO
Fora da jogada

Cinco de Julho.
Vinte e quatro horas antes, a coronhada enviara Piotr ao
país dos sonhos.
Agora, com a cabeça vendada e um copo de vodca na
mão, as coisas lhe pareciam menos más. Já não lhe doía
nada e uma tarde clara embelezava o pequeno jardim da
casinha vez por outra utilizada pela espionagem russa perto
de Rouen e a poucos quilômetros de Paris.
O camarada Piotr se aproximara de uma janela para
olhar o carro que acabava de parar diante da casa. Nada a
temer: eram Alex e Mischa... Mischa Nitzin, chefe dos
serviços do MVD na capital da França.
Admirava Mischa. Falava nove línguas, tinha uma
cultura notável e era capaz de comportar-se em sete países
como se fosse nativo. Além disso, era elegante, sóbrio,
atraente, dotado de grande inteligência e uma. memória
extraordinária.
— Olá, Piotr — sorriu quando este abriu-lhe a porta. —
Como vai essa cabeça?
— Bem. Parece que está inteira.
— Ótimo. Alguma novidade?
— Não. Tudo muito tranqüilo por aqui.
— Pois será o único lugar tranqüilo da Europa — disse
Alex. — Um gole de vodca, Mischa?
— Sim, sim. Diabo... — deixou-se cair numa poltrona.
— Estou arrebentado!
— Que aconteceu? — Piotr olhava de um a outro. —
Que está acontecendo, melhor dito?
— A CIA em ação — murmurou Alex, servindo vodca
em dois copos. — Vou buscar gelo.
Dirigiu-se à cozinha e Piotr olhou para Mischa, que
estava acendendo um cigarro.
— Que está fazendo a CIA? — indagou.
— Parece que, na realidade, o americano matou a agente
“Baby”.
— Isso é mentira! — exclamou Piotr.
— Sim, uma mentira americana — sorriu Mischa. —
Mas talvez não. Você precisava ter visto o aeroporto de
Orly esta manhã: havia lá mais americanos que em
Washington, com caras mais compridas que a rota da
Sibéria. Não sei... Uns trinta ou quarenta. Estou falando de
americanos da CIA, naturalmente.
— E que faziam lá?
— Metemos o nariz em toda parte e não conseguimos
averiguar mais que duas coisinhas aparentemente pouco
importantes: um fardo muito bem embalado que saiu para
Washington no avião da “Panam” das onze e meia; depois
disso, todos os americanos abandonaram o aeroporto.
— Que continha o tal fardo?
— Era bastante grande, sólido e hermético para que um
cadáver pudesse chegar sem novidade aos Estados Unidos.
— Ora vamos... — resmungou Piotr. — Esse truque é
mais velho que a catedral de São Basilio!
— Sim, o truque é muito velho, eu sei. Mas...
— Mas...?
Mischa Nitzin ficou profundamente pensativo, como
desligado do mundo exterior, e Piotr respeitou seu silêncio.
— Não sei... — murmurou ele, por fim.
— Não sei, Piotr. — Havia lá agentes americanos com
lágrimas nos olhos... Bem sei que lágrimas não significam
nada em espiões, gente useira em fingir, mas aqueles
pareciam estar chorando de verdade. E não foi só isso:
durante toda a noite, por toda a Europa, a CIA esteve
agitada e as notícias que me chegam indicam claramente
este fato. No momento, todos os serviços de espionagem, o
nosso inclusive, deixam-lhe o campo livre, pois ninguém
quer enfrentar os americanos nestas condições. Eles
suspenderam todos os trabalhos de rotina, mudaram suas
ondas de rádio, estão revisando toda a sua rede de
comunicações e diz-se que até do norte da África chegam
mais agentes à Europa.
— Tudo isso para caçar Nelson?
— Só lhe digo uma coisa, Piotr: eu não gostaria de estar
na pele desse americano. Por nada no mundo.
— Mas então é verdade? Aquela garota do Café de la
Paix era “Baby” e ele a matou?
— Tudo parece indicar que sim.
— E o que pensa você, Mischa?
— Bem, eu só acredito no que vejo, mas também admito
que sejam verdadeiras certas coisas que jamais vi nem
verei. Claro, nossos camaradas residentes em Washington
foram avisados e esperam a chegada desse avião, para ver o
que podem averiguar. Enquanto isso, nós também
procuraremos James Nelson, com muita discrição, já que de
nenhum modo, entenda-o bem, de nenhum modo quero um
novo confronto armado com os americanos.
— Eles mataram Ilya.
— Por enquanto, vamos deixar pendente essa conta.
Levamos vantagem sobre a CIA com respeito à busca de
Nelson e não vou comprometer nossas possibilidades
pegando-me a tiros com os americanos. Tudo chegará, a seu
devido tempo.
— Está bem — aceitou Piotr, de má vontade. — E Ilya?
— Está a caminho da Rússia. Chegará esta mesma noite.
— Tal como “Baby” a Washington — assinalou Alex.
— Seria um tanto... sarcástico que ela tivesse realmente
morrido — comentou Piotr. — Tantos anos complicando
nossas vidas para morrer às mãos de um dos seus Johnnies.
Diabo, não consigo acreditar nisso, Mischa! Um americano
pede um milhão de dólares por uma informação e, como
“Baby” intervém, ele a elimina...!
— Mais cedo ou mais tarde saberemos a verdade, Piotr.
Agora, o que realmente interessa é localizar James Nelson.
— Deve estar escondido como um rato em qualquer
canto.
— Não. Creio que você se engana.
— Se eu fosse ele...
— Espere. Ele dispunha do nosso carro, não é assim?
— O miserável! Quando eu lhe puser as mãos em cima...
— Calma. Nada de tolices. O Diretório o quer vivo...
pelo menos até que nos facilite essa informação que custou
a vida à agente “Baby”. Assim, vamos trabalhar direito, sem
violências, com luvas brancas. Quanto a Nelson, creio que
já está na Alemanha.
— Pensa que terá ido ao lugar para onde enviou o
microfilme?
— Esse microfilme é para ele uma espécie de seguro de
vida com respeito a nós. Se eu fosse ele, teria ido buscá-lo
imediatamente. Pode ter viajado toda a noite e já estar na
Alemanha.
— Em qual das duas?
— Na do Leste, não — afirmou Mischa.
— Já estão em marcha as ordens para que James Nelson
ou Richard Walf seja procurado por toda a Alemanha
Federal. Será encontrado: não esqueça que vocês o
fotografaram no café e que essas fotos já devem estar
circulando na Alemanha. Assim, nossos homens o
encontrarão.
— Salvo se os americanos o encontrarem antes.
— É um risco que temos de aceitar. De qualquer modo,
continuamos em vantagem, pois duvido que Nelson lhes
dissesse que estaria na Alemanha e que escolhera o nome de
Richard Walf para movimentar-se por esse país. Levamos
vantagem. Especialmente uma, tão grande, que sinto
vontade de rir.
— A que vantagem se refere?
— “Baby” não intervirá nisto, esteja realmente morta ou
seja tudo isto um truque. Se morreu, tudo terminou para ela.
E se querem fazer-nos crer que está morta, não irão lançá-la
contra nós neste assunto. Portanto, nada a temer de sua
parte.
— É verdade — sorriu Piotr. — Se morreu, melhor. Se
vive e querem fazê-la passar por morta, não podem utilizá-
la esta vez.
— Exato: de um ou de outro modo, “Baby” foi retirada
de circulação.

SEIS
Uma megera repulsiva

A bela garota ruiva de olhos verdes deteve-se diante do


número 6 da Nützelstrasse, em Nuremberg, e sorriu
balançando sua bolsa de grande tamanho. Parecia satisfeita
da vida.
Um tanto ofuscada pelo sol, transpôs o portal, de modo
que só viu o homem que ia saindo quando este se chocou
contra ela.
— Perdoe-me! — desculpou-se o homem, em alemão.
— Machuquei-a?
Segurava-a gentilmente por um braço, olhando-a com
vivo interesse, desolado. A linda ruiva sorriu, movendo
negativamente a cabeça, enquanto o contemplava. Era
rubicundo, mais baixo que ela e usava grossas lentes.
Parecia algo ridículo com seu ar paternal de proteção, pois
não acontecera nada de importante.
— Sinto muitíssimo — insistiu ele — desculpe-me... E
desejo-lhe um bom dia, fraulein.
Também esta vez ela não disse nada, limitando-se a
sorrir. O homenzinho soltou-a e saiu à rua. Então ela
dirigiu-se a uma porta da direita, onde estava pregado um
cartão: Frau Wilma.
Bateu e a porta foi aberta. Uma mulher de cinqüenta
anos, cabelos cor de palha desgrenhados, pessimamente
maquilada e envolta numa velha bata olhou-a com ar de
hostilidade, olhos semicerrados devido à fumaça do cigarro
que tinha nos lábios.
— Que quer? — perguntou. — Se procura quarto, tenho
três livres e o preço...
— Não — sorriu a ruiva. — Procuro o senhor Walf.
— Walf?... Ah, sim, herr Walf. Chegou há dois dias. Lá
em cima, quarto 12.
— Obrigada, frau Wilma.
A repelente mulher resmungou alguma coisa e fechou a
porta. Tomando a sorrir, a ruiva subiu a escada. Segundos
depois estava diante da porta 12, na qual bateu suavemente.
Durante uns segundos, nenhum som dentro do quarto.
Depois uma voz de homem, tensa:
— Quem é?
Ela aproximou a boca da madeira e disse, em inglês:
— Uma amiga, mester Nelson: sou russa.
Ouviu girar a fechadura, mas a porta não se moveu.
Ouviu novamente a voz do homem:
— Entre... com os braços levantados.
Mais um sorriso e, com a ponta do pé, ela empurrou a
porta, entrando com os braços bem erguidos, bolsa na mão
direita. A porta fechou-se às suas costas e ela permaneceu
imóvel, enquanto por trás lhe tiravam a bolsa. Nem sequer
pestanejou quando a mão esquerda de James Nelson
percorreu-lhe o corpo, de cima a baixo, à procura de alguma
arma que não existia.
— Baixe os braços e vá sentar-se na cama.
Ela assim fez e, já voltada para o americano, olhou-o
com grande atenção. James
Nelson, por sua vez, com uma barba de três dias e
expressão sombria, olhava-a com um misto de desconfiança
e esperança.
— Você não me parece em muita bom estado — disse a
ruiva —, o que aliás estava previsto: trago algumas coisas
de que está necessitando, inclusive um barbeador a pilhas
adquirido na Holanda. Também o necessário para atender
ao seu ferimento adequadamente, a fim de que possamos
partir sem chamar demasiado a atenção.
James sentou-se numa velha poltrona de couro, colocou
a bolsa da ruiva sobre os joelhos e abriu-a com a canhota,
sem deixar de apontar-lhe a pistola. A primeira coisa que
viu foi o estojo do barbeador, de fabricação americana.
Também havia cigarros alemães, uma garrafa de uísque
escocês e, com efeito, anti-sépticos, gaze, esparadrapo...
Súbito, ele ergueu o olhar.
— Como me encontraram? — perguntou.
— Sabíamos que você viria à Alemanha, pois que o
disse aos meus camaradas de Paris.
— Não lhes disse semelhante coisa!
— Perdão. Mas disse que tinha o microfilme na
Alemanha e que o viria buscar sob o nome de Richard Walf.
— E só com esses dados me encontraram?
— Você levou um carro nosso, lembra-se? — sorriu ao
vê-lo morder os lábios. — Sim, vejo que se lembra. Por
sorte para você, os americanos não dispõem de um dado tão
conveniente, mas nos conhecemos o carro, pois todas as
suas características foram fornecidas aos nossos agentes da
Alemanha, acompanhadas de fotografias de você, feitas no
Café de la Paix, de Paris. Primeiro encontramos o carro,
que você deixou na rua. A partir daí, só foi preciso indagar
discretamente se nas proximidades de onde está o carro
havia um homem chamado Richard Walf.
— Está bem. Eu devia ter escondido o carro, mas não
sabia onde, nem como... Além disso — olhou-a com olhos
muito abertos e engoliu em seco —, estou assustado, eis a
verdade.
— Não deve sentir-se envergonhado por isso: todos já
nos assustamos alguma vez. E, no seu caso, é perfeitamente
compreensível. Agentes da CIA, servindo na Europa, bem
como alguns vindos da África e do
Oriente Médio, estão à sua procura por toda parte.
— Imagino que sim — ele deixou a bolsa no chão e
guardou a pistola. — Meti-me na maior enrascada de minha
vida e tudo por um miserável milhão de dólares que em má
hora me ocorreu ganhar...
— A respeito disso, esperamos que você já tenha o
microfilme em seu poder.
— Talvez — ele a olhou escrutadoramente.
A ruiva pôs-se a rir.
— Chamo-me Raissa Nochilov e não vim aqui perder
meu tempo em tolices e desconfianças. Enviaram a mim
porque, sendo mulher, supõe-se que chamarei menos a
atenção dos agentes da CIA. Eles estão se movendo por
toda parte. Meu trabalho é de intermediária, de ponte entre
você e um chefe do MVD vindo expressamente de Paris.
Portanto, simplifiquemos as coisas: quer ou não quer que o
levemos à Rússia?
— Já não sei o que quero...
— Mas será melhor que tome uma decisão, pois nunca
se viu na Europa tamanho número de espiões americanos.
Inclusive alguns foram vistos com lágrimas nos olhos ao ser
enviado a Washington o cadáver de “Baby”...
— Ela foi encontrada? — sobressaltou-se James. —
Encontraram seu cadáver?
— Naturalmente. Por que se surpreende?
— Bom, ela caiu no Sena, mas...
— Dois de seus Johnnies saltaram em sua ajuda.
Puderam tirá-la do rio, mas já estava morta.
— Então é verdade... Eu a matei e ela era “Baby”...
— Claro que era. Seu cadáver saiu de Orly no dia 5 e
aquela mesma noite chegou a Washington, de onde foi
levado para Langley com uma escolta de vários carros,
segundo agentes nossos lá informaram.
— Eu a matei! Eu, eu, eu...
— Sente remorsos?
— Sinto, sim!
— Bom, você deve considerar sua situação naquele
momento: depois de fugir dos Estados Unidos com o
microfilme, foi localizado em Paris e a CIA enviou “Baby”
para ver o que você fazia, com quem se avistava...
— Sim, sim, foi isso!
— Temos a intenção de tirá-lo de Nuremberg esta
mesma noite, portanto não há tempo a perder. Quer que o
levemos para a Rússia ou não?
— Que outra coisa posso fazer?
— Pode ficar aqui, escondido, até que a CIA o encontre
e seus ex-companheiros o façam em pedaços.
— Irei com vocês — arqueou James.
— Muito bem. E o microfilme?
— Irá comigo, naturalmente.
— De acordo. Teve algum contratempo devido à sua
perna ferida?
— Não. Cheguei aqui de madrugada e essa bruxa nem
me pôde ver direito, de tão bêbada, mas consegui fazer com
que entendesse meu nome e me entregasse o microfilme.
Desde então não sai deste quarto. Vez por outra ela me traz
comida.
— Suponho que se refere a frau Wilma — sorriu Raissa.
— Na verdade é uma mulher repulsiva. Posso ver esse
ferimento?
A calça fora rasgada pelo próprio James até o joelho, de
modo que a russa teve apenas que retirar o pedaço de lençol
que cobria a ferida.
— Suponho que lhe doa bastante, mas não tem
gravidade. Farei um curativo que lhe permita chegar a
Moscou em condições. No momento oportuno lhe traremos
roupas e um pequeno disfarce. Enquanto isso deveria
barbear-se, tomar um banho e levantar o ânimo: amanhã
estará em Moscou.
— Como pensam tirar-me de Nuremberg?
— De noite as coisas são mais fáceis. E não se preocupe,
pois temos tudo previsto.
— Quando virão me buscar?
— Ainda não sei exatamente. Telefonaremos dando-lhe
instruções. Não se mova e deixe tudo por nossa conta.
— Está bem. Há infeção?
Enquanto falava, Raissa ia limpando a ferida.
— Não é nada grave — respondeu. — Em poucos dias
você estará bom. Vou lhe deixar todo esse material para, se
necessário, você mesmo fazer novo curativo. Bem, isto é
tudo...
Houve uma batida na porta e ambos se olharam,
alarmados. Mas em seguida ouviram a voz roufenha e
desagradável de frau Wilma:
— Abra, herr Walf! Abra imediatamente.
— Que quer essa megera? — murmurou Raissa.
— E como diabo posso saber? — grunhiu James;
aproximou-se da porta, mal-humorado. — Que deseja, frau
Wilma?
— Abra imediatamente, ou chamarei a Policia!
Ele abriu a porta e a mulher entrou como uma tromba,
olhando inquisitiva para a cama. Depois olhou a ruiva, que
a contemplava de pé, expectante... e completamente vestida,
o que pareceu suficiente para desarmá-la. De qualquer
modo, explicou-se:
— Olhem, isto aqui não é um bordel e não permito esta
espécie de visitas... tão prolongadas. Não posso permitir!
James Nelson parecia atônito, mas Raissa deteve com
um gesto a dona da pensão.
— Está enganada, frau Wilma. Sou enfermeira, sabia
que herr Walf sofrera um pequeno acidente e vim fazer-lhe
um curativo. Creio que está bem à vista.
A mulher resmungou alguma coisa e ficou olhando para
um e outro.
— Não se permitem visitas tão prolongadas — repetiu.
— Nesse caso, creio que devo retirar-me — disse
amavelmente Raissa.
— Bem... — hesitou a megera. — Compreenda,
fraulein, não é que eu tenha nada contra o amor...
— Compreendo muito bem, não se preocupe — sorriu a
russa. — Adeus, herr Walf. Telefonarei à noite para saber
como está passando... contanto que frau Wilma não se
oponha, naturalmente.
A horrenda mulher tornou a resmungar alguma coisa e
abandonou o quarto, batendo com a porta. Raissa riu e
dirigiu-se também para a porta, de onde se voltou para
dizer:
— Não esqueça o microfilme.
Saiu e pouco depois estava na rua, afastando-se da casa.
Nesta, por trás da veneziana de uma janela do térreo, onde
tinha sua morada, frau Wilma a olhava com um sorriso
irônico e maternal.
— É linda a russa — teve que admitir.
Virou-se para ver as horas no feio relógio da parede e
franziu a testa. Já pouco faltava para as onze... Com passos
surpreendentemente graciosos, foi ao velho armário
carcomido e tirou uma pequena maleta vermelha adornada
de minúsculas flores azuis. Desta tirou um radinho, no qual
esteve mexendo com uma espécie de pinça. Depois sentou-
se na cama, esperou, calculando o tempo que faltava para as
onze, e abriu o canal.
— Bom dia — ouviu a simpática voz masculina.
— Bom dia, “Europa 9999-l91” — respondeu frau
Wilma. — Surpresa.
— Surpresa? A que se refere?
— Em todos esses dias, é a segunda vez que você admite
o contato. Portanto, estou surpreendida. Você não pode me
ajudar em nada. Posso ajudá-lo em alguma coisa?
— Ainda não sei... — riu Waldo Jackson. — Alguma
novidade?
— Oh, sim: já o encontraram. Ele acaba de receber uma
linda visita.
— Mulher?
— Sim, uma russa jovem, ruiva, muito bonita. Chama-se
Raissa Nochilov.
— Bem. Que estiveram falando? Não, espere... Você
gravou a conversa?
— Claro.
— Vou já para aí!

SETE
O espião na sombra

“Frau” Wilma abriu a porta de sua vivenda e olhou


torvamente para o visitante.
— É você? — perguntou.
— Sim — sorriu o homem — sou eu. Posso entrar?
Ela afastou-se e fechou a porta depois que o homem
entrou. Contemplou com interesse aquele que era
considerado um dos melhores agentes da CIA na Europa.
Um rosto rubicundo sobre um corpo baixote, calvície
avançada, óculos grossos...
— Isto não lhe parece uma imprudência? — perguntou
ela.
Waldo Jackson sorriu afável.
— Queria escutar essa conversa — foi sua resposta. —
Por isso vim.
— Está bem.
Um minuto depois a conversa entre Raissa e James era
reproduzida no pequeno receptor-gravador. Jackson
escutou-a atentamente uma, duas, três vezes. O interesse de
frau Wilma por ele ia em aumento.
— Não quer escutá-la mais uma vez? — perguntou-lhe.
— Parece que sua memória não é muito boa.
— Minha memória é excelente — sorriu o homenzinho
— mas gosto de escutar bem: às vezes as coisas têm um
segundo significado, que não captamos na primeira vez.
— Bem, espero que tenha captado tudo.
— Sim, sem dúvida.
— Posso fazer mais alguma coisa por você?
Ele a olhou atentamente e pareceu hesitar.
— Não — disse por fim. — é suficiente. A verdade é
que quis vir para conhecer você.
— Receio que não tenha conseguido grande coisa, pois
esta caracterização de frau Wilma oculta por completo
meus encantos: um dos personagens mais desagradáveis que
já me foi dado representar. Tenho que cheirar a cerveja, o
que me parece horrível.
— De qualquer modo consegui conhecê-la, falar com
você.
— Se me visse com meu verdadeiro aspecto, não me
reconheceria. Que conclusão tirou a meu respeito?
— Poderia me dar café?
— Poderia, mas não será melhor que se retire o quanto
antes? Seu comportamento não é o que considero adequado
num agente que tem que apoiar “Baby”.
— Talvez tenha razão... Afinal, vou ganhar o café?
— Enquanto o preparo, se quer distrair-se, pode subir e
ver James Nelson...
— Não! A esse não quero conhecer.
— Que há, Jackson? Você empalideceu... Está doente?
— Estou muito bem, asseguro-lhe.
Frau Wilma franziu a testa, fixando Jackson nos olhos.
— Vou fazer o café.
Dirigiu-se à cozinha e, para sua surpresa, ele
acompanhou-a. Enquanto preparava o café, ele acendeu um
cigarro.
— Minha vida não tem sido fácil... — disse de súbito. —
As dificuldades começaram sendo eu ainda criança. Nas
brincadeiras infantis, sempre levava a pior, sendo vítima da
zombaria de meus companheiros. Por sorte, descobri que, se
a natureza não tinha sido amável comigo quanto ao aspecto
físico, fora generosíssima quanto ao intelectual. Tão Logo
comecei a estudar, transformei-me no terror de meus
professores. Não havia nada que eu não fosse capaz de
compreender no mesmo instante. Isto chegava a me assustar
e houve momentos em que odiei minha inteligência, que me
afastava dos outros, tanto como o meu aspecto físico. Ao
que parecia, meus companheiros aceitavam com menos
tolerância ainda meu intelecto que minha obesidade e
feiúra. Mas tampouco tardei muito a compreender que
minha mente ia salvar-me de uma vida desgraçada. Soube
viver comigo mesmo e, para minha surpresa, descobri que
não me sentia nada mal... Não: sem açúcar. É coisa que
engorda.
Frau Wilma desistiu de pôr açúcar na xícara e tomou a
olhar atenta para Waldo Jackson, que levou o seu café para
a pequena e sórdida sala. Foi atrás dele, sentou-se e ele fez
o mesmo, com a xícara na mão.
— Não quero fatigá-la com a minha biografia — sorriu.
— O fato é que, sendo tão inteligente, tudo me feria, tudo
afetava minha sensibilidade, até que chegou o momento em
que a solidão tomou-se intolerável. Procurei o amor... Não
acha graça?
Frau Wilma moveu negativamente a cabeça.
— Obrigado. Sim, procurei o amor... Foi algo patético,
sofri demais. Tive algumas aventuras, sim, mas não era isso
o que queria, compreende? Diga-me, “Baby”, realmente
tem tanta importância para uma mulher o aspecto físico de
um homem?
— Não tem nenhuma importância. Mas talvez você não
tenha procurado a mulher adequada.
— Sim, talvez... Como disse, tive aventuras, mas nada
significaram. Ou melhor, uma delas significou muito:
decidi-me a nunca mais me aproximar de uma mulher.
— Possivelmente você se deu por vencido cedo demais.
— Sim. Mas fiquei tão humilhado que quis morrer. Mais
uma vez, entretanto, minha inteligência se sobrepôs. Viajei,
fiz varias coisas... Sempre era um empregado importante
onde trabalhasse, mas criava rivalidades, receios,
prevenções... Um dia li num jornal um caso de espionagem
ocorrido na fronteira do Canadá e toquei-me para
Washington, onde perguntei onde era a sede da CIA...
— Encontrou seu caminho na espionagem?
— Exato. Fui submetido a uma série de provas. Você
sabe: na espionagem, quanto mais inteligente e ao mesmo
tempo mais insignificante, melhor. Na CIA ninguém pôs
entraves à minha inteligência, ninguém se preocupou com a
possibilidade de que eu usurpasse os direitos de alguém. Lá
encontrei finalmente meu lugar, meu trabalho. Em poucos
anos, transformei-me num agente fora de série, que só
trabalhava na direção de missões e sempre na sombra: nada
de intervenções diretas. O contrário de você — sorriu. —
Invejei-a tantas vezes! Mas nem todos podemos pertencer
ao Grupo de Ação e isso eu entendo muito bem, portanto só
trabalho com a mente.
— Nesse caso, que espécie de ajuda poderia me prestar,
se eu estivesse em dificuldades?
— Sempre me ocorreria uma idéia. Estou aborrecendo-
a?
— Não.
— Acredito, pois creio que já a conheço bastante bem. E
não me refiro às coisas boas que ouvi a seu respeito. Foi
muito grato para mim comprovar que você é como é.
Adeus, “Baby”.
Levantou-se e frau Wilma olhou-o desconcertada.
— Que há? Por que se retira assim, tão de repente?
— Já tomei o café e a conheci.
— Mas...
— Nosso trabalho em comum terminou. A que horas
sairá você daqui?
— Não sei... Não tinha pensado nisso. Todo o resto está
pronto?
— Por minha parte, sim, não se preocupe. Embora, na
verdade, isto esteja terminado: os russos levarão James
Nelson a Moscou, com a informação que queremos
introduzir no MVD, e nós voltaremos aos nossos covis.
— Eu não posso dizer que viva num covil — sorriu frau
Wilma.
— A bonito quadro, bonita moldura —sorriu também
Waldo Jackson. — Eu, como sou feio, sempre vivo numa
moldura adequada a mim. Não me queixo, claro. Há quatro
anos que moro em Nüremberg...
— Quatro anos?
— Sim, esta é minha base. Posso operar em toda a
Europa, em qualquer direção, e voltar. Faço meu trabalho
onde seja e volto ao meu pequeno apartamento na
Flötnerstrasse. Não aconteceu nada, ninguém me viu,
ninguém me olhou. Creio que nem sequer os russos se
fixaram em mim. Não lhe parece surpreendente?
— Mas muito conveniente.
— Ah, sim. Bem, quando vai sair daqui? Pergunta
porque, a. partir dessa hora, me despreocuparei de você por
completo: não gostaria que por descuido meu ocorresse algo
a “Baby”. Santo Deus, você não calcula a hecatombe que a
notícia de sua morte causou em toda a Europa, África do
Norte, Oriente Médio!
— Calculo. E chego a temer que os meus Johnnies
façam alguma barbaridade.
— Não farão enquanto não encontrarem Nelson. Vai me
dizer a hora em que partirá?
— Tenho que esperar que os russos telefonem a James
dando instruções. O telefone está aqui, em minha vivenda,
de modo que terei que dar-lhe o recado e, por sorte, como
tudo terá saído bem, poderei voltar para casa. A verdade é
que meu trabalho não foi brilhante. Ao mesmo tempo,
aborreceu-me cair no Sena fingindo ter recebido um balaço.
— Foi uma bonita acrobacia.
— Você estava lá?
— Claro. Você é uma mulher surpreendente... e
admirável. Adeus. “Baby”.
— Adeus, Waldo — ela aceitou sua mão. — E cuidado,
hem?
— E não se preocupe com os russos: sei muito bem
como manejá-los. Não há nada que eles façam que eu não
possa controlar.
Frau Wilma, ficou só, pensativa. Acendeu um cigarro e
moveu a cabeça.
— Para ser tão inteligente — refletiu — parece-me que
o companheiro Jackson despreza demasiado os russos, os
quais não devem estar dormindo neste momento, claro.

OITO
O biscoito recusado

Mischa Nitzin acendeu um cigarro e indicou a garrafa de


vodca, olhando para Piotr, que assentiu com a cabeça e foi
buscá-la.
— Que horas são? — perguntou Alex. — Meu relógio
parou.
— Quatro e meia. Há tempo, tranqüilize-se.
Alex pareceu surpreendido.
— Estou completamente tranqüilo. Além disso — sorriu
—, quem se sentiria preocupado tendo diante dos olhos uma
beleza semelhante?
Disse isto olhando para Raissa Nochilov, que sorriu.
— Agradeço, camarada, mas se está pensando que você
e eu devemos dedicar-nos ao amor para matar o tempo...
— Que teria de mal? — riu Alex.
— Nada, mas tenho a mente ocupada em outras coisas,
no momento.
— Poderíamos marcar o encontro em Moscou —
sugeriu Alex.
— Poderíamos.
— Bem, bem — resmungou Piotr, servindo vodca em
vários copos —, não sejam tão sem-vergonha. Façam o que
quiserem, mas sem publicidade. Diabo, gostaria que isto já
tivesse terminado. Não me agrada ficar preso aqui enquanto
os outros trabalham.
— Os outros trabalham porque estão em seu terreno —
disse Mischa. — O camarada Gorgonov manda em
Nüremberg, dispõe dos elementos adequados e todos sabem
fazer seu trabalho. Nós só temos que esperar que ele nos
diga quando podemos partir.
Que tem de mal tomarmos um pouco de vodca, enquanto
isso?
Raissa olhou aprovadoramente, mas Alex e Piotr o
conheciam melhor. Sabiam que, na verdade, Mischa estava
pensando em algo diferente, que em seu íntimo existia
preocupação. E não era homem de se preocupar sem
motivo.
— Aguardemos Igor com as fotos do seu turno de
vigilância — disse Alex, para dizer alguma coisa. — Pelo
menos, teremos com que nos entreter.
— Não creio que as fotos de Igor nos sirvam de muito
— Piotr deu de ombros. — Nelas só veremos gente que sai
e entra na pensão onde está o americano, o que é coisa
normal.
Naquele momento a porta se abriu e entrou Igor,
juntamente com o camarada Tichenko.
— Aqui estão as fotos... — disse o primeiro. — E
Gorgonov acaba de chegar.
— Deixe ver — pediu Mischa.
Igor entregou-lhe o envelope, de onde ele tirou um maço
de fotos ainda úmidas, que foi passando lentamente. Raissa
aproximou-se, pondo-se a olhar as fotos por cima do ombro
dele. Igor serviu-se de vodca e deu uma risada.
— Por que está rindo? — Piotr olhou-o Surpreso.
— Não se pode negar que somos russos: consumimos
vodca suficiente para afogar uma baleia... Eis Gorgonov.
Um homem alto, forte, de expressão torva, entrou na
sala e dirigiu-se diretamente ao sofá, erguendo a mão.
— Olá, vocês... — largou-se no sofá e suspirou. —
Alguma novidade?
— Nenhuma — Mischa olhou-o. — E do seu lado?
— Tampouco. Tudo vai bem... Claro, há alguns
americanos em Nüremberg, mas duvido que tenham
localizado Nelson. Que é isso? Fotos do primeiro turno?
— Sim... Mas... Que há? — olhou vivamente para
Raissa ao ouvir sua exclamação.
— O gorducho míope... — ela indicou a foto. —
Tropecei com ele no portal da casa quando fui ver o
americano.
— Bom... e daí? — Mischa olhava-a fixamente.
— É que ele não deveria estar em nenhuma foto de Igor.
— Por quê? — Mischa ergueu-se, enquanto os outros
olhavam com interesse para a bonita garota.
— Bem... Igor não podia ter fotografado esse
homenzinho entrando na casa porque, quando lá chegamos,
ele saia. Aqui há outra foto e nesta ele sai... Normal. E nesta
outra — ela passou rapidamente as fotos na mão de Mischa
— torna a sair... Quer dizer que o vimos entrar uma vez e
sair duas.
— Claro: já devia estar lá quando vocês chegaram. Igor
o fotografou quando saía depois de esbarrar em você. As
outras duas fotos indicam, suponho, que ele voltou à
pensão, talvez por ter esquecido alguma coisa, e tornou a
sair.
— Sim... — Raissa franziu a testa. — Claro, claro.
— Puxa! — resmungou Alex. — Você estava me
deixando confuso, Raissa. Procure...
— Esse homem é americano — disse Gorgonov, que se
aproximara para olhar as fotos.
Todos os olhares se fixaram nele, ansiosos.
— Tem certeza? — perguntou Mischa.
— Mas se falava o alemão perfeitamente! — exclamou
Raissa.
— Tenho certeza — disse Gorgonov, como se não a
tivesse ouvido. — Lógico: tudo isto não podia ser! Tantas
facilidades para encontrá-lo, o carro bem à vista na rua, o
informe dado por ele mesmo de que estaria em algum lugar
da Alemanha com o nome de Richard Walf...! Tudo
preparado para que o encontrássemos, para crermos no que
quisessem nos fazer crer! Quiseram introduzi-lo em nosso
meio, eis tudo!
— Poderíamos torcer-me o pescoço... — disse Piotr, de
péssimo humor. — Se lhe ponho as mãos em cima, vai
lamentar mil vezes a morte de Ilya com toda aquela
comédia junto ao Sena!
— Calma — conteve-o Mischa. — Como se chama o
gorducho, Gorgonov?
— Não sei. É um simples mensageiro da CIA, que
mantêm aqui para pequenas coisas. Um joão-ninguém.
— Bom, talvez por isso o estejam utilizando, não
acham? — sugeriu Raissa. Como elemento de ligação entre
Nelson e os outros americanos...
— Isso seria excessivamente inábil — opinou Mischa.
— Acha? Trata-se de um simules mensageiro — insistiu
Gorgonov. — Faz muito tempo que está em Nüremberg e
nunca nos causou o menor incômodo. Por isso mesmo o
escolheram para elemento de ligação.
— Poderiam estar em contato com Nelson utilizando
rádio ou telefone — lembrou Mischa.
— Claro. Mas correriam o risco de que colocássemos
microfones e nos inteirássemos de tudo. Assim, mandam
esse cara, Nelson e ele conversam fora do quarto e ninguém
sabe de nada.
— Poderia ser — admitiu Mischa. — Onde mora esse
americano gorducho?
— Não tenho a menor idéia — grunhiu Gorgonov.
— Sabe bem pouco a seu respeito, hem?
— Já lhe disse que é um agente de baixa categoria.
Inclusive, parece que em Washington se esqueceram dele...
Um zero a esquerda. Portanto, por que lhe daria eu maior
atenção?
— Gostaria de conversar com ele — disse Mischa — um
homem assim deve ser fácil de manejar.
— Mas seria pura perda de tempo — impacientou-se
Piotr. — Ele não poderá dizer nada que já não tenhamos
compreendido.
— Nunca se sabe o que um agente secreto pode revelar,
camarada.
— Mas esqueça esse — instou Gorgonov.
Talvez amanhã mesmo eu o encontre na rua, ou talvez o
veja dentro de três meses, olhando uma vitrina, mas não é
possível localizá-lo de imediato... Veja quem é, Igor.
Tinham batido na porta de entrada. Igor foi ver e voltou
segundos depois com outro homem, que imediatamente fez
sinal a Gorgonov para que se aproximasse. Gorgonov assim
fez e esteve ouvindo-o um instante. Súbito, uma expressão
de pasmo apareceu em seu rosto. Ele foi até onde estava
Mischa, tirou-lhe as fotos das mãos e mostrou-as ao recém-
chegado.
— Refere-se a este? — perguntou-lhe com ansiedade.
O outro olhou o gorducho da foto e assentiu.
— Exato. Esse mesmo.
— Que há? — perguntou Mischa.
— O gorducho... Não entendo: abordou Levon na rua e
disse-lhe que tem algo para nós... se estivermos dispostos a
pagar dez milhões de dólares.
O imperturbável Mischa quase deu um salto em sua
poltrona.
— Dez milhões de dólares? — pasmou.
— Sim, sim... Foi isso, não, Levon? Dez milhões de
dólares’?
— Foi o que ele disse — melindrou-se Levon — e eu
entendo muito bem o alemão.
— Que o diabo me carregue! Dê-me esse número de
telefone. Ele está esperando nosso telefonema?
— Assim afirmou — Levon entregou o papelzinho ao
seu chefe. — Vai telefonar-lhe?
— Que acha você? Que vou desdenhar o que tenha a
dizer-me um homem que pede dez milhões de dólares por
uma informação? Você é idiota?
— Calma — recomendou Mischa. — Nada de
nervosismo.
Gorgonov já estava discando o número. O silêncio era
tal, que todos ouviram a campainha tocar no outro extremo
da linha e, em seguida, o leve estalido do gancho do outro
aparelho ao levantar-se, estabelecendo a comunicação.
— ...?
— Escute — disse Gorgonov —, é você o homem que
está esperando um telefonema?
— ...
— Muito bem. Pode ser que aceitemos sua oferta.
— ...
— Não, não... Nada de dizer-lhe onde estamos, nem
queremos que nos diga onde está. Olhe, vamos fazer as
coisas bem, jogando limpo. Naturalmente, entendo que você
está disposto a dar um passo muito importante, que o
indisporá com os que são seus atuais amigos, mas estamos
fartos de mentiras e truques. Vamos ouvi-lo e, se valer a
pena, terá o que cede e nossa proteção. Mas tudo será feito a
minha maneira, ou de maneira nenhuma.
— ...?
— Bem. Sem dúvida você conhece o Tiergarten.
— ...
— Pois vamos esperá-lo, sozinho, às cinco e meia em
ponto, na entrada do Tiergarten pela Schmausenbuckstrasse.
Você chegará a pé e entrará no jardim. Nós faremos o
contato. Aceita?
— ...?
— Escute, já lhe disse: se o que quer vender-nos vale o
preço que pede, terá seu dinheiro e nosso apoio
incondicional. Está claro?
— ...
— De acordo. Até já — Gorgonov desligou, sacou a
pistola, examinou o carregador e olhou para Levon e Igor.
— Vamos lá. Mischa, você se importa de ir com os seus em
outro carro?
— Ia sugerir isso — respondeu Mischa Nitzin.
— E eu, que faço? — reclamou Raissa.
— Ficará aqui, pois algum dos nossos pode vir, ou
telefonar.
— Bem — conformou-se ela. — Depois me dirão o que
se passou.
***
O baixote, gorducho e míope Waldo Jackson apareceu às
cinco em ponto, vindo pela Schmausenbuckstrasse,
entrando no Tiergarten. sem olhar para nada nem ninguém,
como que distraído. Passou pelo estacionamento e seguiu
para a bela zona florida do jardim, em direção aos pequenos
lagos.
Atrás dele moveram-se os russos, lentamente. Vez por
outra, o homenzinho se detinha a olhar um canteiro. Parecia
que só as flores lhe importavam. Enquanto ao seu redor os
russos iam formando um círculo do qual ele não sairia vivo
se as coisas ficassem pretas.
Por fim, já na zona dos lagos, Jackson olhou a seu redor
e foi localizando um por um os agentes soviéticos, que,
imóveis agora, sérios, atentos, olhavam-no sem a menor
dissimulação.
Ele sentou-se num banco, tirou do bolso um pequeno
envoltório e olhou com ironia para os russos, pois todos
tinham levado a mão à axila esquerda. Mas Waldo Jackson
desembrulhou os biscoitos e pôs-se a reduzi-los a migalhas,
que ia atirando perto de seus pés. Em pouco, teve nutrida
clientela: dezenas de passarinhos, que pousavam
graciosamente, apanhavam sua migalha e tornavam a voar,
enquanto ele os contemplava sorridente.
Um instante depois, Gorgonov sentava-se no mesmo
banco.
— Muito bem — murmurou — qual é a sua oferta?
— Estão enganando vocês — disse Jackson, e continuou
a atirar migalhas de biscoito.
— Isso já sabemos agora.
— Sabem?
— Compreendemos alguma coisa quando você apareceu
nas fotos da vigilância que mantemos diante da pensão
dessa frau Wilma.
— Ah, sim. Claro... Bem, ocorreu-me que...
— Como é seu nome?
— Waldo Jackson.
— Pois ouça, Jackson: eu o vi diversas vezes e sei que,
com efeito, é americano e trabalha para a CIA. Bem, está
em seu direito, isso não nos faz inimigos de morte. Mas
também sei que nunca foi nada nem ninguém na CIA, mas
apenas uma espécie de moço de recados. Certo?
— Certo — enrubesceu o gorducho. — E isso é o que...
— Diga-me — cortou secamente o russo — que nos
pode oferecer você que valha nada menos que dez milhões
de dólares?
— Tenho várias coisas a oferecer e penso que todo o lote
vale essa quantia. Especialmente tendo em conta que nele
está incluída “Baby”.
— Oh... Então não morreu?
— Foi tudo um truque e vocês estiveram a ponto de se
deixar lograr, camarada... camarada...
— Gorgonov... Mas você me conhece, homem!
— Sim, já o vi, mas ignorava seu nome. Na verdade,
nunca me dizem nada... Tem razão, não passo de um moço
de recados para meus companheiros — sua expressão foi de
raiva contida —, mas agora eles vão me pagar caro!
— Está fazendo isto por ressentimento pessoal?
— Escute, Gorgonov, não sou um gênio, mas tampouco
um imbecil... e sempre me tratam como se o fosse. Estou
aqui há vários anos, esperando que me concedam uma
oportunidade, mas esta não chega. Na escola da CIA, que
freqüentei, minhas notas foram brilhantes. No entanto,
deixam-me mofar aqui... Muito bem, já estou farto. Quero
vingar-me deles, encher os bolsos e, daqui por diante, fazer
aquilo que tiver vontade...
— Se trair a CIA, isso será difícil — sorriu Gorgonov.
— Por quê? Sou inteligente, repito, e quero sentir-me
importante, realizar alguma coisa. Se meus companheiros
me impedem isso, que vão para o diabo. Só quero uma
resposta, Gorgonov: vocês me darão meu dinheiro e uma
atividade que me agrade, ou desistimos de tudo?
— Até agora, não disse nada que valha dez milhões de
dólares, Jackson.
— Não? Bom, este é o lote: a agente “Baby” servida
numa bandeja, a segurança de que todos os microfilmes que
esse idiota de James Nelson possa ter com ele são falsos,
destinados apenas a introduzir falsas informações no MVD.
E por último, um relatório completo sobre os futuros
serviços da CIA na Alemanha Oriental.
— Você sabe isso? — surpreendeu-se Gorgonov.
— Posso trazer-lhe dez cadernetas cheias de notas,
códigos, nomes, serviços prestados pela CIA sem que esta
fosse mencionada... Tudo. A verdade sobre o microfilme
desse idiota de Nelson e o lugar onde estará “Baby” em
determinado momento. Sim ou não, e terminemos. Se lhe
parece muito dinheiro, pense que só pela cabeça de “Baby”
o seu Diretório oferece seis milhões de dólares.
— Seis não são dez — murmurou o russo.
— Está pechinchando? Muito bem: faça você mesmo o
preço. Mas, claro, nunca inferior a seis milhões.
— Bem, não sei... Você tem aqui toda essa informação?
— Em meu apartamento, de cujo telefone você tem o
número.
— Gostaria de ver tudo isso. E saber onde está “Baby”.
Onde, Jackson?
Este hesitou um instante, mas terminou por dar de
ombros.
— Na mesma pensão que Nelson.
— Tem certeza?
— Absoluta... — grunhiu o gorducho traidor. — Estive
lá duas vezes esta manhã. A primeira para levar-lhe uma
peça de um receptor-gravador, que acusara defeito, a
segunda para ir buscar uma gravação... referente a Nelson,
claro.
— Quer dizer que “Baby” gravou tudo o que Nelson
tenha falado, qualquer som?
— Diabo, estou falando bem claro, parece-me!
— Nesse caso, ela sabe que Raissa... Você escutou a
gravação?
— Homem, que lhe parece? — resmungou Jackson. —
Mandam-me buscá-la, antes mandam-me levar aquela
peça... O moço dos recados! Bom, mas eu sempre dou um
jeito para ir sabendo de tudo. Claro que escutei a gravação!
— Bem... Então “Baby” sabe que Raissa é russa e que
foi ver Nelson, que devemos telefonar esta noite para dar-
lhe instruções... Que fará ela enquanto isso, ou depois?
— Suponho que desaparecerá quando vocês levarem
Nelson para a Rússia. Já terão conseguido o que queriam,
ou seja, convencê-los de que Nelson é um traidor e
envenená-los com o conteúdo desse microfilme com o qual
a CIA quer injetar falsos informes no MVD.
— Entendo... De modo que ela desapareceria depois de
convencida de que tudo saiu bem? Veremos isso... Em que
parte da casa ela está?
— Mas, homem — resmungou Jackson — é essa mulher
que se faz passar por frau Wilma!
— Impossível... — empalideceu Gorgonov. —
Investigamos frau Wilma e todos os hóspedes da casa. Ela
mantém a pensão há mais de um ano...
— Sim, a verdadeira foi colocada lá pela CIA para que
aguardasse este momento. Agora está longe de Nüremberg,
escondida. Quando “Baby” partir, ela voltará, ficará mais
algum tempo e depois irá para a Itália, por exemplo, por
motivos de saúde ou algo assim.
Compreendo. Isso quer dizer que a CIA está preparando
tudo há mais de um ano...
— Exatamente.
— Pois vamos dar-lhe uma lição... Olhe, Jackson, se
você não está fazendo outra jogada suja da CIA, pode crer
que o trataremos bem. Não sei quanto dinheiro receberá,
francamente, mas terá trabalho e oportunidade de brilhar.
No Diretório não se desdenha a colaboração de cérebros
bem dotados. Mas advirto-lhe que, se está tentando
enganar-nos...
— Estou lhe facultando o maior triunfo profissional de
sua vida, Gorgonov! Entrego-lhe a agente “Baby”, ofereço-
lhe toda a. documentação sobre a CIA em Nüremberg, com
nomes, códigos e a futura rede na Alemanha Oriental. Se
pensa que tudo isto é conversa fiada, vá para o inferno!
— Calma. Olhe, a primeira coisa que vamos fazer é
procurar “Baby”. Se isso der certo, todo o resto... Que há?
Por que me olha assim?
— Tenciona ir em busca de “Baby”? Quando?
— Agora.
— Não brinque... Olhe, “Baby” fareja um russo a
quilômetros de distancia. Se vocês forem lá, ela... Um
momento: têm que telefonar a Nelson dando-lhe instruções,
não?
— Sim, claro.
— Pois não variem nada. Telefonem, digam-lhe que
tudo está bem e que vão mandar dois ou três de seus
companheiros buscá-lo com um carro. A própria “Baby” ou
frau Wilma, se prefere, o chamará para atender ao telefone,
em baixo. Nelson lhe dirá o que se passa, que tudo vai bem
e se despedirão. Ele esperará em cima, ela em baixo... e
quando vocês partirem com Nelson, se disporá a partir
também. Mas vocês já a terão tido a seu alcance. Agora, se
se apresentarem sem telefonar antes para Nelson, conforme
o combinado... Não sei: eu não confiaria em surpreender
“Baby”, eis a verdade.
— A idéia é boa — murmurou Gorgonov —
telefonaremos para Nelson e “Baby” não se alarmará... Sim,
inclusive, poderíamos caçá-la viva!
— Não diga tolice! — riu Jackson. — Não é fácil
enganá-la a tal ponto! Dêem-se por satisfeitos se
conseguirem matá-la... o que não será fácil. E a propósito,
qualquer erro que vocês cometam não o imputem a mim,
está claro?
— Está claro.
— Muito bem. E nós como ficamos?
— Volte ao seu apartamento. Nós lhe avisaremos
quando tudo terminar, passaremos para apanhá-lo e, como
já dispomos de um meio de transporte que devia servir para
Nelson, o levaremos à Rússia. De acordo? Ah: você terá
todo o seu material informativo preparado, suponho.
— Tratarei disso em seguida. Quer um biscoito?
Gorgonov olhou-o fixamente.
— Não, obrigado: não creio que o digerisse.
— Que quer dizer?
— Nada.
— Nada?
— Esqueça.
— Teme sujar-se em contato comigo, não é? Sou um
traidor...
— Não discutirei isso com você. Fizemos um trato e eu
o cumprirei. Mas recuso seu biscoito, entende?
— Entendo muito bem. Tomaremos a falar sobre isso
quando estivermos na Rússia e eu ocupar um cargo superior
ao seu no serviço secreto soviético.
Levantou-se bruscamente e se afastou. Gorgonov não se
moveu. Estava pensativo. Assim eram os americanos... Um
deles, James Nelson, arriscava a vida para prestar um
serviço importante à CIA. O outro, um “moço de recados”,
praticava traição mais por desforra que por dinheiro...
Mischa chegou e sentou-se a seu lado.
— Como foi? — perguntou.
— É um sujo... mas não posso desdenhar sua oferta.
— Tão boa é?
Gorgonov assentiu e levantou-se.
— Explicarei enquanto vamos ao telefone... E também
teremos que chamar pelo rádio o camarada que vigia a
pensão de frau Wilma, para que não perca esta de vista, se
sair. Ela é “Baby”.
— Quem?
— Essa dona de pensão.
— Mas...
— Depois lhe explico. Vamos ao telefone. Temos que
fazer as coisas com muito cuidado... sim, muitíssimo
cuidado.

NOVE
Se és espião, estás morto

O telefone tocou.
Frau Wilma, que estava espiando pela janela, virou a
cabeça para o aparelho e sorriu. Antes de ir atender, olhou
mau uma vez o carro em que estava o russo com a câmara
fotográfica munida de teleobjetiva. Um agente de terceira
categoria, sem dúvida... o que muito lhe convinha.
— Frau Wilma — atendeu em perfeito alemão, voz
áspera.
— Sim, sim... Herr Walf está hospedado aqui. É a jovem
que o veio ver esta manhã?
— Bem. Vou chamá-lo.
Saiu de seu apartamento e, passos pesados, começou a
subir a escada. Nada de descuidar-se...
Bateu na porta número 12.
— Quem é? — ouviu a voz de James Nelson.
— Telefone, herr Walf.
A porta se abriu imediatamente e ele a olhou expectante.
— Sim, é a russa.
James precipitou-se escada abaixo, deixando muito para
trás frau Wilma, cuja descida foi quase tão penosa como a
subida. Quando ela chegou à sua morada, o hóspede já
estava ao aparelho. Entrou, fechou a porta e coube-lhe
mostrar uma expressão interrogativa no olhar, ao que ele
assentiu com a cabeça, ao mesmo tempo que murmurava:
— Sim: vêm me buscar dentro de quinze minutos.
Consegui!
— Boa sorte — desejou frau Wilma.
James Nelson sorriu.
— E você achava que não, hem? Admita que estava
enganada.
— Todos podemos nos enganar. E sou a primeira a
desejar enganar-me esta vez, garanto-lhe.
— Continua pensando que sou um homem morto, não é?
— riu ele.
— Você conhece o dito, James: se és espião, estás
morto. No seu caso, as probabilidades de que assim seja são
muito maiores. Eu lhe diria para abandonar este assunto e
vir comigo, mas não creio que isso o demovesse.
— Claro que não. Este é o trabalho mais importante de
minha vida, está saindo bem e não vou desistir justamente
agora.
— Repito — ela se aproximou e afagou-lhe o rosto —:
boa sorte, James.
— Talvez voltemos a ver-nos, dentro de uns anos.... se
você se mantiver viva, “Baby”.
— Tenho mais probabilidades que você.
James tomou a rir. Estava tenso, impaciente.
— Até a vista — disse.
Saiu apressadamente dali, deixando frau Wilma
pensativa. Afinal, por que não admitir que tudo pudesse sair
bem? O planejamento fora perfeito. E tratava-se da ação
mais completa e audaz da CIA nos últimos tempos.
Ela despiu-se rapidamente. Mudou de roupa e, em
menos de cinco minutos, ficou transformada numa velhota
de cabelos brancos, severamente vestida de preto, a nossa já
bastante conhecida Annette Simonet, duquesa de
Montpelier.
Apoiando-se em sua bengala de castão de prata, saiu da
morada sórdida de frau Wilma, levando na mão esquerda
uma pequena maleta encapada de veludo preto. Subiu
devagar a escada, chegou à porta número 4, abriu-a, entrou
e tornou a fechar, sem acender a luz, aproximou-se da
janela e olhou para o carro do russo, que ali continuava.
Depois olhou para o pequeno Volkswagen da verdadeira
frau Wilma, estacionado um pouco mais perto da pensão.
Só lhe restava esperar que levassem James, que tudo ficasse
tranqüilo. Então, Madame la Duchesse abandonaria
Nüremberg e a autentica frau Wilma voltaria, até que
chegasse o momento de sua retirada por motivos de saúde...
— Talvez eu esteja me preocupando por nada. Bem,
vamos esperar...
***
— A espera terminou — soou a voz de Gorgonov na
radinho que Mischa Nitzin tinha na mão, diante da boca. —
Levon vai já para aí, Mischa.
— De acordo. Mando Piotr e Alex para que fiquem na
porta da pensão. Nelson se tranqüilizará ao ver caras
conhecidas.
— Muito bem.
Mischa fechou o rádio, guardou-o, olhou seus
companheiros e fez-lhes sinal para saírem do carro. Alex e
Piotr saltaram, dirigindo-se para a casa. Pela outra esquina
apareceu Levon, com o qual se reuniram diante da porta da
pensão.
— Primeiro, “Baby” — sussurrou Levon —: não
esqueçam.
Transpuseram o portal, iluminado apenas por uma
pequena lâmpada. Levon bateu na porta de frau Wilma,
enquanto Alex e Piotr colocavam-se um de cada lado,
sacando suas pistolas munidas de silenciador.
— Bata outra vez — sussurrou Piotr.
Levon tomou a bater, com o mesmo resultado. Bateu
pela terceira vez... Depois introduziu a ponta de uma
navalha na fechadura, mexeu... Empurrou a porta, sacou
também sua pistola e investigou a escuridão da morada.
Franzindo a testa, entrou. acendeu a luz e foi até a cozinha,
depois ao quarto... Quando voltou, Alex e Piotr já tinham
compreendido.
— Chegamos tarde... Já partiu! — exclamou Levon,
— Fique aqui — disse Piotr. — Nós vamos buscar
Nelson. Talvez ele saiba do paradeiro de “Baby”.
Levon não pareceu muito esperançoso a tal respeito, mas
não havia outra coisa a fazer. Encostou a porta, tomou ao
quarto de frau Wilma, abriu o armário e lançou uma
olhadela às roupas que havia ali... Em cima, Nelson devia
estar vestindo as que Piotr lhe levara num pacote. Ainda
tardariam uns minutos...
E nesses poucos minutos o agente soviético encontrou
algo. Primeiro, sob uma das gavetas do armário de frau
Wilma, a pequena peça que correspondia a um receptor-
gravador, com defeito, realmente. O americano Jackson não
mentira. Depois, numa velha bolsa, dois diminutos carretéis
de fita magnética, naturalmente do gravador que “Baby”
utilizara.
Não teve tempo de procurar mais, nem era necessário.
Ouviu ruído e voltou à sala. onde estavam seus camaradas,
um deles apoiado à porta, ambos apontando suas pistolas
para as costas de James Nelson, que, lívido como um morto,
virou-se ao ouvir suas pisadas.
— Que fazemos aqui? — perguntou Nelson. — Temos
que...!
— Onde está ela? — cortou asperamente Levon.
— Quem?
— “Baby”. Onde está?
James teve a sensação de que algo se rompia dentro
dele: sabiam a verdade... Os russos sabiam a verdade!
— “Baby”? — repetiu, com uma calma que a ele mesmo
deixou admirado. — De que estão falando? Vocês sabem
que eu mesmo a matei, em Paris...
— Nelson — a pistola de Piotr apoiou-se em sua nuca
—: por sua causa, por sua “genial” jogada, nosso
companheiro Ilya foi morto em Paris e estou desejando
vingá-lo. Mas você é uma peça menor e na realidade já não
nos interessa. Diga-nos onde está ela, que talvez ainda possa
viver muitos anos... num calabouço da Sibéria.
— Mas estou lhes dizendo...!
— Sabemos que ela esteve aqui o tempo todo, fazendo-
se passar por frau Wilma. Onde está agora?
James não falou mais, pois sabia que era inútil. Como
sabia que, se tinha alguma probabilidade de salvar a vida,
esta era reagir de súbito. E, com efeito, sua reação
surpreendeu os russos: bateu com o cotovelo na pistola de
Piotr, ao mesmo tempo que, levantando-se para trás num
impecável golpe de tae-kwon-do, seu pé direito alcançava o
baixo-ventre de Levon, derrubando-o como fulminado.
Depois, empurrando Piotr, que cambaleava diante dele,
correu para a porta, segurou a maçaneta, girou-a...
A pistola de Alex detonou três vezes.
James Nelson pareceu receber uma descarga elétrica,
depois suas pernas dobraram e ele caiu de costas, olhos
arregalados. Piotr tinha recuperado o equilíbrio e o olhava
cheio de cólera, enquanto Levon erguia-se, muito pálido.
Alex dispunha-se a dar o tiro de misericórdia, mas Piotr
exigiu, voz rouca:
— Deixe-o para mim!
Apontou sua arma para a cabeça de James. Mas, após
um momento, deu de ombro. E e tornou a guardá-la.
— Vamos. Já nada temos que fazer aqui — murmurou
Levon.
***
Em cima, às escuras no quarto, junto à janela, Madame
la Duchesse viu os russos saírem à rua e correr para o carro
em que o outro vigiava.
— Não o levam... — sobressaltou-se. — Não o levam!
Agilmente, lançou-se escada abaixo, enquanto da
maletinha encapada de preto tirava a pequena pistola de
coronha de madrepérola. Chegou ao portal a tempo de ver a
parte traseira do carro dos russos, afastando-se... Hesitou
um instante, mas optou por cumprir sua primeira intenção:
empurrou a porta e entrou na vivenda de frau Wilma. Do
umbral, viu James Nelson estendido no chão. Deixou-se
cair de joelhos junto a ele.
— James... James!
Com um gemido, o agonizante cravou os olhos nela.
— Eles... eles sabiam... — murmurou.
— Não fale. Vou lhe fazer um curativo...
Abriu a maletinha em busca de algo com que tamponar
os ferimentos.
— Eles... sabiam tudo... tudo... — murmurou ainda o
ferido.
Ela encontrara umas compressas e dispôs-se a virá-lo
para aplicá-las sobre as feridas de suas costas, mas deu-se
conta de que estava movendo um cadáver.
— James...
Este parecia olhá-la, com olhos fixos, vítreos...
A anciã levantou-se, guardou a pistola na maletinha e,
com movimentos serenos, saiu dali. Foi até o carro da
verdadeira frau Wilma, abriu-o, entrou e acendeu a luz
interna. Tirando da maletinha o pequeno rádio, apertou o
botão de chamada.
— Alô — ouviu a voz de homem.
— James Nelson morreu. Retirem seu cadáver:
Nützelstrasse, 6.
Fechou o radinho, sem esperar mais. Do porta-luvas,
tirou a planta de Nüremberg e procurou o índice das ruas.
Localizou a que procurava:
— Flotnerstrasse... Aqui está: uma rua muito curta...
Oxalá me equivoque, mas se os russos forem lá, ou ele ou
ele for ao seu encontro esta. mesma noite...

DEZ
Que outra coisa deveria fazer?

Na escuridão da noite, apareceu o carro e deteve-se junto


à calçada fronteira, de acordo com o combinado pelo
telefone minutos antes.
Waldo Jackson, muito pálido, esteve contemplando-o
uns segundos, mergulhado na escuridão de seu pequeno
apartamento.
Junto à porta, estavam sua mala de viagem e uma
pequena maleta. O mais importante que havia na última era
o que tinha prometido aos russos: dados e mais dados, um
montão de informes.
— Bem — disse sorrindo para si mesmo — chegou o
momento tão esperado. E será melhor que eu saia daqui
antes que “Baby”, a quem naturalmente não souberam
caçar, me procure. Sim, este é o grande momento e não o
devo retardar mais.
Afastou-se da janela, abriu a porta do apartamento, tirou
sua bagagem, tomou a fechar e, carregando as malas,
desceu à rua. À frente estava o carro dos russos e um deles
fez-lhe sinais. Já estava atravessando a calçada, quando
sentiu a terrível dor no peito. E, súbito, encontrou-se
contemplando o céu, deitado de costas no chão. A seu redor
ouvia vozes e gritos, passas precipitados... O ruído de um
motor... Ergueu a cabeça e viu o carro dos russos lançado a
toda velocidade, afastando-se como um meteoro...
— Não! — gritou. — Não me deixem aqui! Levem-me
para a Rússia!
Mas, sobre ele, o céu se tomou negro, totalmente negro...
Na total escuridão do interior do carro, a anciã de
cabelos brancos estava desmontando o estranho fuzil com
que acabava de disparar a bala explosiva contra Waldo
Jackson, o traidor. Suas mãos moviam-se com firmeza,
separando os tubos de alumínio, que normalmente
constituíam um tripé para câmara fotográfica. Ela chegara à
curta Flotnerstrasse e vira em seguida o carro dos russos.
Então, era verdade: Jackson tinha sido o traidor. Era o único
que sabia onde começava e onde terminava aquele plano da
CIA.
Mas agora ele estava caído na rua, morto ou a ponto de
morrer. Já não iria mais para a Rússia. Dali, só poderia ir ao
inferno dos traidores.
Desmontado e guardado o fuzil, ela tirou da maletinha. o
pequeno rádio, acionando-o.
— Alô.
— Recolham também Waldo Jackson, diante de sua
casa, ou, pelo menos, impeçam que sua bagagem caia em
mãos estranhas. Venham imediatamente. Eu vou embora.
***
Nove de julho.
A voz soou na grande sala iluminada indiretamente por
aquela luz vermelha.
— E você o matou — disse a voz.
Brigitte Montfort, aliás “Baby”, olhava com a testa
franzida para aquela mesa, na qual, como em outras
ocasiões, toda a direção da CIA estava reunida para
submetê-la a um interrogatório que ela considerava absurdo.
Haviam escutado seu relatório gravado, como sempre;
sabiam que Waldo Jackson tinha sido um traidor, um
ressentido, um homem que acabara por vender-se...
— Que outra coisa deveria fazer? — replicou. — Sim,
matei-o. Acaso não estão de acordo? Entendo que os
Johnnies puderam recuperar sua bagagem, ninguém sabe
que a CIA interveio nisso... Mas eu o matei e tornaria a
matá-lo mil vezes. Têm algo mais a perguntar?
Houve um prolongado silêncio.
— Não — responderam-lhe por fim. — Nada mais,
“Baby”. Pode retirar-se... E nossos agradecimentos por sua
eficaz atuação. Gostou do nosso presente de aniversario?
— Oh, sim... Muito obrigada.
— Você merece tudo. Até a próxima vez.
— Adeus, senhores.
Fez meia volta e saiu da sala. Durante mais de um
minuto, ninguém falou. Finalmente, uma voz fez-se ouvir:
— Eu disse que era melhor advertir “Baby” do que
estávamos tramando... Ou não utilizá-la.
— Foi simples falta de sorte, Cavanagh — replicou
alguém.
— Não. Nada disso. “Baby” tinha que compreender que
o traidor era Jackson. Também ele sabia que ela
compreenderia, mas pensou ter tempo de escapar para a
Rússia... Eu lhes preveni que não utilizassem “Baby” para
isso, ou lhe dissessem a verdade.
— Você a conhece melhor que nós, Cavanagh. Em sua
opinião, que faria ela se lhe tivéssemos dito a verdade?
Cavanagh deu de ombros, acendeu um cigarro e depois
respondeu:
— Claro, ela jamais teria aceito semelhante plano. Seria
melhor não a utilizar.
— Mas precisávamos que ela interviesse para dar uma
autenticidade indiscutível à introdução de Waldo Jackson
no serviço secreto russo...
— Era um plano muito ambicioso e muito bem pensado,
eu sei. Se tivesse saído bem, Jackson começaria a ser-nos
utilíssimo dentro de poucos anos, quando tivesse
conseguido a confiança do MVD. Mas “Baby” não aceitaria
que, para introduzirmos
Jackson, sacrificássemos premeditadamente James
Nelson, ao qual teria que trair... Como poderiam os russos
suspeitar que Nelson era uma vítima designada por nós,
para que a traição de Jackson fosse perfeita e o admitissem
na Rússia? Era um plano excelente, admito: os próprios
russos matariam Nelson e levariam Jackson com eles...
— E este era homem indicadíssimo para isso.
Precisávamos sacrificar alguém para dar indiscutível
verossimilhança a tudo, e Nelson havia de ser sacrificado.
— De qualquer maneira — disse Cavanagh, voz fatigada
—, perdemos dois de nossos melhores homens. Um deles
sacrificado por nós mesmos. O outro, vítima de nossa
melhor agente, não informada de nossos... maquiavélicos
planos.
— Azar, enfim. Suponho que todos estamos de acordo
em manter “Baby” na ignorância disto. Não podemos dizer-
lhe que um dos nossos estava destinado a morrer, mas que
assim um outro se introduziria no MVD.
— Tem razão, o caso está encerrado: ela não será
informada.

Bem Vivos Ainda

— Surpresa — disse alegremente Peggy —: tem uma


visita.
O coração de Brigitte Montfort bateu mais forte. Não
precisava que a empregadinha lhe dissesse quem era a
visita. Deixou suas coisas no chão e correu para o living.
Entrou impetuosamente, olhando para todos os lados,
expressão anelante...
A voz masculina soou no canto de onde estava o bar:
— Olá.
Número Um estava ali, com um copo de uísque na mão
esquerda. Moveu o braço direito para enlaçar a única
mulher que amava no mundo.
— Um... — murmurou ela, emocionada. — Um, você
está aqui!
— Parece que sim. E muito me agrada constar que você
continua viva.
— Oh, meu Deus... — angustiou-se ela. — Eu não avisei
a você de que tudo aquilo não passava de um truque...!
— Não se aflija: quando correu por toda a Europa a
noticia de que a agente “Baby” tinha morrido, sabe o que
fiz?
— Que... que fez?
— Bom, apesar do ferimento que me impediu de vir para
o seu aniversário...
— Oh! Um ferimento... Um, mas você já está bem?
— ... tomei o primeiro avião e vim para cá.
— Para esperar-me! — exclamou ela. — Sabia que eu
não podia ter morrido, que tudo era falso, que...
— Não, não sabia isso, mas sei que qualquer dia o pior
lhe poderá acontecer. E se você tinha morrido, eu queria
estar aqui quando trouxessem seu corpo. Depois não me
preocupei mais, pois Pitzer me disse a verdade.
— Ah, então você sabia que eu estava viva! E por isso
não voltou à Europa a fim de mobilizar todos os seus
amigos, para...
— Assim é. Como foi o seu aniversário?
— Oh, bem... Se eu soubesse que você estava ferido,
teria voado para o seu lado...
— Eu sei. E por isso não lhe disse. Para que estragar o
seu aniversário?
— Pois teria preferido passá-lo cuidando de você.
— Eu nunca aceitaria isso.
— Você está sendo cruel.
— Sempre somos cruéis com aqueles a quem amamos.
O sorriso de Brigitte foi radioso.
— Que bom ouvir você dizer que me ama.
— Só em certas ocasiões — resmungou ele.
— Que mentira! — ela riu. — Você me ama sempre!
— É verdade... — murmurou sombriamente Número
Um.
Brigitte tirou-me o copo da mão, abraçou-o e ofereceu-
lhe os lábios. Puxou-o pela mão.
— Venha... Somos espiões e dizem que quem é espião
está morto, mas quero convencer você de que estamos bem
vivos ainda!
© 1973 - LOU CARRIGAN
JULHO/73
401016/431014

A seguir:
Que poderia acontecer quando a mente de um enviado
recebe indução do inimigo?
UM ESPIAO NO CÉREBRO

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