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Confábulario de Gaia

Aqui, dos vitrais onde vejo Narciso


olhar-se com desejo e fúria,
escrevo uma nova sinfonia:
uma toada em frangalhos de
estupor que enleiam os becos
e as curvas dessa cidade sob o
sol escaldante.
Homens vigorosos emparelham-se
em cortiços e admiram-se
com palavras cristãs — corações
religiosos em puro clamor de fuga e
salvação, um deus alvo como a
neve deambulando pela praça.
A infância é um fantasma que
perscruta, apressado como Ulysses, os
recantos da memória: fulguram, titubeiam,
rastejam, aludem e conspurcam os
muros da sanidade.
Uma explosão anuncia o fim do mundo.
Arqueio os ombros enquanto ando
pelo cemitério e vislumbro sombras
cantando mistérios; sobejo as
coxas de senhoritas que passam
rindo, timidamente, e sonhadoras.
Escrevo ecos de uma mensagem:
vós, que sabeis pouco a língua dos
santos, aflige-se na penumbra com
a miséria da alma.
Eros, menino mimado, filho
da eterna paixão, dolorido de
corpo e sentimento, alado de
Fobos como eterno companheiro e
irmão; vais até o fundo com essa
cantoria, diz-me tudo: a linha
maiúscula de cometer os crimes
de Medéia. Jogar-me-ei ao Letes
de vossa ternura com a juventude
escorrendo pelos entalhes na minha pele.
Nunca quis ser Atlas! Eu conheço
os cimos dessa cidade e as mentiras
que escondem-se nos subúrbios;
eu sou, como uma infante apaixonada
pelo pai, uma alma que pulula e saltita
nas lembranças de tê-la por perto.
Aqui, dos reflexos de Éris, ressinto-me das
alegrias de meus companheiros e
fecho-me com o ocaso da tarde.

Metamorfose
Tudo que em vão deu-me vida:
    o céu tempestuoso,
       o mar em revolta sacudindo
           cardumes de monstros.
                O assassínio de Jacinto,
    o suicídio de Ofélia — ó Ofélia,
as águas carregam-te e desaguam
seu corpo enrijecido no velho
rio inglês, tua paga foi amar:
o amor só deu a ti loucura e
sofrimento.
O deus que na crença me disse
belas palavras, o poeta que eu
amei sobre o túmulo, os assaltos
de infelicidade, o rebento que
não cultivei; a burrice de Aurora:
      minha pele, no breu agonizante,
        tornando-se áspera, o júbilo
          de Zeus nas comportas do Olimpo,
os zumbidos contorcendo-me o corpo,
     uma mentira mal contada,
        uma pontada no abdômen,
           o cantarolar de Apolo pela
ilha de Ítaca, o meu exílio nessa
espécie e os saltos de uma cigarra, tudo
que em vão deu-me vida.

O complexo de Morfeu
Em uma madrugada qualquer,
quando o sono debatia-se com
as alegrias da carne, escutei
passos lentos e asas quietas
chegando para o reino dos
sonhos.
O corpo tremelicava de excitação,
as mãos buscavam o conforto
das cobertas, a Terra declamava
um soneto de ninar, uma deusa
sentou-se ao meu lado: Morfeu
acariciava minhas têmporas e
reclinava-se para um último beijo.
Nunca durmo, disse-me.
Há dias que testemunho sonhos
deliciosos e os desejo com uma
tamanha fúria, mas nunca durmo.
Queria ter o meu corpo coberto
de flechas e deitada sobre uma
cama de ébano, mas não posso.
Só nos sonhos nossos desejos
alquebram as algemas da castidade
e da timidez, tudo, nos sonhos, até a
morte, tem um gosto de prazer inteligível.
Suspirou e sentou-se no lado
oposto do quarto.
Quando amanhece eu desvaneço
como uma simples e frágil memória;
procuro em um átimo de desespero
esconder-me nos recantos das lembranças,
nunca alcanço.
Adoraria ver-me banhada em luxúria,
a mão de Íris tocando-me com os
dedos, Hermes beijando-me inteira
com os lábios macios, mas nunca durmo.
O meu desejo é morrer nos braços de
Aquiles, ensanguentada e coberta de
erotismo, mas o sono me escapa.
Acordo, ainda sonolento, rememorando
a noite e nenhum sonho me ocorre.
                

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