Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
, . "l~-,,-
97 66186
INTERPR.ETAÇ -
Defensoria Pública de Direitos
Humanos e dirige o Núcleo de
Defesa do Consumidor e de Tu-
telas Coletivas - NUDECONTU e
na Coordenação da Revista da
Defensoria Pública. Desempe-
nhou a função de Subdefensor
Público-Geral para Assuntos Ju-
CONTR T L
rídicos em 2013-2014 e presidiu
o Conselho Estadual de Defesa l-lermenêutica e Concreção
do Consumidor - CEDECON nos
Biênios 2011-2012 e 2013-2014.
Exerce a docência na Pontifícia
Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUCRS e, como
convidado, na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul -
UFRGS nos cursos de Especiali-
zação em Educação, Ética e Di-
reitos Humanos da Faculdade de
Educação - FACED e em Direito
do Consumidor na Faculdade
de Direito, na Escola Nacional de sJT•º
Defesa do Consumidor - ENDC
e na Escola Estadual de Defesa { \
do Consumidor - ESDC. ~ ~•.-.,1.,.,_ t< t-u~.ri n~l,.•,i;:a
•\,t,."',,(• ...:,&4
~
-e...~~
"li,-=.#
~ºª""""'""
EDITORA AVUIADA
Felipe Kirchner
INTER RET ÇÃ
ISBN: 978-85-362-6138-6
ONTR T L
~ li IDI 16 Brasil- Av. Munhoz da Rocha, 143 - Juvevê - Fone: (41) 4009-3900
i.JUnUn Fax: (41) 3252-1311 -CEP: 80.030-475-Curitiba-Paraná-Brasil
l-lermenêutica e Concreção
EDITORA .
Europa -Rua General Torres, 1.220- LoJas 15 e 16- Fone: (351) 223 710 600-
Centro Comercial D'Ouro-4400-096- Vila Nova de Gaia/Porto-Portugal
Kirchner, Felipe.
K58 Interpretação contratual: hermenêutica e concreção./
Felipe Kirchner- Curitiba: Juruá, 2016.
324p.
CDD 346.07
CDU 347.44 Curitiba
000171 Juruá Editora
2016
À Carla, ao Ricardo e ao Miguel, que não me deixam
esquecer das coisas importa,ites da vida que estão para
além da busca de meus ideais.
"Alguns homens vêem as coisas ~amo são e di=em porquê?
Eu sonho com as coisas que nzmcaforam e digo por que não?"
Sob a sempre certeira e precisa orientação da Professora Doutora Judith O autor consegue, entretanto, refi,tando o ponto de vista bettia-
Martins-Costa, o autor debateu e defendeu suas posições que, para a 110 demonsh·ar que, nem este é absolutamente refi'atário à riqueza da
felicidade e engrandeci111ento da doutrina nacional, agora vêm a público. hermenêutica gadameriana, nem esta ignora o limite que, nas relações
Pessoalmente enriqueci-me com a discussão e com a leitura do conh·atuais se impõe, por isso afirmando que "a Juução do iutérprete
texto à época (lá se vão quase sete anos), e em vários mo111entos, defron- não é a de reviver a intenção dos contratantes quando_ do mome11t?
tando-me com alguns pontos de divergência com meu modo de pensar, genético, mas a de construir o sentido do contrai~ a partir de seu lwr~-
balancei em minhas convicções, o que é afimção precípua de um traba- zonte e da situação objetiva complexa em que se msere, ~empre respe1-
lho desse porte. taudo a autouomia das partes co11trata11tes co11s11hsta11cmda na decla-
ração negocial".
Agora, relendo o trabalho para elaborar essa apresentação, re-
Ouh·o ponto que demonstra as virtudes e dificuldades que o te-
lembrei os pontos de divergência e pude ver o quanto foi importante re-
ma apresentava é a ideia cenh·al do h·abalho. A i11te1pretação conh·atual
considerar alguns deles após o aprendizado que o texto me deu.
só é possível por meio de um raciocínio por c~ncreção: A espil~l10sa
E isto porque o Felipe enfrenta, com desassombro, questões questão entre autonomia privada e limites valoratzvos do s1ste~1a crz_a um
que poderiam ser melindrosas. impasse, solucionado pelo Felipe ,c~m galhardia ,~a consh·uçao da mter-
A primeira que é de suma importância reside no confronto en- pretação como dependente rac10c11110_por concreçao.. .
tre a teoria de Gadamer (reconhecidamente não desenhada para as es- O raciocínio h·adicional do direito parte de conceitos
pecificidades do direito) e a teoria de E. Betti (que se debruça de for111a (pré)determinados que buscam enquadrar os fatos. Subsumem-se os fatos
muito detalhada, para alé111 de u111a teoria geral da interpretação, sobre nos conceitos.
a inte1pretação jurídica e, dentro desta, a inte,pretação dos contratos).
Este proceder ignora a realidade conh·atual. O conh·ato, mais
O autor consegue apontar as divergências, expondo porque lhe do que um ato jzwídico lato sens11 da modalidade ne~ócio jurídico bil~t~-
parece que a ideia gada111eriana que refi1ta o papel atribuído por E. Betti
ral, h·aduz uma relação enh·e os conh·atantes, relaçao e~sa que tem szmz-
ao 111étodo deve prevalecer. Dentro da ideia bettiana de "objetivação do
le com uma relação processual. Assim, o conh·ato não e um ato, mas um
espírito", o texto a ser inte,pretado conté111 o entendimento que a inte-
pretação busca encontrar, com isto ansiando assegurar uma menor in- complexo de atos. Não é estático no momento de sua redação, mas proje-
tervenção do subjetivismo do inté,prete. tado e consh·uído no tempo da sua execução. Não é um ato encerrado em
sim mes1110, mas um ato finalístico.
A isso opõe-se Gadamer que atribui clara relevância à partici-
Sendo assim, os próprios conceitos utilizados pelos conh·atantes
pação do inté,prete na criação (e não na mera descoberta) de sentido.
necessariamente se amoldam à relação contratual desenvolvida. E esta,
Em se tratando de inte,pretação contratual, há uma clara busca por ser uma relação jurídica (criadora de direitos e deveres, ônus, facul-
da intenção comum dos contratantes, reconhecendo o art. 112 (no nosso dades, ações e exceções) é existente no tempo e no espaço determmad?s
sistema, como também ocorre e111 vários outros) que inte,pretação deve pelos conh·atantes. O conh·ato é uma r~a~idade hist1ri~a e cultural, nns-
buscar 111ais a intenção nela declarada do que a literalidade do texto turando-se com a historicidade e espaczalzdade do dzrezto como um todo.
(aquilo que a doutrina italiana chama de princípio da ultraliteralidade).
Por isso, compreender o cont,:ato carece do entendimen~o de
Se há uma intenção co111um, e a inte1pretação do contrato tem todo o desenvolvimento dessa relação. E aqui que enh·a a consh·uçao do
como finalidade buscar essa intenção comum, parece que existe, sim, autor sobre as circunstâncias, fático-:negociais e a proporcionalidade,
umafimção reveladora da real intenção das partes. ambas entendidas co1110 postulados normativos. Apenas a consideração
Sem essa busca ter-se-ia um intervencionismo na autonomia de todas as circunstâncias fáticas permite ql(e se apreenda a vontade
das partes e uma minoração da liberdade contratual. Já se vê que reco- objetiva contida no conh·ato. Essa junção fática tem, necessariamente,
nhecer um papel criador para os casos contratuais vai contra a ideia de que ser avaliada pelas lentes axiológicas d?·?r~enamento, P,º'~derando-
que o contrato decorre da vontade comu111 das partes que se bilateraliza -se e proporcionalizando-se os valores aplzcavezs e co111pat1ve1s com os
na declaração negocial. fatos e vice-versa. '.·
12 Felipe Kirchner
COUTO E SILVA. Clóvis. Miguel Reale. civilista. Revista dos Tribunais. v. 672.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 53 - 62.
14 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 15
como as peculiaridades da hermenêutica contratual, mais complexa os princípios e regras do ordenamento, implicando, portanto, toda inter-
que a atividade interpretativa legal. Na segunda parte, contendo três pretação contratual no exame articulado entre te.Y:to, contexto e regra-1.
capítulos, volta-se a examinar o raciocínio jurídico por concreção, E mais: inte1pretamos não apenas textos, mas, por /gual, con-
atentando aos seus postulados gerais e àqueles específicos à herme- dutas, intenções (desde que objetivadas), fatos, indícios e também o si-
nêutica contratual. lêncio, para qualificá-los segundo as categorias do Direito, chegando à
O escopo é ambicioso, mormente para uma dissertação de mes- solução de um caso concreto (o chamado "momento aplicativo", não
trado que, a rigor, não exigiria a originalidade na abordagem, mas dele cindível, senão artificial e analiticamente, do "momento compreensi-
se sai o Autor com sucesso. Conquanto imerso na filosofia gademeriana, vo5 "). Por isto, di::: Kirchner, na inte1pretação contratual, "a força vin-
não ignora ser a interpretação contratual imantada pela finalidade que culante do objeto diz com o primado da declaração negocial, pois o sen-
levou os contraentes a firmar determinado ajuste de interesses. Como tido literal possível do texto conh·atual surge como base semântica possí-
disse de outra feita, contratos são aqueles ousados atos de conteúdo pa- vel de significação, detendo dupla missão: é ponto de partida para a
trimonia/2 pelos quais queremos, hoje, prever, organizar e regrar o ama- indagação do sentido e h·aça, ao mesmo tempo, os limites da atividade
nhã. São atos de apreensão de "pedaços do fi1turo" por meio da autono- inte1pretativa"6. Porém, de modo algum a relevância da declaração há
mia privada, pelos quais regulamentamos determinados problemas práti- de ser confundida com a inte1pretação literal. O Autor chama a atenção
cos: doar, vender, fornecer, locar, emprestar, consh·uir, h'ansportar, para a dimensão intertextua/ da declaração 11egocia/ (sistematicidade
associar-se, etc. interna e externa) e pela concreção do contexto fático e normativo em
A constatação sobre o peso do elemento pragmático na inter- que se insere o contrato a ser compreendido.
pretação conh·atual faz perceber a especificidade adquirida nesse campo A análise procedida, com efeito, valora adequadamente o racio-
pela tarefa hermenêutica no contraste com a inte1pretação de ouh·os cínio por concreção, pontuando, em certeira passagem, os seus pressu-
fenômenos. Quando inte1pretamos um conh·ato, inte1pretamos, sempre, postos, pelos quais "a força enunciativa dos elementos normativos con-
um texto em seu contexto, em vista de uma bem concreta finalidade práti- tratuais passa a ser compreendida em essencial coordenação com o caso
ca3. Não nos limitamos a "ah·ibuir sentido" a um texto, embora a ah·i- concreto, em um processo multidirecional entre Direito e realidade, di-
bzâção de sentido seja o passo inicial de toda interpretação. Também mensões que, nesse paradigma, passam a se complementar e inte1pene-
ah·ibuímos relevância - e a ah·ibuímos 'mais' ou 'menos' - isto é: valori- trar continuamente". Joga luz, portanto, 110 postulado normativo das
zamos determinadas cláusulas, qualificamos juridicamente as previsões circunstâncias do caso - ao qual dedica o núcleo da segunda parte de
das partes, para saber, por exemplo, se estamos frente a um termo ou sua dissertação-, pelo qual "o conh·ato é interpretado a partir das cir-
uma condição, uma cláusula penal ou uma cláusula de limitação do de- cunstancias concretas e de sua correlação com determinados elementos
ver de indenizar, uma resolução por inadimplemento com eficácia ex normativos e ax:iológicos do sistema jurídico". Mas não descura dos
t1111c (resolução em sentido esh"ito) ou com eficácia ex 1m11c (resilição). males do "excesso de concreção ", por via do qual a atividade hermenêu-
Essa valori:::ação se dá, ademais, por meio de pesos específicos, a saber, tica esgota-se num pobre e empobrecedor "Direito do caso", descolan-
do-se das bases dogmáticas do sistema jurídico que garantem aos con-
tratos a segurança e a estabilidade que os tornam úteis como meios de
MARTINS-COSTA. Judith. Como ham1onizar os modelos jurídicos abertos com a apreensão do fi1turo.
segurança jurídica dos contratos? (notas para uma palestra). Revista Brasileira de
Direito Civil - IBDCivil. v. 5. Jul/Set 2015, p. 68. Também publicado em RJLR a.
2 (2016), 11. 1, p. 1051-1064. Aspectos do tema são também analisados em MAR-
4
TINS-COSTA, Judith. Contratos. Conceito e Evolução. /11: LOTUFO, Reuan; Explana essa trilogia, SCOGNAMIGLIO, Claudio. L'Autonomia Privata come Cano-
NANNI, Giovanni Ettore (Orgs.). /11: Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, ne di Interpretazione dei Contrato. Cadernos IEC. n. 6. Canela: Instih1to de Estudos
2011. p. 23 e ss. Culturalistas, ago./2015. p. 10.
5
Desenvolvo esta temática em MARTINS-COSTA. Judith. A Boa-Fé no Direito "A atividade hermenêutica é 11111 processo unitário envolvendo compreensão, inte,pre-
Privado: critérios para a sua concretização. São Paulo: Marcial Pons, 2015, § 49 tação e aplicação" (Este livro, Conclusão 5). , ··
6
a 53. Este livro, Conclusão 4.
16 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 17
O alerta é muito necessário. Tem sido sublinhado o fenômeno do Já por estas breves indicações poderão os leitores perceber
desenvolvimento pluralista do Direito dos Contratos em nossos dias. É com que diligência o Autor se lançou ao desvelamento das complexas
mesmo uma ficção falar-se em "o contrato" como um esquema unívoco. dimensões da hermenêutica dos contratos, auxiliando, com sua cuidado-
Há "os contratos", uns suscitando fortes doses de intervenções heterôno- sa análise, a tarefa, muito necessária, da construção de uma doutrina da
mas, outros abrindo largo campo para o exercício da autonomia privada; inte1pretação coerente com a ji·agmentação e heterodoxia do fenômeno
uns voltados a compor interesses que se contrapõem, outros organizando contratual em nossos dias. Por esta razão, recebeu de ilustre Banca
interesses que andam em pen-a/elo; uns tendo quase a generalidade da lei Examinadorall o conceito A e recomendação para publicação, sábio
(com cláusulas predispostas destinada em vigorar em milhares de situa- ditame que, agora, felizmente, resta realizado.
ções concretas), outros sendo singularmente formatados; uns destinados a
formar-se, executar-se e adimplir-se instantaneamente, outros predispostos Judith Martins-Costa
à duração no tempo para cumprir com sua utilidade. E todos, absoluta- Doutora e Livre Docente em Direito pela Universidade
mente todos, hão de ser interpretados, "pois a atividade hermenêutica de São Paulo. Vice-presidente do Instituto de Estudos
sempre ocorre, mesmo perante um objeto de fácil compreensão " 7• Culturalistas (IEC). Membro da Academia Brasileira
lnte1pretar um contrato é, portanto, uma atividade situada, tan- de Letras Jurídicas. Advogada, Árbitra e Parecerista.
to pelo caso quanto pelos dados normativos advindos do ordenamento.
Diz bem Felipe Kirchner: "o ordenamento é elemento estruturante inter-
no do contrato", interessa à inte1pretação contratual não "apenas no
caso de lacunas a serem supridas com a utilização de normas supletivas,
mas sempre", fazendo-se presente, principalmente, por seus vetores axio-
lógicos, "na circularidade hermenêutica e na pré-compreensão do intér-
prete", e, assim, determinando "as premissas a serem observadas na
atividade hermenêutica "8.
Entre essas, destaca o Autor, além do postulado normativo das
circunstâncias do caso, o da proporcionalidade. Este "ministra parâme-
tros para que o szgeito cognoscente formule juízos acerca das interven-
ções existentes na bilateralidade da relação contrato-ordenamento, coor-
denando a forma como a regulamentação privada se relaciona com o
sistema e com os efeitos jurídicos emanados deste amálgama entre auto-
nomia e heteronímia"9. O controle da proporcionalidade, porém, não
resta ao alvedrio do intérprete, antes devendo respeitar a margem de
liberdade desfrutada pelos particulares para autorregularem os seus
recíprocos interesses. Trata-se, pois, de umafimção de controle que atua
negativamente, para coibir aqueles excessos no exercício da liberdade
contratual que venham a atingir as fimções dos contratos como meios de
deslocamento patrimonial no tráfego jurídico 10, permitindo a circulação
da riqueza.
7
Este livro, Conclusão 2.
8
Este livro, Conclusão 67.
9
Este livro, Conclusão 69. 11 Os Professores Francisco dos Santos Amaral Neto, da UFRJ; Huniberto Ávila. então
10
Este livro, Conclusões 70 e 71. da UFRGS; e Luis Renato Ferreira da Silva, então da PUC/RS.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 21
Capítulo I - ATIVIDADE HERMENÊUTICA ............................................. 31
1 O Horizonte da Atividade Hennenêutica ........................................... 31
1.1 O objeto e os limites da atividade hem1enêutica ........................ 31
1.2 A delimitação do horizonte hermenêutico ................................ .43
1.3 O caráter criativo, construtivo e produtivo da atividade
hermenêutica .............................................................................. 51
1.4 A incompleh1de da atividade hermenêutica ............................... 62
1.5 O caráter crítico da atividade hermenêutica ............................... 79
2 A Hermenêutica Contratual ................................................................ 84
2.1 As particularidades da hermenêutica contrahial.. ....................... 85
2.2 O negócio jurídico e seu conteúdo ............................................. 89
2.3 A autonomia privada e sua relevância hennenêutica ................. 99
2.4 O procedimento, os métodos e as regras de interpretação ........ 116
2.5 A fixação do objeto e da dimensão funcional da
hermenêutica contratual ........................................................... 151
Capítulo II - HERMENÊUTICA E CONCREÇÃO .................................... 173
1 O Raciocínio Jurídico por Concreção ............................................... 175
1.1 Os pressupostos gerais sobre o raciocínio por concreção ........ 175
1.2 A necessária imposição de limites ao raciocínio por
concreção ................................................................................. 189
1.3 A influência do raciocínio por concreção na força normativa
do contrato ................................................................................. 194
1.4 O ponto de relevância hermenêutica e a extensão dos meios
interpretativos ·································:········································201
1.5 A natureza jurídica das circunstâncias do caso e da
proporcionalidade .................................................................... 208
2 A Concreção Fática da Interpretação Contrahial.. ............................ 213
2.1 O postulado normativo das circunstâncias do casó .................. 213
20 Felipe Kirchner
a efetiva concreção da relação contratual, a análise estará voltada aos senso comum teórico dos juristas brasileiros5• A construção do pensa-
pressupostos que possibilitam e condicionam a interpretação do contrato, mento jurídico neste estudo acabará conduzindo o leitor para alguns ques-
segundo a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, aqui adotada tionamentos produtivos6, os quais passam longe dos limites tranquilizan-
como base teórica primária. 3 Em face desta escolha (ao seu modo arbitrá- tes da tradição metódica voltada simplesmente ao estabelecimento de um
ria), o estudo pretende conjugar esta matriz filosófica com a base dogmá- "sentido e alcance" da atividade hennenêutica cabalmente definíveis a
tica do Direito Privado voltada à interpretação do contrato, procurando • -7
priori.
contribuir com as discussões neste campo do saber jurídico, que se cons- Estando ciente do condicionamento dos seus pontos de partida8
titui no foco primordial do presente exame científico. e buscando alinhar a pesquisa com construções teóricas que proveem da
A consecução destes objetivos demanda, necessariamente, a experiência prática (cultural, ética, social, jurídica e política )9, este estudo
f01mulação de um juízo crítico acerca da reflexão metodológica4, o que
implica a superação do pensamento dogmático que há muito habita o s STEIN, Emildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: EDlPU-
CRS. 2004. p. 78 e 82; WARAT. Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris. 1994. v. 1. p. 22. Embora não se_pre~en_d~ dis~utir es~e
Método: traços fundamentais de uma hennenêutica filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vo- senso comum teórico, cabe ressaltar que grande parte da doutrina Jund1ca atnda nao
zes, 2004. v. 2, p. 339; HECK, Luís Afonso. Aulas ministradas na cadeira Teoria da introjetou a mudança de paradigma havida na filosofia, relativamente a viragem lin-
Argumentação Jurídica e a Questão da Fundamentação Jurídica (DIRP118), pro- guística e a constituição de mundo pela cõmpreensão. Os operadores do Direito conti-
ferida em 2007/I, no PPGDir/UFRGS, 2007a; HECK, Luís Afonso. Aulas núnistradas nuan1 indelevelmente mergulhados em seus hábitos, num conjunto de crenças, práti-
na cadeira Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy (DIRP146), proferi- cas e pré-juízos arraigados a opiniões anteriores, como se tais fossem verdadeiros
da em 2007ili, no PPGDir/UFRGS, 2007b ). Porém, a necessária escolha e delimitação dogmas. fazendo com que pennaneçam reféns da cotidi'.111ida?e, que se trAad~z na e~-
do tema da pesquisa implica, necessariamente, wna tomada de posição excludente de pressão como sempre o direito tem sido (STRECK, Lemo Lmz. Hermeneutica Jun-
outras possibilidades, e uma delas é analisar as influências da teoria da argwnentação dica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Ale-
na atividade hermenêutica. De qualquer modo, cabe mencionar que, salvo melhor juí- gre: Livraria do Advogado. 2002. p. 38), o que resta por impedir a necessária releitura
zo, a explicitação da compreensão, em tem1os de construção de wn raciocinio juridi- do fenômeno juridico, especialmente no campo da teoria da compreensão.
co, se constitui em wn momento posterior ao fenômeno hermenêutico, pois, como sa- 6 Tratando sobre os paradigmas contrahrnis, destacam Eros Roberto Grau e Paula For-
lienta Gadamer, "quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende" gioni que "mais dificil é aceitar que o novo e o antigo se mesclam e, 110 resultado ge-
(GADAMER, 2004, p. 317). Embora sejam momentos distintos, há wna inegável re- ral, as ji-onteiras de 11111 extrato são fluidas, impossibilitando a confortável ilusão da
lação entre interpretação e argumentação, pois se de wn lado o caráter dialógico da segurança jurídica" (GRAU, Eros Roberto: FORGIONl, Paula. O Estado, a Empre-
compreensão exige o uso da argumentação entre os locutores (sujeitos e objetos), sa e o Contrato. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 15).
mesmo no plano interno do pensar, de outro a argumentação pressupõe a interpreta- 7 MORATALLA, Donúngos Agustin. Historia y Filosofia em H. G. Gadamer. ln:
ção, uma vez que só argumenta legitimamente quem compreende a alteridade da coisa
GADAMER, Hat1s-Georg. EI Problema de la Conciencia Histórica. 2. ed. Madrid:
e do outro. Embora existam diferenciações evidentes, a proximidade entre as dimen-
Tecnos,2003.p.25.
sões ora examinadas é tamanha que parte da doutrina entende que não é possível in- 8 Miguel Reale reconhece que. no início de toda investigação. há um problema prévio
terpretar sem argumentar, assim como não é possível argumentar sem interpretar
de seleções de conteúdo e definição de prioridades. o que implica naturais e de~em~-
(VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e Inte,preta=ione: lineamenti di
nadas escolhas e atitudes axiológicas (REALE. 1999. p. 194). O presente ensmo nao
teoria em1eneutica de! dirítto. Roma: Laterza, 1999. p. 100-101 e 233-234). Ademais,
pretende esgotar as discussões acerca do tema tratado, mas atltes suscitar novas vias
é inequívoca a necessidade da compreensão vir à tona, o que se dá por intermédio da possíveis de abordagem do problema hem1enêutico. as quais jamais chegarão a um tal
argumentação, aspecto que está intimamente correlacionado a busca pela objetividade ponto de maturidade que encerre o diálogo. pois como suscita Gadatner, ''seria 11111
no funbito hennenêutico (alcance da intersubjetividade quando a compreensão se ele- mau hermeneuta aquele que imaginasse poder 011 dever ter a última palmwa" (GA-
va ao plano de wna intercomunicação). Nesses termos, deve ser reconhecido que a ar- DAMER, 2004, p. 544). No mesmo sentido Miguel Reale, para quem "a busca de
gwnentação pode fazer-se presente até mesmo no plano subjetivo do compreender, universalidade não exclui, mas antes exige, a consciência da pe1fectibilidade 011 da
mas, em tennos teóricos, esta dimensão parece estar representada no aspecto aplicati- nature=a inacabada e sempre provisória de todas as formas de conhecimento, filosó-
vo que é inerente à atividade hennenêutica. fico e científico" (REALE. Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva.
Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria entendem existir um perfeito paralelismo entre a 2002. p. 66).
hem1enêutica filosófica e a hem1enêutica jurídica (VIOLA, ZACCARIA, 1999, 9 GADAMER, 2004, p. 561: ROCHA. Acílio da Silva Estanqueiro. O Ideal da Europa:
p. 189-190; ZACCARIA, Giuseppe. Questioni di Interpretazione. Padova: Casa Gadamer e a hem1enêutica da alteridade. Revista Portuguesa de Filosofia. v. 56,
Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 1996, p. 65). fase. 3-4, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, jul./dez. 200Ô;· p. 326; VIOLA,
-1
GADAMER, 2004, p. 133. ZACCARIA, 1999, p. 436: MENDES, Sérgio da Silva. Hennenêutica da Ciiação e
24 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 25
procura responder às seguintes perguntas: A partir de que pressupostos e antes de tudo, prá~ica, temporal, intencional, histórica, linguística, dialéti-
estruturas é possível a compreensão do contrato? Em face destes elemen- ca e universal 13 • E o desvelamento desta dimensão complexa e dos pres-
tos condicionantes, como se dá a compreensão dos elementos fáticos e supostos condicionantes da compreensão que pennitirá a apresentação de
nonnativos que fonnam a declaração negocial, o contrato e a relação uma doutrina da interpretação contratual que conceda relevo às vicissitu-
contratual? des humanas e à autoria criativa do sujeito cognoscente, aspectos que
Estes questionamentos dirigem o foco de análise, posicionando- servirão de sustentáculo à indispensável busca da concreção fática e nor-
-o conscientemente a um passo do que tradicionalmente se entende por mativa da relação contratual, aspecto inerente à realidade nonnativa cons-
interpretação contratual 10, exatamente ali onde se encontram os antece- tituída pelo Código Civil de 2002.
dentes indispensáveis à consecução desta tarefa. Nesses termos, o viés Em razão da natureza ontológica do paradigma hennenêutico
objetivo do estudo precede a todo comportamento subjetivo do intérprete escolhido, nem todas as condições que serão desenvolvidas possuem ou
e a todo procedimento metodológico das ciências da compreensão, inclu- fazem parte de um procedimento ou método, no sentido de que quem as
sive no que respeita à aplicação de suas regras e cânones 11 • No lugar de compreende possa aplicá-las por si mesmo 14 • Antes, estas condições de-
pretender dominar o fenômeno hermenêutico, aqui procura-se compreen- vem estar dadas ao intérprete, de modo a possibilitar o desenvolvimento
dê-lo. Recuando a análise, pretende-se contribuir para que o intérprete próprio do processo exegético 15 • Como dito, aqui não se pretende desen-
ache o verdadeiro caminho da compreensão e o desbrave sobre bases volver ou estabelecer um determinado procedimento compreensivo apre-
mais firmes, seguras e, principalmente, verdadeiras. sentando pautas para a interpretação do contrato (discurso prescritivo),
Seguindo esta vertente, cabe salientar, desde já, que o presente
estudo se debruça sobre uma hennenêutica mais vivida do que pensada, está imerso e que se constitui no espanto primordial e na origem de toda e qualquer
indagação ontológica. A identidade existencial do homem e o mundo estão comple-
pois antes de se constituir em um instrumento à disposição do homem, o tamente fündidos, pois o ser é ser-mundano, razão pela qual o compreender é wn mo-
compreender é aqui assumido como sendo a estrutura constitutiva do do de ser do Dasein como ser-no-mundo (o saber é uma espécie de ser).
Dasein (ser-az)1 2 e uma dimensão intrínseca do ser humano a qual é 13 PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1997. p. 145, 214 e 216;
' ' MORATALLA, 2003, p. 17-18 e 20; REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História
dos Esquecimentos: o Holzwege do mandado de injunção. Revista Forense, v. 390, da Filosofia, v. 6, São Paulo: Paulus, [s.d.], p. 250. Como afinna André Araújo. "na-
mar./abr. 2007, p. 181. da mais claro que, desde Gadamer, a hermenêutica não mais poderia ser (apenas)
10
Atualmente a interpretação ainda quer ser, antes de tudo, l.lll1a doutrina do método, o ferramenta a serviço da técnica auxiliar da compreensão dos textos" (ARAÚJO,
qu_e ~arante seu lugar técnico-científico. Nessa condição, encontra-se presa à lógica do 2005, p. 158).
14
s_uJe1to cognoscente, baseada na dicotomia sujeito-objeto e alheia a importância da Nesse sentido o entendimento do próprio Gadamer: "No co,yunto de nossa investiga-
lmguagem e ao caráter construtivo do processo hem1enêutico, buscando a mera extra- ção mostrou-se que a certe:::a proporcionada pelo uso dos métodos científicos não é
ção de um sentido imanente ao objeto interpretado, por meio da adoção de métodos de suficiente para garantir a verdade. Isso vale sobretudo para as ciências do espírito,
conhecimento que trabalhan1 com a lógica cientificista do conhecer para dominar mas de modo algum significa uma diminuição de sua científicidade" (GADAMER.
(GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: a virada hem1enêutica. 2005, p. 631). Heidegger e Gadamer posicionaram a tarefa hennenêutica à margem da
Petrópolis: Vozes, 2007b. v. 2, p. 158; MOLLER, Josué Emilio. A Aplicação da metodologia própria das ciências da natureza e da tarefa de elencar regras de interpre-
Hem1enêutica Filosófica Contribuindo para a Efetivação dos Direitos Humanos Fun- tação textual, enfocando a explicação fenomenológica da própria existência humana
damentais. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul v 30 (PALMER, 1997, p. 51). Não se trata de um caráter "ametódico'' ou "antimetódico"
n. 63,jan. 2006, p. 82; ARAÚJO, André Gustavo de Melo. A Atualidade do .Àco~te~ da hermenêutica, mas no reconhecimento de que esta trabalha em outra perspectiva
cer: contribuição à leitura do projeto dialógico de mediação histórica na hermenêutica que não aquela derivada da científicidade cartesiana. As ciências do espírito se desen-
filosófica de Hans-Georg Gadamer. Dissertação apresentada na Universidade de São volvem em uma dimensão que se encontra para além da questão do método. No cerne
Paulo: Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma- da teoria gadameriana encontra-se a critica à visão unívoca de racionalidade que limi-
nas, nov. 2005, p. 20). tou a filosofia a wna discussão metodológica (GACKL, Sérgio Ricardo Silva. Perspec-
11 tivas do Diálogo em Gadamer: a Questão do método. Cadernos Instituto Humanitas
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fündamentais de uma hem1e-
nêutica filosófica. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. v. 1, p. 16. Unisinos, n. 16, 2006, p. 8-11: BRITO, Evandro Oliveira de. Consciência Histórica e
12
A expressão Dasein (ser-az) indica a situação existencial do ser hl.lll1ano em sua facti- Hermenêutica: considerações de Gadamer acerca da'teoria da história de Dilthey. Re-
cidade, ou seja, a condição (hl.lll1ana) que compromete o homem com situações e ins- vista Trans/Form/Ação. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, n. 28 (2), 2005,
tâncias por ele não escolhidas. A chave para o entendimento deste preceito está na p. 150). -· .·
15
partícula aí, significativa do mundo concreto, real e cotidiano, no qual o ser humano GADAMER. 2005, p. 391.
26 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 27
mas, sim, apontar e dissertar sobre as condições que sempre se dão na influenciado decisivamente o Direito Privado, hoje resta obscurecida 19 •
atividade hennenêutica, enfatizando aquilo que invariavelmente acontece Independentemente das eventuais discordâncias que possam surgir - até
com o intérprete, independente do que este deseja, faz ou deveria fazer mesmo porque o diálogo transdisciplinar importa na mútua transposição
(discurso descritivo), sem negligenciar, evidentemente, a busca de solu- de questões teóricas aos campos do saber envolvidos, o que é deveras
ções práticas que envolvam a atividade de compreensão do contrato. problemático -, o rigor científico não pennite mais ignorar as lições que
O estudo contempla peculiares preocupações em termos biblio- serão aqui apresentadas20 •
gráficos. Em um viés transdisciplinar16, procura-se projetar ao exame da Por deter um viés transdisciplinar, talvez o grande desafio deste
hermenêutica contratual as originais e indispensáveis lições da hermenêu- estudo seja inserir satisfatoriamente, do ponto de vista científico, uma
tica filosófica de Hans-Georg Gadamer 17, realizando um contraponto matriz hermenêutica ontológica (situada no plano do ser) no universo
produtivo, naquilo que for possível, com a teoria metodológica de Emílio normativo do Direito (situado no plano do dever-ser construído por meio
Betti1 8• O objetivo desta intersecção é estabelecer pontes discursivas entre de detenninados institutos e categorias jurídicas)21 • Sobre esta questão,
a doutrina civilista e os elementos trazidos genericamente pela análise cabe suscitar que o necessário enfrentamento das categorias presentes no
filosófica, retomando aspectos de uma tradição que, não obstante tenha plano do Direito não contradiz a correição da matriz ontológica da her-
menêutica filosófica, não havendo, a priori, nenhuma pretensão de des-
16
A conquista de autonomia e independência por um determinado ramo do conheci- construção deste paradigma. O fenômeno hermenêutico é amplo e, em
mento humano não pode significar isolamento científico. Gadamer entende que a sua complexidade, depende da inclusão e assimilação das peculiaridades
pesquisa interdisciplinar surge como um dos desideratos da ciência, havendo a ne- da área do conhecimento humano em que esteja atuando (no caso o Direi-
cessidade do pesquisador olhar para além de seu campo de trabalho, encarando as to Contratual )22 .
suas reflexões com novos olhares e oxigenando questões há muito tempo conheci- Adentrando de forma introdutória e superficial na concepção
das. A escolha desta pesquisa pela abordagem filosófica não é aleatória, pois a sua
gadameriana, mister se faz salientar que, perante este paradigma, a her-
visão de totalidade ''está implicitamente presente e operante em qualquer auto-
reflexão em nível de pesquisa" (GADAMER, Hans-Georg. Teoria, Técnica e Práti- menêutica assume a finitude do intérprete, a historicidade da compreen-
ca: a tarefa de uma nova antropologia. ln: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, P.
(Org.). Nova Antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultu- 19 Como refere Betti, "desde tempos remotos, no campo do direito, o território mais
ral. v. 1 (antropologia biológica), São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977a, p.
fértil de questões inte1pretativas é o direito civil", até mesmo porque foi no âmbito
5; GADAMER, Hans-Georg. Considerações Finais. ln: GADAMER, Hans-Georg;
privado que se deu a formulação dos cânones hem1enêuticos fundan1entais que, poste-
VOGLER, P. (Org.). Nova Antropologia: o homem em sua existência biológica,
riom1ente, foram exportados e dominaram o Direito Público (em especial o Direito
social e cultural. v. 7 (antropologia filosófica), São Paulo: Universidade de São Constih1cional) (BETTI. Emilio. Interpretação da Lei e dos Atos Jurídicos. São
Paulo, 1977b. p. 276 e 278-279). Paulo: Martins Fontes. 2007. p. XLIT-XLIII). James Gordley entende que a filosofia
17
STEIN, 2004, p. 71. O Direito como um todo se apresenta como um lócus privilegia- transformou significativamente o trabalho dos juristas, sendo a partir daquele ramo do
do para a aplicação da hennenêutica filosófica (HOMMERDING, Adalberto Narciso. saber que o contrato foi organizado em uma doutrina sistemática e coerente pela pri-
O§ 3º do art. 515 do Código de Processo Civil: uma análise à luz da filosofia herme-
meira vez. Ademais, o autor refere que a estruh1ra de conceitos contrah1ais dispostas
nêutica (ou hennenêutica filosófica) de Heidegger e Gadamer. Revista da Associação
na ordem estatal, por comungar desta origem comum. é similar nos sistemas de civil
dos Juízes do Rio Grande do Sul, n. 91, 2003, p. 17), razão pela qual a mesma influen-
law e common lall' (GORDLEY, James. The Philosophical Origins os Modern Con-
cia até mesmo o campo específico da interpretação dos contratos.
18 tract Doctrine. Nova Iorque: Oxford University Press, 1991. p. 1-2 e 230).
Como antes mencionado, a hennenêutica filosófica é adotada neste estudo como base 20
teórica primária, sendo que a concepção bettiana servirá, diretamente, para a apresen- HECK, 2007a.
21 As nomrns jurídicas são criadas a partir dos operadores deônticos pennitido, proibido
tação das diferenças de objetivos que existem entre uma apreensão ontológica e meto-
dológica do fenômeno hermenêutico. Contudo, como ficará claro no desenvolvimento e obrigatório.
22 Gadamer construiu rnn paradigma de compreensão w;iitário. não tendo se preocupado
da pesquisa, as diferentes pretensões de cada paradignrn não afastam as possibilidades
de diálogo, nas quais será possível identificar expressivas aproximações em temas de com as peculiaridades do projeto de dever-ser que constih1i o universo nom1ativo do
fundamental importância para o alcance da compreensão. Como refere Richard Pal- Direito. Nesses tennos, o exame das categorias presentes no Nomos Jurídico não visa
mer, há espaço para uma hennenêutica orientada pela objetividade e método e outra desconstruir a matriz gadameriana que se centra no·existencial do ser, mas inserir esta
pela historicidade da compreensão, sendo o fenômeno hennenêutico amplo e comple- dimensão em um mundo (jurídico) que é construído sob a promessa constante do de-
xo demais para abarcar apenas uma concepção (PALMER, 1997, p. 68 e 75-76). Nes- ver-ser. Dito de outra fonna, ao se trabalhar com as categorias do Direito, não se está
se sentido: VIOLA; ZACCARIA, 1999, p. 198-201. negando a natureza essencialmente ontológica da atividade hennenêutica.
28 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 29
s~o. (autoridade da tradição) ~ a questão da linguagem como princípios É a partir da estrutura do Dasein e do condicionamento da ati-
basicos e pressupostos produtivos pennanentes no caminho fenomenoló- vidade interpretativa à necessidade de "deixar a coisa falar" que se alcan-
gico em direção à coisa mesma, que se constitui na pedra fundamental ça a indispensabilidade hem1enêutica do raciocínio por concreção, pelo
sobre a qual é edificado um projeto prévio de compreensão. Esses pres- qual a força enunciativa dos elementos nonnativos contratuais passa a ser
supostos ~ão são af~s~ad~s nem mesmo quando se tem em vista um obje- compreendida em essencial coordenação com o caso concreto, em um
t~ essencialmente dmarni~o como o contrato. A realização da cornpreen- processo multidirecional entre Direito e realidade, dimensões que nesse
sao nunca começa do vazio e sempre coloca em jogo as várias possibili- paradigma passam a se complementar e interpenetrar continuamente.
dades de conhecimento por meio de urna estrutura prévia que condiciona Nesse viés, o contrato é interpretado a partir das circunstâncias concretas
a cornpreensã? _e fonna expectativas de sentido extraídas da relação pre- e de sua correlação com detenninados elementos nonnativos e axiológi-
ceden!e do suJeito cognoscente com o objeto. Nesse sentido, o agir inter- cos do sistemajurídico24 •
pretativo sempre pertence a uma situação hermenêutica específica e já se Porém, a tarefa deste estudo não se restringe à apresentação dos
~ncontra prefigurado pelos juízos prévios que o sujeito tem sobre o objeto matizes da concreção jurídica. A pesquisa alcança, ainda, os limites desta
mterpretado (pré-compreensão), os quais, de modo consciente ou incons- forma de raciocinar, fixando parâmetros e critérios que posicionem o
ciente, comandam seu discurso e compreensão. método concretista dentro de um quadro de inteligibilidade e controle
. Partindo desta projeção inicial, cabe ao intérprete esclarecer e intersubjetivos, já que seu excesso i!llpede processos de discernimento,
convahdar seus preconceitos (legítimos) por meio de mediações autênti- abstração, valoração, ordenação e sistematização; obstaculizando, assim,
cas (perguntas orientadas) no diálogo com a alteridade da coisa deixando o próprio nascimento e desenvolvimento do agir científico que se deve
pos~ibilidades ao objeto, o que ocorre quando não se silencia o' complexo fazer presente tanto na dogmática (aspecto teórico) quanto na narrativa
honzonte do contrato, que deve ser desvelado e trazido ao horizonte do jurídica (aspecto prático)25 • Este desiderato cumpre com a necessidade de
intérprete. Essa atividade, que é realizada sem a intervenção necessária de se impor limites à onipotência da reflexão 26, preocupação que diz com o
um procedimento metódico, dá-se estruturalmente de forma circular ou resguardo da segurança jurídica nas relações contratuais27 •
esp~alifonne (na dicção _de Hassemer), pois demanda que o intérprete Em tennos esfruturais, a primeira patte do estudo tem como
r~ahze um _retomo re~exivo e co~tinuo ao projeto prévio de compreen- objeto as especificidades próprias da atividade interpretativa, na qual
sao, a partrr da relaçao estabelecida e desenvolvida com a coisa a ser são enfrentados os pressupostos fundamentais da teoria geral da herme-
compreendida. nêutica (Tópico A) e desenvolvidas algumas das questões essenciais à
A necessidade imperativa e cogente do sujeito "deixar a coisa interpretação contratual (Tópico B). Assentadas as premissas basilares
falar" constitui-se na tarefa primeira, constante e última da atividade do fenômeno hennenêutico que se debruça sobre o instituto do contrato,
hennenêutica, já que esta se inicia na coisa, se desenvolve por meio de a segunda parte tem como tema a influência do método concretista no
mediações dialógicas entre o projeto prévio e o objeto e termina quando o âmbito da interpretação contratual, apresentando as considerações ge-
herme~eut~ encontra as verdadeiras possibilidades de interpretação na rais sobre o raciocínio por concreção (Tópico A) e enfrentando as pecu-
convahdaçao de tal projeto naquilo que está interpretando. O resultado liaridades da concreção fática, relativa ao contexto material significati-
de~tas _consideraçõ~s ~ o amál~ar~1a hermenêutico entre sujeito e objeto, 24 MARTINS-COSTA, Judith. O Método da Concreção e a Interpretação dos Contratos:
pois nao apenas o mterprete sai diferente do processo hennenêutico mas primeiras notas de uma leitura suscitada pelo Código Civil. /11: DELGADO, Mário
também a coisa, que embora mantenha sua singularidade (e a alteridade Luiz; ALVES, Joues Figueirêdo (prgs.). Novo Código Civil: questões controvertidas.
d~ tradição),. ganha_ novas e verdadeiras possibilidades de ser compreen- São Paulo: Método, 2005b. v. 4, p. 136-137.
dida, adqmrmdo diferentes unidades de sentido em um horizonte mais 25 MARTINS-COSTA, Judith. Prefácio. ln: CACHAPUZ. Maria Claudia. Intimidade e
amplo 23 • Vida Privada no Novo Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 2006. p. 35.
26
GADAMER, 2005, p. 449.
27
O contrato inegavelmente visa garantir previsibilidade e certeza aos contraentes.
23
~~ID"?-, Custódio ?e; FLICHINGER, Hans-Georg; RHODEN, Luiz. Hermenêu- pennitindo o planejamento particular. protegendo expectativas legítimas e razoáveis e
potencializando a possibilidade de cumprimento das promessas. tanto pela fomializa-
tica Filosofica: nas trilhas de Haus-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
p. 61-68. ção do acordo quanto pela possibilidade de coação estatal.
30 Felipe Kirchner
a ser compreendido30 • Nesses tennos, o desenvolvimento do pensamento Esta matriz teórica permite que a atividade hennenêutica con-
hennenêutico gadameriano não diz com "o que fazemos, o que devería- tratual alcance a conexidade existente entre a declaração negocial e os
mos fazer, mas (com) o que nos acontece além do nosso querer e fa- elementos fático-nonnativos que constituem a relação contratual. Porém,
zer"31, precedendo todo comportamento subjetivo e metodológico. toma-se produtivo traçar um paralelo desta vertente com a concepção
Para a hennenêutica filosófica, a dimensão exegética se encon- metodológica de Emílio Betti que, embora seja mais restritiva 34, aporta
tra na base de toda experiência de mundo 32 , pois a compreensão transcen- interessantes elementos para uma atividade hermenêutica jurídica, situada
de sua condição enquanto modo de conhecer, constituindo-se no próprio no plano do dever-ser, principalmente no que respeita à centralidade des-
modo de ser do homem. O sujeito sempre interpreta, uma vez que é a tinada à questão da fonna.
atividade hennenêutica que produz toda e qualquer compreensão. Essa Para o jurista italiano, a possibilidade de compreensão surge
noção amplia significativamente o objeto da atividade hermenêutica, que quando o intérprete se encontra na presença das chamadas formas repre-
passa a responder, também no plano da práxis, pela experiência e realida- sentativas35. Enquanto o vocábulo forma denota a relação unitária de
de que engloba o intérprete, o objeto e a relação destes entre si e com o elementos sensíveis que conserva a marca de quem a criou (aspecto físico
mundo (natural e jurídico) que os constitui e condiciona33 • da declaração ou comportamento )36, o tenno representativa diz com a
30
GADAlvIER, Hans-Georg. Poen1a y Dialogo: reflexiones em tomo a uma selección de dir o aspecto teórico e prático, já que "a 7iermenêutica filosófica não é ela própria a
textos de Ernst Meister. ln: GADAlvIER, Hans-Georg. Poema y Dialogo: ensayos so- arte do compreender, mas a sua teoria" (GADAlvIER, 2004, p. 10 e 34).
bre los poemas alemanes más significativos dei siglo XX. Barcelona: Gedisa, 1993ª. 34 PESSOA, Leonel Cesarino. A Teoria da Interpretação Jurídica de Emilio Betti: dos
p. 144; GADAlvIER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: Heidegger em métodos interpretativos à teoria hermenêutica. Revista Trimestral de Direito Civil,
retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2007a. v. 1, p. 94-95. v. 6, 2001. p. 64-66. Na mesma passagem o autor aponta que Emílio Betti distingue a
31 interpretação de outras fonnas de conhecimento quando restringe seu objeto às fonnas
Refere Gadamer que a atividade hennenêutica é "o modo de ser da própria pré-sença
(Dasein)", e que "hermenêutica é uma palavra que a maioria das pessoas não conhe- representativas, conceito com características bastante próprias. O objeto da interpreta-
ce (. ..) nem precisa conhecer (. ..) mas ainda assim a experiência hermenêutica atinge- ção bettiana não é uma coisa simples, mas uma objetivação do espírito, fato que irá
as e não as exclut', o que denota que a compreensão é um acontecimento, e não mais condicionar toda a construção teórica, culminando na concepção reconstrutiva do pro-
llll1 mero processo mecânico de aprendizagem. Este aspecto é tão relevante na obra cedimento hermenêutico, como será apresentado no tópico "O caráter criativo, cons-
gadameriana que o filósofo refere que, originarian1ente, pretendia nominar sua obra trutivo e produtivo da atividade hennenêutica".
Verdade e Método com o título Compreensão e Acontecimento (GADAlvIER, 2005, 35 BETft Enlilio. Teoria Generale della Interpretazione. 2. ed. Milano: Giufrré,
p. 14 e 16; GADAlvIER, 2004, p. 280, 561 e 563; GADAlvIER, 2007a, p. 115; GA- 1990a. v. L p. 59 e 62.
DAlvIER, Hans-Georg. Herança e Futuro da Europa. Lisboa: Edições 70, 1998c. 36 BETIC Enrilio. Teoria Generale della Interpretazione. 2. ed. Milano: Giufrré~
p. 24). Após Gadamer, a compreensão não pode mais ser vista como um simples ato 1990b. v. 2, p. 802 e 817. Miguel Reale entende que "ao contrário de preexistirem no
do homem, tendo de ser quantificada enquanto evento que ocorre no homem (PAL- espírito formas definitivas, o que o caracteri=a é antes o poder de ir sempre consti-
MER, 1997,p. 217). tuindo novos e adequados esquemas e processos de capatação do real, o qual, a rigor.
32
A visão de Gadamer é tão ampla que abarca, inclusive, o estudo dos fenômenos natu- só existe sob o prisma gnoseológico, enquanto se converte em objeto" (REALE, 1999.
rais (GADAlvIER, 2004, p. 138). Emilio Betti discorda deste entendimento, referindo p. 33). A questão da fonna e de sua representatividade é de fündan1ental importância
ser impróprio qualificar como interpretação o diagnóstico de um fenômeno fisico e a no campo jurídico, especialmente de sua interpretação, pois enquanto em outras esfe-
explicação de fenômenos naturais (BETTI, 2007, p. XLII, XCIV e XCIX). A centrali- ras de manifestação humana (v.g.: arte) a representação não se encontra aprioristica-
dade da atividade hem1enêutica uo plano da interpretação dos contratos é evidenciada mente vinculada a uma fomia. no direito a representatividade nonnativa legal e con-
por Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria (VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 105, 129- tratual se encontra invariavelmente, e·m maior ou menor grau, vinculada a uma deter-
133, 183 e 435). minada forma prescrita para o âmbito material ou processual (ex.: tipos contratuais,
33
GADAlvIER, 2004, p. 566; GADAlvIER, 2007b, p. 180. Na teoria gadameriana a cláusulas obrigatórias, número mínimo de testemunhas, etc.). Como salienta Betti, "o
experiência e a realidade estão dimensionadas no âmbito racional do que pode ser ob- negócio deve responder àqueles mesmos requisitos de estrutura a que deve satisfa::er
jeto de acordo, o que circunscreve a hem1enêutica dentro de uma dimensão ético- para configurar 11111 negócio existente e válido: os requisitos de relevância para a in-
prática (SILVA, Rui Sampaio. Gadan1er e a Herança Heideggeriana. Revista Portu- te,pretação são ligados por um nexo de coerência harmônica aos requisitos estrutu-
guesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Facnldade de Filosofia de Braga, jul./dez. rais de validade e de existência jurídica'' (BETII,2007, p. 350; BETTI. Emílio. Teo-
2000b, p. 529-530). O caráter prático da atividade hermenêutica é salientado por Ga- ria Geral do Negócio Jurídico. Campinas: LZN, 2003b. t. 2. p. 11~)- Como contrato
damer quando este afirma que "a essência da reflexão hermenêutica consiste justa- e autonomia privada são fenômenos sociais, a fomia atende a uma exigência de recog-
mente em que ela deve surgir da práxis hermenêutica", embora não se possa confim- noscibilidade. essencial ao entendimento da espiritualidade alheia. uma vez que um
34 h1terpretação Contratual 35
Felipe Kirchner
manifestação de um espírito revelado ao intérprete por meio da fonna e Conjugando as teorias, pode-se afinnar que, enquanto para Ga-
que com ele procura comungar (plano metafisico do sentido da comum damer o objeto da interpretação é a própria realidade (limitada pela lin-
intenção das partes contratantes). Sob o prisma da teoria bettiana, o obje- guagem e historicidade )41 , para Betti a coisa a ser conhecida é mais restri-
to da interpretação é a manifestação objetiva de um pensamento que se ta, pois se encontra limitada pela noção deformas representativas. Embo-
consubstancia por meio de um comportamento prático. A representativi- ra a dissonância, as c01Tentes de pensamento concordam que a· interpreta-
dade do pensamento (situação objetiva complexa) chega ao intérprete por ção tem como objeto um sentido que não se limita à fonna e aos elemen-
intermédio da forma (declaração negocial e circunstâncias) 37 , razão pela tos fisicos que a constituem. Como refere Emílio Betti no contexto her-
qual o objeto da interpretação não é uma espiritualidade que fala ao intér- mético de seu pensamento, o "objeto de inte,pretação é sempre a decla-
prete (vontade subjetiva), mas a objetivação de uma espiritualidade em ração documentada (ato representativo da a11to11omia), e não o docu-
uma detenninada fonna (representativa) que se põe entre a espiritualidade mento que a representa"42 .
do autor e do intérprete, em um processo triádico que envolve a fo11na Assumido o paradigma gadameriano de que o procedimento
representativa e dois polos espirituais38 • Contudo, cabe destacar que o hermenêutico sempre ocorre, mesmo quando o intérprete se depara com
presente estudo rechaça esta cisão, encampando a noção gadameriana de um objeto de fácil compreensão já que não há como fugir do fato de
que na atividade hermenêutica inexiste uma separação entre sujeito e que a compreensão se realiza por meio da interpretação -, cabe enfrentar
objeto. a questão da (in)aplicabilidade do bi;:ocardo in claris cessat (11011 .fit) i11-
Existem dois aspectos da teoria bettiana que merecem ser desta- te1pretatio43, representativo da ideia de que as disposições claras dispen-
cados. Primeiro, o efeito representativo do objeto independe da intenção e sam o interpretar44 • Esta questão detém grande utilidade prática, seja por-
do pensamento ter sido manifestado com um fim representativo, razão
espírito diferente, conforme o espírito da época e da sociedade para a qual a norma é
pela qual faz pat1e da atividade hennenêutica a busca pelo valor (repre- destinada a valer" (BETTI, 2007, p. 32).
sentativo) implícito nos comportamentos práticos que dizem com o negó- 41 A henuenêntica filosófica visa exatamente a superação da filosofia da subjetividade a
cio jurídico39 • Segundo, a representatividade contida na forma é dinâmica partir da quantificação do vínculo do sujeito cognoscente à tradição e a influência da
e dialoga com o entorno sociocultural e histórico em que o objeto está história na construção de qualquer texto. admitindo que o intérprete jamais conseguirá
inserido, o que remete à necessidade de um raciocinar por concreção4º. superar a sua própria facticidade. detenuinadora da sua experiência de mundo (OLI-
VEIRA. Manfredo Ara(tjo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001. p. 227-229).
ato só é reconhecível pelos outros por meio de sua forma e nenlmm negócio existe 42 BETTI, 2007, p. 400.
sem uma forma que o tome socialmente reconhecível, pois é esta que revela a tomada -B Carlos Maxinriliano adverte que o brocardo . en1bora expresso etn latin1~ não te111
de posição do contratante em relação aos interesses em jogo, mesmo que este não te- origem romana. pois Ulpiano ensinou exatamente o contrário: quamvis sit ma11ifestis-
nha consciência disto. Por fim, cabe destacar que esta recognoscibilidade é dirigida, si11111111 edictum praetoris, attamen 11011 est 11eglige11da i11te1pretatio ejus (embora cla-
pois a exigência não abrange toda a sociedade, mas o círculo onde o contrato possui ríssimo o édito do pretor. não se deve descurar da interpretação respectiva). O autor
relevância jurídica, em confomudade com a estrutura típica do negócio (BETTI, ainda adverte que a este conceito os tradicionalistas opõem a máxima de Paulo: cum
2007, p. 350; BETTI, Enulio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Campinas: LZN, in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quaestio (quando nas pa-
2003a. t. 1, p. 79, 181, 183 e 187; BETTI, 2003b, p. 179). lavras não existe ambiguidade. não se deve admitir a pesquisa acerca da vontade ou
31 BETTI, 1990a, p. 61; BETTI, 2007, p. XX:XIII-XCVII. Mister se faz esclarecer que a intenção). Contudo, confom1e consta no Digesto, este brocardo só se refere aos testa-
noção de fonua representativa não se limita às declarações negociais externadas, pois mentos, enquanto a paremia de Ulpiano abrange a generalidade dos éditos pretorianos
o conceito encampa até mesmo o silêncio, objeto de grande significância no âmbito (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Porto Alegre:
jurídico (MEGALE, Maria Helena Damaceno e Silva. A Teoria da h1terpretação Jurí- Globo. 1925. p. 40-41).
44 FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contrato: conceito, fontes, fonnação. Coimbra:
dica: um diálogo com Emílio Betti. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 91,
jan./jun. 2005, p. 155). Almedina, 2005. p. 140. O brocardo pode ser lido dt; duas fonnas: nonfit, indicando
3s ME GALE, 2005, p. 148-149. Analisando a estrutura interna da construção dogmática que quando da clareza não há interpretação: e cessai, indicando que. em face da clare-
linguística de Betti, pode-se afirmar que o conceito de fom1as representativas passa a za, a interpretação deve ser "interrompida". Claudio Scognamiglio ressalta uma outra
ser significante da própria linguagem presente na atividade hennenêntica. apreensão da paremia. a qual indica que, quando o ·significado textual é unívoco, não
39
BEITI, 2007, p. XXXV-XXXVI. podem ser usados cânones hermenêuticos diversos daqueles que pregam o resguardo da
40 literalidade do instrumento contratual (SCOGNAMIGLIO, Claudih: Interpretazione
Emílio Betti colaciona o exemplo da transformação da interpretação da lei sem altera-
dei Contratto e Interessi dei Contraenti. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani
ção (legislativa) de seu texto, pois a redação da nonna pode ser ''preenchida por um
36 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 37
que a noção existe desde o romantismo 45 e ainda se encontra disseminada não estando a interpretação do contrato condicionada ao fato dele não ser
em muitos manuais, seja porque até mesmo pensadores de enon11e rele- claro (deixar margem a dúvidas)49 •
vância (como o próprio Gadamer) deixam margem a contradições com o A segunda, de que os textos jurídicos carecem de interpretação
entendimento de que a atividade hen11enêutica é inerente a qualquer for- não apenas quando são destituídos de clareza, mas sempre, especialmente
ma de conhecimento humano 46 • pelo fato de que devem ser aplicados a detenninados casos concretos,
O aporte teórico da teoria aqui sustentada pen11ite a superação tarefa para a qual inexistem soluções previamente estruturadas e que le-
do brocardo. Nesse sentido, Miguel Reale entende que a regra jurídica vem em consideração apenas o objeto interpretado 50 • A interpretação
''jamais pode deixar de ser inte,pretada, não podendo haver norma que literal do brocardo considera como suficiente a enunciação da disposição
dispense inte,pretação (essencialidade do ato inte1pretativo)"47 • Não se nonnativa como juízo lógico, ignorando que a nonna se trata de um ins-
deve confundir interpretação com dificuldade de interpretação, não sendo trumento disciplinador de relações sociais e que, por essa razão, sua aná-
a obscuridade um pressuposto para a necessidade de efetivação da com- lise sempre depende de sua inserção nas questões práticas do caso concre-
preensão, o que traz consigo duas conclusões, explicitadas a seguir48 • to. A atividade hermenêutica não se compadece com a mera subsunção,
A primeira, de que a qualificação de clara concedida à deten11i- pois demanda questões relativas à aplicação dos preceitos51 •
nada diretriz nonnativa somente pode ser um resultado do processo inter- Os problemas trazidos pelo brocardo apenas são evitados com a
pretativo, e nunca um dado preexistente e pressuposto, o que ignoraria o seguinte restrição da máxima em exame: as regras claras dispensam
caráter construtivo da exegese. A clareza não é premissa, mas resultado, (apenas) o esforço inte,pretativo. Embora todo texto deva ser interpreta-
do, nem todo texto apresenta dificuldades de compreensão 52, com o que
concorda Gadamer quando afinna que "todo esforço de querer compreen-
(CEDAM), Padova,1992, p. 301). Nesta parcela do estudo a discussão acerca dobro-
cardo em exame enfatizará a primeira acepção apresentada (quando da clareza não há
der começa quando nos deparamos com algo estranho, provocante e
interpretação). desorientador" 53 •
45
ALMEIDA; FLICHJNGER; RHODEN, 2000, p. 176.
46
STElN, 2004, p. 51. Exemplificativamente, cabe colacionar três passagens da obra 49 BETTI, 2007, p. 231-232: GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso Sobre a Inter-
gadameriana onde se verificam as aparentes contradições mencionadas: (1) "A tarefa pretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 70-71: AMARAL,
da inte1pretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é con- Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 94:
troverso e é preciso alcançar a reta compreensão da biformação" (GADAMER, MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Interpretação do Negócio Jurídico: pano-
2004, p. 398); (2) "a hermenêutica se impõe onde não há entendimento com os de- rama geral e a ah1ação do princípio da conservação. Dissertação apresentada na Uni-
mais e consigo próprio" (GADAMER, 2004, p. 213); (3) "hablamos de inte1pretació11 versidade de São Paulo, Faculdade de Direito, 2003. p. 65: GRASSETTI. Cesare.
cuando el significado de 1111 texto no se comprende en 1111 primer momento. Una inter- L'Interpretazione dei Negozio Giuridico: con particolare riguardo ao contratti. Pa-
pretación es entonces necesaria; en oiros términos, es preciso uma reflexión e.,plícita dova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 1983. p. 96-97: ALPA, Guido:
sobre las condiciones que hacen que el texto tenga tal o cual significado. EI primer FONSI, G.: RESTA, G. L'Interpretazione dei Contratto: orientamenti e tecniche
presupuesto que implica el concepto de inte1pretación es el carácter 'extrafío' de della giurisprudenza. Milano: Dott. A. Giuffré, 1983. p. 165-166. Como adverte Jorge
aquello que debería ser compreendido. En efecto, aquel/o que es inmediatamente evi- Santa Maria, a obscuridade e o juízo de validade do contrato não são requisitos para a
interpretação, pois tais qualificações (clareza e validade) são exatamente os resultados
dente, aquel/o que nos convence por la simple presencia, no reclama ningzma inter-
da atividade hermenêutica, mais precisamente do momento indissociável que Gada-
pretación" (GADAMER, Hans-Georg. EI Problema de Ia Conciencia Histórica.
mer denomina de aplicação (SANTA MARIA, Jorge Lopez. Interpretación y Califi-
2. ed. Madrid: Tecnos, 2003. p. 43-44). cación de los Contratos frente ai Recurso de Casación en el Fondo en Materia
47
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. São Paulo, 1968. p. 250; REALE, Civil. Chile: Juridica de Chile, 1966. p. 12-14, 31, 45-46).
Miguel. Diretrizes de Hermenêutica Contratual. ln: REALE, Miguel. Questões de Di- 50 GRAU, 2003, p. 25 e 32. .
reito Privado. São Paulo: Saraiva, 1997b. p. 3. 51
A noção de que a hermenêutica é um processo unitário envolvendo compreensão,
48 interpretação e aplicação, será enfrentada no tópico seguinte, intihilado "A delimita-
ALMEIDA; FLICHJNGER; RHODEN, 2000, p. 177; MIRANDA, Custódio da Pie-
dade Ubaldino. Interpretação e Integração dos Negócios Jurídicos. São Paulo: Re- ção do horizonte hermenêutico".
52
vista dos Tribunais, 1989. p. 118; FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação SILVA, Sergio André R. G. da. A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hennenêu-
das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 129-130: HESSE, Konrad. Ele- tica Filosófica de Hans Georg Gadamer. Revista Tributária de Finanças Públicas,
mentos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Ale- 11. 64, set./out. 2005, p. 290-291. , ··
53
gre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. p. 53-54. GADAMER, 2004, p. 217-218.
38 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 39
Como neste tópico está-se enfrentando os limites do agir her- intérprete para a alteridade do outro e/ou do texto, e a sua disposição de
menêutico, cabe delinear que nessa atividade há uma pertença do sujeito deixar valer algo contra si, ainda que não haja nada ou ninguém que
cognoscente com relação ao objeto a ser conhecido, ou seja, há um cons- assim o exija, além de seu rigor ou consciência científica57 •
tante atuar da coisa sobre o intérprete54 • A tarefa primordial do sujeito é A aceitação da força vinculante do objeto interpretado não limi-
não permitir que suas concepções prévias sejam impostas perante o obje- ta o projeto da compreensão, mas o expande para um âmbito além das
to e o sobrepujem fora da relação da circularidade hennenêutica, pois a próprias possibiliçlades do intérprete, âmbito demarcado por seu horizonte
compreensão deve surgir da coisa mesma. Em outros termos, o intérprete hennenêutico58 • E no objeto que o intérprete tem um encontro consigo
deve deixar a coisa falar 55 , já que a hermenêutica filosófica reconhece mesmo, devendo reconhecer no outro e no diverso a alteridade do comum
que aquilo que se compreende fala também e sempre por si próprio: a (fusão de horizontes)59 , razão pela qual a pertença do intérprete ao objeto
pretensão de verdade contida no objeto surge como sendo a premissa de interpretado não indica uma prevalência hierárquica deste e nem ilide a
todo o esforço hennenêutico, o qual somente se torna eficiente dentro dos condição do sujeito como elemento produtivo da atividade hennenêutica,
limites estabelecidos pela coisa56 • O compreender exige a abertura do uma vez que o produto não é o produtor60 .
No campo da hetmenêutica contratual, a força vinculante do ob-
5
-1 Gadamer refere que todos os seus trabalhos hermenêuticos surgiram da ideia de forta- jeto interpretado diz diretamente com o primado do texto da declaração
lecimento do outro contra si, ou seja, do deixar o outro viger contra si mesmo (GA- negocial61 , mas também com a complexidade das circunstâncias (fáticas e
DAMER, 2007b, p. 23-24). Sobre o tema, refere Miguel Reale que "o espírito proje-
ta-se sempre, e necessariamente, como intencionalidade, para algo, para o ser, e isso
mente, jogando para o plano argumentativo a própria compreensão, como ocorre usual-
de111onstra que o ho111e111 não conhece porque quer, mas si111 porque, em grau maior
mente na lide forense. Nas palavras de Fernando Pessoa (PESSOA. Fernando. Liber-
ou 111enor, não pode deixar de conhecer" (REALE, 1999, p. 53), afirmando ainda que
dade), não pode o sujeito cognoscente transfom1ar os objetos interpretados em "pa-
"todo ser (. ..) para ser suscetível de conheci111ento, já deve ter, i111anente a ele, alg11-
peis pintados com tinta", aplicando-os em uma situação em que está indistinta "adis-
111a possibilidade de deter111inação, co1110 condição lógica a priori de sua apreensão
tinção entre nada e coisa nenhuma".
pelo szyeito, que só 'cria• o objeto na medida em que tra= algo para si, na condicio-
nalidade de suas possibilidades de captação" (REALE, 1999, p. 33). Erich Danz con- s1 GADAMER. 2005, p. 355-358 e 472: GADAMER. 2007a. p. 107: GADAMER.
corda com tais premissas, referindo que, no plano contratual, a declaração de vontade Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática.
só produz os direitos e obrigações que correspondam a sua significação (DANZ, Petrópolis: Vozes, 2007c. v. 3, p. 79: GADAMER, Hans-Georg. Yo y Tu. la Misma
Erich. La Interpretación de los Negocios Jurídicos. 3. ed. Madrid: Revista de Dere- Alma. ln: GADAMER, Hans-Georg. Poema y Dialogo: ensayos sobre los poemas
cho Privado, 1955. p. 16). alemanes más significativos dei sigla XX. Barcelona: Gedisa, p. 57-61, 1993c,
55
GADAMER" 2004" p. 331: GADAMER. 2005 . p. 355 e 385-386; GADAMER.. 2003., p. 60-61.
58 GADAMER, 2007b, p. 23-24. Cotejando a doutrina exposta com a teoria bettiana,
p. 100. Gadamer refere que '"a tarefa hermenêutica se converte por si 111es111a 1111111
questiona111ento pautado na coisa em questão, e já se encontra sempre co- para além das semelhanças existentes com o cânone da autonomia do objeto. o postu-
determinada por esta" (GADAMER, 2005, p. 358). Em outra passagem, o filósofo lado da força vinculante do objeto interpretado se aproxima do conceito de forma re-
afimrn que "o sentido que se deve co111preender somente se concreti=a e se completa presentativa, no sentido de que parte significativa da promoção da experiência deriva
na interpretação", e '"esta ação inte1pretadora se 111anté111 totalmente ligada ao senti- do próprio objeto em sua fomrn. A diferença entre os posicionamentos reside no fato
do do texto. Ne111 o jurista e 11e111 o teólogo consideram a tarefa de aplicação como de que o pensamento de Gadamer está focado totalmente no plano hem1enêutico da
11111a liberdade .fi·ente ao texto" (GADAMER, 2005, p. 436). Heidegger descreve esta fusão dos horizontes, enquanto Betti ressalta a importância do objeto tisico na sua
estrutura na dinânúca do "ler o que está lá". condição de portador de um sentido espiritualizado, o que não parece ensejar uma re-
56
GADAMER, 2004, p. 317, 331-332, 394 e 529. O texto não é um pretexto para que o futação completa dos conteúdos contidos nas duas teorias. em termos comparativos.
intérprete fale aquilo que lhe convém (ALVARENGA, Lúcia Barros Freitas de. Direi- SQ GADAMER, 2007c, p. 25. A pertença do sujeito ao objeto interpretado ressalta.
tos Humanos, Dignidade e Erradicação da Pobreza: uma dimensão hermenêutica ainda, a atribuição vinculada do intérprete-na construção do significado. A defesa da
para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. p. 215), questão que força vinculante do objeto diz com a busca de um nonnativismo ético por intem1édio
deve ser bem entendida, pois não há outro critério de objetividade além do contraste das linútações do construir no processo hermenêutico,. aumentando o poder de vincu-
das opiniões prévias do intérprete com as coisas mesmas (ALMEIDA; FLICHlNGER; latividade do contrato.
60
RHODEN, 2000, p. 62). Contudo, deve ser esclarecido que a força vinculante (auto- REALE: ANTISERI, [s.d.], p. 249.
61
nonúa do objeto) não é absoluta, pois jamais pode recair em uma ingênua negação da Mesmo em um paradigma hennenêutico abrangente pode-se defender a existência de
intersubjetividade. Nesses termos, núster se faz mencionar que os problemas herme- uma base semântica possível de significação e de um linúte semântico intransponível.
nêuticos surgem não apenas quando o operador deixa de perceber o caráter vinculante As expressões e vocábulos fonnadores da declaração negocial possÚém certa expecta-
do objeto interpretado, mas também quando adota esta dimensão apenas discursiva- tiva de sentido relacionada com os usos da linguagem e com as defmições de direito
Interpretação Contratual 41
40 Felipe Kirclmer
normativas) em que construída e desenvolvida a relação contratual. 62 Em va que deriva da alteração das relações fáticas e axiológicas64 • O sentido
face desse contexto, o intérprete deve exercitar um prudente positivis- literal possível da declaração negocial surge como limite à interpretação
mo63, pois a declaração contratual surge como limite à mutação nonnati- (base semântica possível de significação), detendo uma dupla •missão: é
ponto de pattida para a indagação do sentido e traça, ao mesmo tempo, os
Privado, o que se apresenta como limite à atividade interpretativa (LARENZ, 1989, limites da atividade interpretativa65 . O primado do texto contratual, que
p. 168; ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplica- importa na quantificação da autonomia privada66, indica que uma exegese
ção dos princípios juridicos. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 108; RE 71.758, Min. que não se situe no âmbito do sentido literal possível do pacto67 ou no
Oswaldo Trigueiro). Ademais, a discricionariedade e a criatividade da interpretação significado intelectivo possível das pretensões e motivações objetivas das
está limitada pelo significado usual e real dos termos (situações de uso da língua)
(OLIVEIRA, 2001, p. 13), sendo que a realização de uma redefinição (atribuição de
partes (além das possibilidades de sentido da relação obrigacional) já não
sentido que não corresponda aos usos) é possível, desde que justificada e livre de arbi- é propriamente interpretação, mas, sim, modificação de sentido, o que
trariedades, com fundamento nas circunstâncias do caso que constituem a situação ob- foge à competência do operador jurídico68 •
jetiva complexa.
62
Como refere Karl Larenz, "'o jui:; está, na inte1pretação do contrato, vinculado às 6-1 HESSE. Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio
bases de valoração aceites pelas partes, se é que a sua actividade haja ainda de con- Fabris, 1991. p. 23.
tinuar a ser inte,pretação do contrato" (LARENZ, 1989, p. 362). O caráter vinculan- 65 LARENZ. 1989. p. 387. É o sentido literal que delineia o quadro das significações
te da coisa, em dizendo também com as circunstâncias (fáticas e normativas) em que que podem, a priori, ser atribuídas à declaração negocial (função delinritadora) embo-
construída e desenvolvida a relação contratual, alcança vários aspectos do não dito. ra deva ser considerado que o sentido literal é sempre incerto, hipotético e equívoco
Para além do pressuposto hermenêutico de que é o não dito que converte o dito em (FERRARA, 1987, p. 140; LARENZ, 1989, p. 387, p. 417: MARINO, 2003, p. 81).
palavra que pode alcançar o homem (v.g.: pergunta que o texto se propõe a respon- Custódio Miranda adverte, ainda, que "da análise do direito comparado pode concluir-
der), não são raras as situações em que o não dito ganha mais relevância que aquilo -se que o sentido literal da linguagem, na inte1pretação dos negócios jurídicos, cons-
que se encontra expresso. O texto narrativo do Direito tem natureza ambivalente, pois titui-se apenas no ponto de partida e que todos os sistemas, com exceção do anglo-
encampa aquilo de que fala, mas também aquilo de que nele falta, sendo relevante americano, recomendam que, na dúvida 011 ambiguidade de tal sentido, se indague a
hem1eneuticamente não apenas suas presenças, mas também suas ausências. Como sa- intenção que lhe está subjacente" (MIRANDA, 1989. p. 223-224).
lienta Carlos Ferreira de Almeida, "o texto exprime, para além do que é dito e referi- 66 o operador não pode superar ou desconsiderar a autonomia dos contraentes, atribuin-
do, também o que não é dito, mas só pressuposto e implícito, segundo uma lógica do ao contrato significados não partilhados pelas partes. o que importa na considera-
conversacional, que interfere igualmente na compreensão e a completa" (FERREIRA ção de uma limitação da interpretação pela quantificação da autononria pdvada. A fi-
DE ALMEIDA, 1992, p. 165). Exemplificativamente, cabe mencionar o voto do mi- xação das cláusulas contratuais envolve a seleção de determi11ados cdtérios e a conse-
nistro Carlos Britto na ADI 3.510, relativa à Lei da Biossegurança (11.105/2005), on- quente desconsideração de outros. Como salienta Joaquim de Souza Ribeiro, enquanto
de, tratando sobre a questão do valor "vida humana", normatizado por intermédio do instrumento de autodetemlinação, o negócio jurídico é um meio de exprimir preferên-
princípio constitucional de sua proteção, o julgador assim destacou: "A nossa Magna cias subjetivas em relação aos bens e às pessoas: e esta liberdade emocional e de sen-
Carta não diz q11a11do começa a vida lm111a11a. Não dispõe sobre nenhuma das for- timentos juridicamente insindicável por critérios de racionalidade (RIBEIRO, Joa-
mas de vida humana pré-natal. (. ..) E como se trata de uma Constituição que sobre o quim de Sousa. A Constitucionalização do Direito Civil. Boletim da Faculdade de
início da vida humana é de 11111 silêncio de morte (permito-me o trocadilho), a ques- Direito, Coimbra, v. LXXIV, 1998. p. 751-752) deve ser necessariamente quantifica-
tão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas da no âmbito da atividade interpretativa. Não cabe ao intérprete considerar critérios
em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo desconsiderados pelas partes (mutismo hermeneuticamente significante), pretendendo
Direito infraconstitucional e em que medida". razão pela qual o "mutismo hermeneu- a superação da disposição contratual. assim como descabe uma superação simulada
ticamente significante'' redunda no "transpasse de poder normativo para a legislação por meio da dissociação de uma hipótese não contida na hipótese objeto da contrata-
ordinária ou usual". ção. Por fim, cabe frisar que a autonomia aqui referenciada não é mais reflexo da sub-
63
GRAU, 2003, p. 119. Cabe referir que a expressão foi cunhada por Canotilho. Sobre o jetividade das partes (autonomia .da vomade). mas mna representação da conjunção
tema, destaca Hesse que a possibilidade de realização (criativa) das nonnas juridicas bilateral de vontades objetivada no instrumento contratual, estando os marcos defini-
dos exatamente pela situação objetiva complexa que constitui a relação obrigacional
sempre fica vinculada justamente a estas nom1as, razão pela qual os sentidos construí-
(GADAMER, 2004. p. 305). '
dos em contradição com elas não podem ser considerados uma realidade hennenêutica 67
legítima (norma realizada) (HESSE, 1998. p. 51 e 69-70). Eros Grau, por sua vez, re- O sentido literal possível do pacto deve ser entendido como sendo "tudo aquilo que
fere que '·a abertura dos textos do direito, embora s1ificiente para permitir que o di- nos termos do uso linguístico que seja de considerar como determinante em concreto
reito permaneça ao serviço da realidade, não é absoluta. Qualquer inté,prete estará, (. ..) pode ainda ser entendido com o que este termo se quer di:::er'' (LARENZ, 1989,
sempre, permanentemente por eles atado, retido. Do rompimento desta retenção (.. .) p. 387-388). , .·
68
resulta a subversão do texto" (GRAU. 2003, p. 52). LARENZ.1989,p.387-388.444.517-518.
42 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 43
Entretanto, o respeito ao primado do texto contratual não deve vos da situação objetiva complexa, a partir do qual o intérprete deve bus-
ser confundido com a pretensão metodológica da interpretação literal 69 , car a significação com suporte nas circunstâncias fáticas e nonnativas 73 •
pois os marcos do sentido literal linguisticamente possível são alcançados Referido que a atividade interpretativa está presente ein toda e
não somente pela análise isolada e matemática dos signos que compõem a qualquer fonna de compreensão, pois se constitui no próprio modo de ser
nonna contratual, mas também pela teleologia imputada ao instrumento do homem, passa-se à análise da delimitação do horizonte hermenêutico.
pelos próprios contraentes e, principalmente, pelo contexto em que se
insere o contrato a ser compreendido70 • Nesse sentido, deve o intérprete
cotejar o sentido literal da declaração com o curso da dinâmica contratual 71 • 1.2 A Delimitação do Horizonte Hermenêutico
O sujeito cognoscente não deve interpretar os elementos textuais apenas
Tradicionalmente a atividade hennenêutica se encontra segmen-
quantificando o seu valor literal, pois as palavras devem ser vistas e revis-
tada, havendo a divisão dos fenômenos da compreensão (subtilitas intel-
tas em seu valor relacional (universo contextual, intertextual e correlacio-
!igendi), da interpretação (subtilitas explicandi) e da aplicação (subtilitas
nal)72. O instrumento contratual é um marco dentre os elementos fonnati-
applicandi), os quais eram corretamente vistos mais como uma aptidão
69
do que como um método voltado à compreensão 74 • Contudo, na ótica
Cabe enfatizar que aqui não se está defendendo que a interpretação esteja limitada
pelo sentido literal da declaração ou pela superficialidade de análise da relação obri-
gadameriana a hennenêutica passa a ser considerada como sendo um
gacional, mas, sim, que o resultado da mesma deve se situar, ao menos, nos marcos de processo unitário envolvendo compreensão, interpretação e aplicação 75•
sentido (possíveis) postos pelos contratantes. Parece de todo evidente a necessidade
de superação da interpretação gramatical, em face de sua insuficiência (VIOLA,
ZACCARIA, 1999, p. 182). Nesse sentido: "apelação cível. Ação civil pública. Prá- trajeto e o domínio dos conceitos a que pertencem. A importância desta dimensão de
ticas lesivas ao meio ambiente. O jui= que interpreta a lei tão-só pela ótica /itero-- conexidade sociocultural dos tem10s linguísticos não se limita a uma influência unila-
gramatical sempre há de pecar pela insuficiência jurisdicional. Pela nature=a mesma teral, pois as palavras são artefatos sociais. São produtos. mas também são produtores
das coisas, os encarregados de aplicar a lei estão predestinados a superar o conhe- de sentido social, pois toda palavra é um verbo instituinte. Ademais, as palavras são
cimento que da matéria regulada possuía o legislador. O direito desborda da norma sin1bolos que aspiram uma e;<lstência compartida, pois os tenuos linguísticos utiliza-
formal que o contém - posto que vive agitado pelas circu11stâ11cias, sempre inquietas, dos em uma dimensão henuenêutica dialógica pertencem ao sujeito. aos seus interlo-
do quotidiano. Sob a "máscara da inte1pretação", se oculta se111pre a construção de cutores e ao objeto tratado (MARTINS-COSTA. Judith. Aulas ministradas na cadeira
uma nova norma, adequada à justa solução do caso concreto recla111ada a cada no- Fundamentos Culturais do Direito Privado (DIRPIO0), proferida em 2008/I, no
vo instante da realidade social, essencial111ente dinâmica. E este é desafio do jurista PPGDir/UFRGS, 2008).
73 Na hermenêutica jurídica o constante apelo ao texto é algo natural e justificado pela
co111pro111etido co111 o be111 social conseqüente à sua jurisdição, resultado do interesse
público subjacente. Assi111, não se pode co111eter o equívoco da inte1pretação 111era- questão da segurança (seguro adicional às relações orais), devendo a redação de leis e
111ente léxica.formal, ortodoxa, literal, gra111atical, pena de incorrermos na falácia da contratos ser extremamente rigorosa. Contudo. a fommlação escrita sempre prevê es-
forma lógica do inte,pretar. A necessidade de encontrar solução justa para os casos paço ao jogo linguístico e de interpretação, os quais sempre ganham relevância quan-
em debate exige repelir-se toda e qualquer pretensão formalística. Doutrina de Jere- do o intérprete deva aplicar e concretizar o texto (GADAMER. 2004. p. 398-399). O
miah Smith citado por Jeno111e Frank, ln 'Lml' and the fvlodern fvfind' ao afirmar que sentido literal não é inequívoco. não somente porque deixa margens para a interpreta-
'as regras de direito são si111ples111ente setas indicadoras do caminho justo, e não o ção. mas porque carece igualmente de interpretação (ALVARENGA. 1998, p. 93).
74 A própria expressão subtilitas (sutileza), retirada da tradição humanista, sugere que a
caminho mesmo'. Recurso improvido. (AC 70015742323, 1" Câmara Cível, TJRS,
Rei. Des. Carlos Roberto Lofego Canibal,j. em 20.12.2006)". interpretação não pode ser garantida apenas por regras ( GADAMER, 2004. p. 118).
75
70 LARENZ, 1989, p. 444, 517-518; DANZ, 1955, p. 52. GADAMER, 2005, p. 406-407: GADAMER, 2004. p. 131. Eros Roberto Grau aponta
71
Focado no plano constitucional, assim ponderou o ministro Marco Aurélio Melo: ·•o que a separação entre interpretação e aplicação em duas etapas distintas decon·e da
conteúdo político de 11111a constituição não é conducente ao despre=o do sentido ver- equivocada concepção da primeira (interpretação) como mera operação de subsunção:
nacular das palavras, 11111ito 111enos ao do técnico, considerados institutos consaarac texto (lei ou contrato) como premissa maior (produto de uma interpretação in abstrac-
dos pelo direito. (. ..) a flexibilidade dos conceitos, o câmbio de sentido destes, ;on- to) e pressupostos de fato (ação confonne ou não confqnne ao texto nonuativo) como
forme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da premissa menor (produto da aplicação ou de uma interpretação in concreto) (GRAU.
própria carta que, realmente, é 11111 c01po político, mas o é antes os parâmetros que 2003, p. 31. 87-88, 91 e 105). Porém, mesmo a chamada interpretação i11 abstracto
encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de envolve, necessariamente, a consideração de fatos, pois como refere Larenz, "toda a
contonzojurídico" (RE 166.772-9, Min. Marco Aurélio Melo, RTJ 156, p. 666). aplicação da lei já é uma interpretação e o achamento do direito não é nunca 11111 tra-
72 Deve-se abandonar a noção de que o sentido literal da linguagem independe dos balho de subsunção" (LARENZ, 1989, p. 163 e 333). Na verdade o mtérprete somen-
contextos (MARINO, 2003, p. 80). uma vez que os vocábulos nunca esquecem o seu te discerne o sentido a partir e em virtude de um detemúnado caso, consistindo a in-
44 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 45
A interpretação não é um ato posterior e complementar à com- cita o modo como a coisa fala à condição presente 81 e, no campo contra-
preensão, pois compreender é sempre interpretar, sendo a interpretação a tual, perante não somente as circunstâncias do momento gené,tico, mas
fonna explícita da compreensão 76 • Contudo, a consagrada fusão entre daquelas que se apresentam em todas as fases do desenvolvimento da
compreensão e interpretação não expulsa do contexto hermenêutico a relação obrigacional (momento funcional). Ademais, o intérprete também
aplicação, pois na compreensão "sempre ocorre algo como a aplicação se encontra inserido no conteúdo compreendido, em uma fusão de hori-
do texto a ser compreendido à situação atual do inté1prete", razão pela zontes que esmaece a supramencionada dicotomia sujeito-objeto 82 •
qual "a aplicação é um momento tão essencial e integrante do processo A importância da aplicação no processo interpretativo não se
hermenêutico como a compreensão e a inte1pretação"77 • Vislumbrando o resume ao auxílio da compreensão e da interpretação, pois como refere
plano normativo, Tullio Ascarelli menciona que a equivocidade do texto Gadamer, "a aplicação não é uma parte última, suplementar e ocasional
somente pode ser superada no momento da aplicação da norma 78 • do fenômeno da compreensão, mas o determina desde o princípio e no
A compreensão se dá em um ato de aplicação 79, que é sempre seu todo. (...) A compreensão implica sempre a aplicação do sentido
linguístico e se apresenta como sendo uma forma de mediação tanto entre compreendido"83 • Como adverte Eros Grau, "inte1pretação e aplicação
a historicidade do passado e a situação hermenêutica do presente, quanto do direito são uma só operação, de modo que inte1pretamos para aplicar
entre a alteridade existente na relação sujeito-objeto80 • Este aspecto expli- o direito e, ao fa::ê-lo, não nos limitamos a interpretar (= compreender)
os textos normativos, mas também compreendemos (= inte1pretamos) os
Jatos" 84 • No mesmo sentido, a lição de Judith Maitins-Costa:
terpretação exatamente na concreção da diretriz nonnativa (lei e contrato) em deter-
minada hipótese fática, isto é, na sua aplicação. A partir desta teoria da práxis da A tarefa hermenêutica não se restringe apenas a 11111 método de 'ex-
aplicação do direito (que será ainda enfrentada neste tópico) a atividade interpretativa
tração de sentido' ou 'determinação do alcance' de uma significação
pode ser entendida como componente de 11111a produção prática, pois associa, em um
amálgama hermenêutico, os planos dos elementos normativos (Direito) e dos elemen-
imanente a certo texto, mas se apresenta como o momento normativo-
tos reais ou empíricos (realidade) (ESSER, Josef. Precomprensione e Scelta dei Me- constitutivo da verdadeira realização do direito, produção - e não
todo nel Processo di lndividualizione de Diritto. Napoli: Edizione Scientifiche Ita- justificação - de 11111 texto normativo legal ou conh·atual. Houve uma
liane, 1983. p. l; HESSE, 1998, p. 62; LARENZ, 1989, p. 292; MIRANDA, 1989, reformulação da antiga cisão enh·e inte1pretação e aplicação do di-
p. 109 e 1 ll). Deriva destas considerações o genne que conduz ao florescimento da reito, hoje se entendendo serem inseparáveis o momento hermenêuti-
ideia de utilização de um raciocinio jurídico por concreção que será desenvolvida na co e o 1110111ento normativo85 •
segunda parte deste estudo.
76
"A interpretação distingue-se da compreensão apenas como o falar em vo= alta dis- A inserção e admissão da aplicação no iter hennenêutico é res-
tingue-se do falar interior" (GADAMER, 2004, p. 29). Eros Roberto Grau, por sua ponsável pela conexidade desse momento com o aspecto normativo, con-
vez, apresenta uma interessante distinção galgada no plano prático. Aduz este pensa- clusão que auxilia na resolução de uma questão crucial na construção de
dor que, lato sensu, interpretar é compreender, ou seja, buscar prontamente o enten-
dimento sobre algo, o que diz com a atribuição de significado a detemrinado signo
pensamento almejada por este estudo: é pela dimensão da aplicação que
linguístico, compreendendo a definição da conotação que o tem10 expressa em coe- uma teoria da compreensão de matriz ontológica (plano do ser) pode se
rência com as regras de sentido da linguagem. Já em um sentido estrito, interpretar inserir no universo nonnativo do Direito (situado no plano do dever-ser),
significa precisar os sentidos de detemrinado signo linguístico, donde se retira que é especialmente quando o ap01te teórico adotado deságua na imprescindibi-
este aspecto da interpretação que viabiliza a plenitude da compreensão. Dito de outra lidade de um raciocinar por concreção.
forma, o sujeito cognoscente interpreta em sentido estrito para compreender, que é o
interpretar em sentido amplo (GRAU, 2003, p. 69-70).
77 81 PALMER, 1997, p. 190.
GADAMER, 2005, p. 406-407; GADAMER, 2003. p. 95.
78 82
ASCARELLI, Tullio. Giurisprudenza Constituzionale e Teoria Dell'Interpretazione. GADAMER, 2005, p. 445; PALMER, 1997, p. 140. .
ln: Problemi Giuridici. t. I, Milano: Giu:frré. 1959, p. 145. 83
GADAMER, 2005, p. 426 e 437. Gadamer ainda refere que a aplicação "não é o
79
HOMMERDING, 2003, p. 25. Eros Roberto Grau sustenta que "a inte,pretação é a emprego posterior de algo universal, compreendido.primeiro em si mesmo, e depois
inte,pretação/ aplicação dos textos e dos fatos" (GRAU, Eros Roberto. Prefácio. ln: aplicado a 11111 caso concreto. É, antes, a verdadeira compreensão do próprio univer-
ÁVILA, Humberto Bergn1ann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos sal que todo texto representa para nós" (GADAMER, 2005, p. 446-447).
84
princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 18). GRAU, 2003, p. 22, 24 e 71. No mesmo sentido: AMARAL. 2006, p."94-95 e 101.
80 85
GADAMER, 2005, p. 437; ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 165-166. MARTINS-COSTA. 2005b. p. 128.
46 Felipe Kirclmer Interpretação Contrah1al 47
Retomando a questão proposta neste tópico, cabe destacar ções e transformações no desenvolvimento da vida social, ainda que seu
que o juízo de compreensão é dialeticamente condicionado pela apli- texto pennaneça inalterado 89 • Como refere Karl Larenz, no decurso da
cação, uma vez que o sentido desta dimensão já está de antemão em aplicação o preceito nonnativo recebe novos elementos que influenciam a
toda a forma de compreensão. A aplicação não se trata de uma meta detenninação de seu conteúdo90 •
desejável, mas de um momento constitutivo da atividade hennenêuti- Mister se faz salientar, também, que a inserção da aplicação no
ca, o qual se encontra intimamente relacionado com o caráter situado, iter hermenêutico implica resguardo e adequação da força normativa do
finito, histórico e linguístico da compreensão humana. É nesse contex- preceito interpretado à natureza singular do presente, o que esmaece a pos-
to que a unicidade da atividade hermenêutica surge como um dos sibilidade de frustração material das diretrizes nonnativas por conflitarem
principais aspectos teóricos que condiciona o uso do raciocínio por com a realidade contemporânea (ex.: disposição contratual superada por
concreção na interpretação do contrato. uma nova realidade de mercado ou pelo comportamento posterior dos con-
tratantes)91. No procedimento exegético sempre há uma atualização, e co-
Como visto, a centralidade da aplicação no âmbito da inter-
mo a força normativa dos preceitos jurídicos sempre está condicionada à
pretação não surge apenas da necessidade de conjugação do universal vontade atual de seus participantes92 , é tarefa do intérprete contratual quan-
com o particular no contexto da circularidade hennenêutica da com- tificar esta dimensão na análise da autonomia dos contratantes, pois a obri-
preensão jurídica, mas também do fato de que os preceitos jurídicos gação constituída pelo contrato é sempr~ polarizada pelo adimplemento93 •
sempre necessitam da interpretação para que sejam aplicados na práti-
A dimensão da aplicação traz consigo perspectivas institucionais
ca, o que significa que toda aplicação de elementos normativos depen- e funcionais, presentes no universo nonnativo, as quais não podem ser
de da atividade hermenêutica 86 • Assim, ainda que a interpretação não desconsideradas no curso do procedimento hermenêutico que tenha como
esteja condicionada à utilização prática de suas conclusões, pode-se objeto um contrato. Ao interpretar a disposição contratual, é tarefa do sujei-
afirmar que no âmbito jurídico a atividade hermenêutica só faz sentido to cognoscente conjugar a viabilidade de suas conclusões tanto com ques-
quando se vislumbra um problema concreto que requeira solução nor- tões de ordem institucional, que dizem com a verificação da exequibilidade
mativa e, portanto, prática. material dos efeitos do pacto perante os sttjeitos e instituições envolvidas
É de fundamental imp01tância ressaltar, ainda, que a aplicação ou afetadas pela contratação (pensamento jurídico do possível), quanto
importa, de ce1to modo, sempre em urna ação de natureza integrativa, com os elementos sistêmicos internos e externos ao contrato, os quais di-
pois dela resulta a inserção de uma nova perspectiva no horizonte do zem, respectivamente, com a análise intrínseca da totalidade das disposi-
objeto87 • Como elemento constitutivo da compreensão, a aplicação traba- ções contratuais e da relação destas com o ordenamento94 •
lha com as singularidades pessoais do intérprete e com as circunstâncias
objetivas passadas e contemporâneas, o que conduz o objeto ao contexto SQ Tal noção não escapou do acurado pensamento de Karl Engisch. que entende ser
tarefa da interpretação ah1alizar o conteúdo e o alcance dos conceitos jurídicos (EN-
da situação hennenêutica presente e aos questionamentos que nela estão GISCH, Karl. La Idea de Concreción en el Derecho y en la Ciencia Jurídica Ac-
postos (produtividade da distância temporal) 88 • tuales. Pamplona: Navarra. 1968. p. 42).
No plano normativo, a dimensão da aplicação encaminha a 90
LARENZ, 1989, p. 249. Embora a hermenêutica. enquanto teoria da compreensão.
atualização do Direito no próprio iter hennenêutico, pois o objeto passa a seja una. é relevante ressaltar que, diferentemente do que ocorre na interpretação da
lei, na exegese contratual o sujeito cognoscente trabalha com o caráter objetivo e situado
ser interpretado sob o prisma do contexto histórico e cultural presente, e de destinatários específicos e deve quantificar a inebriante dinamicidade da relação
não na conjuntura da sua criação (embora esta não possa ser desconside- contratual, a qual se encontra sempre polarizada pelo adimplemento. Dito isso, cabe
rada). Os enunciados normativos, principalmente os contratuais, não fi- indicar que as peculiaridades próprias da interpretação do contrato serão avaliadas no
cam estáticos e cristalizados no tempo, passando por significativas altera- tópico "As particularidades da hern1enêutica contratual".
Qf GRAU, 2003, p. 3. 54. 115-116 e 123-125.
gz HESSE. 1998. p. 49 e 54.
86 GADAMER, 2004, p. 380, 399 e 497. QJ SILVA. Clóvis Veríssimo do Couto e. A Obrigação como Processo. São Paulo:
87
SILVA, 2000b, p. 527-528. Bushatsky, 1976. p. 5.
88 Refere André Araítjo que aplicar ·'significa retirar a condição muda do texto, ouvir a 9-1 Estes aspectos serão abordados. respectivamente. nos tópicos "O procedimento. os
sua fala no enfrentamento produtivo da distância temporal entre o momento de pro- métodos e as regras de interpretação" e "A concreção norn1ativa'da interpretação
dução do texto e aquele em que o texto é lido no presente" (ARAÚJO, 2005. p. 211). contratual".
Interpretação Contratual 49
48 Felipe Kircrn:ier
dizem com as diferentes funções atribuídas à hermenêutica, o que ser-
Traçando um paralelo deste ap01te teórico com uma concepção ve de critério para a apresentação de uma classificação tripartida98
metodológica, cabe ressaltar que Emílio Betti possui uma visão instru- que contempla a chamada fimção normativa99 , a qual se constitui na
mental da função da aplicação no iter hennenêutico, não a elencando tarefa relevante da inte1pretação jurídica 100 •
como força motriz do compreender. Para o jurista italiano, a aplicação se
limita a cumprir a tarefa de transpor o resultado da interpretação para o que não alcança seu resultado se não for posto em prática em sua totalidade" (BET-
caso concreto e de auxiliar na qualificação jurídica do objeto interpretado TI, 2007, p. 219).
(v.g.: verificação da tipicidade legal dos contratos)95 • Sob este vi~s, a 98 A/unção cognosciva ou recognitiva se limita à reconstrução do significado do objeto
aplicação não integra a atividade exegética, subsistindo apenas um hame (movimento do sujeito em direção ao objeto), sendo o entendimento o próprio fim da
interpretação (ex.: interpretação histórica e filológica). Já na fimção reprodutiva ou
instrumental entre interpretação e aplicação 96 •
representativa a compreensão é transitiva. pois se destina a conferir detemtlnado en-
Como o posicionamento da dimensão da aplicação dentro ou fo- tendimento a um grupo de destinatários, figurando o intérprete como intennediário
ra da atividade hermenêutica toca diretamente a questão da sua unicidade, entre a manifestação de pensamento de um autor e um público interessado em enten-
cabe evidenciar outro aspecto que diferencia as teorias acima debatidas. dê-la (v.g.: tradução. interpretação dramática e musical). Por fim. nafimção normati-
va a compreensão visa fornecer uma máxima de decisão ou de ação (tomada de posi-
Embora admita que a hennenêutica é unitária no plano teórico, diferen- ção na vida social) (ex.: interpretação jurídica. teológica e psicológica) (BETTI,
temente da concepção gadameriana97 , o jurista italiano entende existirem 1990a, p. 347; BETTI, 2007, p. LXVI-UQC, LXXII-LXXV, XCVIII-XCIX, CXXVI,
divisões no plano prático, que 5-8; PESSOA, 2002, p. 92-93). Cabe frisar que em todas as funções há um momento
cognoscivo. diferenciando-se as espécies pela inexistência ou existência peculiar de
uma função posterior. Ademais, os tipos de interpretação se encontram escalonados: a
95 No paradigma aqui adotado não subsiste a dissociação hennenêutica realizada para a função cognosciva é bastante em si mesma; a função reprodutiva-representativa pres-
qualificação do ato nomiativo - somente após a análise da comum intenção dos c?~- supõe o momento cognoscivo-recognitivo: a função nonnativa contém em si tanto o
tratantes é que seria avaliado se o significado alcançado encontra eco na~ figuras t1p1- momento cognoscivo-recognitivo. quanto o momento reprodutivo-representativo
cas previstas em lei -, pois o cotejo do objeto com ~s nomia~ q~e o qualifi~am ~az_e~ (BETII. 2007. p. 7). Cabe salientar que Gadamer. embora não diferencie funções no
parte indissociável do procedimento exegético que e detemnnattvo dos efeitos JUnd1- processo hermenêutico, vislumbra o caráter nom1ativo relacionado com decisões prá-
cos. Como salienta Gadamer, a partição da atividade interpretativa não subsiste pela ticas e políticas (máximas de decisão ou de ação) (GADAMER, 1977a, p. 18).
simples análise do plano fático, onde o intérprete não dissocia as etapas de sua com- 99 Betti ressalta que a função nonnativa da interpretação não diz com a assl!llção, pelo intér-
preensão (GADAMER, 2005, p. 409). prete, de unia atividade nomiativa, pois este não institui normas (BETTI. 2007, p. 12-13).
96 BETII, 2007, p. CXII-CXIV, CXXID, 11, 15-16, 16L 175-176 e 180. No contexto 100 Betti apresenta diferentes concepções de como o fenômeno hermenêutico e o raciocí-
hem1ético do pensamento bettiano. a aplicação se confunde, em certa medida, com a nio juridico são construídos por meio da contraposição de elementos elencados em
própria função nonnativa do preceito enquanto regulador de condutas, po~s Emílio três grupos. No primeiro tem-se a interpretação psicológica. que é aquela voltada a in-
Betti entende ser somente na máxima de decisão (sentença) que se opera a smtese en- dagar o pensamento originário do autor do objeto; e a interpretação técnica, que com-
tre o resultado da interpretação e a disciplina substancial do instituto a ser aplicada. preende tal objetivação do espírito independentemente da consciência reflexa de seu
97 Gadamer efetivamente reconhece a existência de certas diferenças entre as interpreta- autor, enquadrando-a perante a totalidade do ambiente social. No segundo grupo apa-
ções filológica, histórica e juridica, as quais não se li~tam apena~ ao objet? ~ a sua rece a interpretação individual, que considera as declarações e os comportamentos em
forma de apreensão. No entanto, para a teoria gadamenana todo agrr!1erm~~e:1t1co es- sua concretude específica (atribuição de significado com o modo de ver particular ex-
tá adstrito aos mesmos pressupostos, o que denota uma compreensao umtana do fe- presso nesses elementos, levando em conta as circunstâncias individuais do caso): e a
nômeno hem1enêutico que abrange os planos fático e teórico (VIOLA, ZACCARIA, interpretação típica. que classifica as declarações e os comportamentos por tipos ou
1999, p. 108-110). É a dimensão ontológica presente na sua hermenêutica filosófica classes (levando em conta o gênero de circunstâncias em que se desenvolvem e a que
que pennitiu a unificação das hem1enêuticas que_ se encontravam separadas desde o correspondem) e atribui ao objeto• as significações constantes nessas tipificações sem
iluminismo (filológica. histórica, teológica, jurídica, etc.). O esquema proposto por considerar aqueles que podem ter se dado no caso concreto. Por fim, no terceiro grupo
Betti acerca dos tipos de interpretação foi motivo de expressa crítica por parte de G?- aparece a interpretação recognitiva. a qual se limíta à. reconstrução do significado do
damer (PESSOA, Leonel Cesarino. A Teoria da Interpretação Jurídica de ~mílto objeto (ex.: histórica e filológica). e a interpretação integrativa. que visa colmatar as
Betti. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 90). Contudo, deve ser saltentado lacunas do elemento normativo nos lintltes do ato (de autonomia) (BETTI. 2007.
que, embora Betti reconheça a diferenciação de aplicação, entende que ?s "tipos de p. 369 e 373-374: BETTI. 2003b. p. 198 e 202-203)." Enquanto a interpretação integra-
exegese" não podem ser separados uns dos outr?s, :1ão devendo ser cons1derad?~ ~o- tiva pressupõe un1 determinado conteúdo do negócio (explícito ou implícito) e visa
mo "meios" independentes a serem empregados 111d1ferentemente ou seg~do cnteno~ colmatar as lacunas do elemento nonnativo nos limites do própriô •ato. a integração
acidentais de preferência, devendo, antes, serem considerados como umdos entre s1 pressupõe a falta de um preceito (lacuna), suprindo tal deficiência por intennédio da
por uma ordem sequencial. como "momentos sucessivos de um processo inseparável,
50 Felipe Kirchner h1terpretação Contratual 51
Para além da crítica acerca do ideal reconstrutivo presente no Como "compreender é sempre também aplicar", e o "conheci-
pensamento de Emilio Betti 101 , Gadamer se ÍJ.Tesigna quanto à estrutura mento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico
interna da teoria construída pelo jurista italiano, entendendo que a mesma concreto não são dois atos separados, mas um processo zmitário" 1º6, a
não subsiste sequer à simples submissão dos fenômenos ao esquema de própria declaração de validade depende da atividade hennenêutica. Os atos
divisão proposto 102 • O filósofo alemão aponta existir um "objetivismo ingê- humanos só se qualificam como 'jurídicos", produzindo os efeitos que lhe
nuo" na pretensão bettiana de cindir a atividade hermenêutica pelos seus são cominados pela ordem nonnativa, após ter sido detemtlnada a sua exis-
aspectos científicos e criadores103, ao invés de reconhecer a indissolubili- tência e validade, o que inequivocamente depende da emissão de juízos que
dade entre entender e interpretar presente em toda atividade exegética, pois somente são alcançados por meio da atividade hennenêutica 107 •
as decisões complementares (na função reprodutivo-representativa) e prá- Nesses termos, cabe fixar, desde já, que é tarefa da interpreta-
ticas (na função nonnativa), nascem do próprio entendimento, e não de ção detenninar se há um negócio jurídico válido na análise das relações
etapas posteriores ao agir interpretativo 104 • intrínsecas e extrínsecas da pactuação privada. Entendimento contrário -
Embora aqui ainda se esteja analisando a teoria geral da ativi- no sentido de que a conformação de validade da relação contratual se
dade hennenêutica, cabe enquadrar as lições desenvolvidas na delimita- encontraria em um momento posterior à atividade interpretativa - impli-
ção temática do estudo para afirmar que a interpretação contratual envol- caria a adoção de uma visão reducionista de um fenômeno unitário, pro-
ve não apenas a compreensão do significado do contrato, mas também a curando a cisão de um momento construtivo verdadeiramente incindível.
aplicação do mesmo, o que expande a atividade exegética à análise da Adverte Humberto Ávila que o caráter produtivo da interpreta-
existência, validade e eficácia do instrumento 105 • Ocorre que os juízos ção denota ser inverossímil a ideia de que a aplicação do Direito envolve
acerca do conteúdo e forma do negócio jurídico, bem como dos requisitos uma atividade de subsunção de conceitos inteligíveis ao saber humano
necessários à sua existência, validade e eficácia (na fase formativa e de antes do processo de aplicação, pois é nesta dimensão que se constitui a
vigência), somente têm seu significado alcançado por meio do procedi- significação dos conceitos nonnativos compreendidos 108 • É a natureza
mento hermenêutico. criativa da atividade hennenêutica o objeto do tópico subsequente.
demos algo como algo". Ao conhecimento humano a realidade "dada" é roas atribui à nonna um detenninado sentido que deriva de um sistema
inseparável da interpretação, premissa que se sustenta até mesmo perante intrincado de significados jurídicos 114 • Citando Jean Ullmo, refere Miguel
o âmbito objetivista das ciências naturais 109 . Reale que a ciência nutre-se de fatos observados, não havendo fatos brutos,
O acesso do ser humano ao mundo é sempre indireto, sendo pois mesmo a obse1;ação de. fenômenos naturais traz cons!go ~ma teoria,
mediado e condicionado pela sua finitude e pelas dimensões da lingua- mais ou menos ingenua, mais ou menos elaborada, mas Jamais ausente.
gem e da historicidade. O sujeito cognoscente chega à coisa apenas en- Resta impossível ao sujeito cognoscente sentir ou perceber sem a contri-
quanto algo, tendo acesso ao objeto apenas pela via do significado her- buição de algo seu, já que o pensamento não se deixa jainai~ eliminar. S_en-
menêutico, razão pela qual compreender plenamente algo não é pleno, do incindível a relação entre o pensar e o real, o homem e o protagomsta
porque lidamos com uma carga histórica que nos limita. que transforma a realidade segundo renovadas perspectivas e lhe infunde
um sentido ao inseri-la em um sistema de sinais e leis 115 •
Nessa perspectiva, a hennenêutica é um processo sempre criati-
vo, construtivo e produtivo, nunca reprodutivo, receptivo ou declarató- A complementaridade essencial entre sujeito e objeto deriva da
rio110. O texto não tem um significado independente do evento que é capacidade constitutiva nomotética do espírit? do sujeito cogno~cente,
que possui uma faculdade ?uto~gadora de sent~d_o ao real, correlac10nan-
compreendê-10 111 , nem a compreensão é independente das circunstâncias
do dinamicamente o que ha de imanente no sujeito que conhece e no ob-
concretas da vida, o que se comprova, essencialmente, por meio de três
jeto a ser conhecido 116 . Como observa Gadamer, "o ser próprio daquele
fundamentos, expressos a seguir 112 . , entra em ;ogo
.
que con hece tam ben! no ato ue conl1ecer ,,111. , ll11:1~ vez que
,J
Primeiro, o intérprete é partícipe direto do compreender, e estan- inexiste um distanciamento dos polos no contexto da histonc1dade do
do indissoluvehnente unido ao que se lhe abre e se mostra como dotado de compreender (intérprete e contrato estão mergulhados numa certa tradi-
sentidom, traz seu horizonte ao objeto interpretado. Na exegese de um ção)118, o que implica dimensionar tanto a forma como o sttjeito estrutura
texto nonnativo, o intérprete não revela um sentido objetivo preexistente,
114 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 128.
IOQ GADAMER, 2004, p. 138 e 391-392. 11s REALE, 1999,p. 95 e 193-194.
110
GADAMER, 1993a, p. 153; LARENZ, 1989, p. 296 e 444-445; GRAU, 2003, p. 22; 11õ REALE, 1999, p. IL 32-33, lll, l17. 181; REALE. 1968, p. 240-242. Tan1anha é a
HECK, Luís Afonso. Apresentação. ln: CACHAPUZ, Maria Claudia. Intimidade e iniportância deste aspecto que Miguel Reale chega a afirmar que '"a polaridade szyei-
Vida Privada no Novo Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 2006. p. 13; to-objeto constitui o pressuposto tra11sce11de11tal, a condição de possibilidade de toda
HESSE, 1998, p. 61; HÃBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade e qualquer experiência cognoscitiva 011 ética" (REALE. 1999, p. 99-100).
Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista 111 GADAMER. 2005. p. 631. Enfocando a atividade da investigação histórica. ainda
e "procedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997. p. 30; refere Gadamer. em lição que pode ser aproveitada na análise da investigação jurídica.
VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 126-128, 133, 138 e 190; ZACCARIA, 1996, p. 145- que '"o próprio historiador é parte do processo histórico que está pesquisando e (.. .)
147; GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo: Uni- só pode observar esse processo a partir do posto que ele próprio ocupa" (GADA-
sinos, 1999. p. 193; LAMEGO, José. Hermenêutica e Jurisprudência. Lisboa: Fra- MER. 2004, p. 461 ). No mesmo sentido, Engisch sustenta que o s1tjeito sempre coloca
gmentos, 1990. p. 195. Refere Miguel Reale que é esse "'elemento de criatividade que o seu "eu" na decisão concreta. razão pela qual a compreensão do elemento nom1ativo
aproxima a experiência científica da experiência artística", circunstância que levou depende de uma compreensão sobre si mesmo (ENGISCH. 1968. p. 36 e 44-45). Já
Albert Einstein a observar que as hipóteses que constituem as modernas teorias da fí- Miguel Reale. frisando a atividade filosófica, entende que a pessoa do filósofo é ele-
sica teórica são "livres criações da mente", cuja invenção e elaboração requerem do- mento integrante e inseparável de sua filosofia. assim como são indissociadas da
tes imaginativos análogos aos que pemútem a criação artística, como bem salienta Er- mesma as contingências histórico-culturais em que o pensador se encontra inserido, as
nest Nagel (REALE, 1999, p. 194 e 197-198). quais também condicionam seu trabalho, o· que demonstra com exatidão que ambas
111
LARENZ, 1989, p. 489-490. dimensões (participação do intérprete e importância do entorno social) redundam na
112
Francesco Ferrara desvela uma interessante questão, a qual se mostra extremamente necessidade de utilização de um raciocínio por concre1tão. conforme defendido neste
verdadeira quando analisada a forma retórica como muitas vezes se dá a construção da estudo (REALE. Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva. 2002.
decisão judicial: "(. ..) o método tradicional, à parte o não ser científico, também não p. 68-69). Latour parece concordar com a ideia aqui desenvolvida ao referir que os su-
é sincero, porque ojui= sempre/a= isto (cria direito), e nuncafe= outra coisa: satisfa= jeitos nunca estão longe das coisas (LATOUR, Brunó. Jamais Fomos Modernos: en-
as necessidades da vida, consoante o impulso dos seus sentimentos; e esconde o seu saio de antropologia sin1étrica. Editora 34. [s.d.]. p. 35).
agir com o véu da ratio legis e da analogia" (FERRARA, 1987, p. 169). 118 SIBIN, 2004, p. 45 e 109; BETTI, Enúlio. Diritto Metodo Erníe·neutica. Milão:
113 GADAMER, 2004, p. 507. Giuffré. 1991. p. 545.
h1terpretação Contratual 55
54 Felipe Kirchner
é simplesmente o tomar conhecimento do compreendido, mas também o enquanto este (o texto) é objeto da interpretação, aquela (a nonna legal ou
desenvolvimento das possibilidades projetadas no compreender 126 • Não contratual) é o resultado da atividade exegética. As nonnas não existem
obstante as relevantes diferenças de posicionamento, é interessante notar como entidades antes do momento da interpretação. O texto normativo
que as mais variadas correntes de pensamento jurídico convergem na constitui uma mera possibilidade de Direito, e a sua transfonnação em
conclusão de que o intérprete possui uma grande margem de liberalidade norma jurídica depende da construção de determinados conteúdos de
na conformação do sentido do conteúdo nonnativo 127 • Como deriva do sentido pelo intérprete. Assim, a interpretação é um ato de decisão que
pensamento de Tullio Ascarelli, a questão central do ato interpretativo é a constitui a significação de um texto 129. Nesse sentido, Eros Grau, para
composição harmônica entre a criatividade do intérprete e a declaratorieda- quem "o que em verdade se interpreta são os textos normativos; da in-
de do objeto, equidistância essencial ao resguardo da certeza jurídica128 • te1pretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identi-
O caráter construtivo da atividade hennenêutica denota, ainda, ficam. A norma é a inte1pretação do texto normativo. A inte1pretação é,
que nonna e texto nonnativo não indicam a mesma realidade jurídica: portanto, a atividade que se presta a transformar os textos - disposições,
preceitos e enunciados - em normas", as quais surgem quando se alcança
visão abstrata da dogmática jurídica e do seu autorreconhecimento como receptora a determinação de um conteúdo nonnativo, do que a interpretação é meio
passiva, e aplicadora da norma estatal ou contratual (REALE, 1968, p. 172-175; FER- de expressão 130 •
RAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Rea- O caráter criativo do proc.edimento hennenêutico permite a
le. ln: Textos Clássicos de Filosofia do Direito: publicação em homenagem ao Pro- transcendência da questão metodológica. Larenz salienta que "a inte1pre-
fessor Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981 ).
126
tação, e tudo o que ela em si coenvolve, não é uma actividade que possa
FREITAS, Juarez. Hermenêutica Jurídica: o juiz só aplica a lei injusta se quiser.
Revista da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS), realizar-se somente de acordo com regras estabelecidas; carece sempre
n. 40, 1987, p. 41. da fantasia criadora do inté,prete", complementando que a hennenêutica
127 Hans Kelsen assim se posiciona: "O Direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, não é "um exemplo de cálculo, mas uma actividade criadora do espíri-
uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é to"131. Assim como os contraentes, no uso de sua autonomia privada, não
conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura. (..).
A teoria usual da interpretação querfa::er crer que a lei, aplicada ao caso concreto,
criam nada sem interpretar quando instituem a nonna contratual, o sujeito
poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajusta- cognoscente cria enquanto interpreta esse mesmo contrato 132 • Dito isso,
da), e que a "juste=a" (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria
lei. Configura o processo desta inte,pretação como se se tratasse tão somente de 11111 129 MARTINS-COSTA. 2005b, p. 128-129; ÁVILA, 2006, p. 24, 27, 30-32. 68-70.
ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Di- 13o GRAU, 2003. p. 23. 26 e 79.
reito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (ra::ão), mas não a sua von- 131 LARENZ, 1989. p. 293 e 418.
tade, e como se, atrm,és de uma pura atividade de intelecção, pudesse reali=ar-se, en- 132 DWORKIN, Ronald. De que Maneira o Direito se Assemelha à Literatura. /11:
tre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito DWORKIN. Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. (. ..) a produção p. 235. Como será visto no tópico "A fixação do objeto e da dimensão funcional da
do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicada é livre, isto é, reali=a- hermenêutica contratual'', este estudo não endossa a tese de que a atividade hennenêu-
se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produ=ir o ato" (KELSEN, Hans. tica está circunscrita aos intérpretes autênticos, corporativos ou autorizados jurídica
Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390-391 e 393). Na ou funcionalmente pelo Estado, pois entende que todo aquele que vive no contexto
mesma linha, Karl Larenz destaca que "adentro dos quadros do sentido literal, tem o regulado por um contrato é um intérprete dessa nonna. Porém, esta realidade não ilide
jui= plena liberdade de prodzt=ir normas do caso" (LARENZ, 1989, p. 168). Median- a existência de graus variáveis no espaço de liberdade criativa do henneneuta, pois,
do estas considerações com o uso do raciocinio por concreção, Eros Grau, mencio- diferentemente dos contraentes. os intérpretes técnicos (iniz. advogados. pareceristas,
nando o pensamento de Friedrich Müller, entende que os textos nonnativos não pos- etc.) estão mais adstritos as categorias que estruh1ram o Direito (ex.: cânones henne-
suem significações prévias e inerentes, não passando de uma moldura limitadora das nêuticos definidos pelas leis estatais) - não apenas pela arbitrariedade que detennitta a
possibilidades de concretização do Direito, razão pela qual a construção do significa- eficácia das ações judiciais. mas também porque o sjstema jurídico faz parte de sua
do da norma se dá dentro dessa moldura, mas decorre da realidade, que dá sentido ao pré-compreensão -, o que inegavelmente reduz o espaço de criatividade da sua ação
texto interpretado (GRAU, 2003, p. 82). hennenêutica. Contudo, não há falar na existência de duas interpretações (construtiva
128 REALE, Miguel. A Teoria da Interpretação Segundo Tullio Ascarelli. /11: REALE, para os contraentes e reconstrutiva para os intérpretes técnicos), pois todo intérprete
Miguel. Questões de Direito. São Paulo: Saraiva, 1981a. p. 10. Nesse sentido a Sú- constrói quando compreende, cada qual ao seu modo e dentro dos limites pennitidos
mula 181 do STJ, a qual detemliua que "é admissível ação declaratória, visando a pelo seu ser-aí (os dados nom1ativos constituem fortemente o aí da situação hem1e-
obter certe=a quanto à exata inte,pretação de cláusula contratual." nêutica do intérprete técnico. diferentemente do que ocorre com os contraentes).
58 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 59
cabe frisar que Francisco Amaral desvela a conexão existente entre o . Dito isso,~ c~be desta~ar_ que, assim como a inserção da aplica-
caráter criativo da atividade interpretativa e a necessidade de utilização ção no 1t~r ~e~~neu_tico contnbm para a manutenção da força normativa
do método concretista, nos seguintes termos: do preceito Jund1co mterpretado, a defesa de uma interpretação criativa
auxilia. na man~tenção ~a~ e~etivid~de real e material das disposições
O objetivo da hermenêutica jurídica é demonsh·ar que a investigação nonnativas. Ass1111, a dmam1ca existente na interpretação construtiva
do direito não é uma subsunção, de acordo com regras lógico-formais
fixadas em lei, mas sim 11111 processo criativo, consh·utivo e concreti- constitui condição :fundamental da força nonnativa do contrato e por
zador da norma aplicável ao caso, que parte da compreensão de que conseguinte, de sua estabilidade 136 • '
a lei não é unívoca e completa, que sua aplicação não é mera repro- Entende Erich Danz que o resultado de toda interpretação con-
dução mecânica. (..) tr~h:al acaba por ~co~npletar ª. declaração negocial, razão pela qual toda
A interpretação jurídica deixa de ser uma simples hermenêutica do at1vi~de henneneuti_ca possm uma função em certa medida supletiva13 7•
texto legal para transformar-se numa atividade prático-criativa do di-
reito a cargo do jurista intérprete 133 •
Em diversas oportumdades os contraentes não formulam as nonnas con-
tratuais com tamanha clareza e suficiência que a aplicação das conse-
Porém, o reconhecimento do caráter construtivo da interpretação quências nonnativas para os casos sob o império do contrato independa
não conduz ao entendimento de que exista uma total liberdade ao intérpre- de um esforço hermenêutico. Ademais, beira as raias do impossível ditar
te, no sentido de que não exista significado algum antes do término do iter um~ ~~rma concreta para cada r~lação especial da vida que possa se per-
hermenêutico. O espaço de "fantasia" e/ou criatividade do intérprete con- fectibilizar no processo de cumprnnento dos ditames contratuais 138 .
tratual é limitado pela predetenninação dos contraentes (declaração negocial Vislumbrando o plano da nonna estatal, refere Humberto Ávila
enquanto objeto), pela situação concreta (fática e normativa) em que está que os ?ispositivo: normativos são resultados de generalizações feitas
inserida a relação e pelo universo histórico e linguístico do ato de compreen- pelo_ legislador, r?zao pela qua! mesmo a fonnulação mais precisa é po-
der, havendo, portanto, significados mínimos incorporados à coisa que tencialmente eqmvoca, na medida em que podem surgir situações de fato
preexistem ao processo interpretativo individual 134 • inicialmente não previstas, cttja solução hennenêutica demanda a análise
A contribuição produtiva do intérprete não legitima o caráter. da finalidade da nonna e à ponderação de todas as circunstâncias do caso
arbitrário das pressuposições subjetivas, pois o objeto da interpretação (concreção) 139. Esta observação, que se amolda perfeitamente aos contra-
continua sendo o norte da validação do ato de compreensão 135 • No âmbito tos de adesão e as condições gerais dos negócios por possuírem destinatá-
do contrato, a limitação da contribuição produtiva do sujeito cognoscente rios genéricos, com ceitas mitigações também se enquadra no contexto
vem, principalmente, com o respeito ao ato de autonomia, o que se dá por dos contratos paritários, pois estes, mesmo se constituindo em nonnas
meio do resguardo do sentido literal contido na declaração negocial (pri- mais concretas, não conseguem abarcar toda a realidade da situação de
mado do texto contratual) enquanto limite possível de significação, mes- sua conclusão e do curso de cumprimento, consubstanciando uma inarre-
mo em uma atividade hermenêutica matizada pela busca da concreção (o dável complexidade da relação contratual.
que importa na quantificação de elementos fáticos e normativos exterio- Assim, é missão do intérprete alcançar o horizonte do contrato
res ao texto da declaração negocial). desveland~o suas disposiçõe~ fundamentais e aquelas de fundo axiológic~
q~e lhe dao suporte (as 9uais se encontram no texto da declaração nego-
33
cial, na factuahda?e da situação fática ou no sistema jurídico), aplicando-
1 AMARAL, 2006, p. 49 e 52. -as aos casos da vida que o con~rato previu concretamente. O instrumento
134
Os inúmeros elementos limitadores da atividade interpretativa conduzem à limitação
do espaço de criatividade presente neste mesmo agir. Nesses termos, não pode ser en• 136
HESSE, 1991, p. 23.
tendida em sua literalidade a afinuação de Eros Grau de que "as disposições, os emm- 137
ciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os inté,pretes dizem que eles dizem" DANZ, 1955, p. 90-91 e 239.
138
(GRAU, 2003, p. 23). Representativa da ideia de que a norma é o produto da interpre- Analisando a formação da lei, Erich Danz refere que "a vida real ri 11111 dia e outro
tação, a afirmativa não ilide a teoria construída pelo pensador, a qual não ignora apre- da p,:evisão1º legis!a.d_or". No plano da interpretação dos negócios Jurídicos. deve-s~
sença dos elementos condicionantes da interpretação e a existência de significados con~1derar a ?13POss1b1ltdade de completude do instrumento contratual, com relação à
minimos incorporados à coisa e a própria linguagem. r:ahdade soc10econômica que este pretende regular (DANZ, 1955, p.-·130-131 ).
139
135
GADAMER, 2004, p. 132; ÁVILA, 2006, p. 32-35. AVILA, 2006, p. 57 e 61.
60 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 61
conh·atual é um marco significativo da situação objetiva complexa, embora intérprete. É exatamente sobre essa relação dialética antinômica que o
muitas vezes deficiente, dentro do qual o intérprete deve buscar a solução jusfilósofo ita!iano constrói a su,a !eoria geral da interpretação, centrada
necessária, com suporte nas circunstâncias fáticas e normativas 140 • na busca de mstrumentos metod1cos representados por seus cânones
Contrapondo à ótica conshutivista aqui adotada, tem-se que no hermenêuticos 144 •
marco teórico bettiano 141 a tarefa hermenêutica consiste em uma recons- Contudo, existe impo1tante peculiaridade do ideal reconstrutivo
trução, em voltar a conhecer o pensamento animador que se revela em bettiano que não pode deixar de ser observado. Embora o filósofo italiano
uma determinada fonna representativa 142 • Esta noção da atividade herme- defenda que a noção de reconstrução do significado seja perfeitamente
nêutica contempla uma verdadeira inversão do processo criativo, cabendo aplicável ao Direito 145 , admite a existência de níveis de apego do intérprete
ao intérprete (re)percorrer, em sentido retrospectivo, o iter genético e à necessidade de reconstrução. Cenh·ado no seu esquema de divisão prática
refletir a respeito das partes que compõem a atividade autoral que culmi- da atividade hermenêutica, refere que a ideia de "reviver o objeto a partir
nou na criação do objeto 143 • do próprio interior" é admissível em uma interpretação cognosciva e re-
produtiva, mas não totalmente na interpretação nonnativa, na qual subjaz
A proposta de Emílio Betti admite a antinomia havida entre a uma função prática dirigida à regulação de condutas humanas 146 •
exigência de objetividade (fidelidade ao valor expresso na forma repre-
sentativa) e o reconhecimento de que a subjetividade é inseparável da Não obstante a mitigação supramencionada, deve-se salientar
espontaneidade do entendimento, ou seja, de que a objetividade exigida que a noção reprodutiva pressupõe a existência de um significado intrín-
(alteridade) só pode ser realizada por intermédio da subjetividade do seco e imanente que apenas é desvelado pela interpretação, o que efeti-
vamente não subsiste, pois, como adverte Humberto Ávila, "o significado
não é algo inc01porado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende
140
A liberdade de ação não é irrestrita, pois o intérprete deve colmatar os vazios do precisamente de seu uso e inte1pretação" 147 •
contrato por meio da interpretação (aqui englobando também o viés da integração e da
interpretação integrativa), guiando-se pelos fins econômicos perseguidos pelos con- A grande objeção ao ideal reconstrutivo decorre de um sentido
trae~tes e p~las circunstâncias do caso, tarefa sempre mediada pelas suas concepções prático, pois como bem formula Gadamer, "cuando comprendemos un
de vida_ (honzonte e pré-compreensão) e pela tradição. Nessa atividade não pode pre- texto no nos colocamos en lugar de! outro, y 110 se trata de penehw· en la
tender impor, nas novas realidades da vida, conceitos construídos subjetivamente ou actividad espiritual de! autor", complementando, ainda, que "el sentido
apartados da autonomia das partes, os quais, nesses tennos, encontrariam bases in- de la investigación hermenéutica es desvelar e! mi/agro de la compren-
compatíveis com o horizonte do contrato interpretado.
141
É por meio da defesa de uma interpretação reprodutiva, plasmada no cânone sensus
144 BETTI, 1990a, p. 262; BETTI. 2007, p. XL-XLI e XCVIII. Os cânones henuenêuti-
11011 _est_i~zfere11dus, sed ejferendus (o sentido não deve ser imposto, mas extraído), que
Betti cntica Gadamer por, no seu entender, não levar em conta os direitos do objeto, im- cos apresentados por Emilio Betti serão objeto de análise no tópico "O procedimento,
pondo e atribuindo um significado ao invés de extrair o que nele está contido (REALE; os métodos e as regras de interpretação".
145 BETTI, 2007, p. 5.
ANTISER1, [s.d.], p. 265 e 284). Contudo, a censura do jurista italiano não quantifica
146 BETTI, 2007, p. CXXN. Para Betti, na interpretação nonnativa o intérprete deve dar
a importância da exigência gadameriana do intérprete deixar a coisa falar.
142
~ p~nsador i~a~~~ admit_e qu~ a transposição do intérprete se dá a UU1a subjetividade um passo além da reconstrução (movimento do sujeito em direção ao objeto, por in-
d1stmta da ongmana. Assim, diferentemente do que aponta parte significativa da dou- termédio dos cânones da autonomia e da totalidade-coerência), sintonizando a ideia
trina, a ideia reprodutiva bettiana, ao menos no contexto normativo, não tem em vista originária com a atualidade presente (movimento do objeto em direção ao sujeito. por
o pensamento originário do autor, não se aproximando do conceito de congenialidade. íntermédio dos cânones da atualidade e da adequação do entender). Na prática. a apli-
143
Leonel Cesarino aponta que "reconstruir o que foi construído, repensar o que foi cação dos cânones em sua totalidade implica na possibilidade de evolução hermenêu-
pensado; repercorrer, em sentido inverso, o processo criativo: é assim que Betti con- tica do Direito sem alteração de seu texto, -em razão de determinadas transformações
cebe o processo que condu= ao entendimento" (PESSOA, 2002, p. 95). Gadamer se socioculturais (manutenção da eficácia uonuativa do preceito), aspecto que Betti de-
contrapõe expressamente ao posicionamento de Emilio Betti (GADAMER 2004 nomina de interpretação histórico-evolutiva, a qual, 11º seu entender, não se trata de
p. 29), no que é acompanhado por Carlos Ferreira de Almeida, para quem falt~ à con~ UU1 método ou critério particular, mas, sim, de 11111 caráter lógico da interpretação jmi-
dica (BETTI. 2007, p. LVIIl-LIX, LXIII-LXVII. CII-CIII. 5 e 42: MEIRELES. Ana
cepção_ me_ramente, rec01~st~ut_iva da interpretação UU1a suficiente atenção ao processo
Cristína Pacheco Costa Nascimento. A Atualidade da Hermenêutica de Emilio Betti.
comumcatJvo (carater dialogi?o da compreensão) e à fünção autônoma do receptor,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da
restando por tratar o texto mais como sendo UU1 índice do espírito do que como UU1a
Bahia, n. 11,jan./dez. 2004, p. 131). +~ •
obra, e o contexto mais como um meio de prova do que como fator deterrnínante do 147
significado (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 167). ÁVILA, 2006, p. 31.
62 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 63
sión y no únicamente la comunicación misteriosa de almas. La co111pren- 11111 mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última
sió11 es una participación en la prete11sió11 comú11" 148 . Tendo em vista a palavra" 15º.
extensão do paradigma hennenêutico aqui adotado, é possível afirmar Como no universo dialógico gadameriano não existe uma pala-
que toda reprodução já é interpretação, compreensão e aplicação desde vra que ponha um ponto final na compreensão, assim como não há uma
seu início 149 • palavra primeira, entender-se a interpretação como definitiva seria uma
Do exposto neste tópico, cabe concluir que a fimção do intér- contradição, pois o ideal interpretativo é algo que está sempre a caminho,
prete não é a de reviver a intenção dos contratantes quando do momento que nunca se conclui 15 1, com o que concorda Emílio Betti, para quem
genético, mas a de construir o sentido do contrato a partir de seu hori- "nenhuma inte,pretação, por 111ais válida e convincente que seja, pode
zonte e da situação objetiva complexa em que se insere, se111pre respei- impor-se à humanidade como definitiva" 152 •
tando a autonomia das partes contratantes consubstanciada na declara- A incompletude da atividade hennenêutica está intimamente re-
ção negocial. lacionada com a finitude do ser humano 153 , pois é este o fator que fulmina
Não se pode mais ignorar o caráter produtivo da interpretação a perspectiva de um horizonte e de uma compreensão que consiga ir além
contratual, pois não há como dizer de antemão (sem a interpretação) o da temporalidade do Dasein (ser-ai). A finitude do homem o agrilhoa a
que é o contrato e quais são as relações do instrumento à detenninada uma determinada facticidade, ou seja, a uma condição (humana) que o
estrutura normativa (tipos legais). A relação obrigacional, em seu viés compromete com situações e instâncias por ele não escolhidas 154, razão
processual, é estruturante, não estando o contrato estruturado de ante- pela qual pode-se afinnar que nenhuma atividade do intérprete está livre
mão, o que remete ao caráter incompleto da atividade hermenêutica, obje- de sua condição concreta e situada, sendo que a compreensão por ele
to do tópico infra. produzida também faz parte do seu modo de ser-no-mundo, antecipando
qualquer tipo de explicação lógico-semântica. Nesses tennos, toda e
qualquer experiência humana é uma experiência de sua finitude, repre-
1.4 A Incompletude da Atividade Hermenêutica sentativa de um continuwn entre o objeto, a situação hennenêutica pre-
A hermenêutica filosófica nunca se assumiu como detentora 150 GADAMER. 2004. p. 384 e 544, 576: GADAMER. 2007b. p. 40: GADAMER. Hans-
ou produtora de resultados absolutos, mas como uma forma possível de Georg. EI Giro Hermenéutico. Madrid: Rogar, 1998a. p. 35.
experiência, admitindo que sempre haverá novos horizontes a serem 151 GADAME?-, 1998a, p. 76; GADAMER, 2004. p. 231; GADAMER.. Hans-Georg. A
desvelados, não havendo um esforço esgotável possível de compreensão Razão na Epoca da Ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 71.
interpretativa. Gadamer refere expressamente que seu esforço foi o de 152 BETTI, 2007. p. LXXXVIII.
153
"estabelecer o caráter inconcluso de toda a experiência", eis que "seria Não são apenas as limitações das possibilidades de conhecimento humano que condu-
zem à conclusão de que o processo exegético. apesar de almejar sempre a melhor in-
148
terpretação. nunca será definitivo. A esta circunstância soma-se a variedade infinita
GADAMER, 2003, p. 97-98. Essa pretensão em comum também é ressaltada por dos fatos concretos e a pennanente mutação das relações da vida - o que coloca o
Gadamer como sendo fünção primoridal do filósofo (GADAMER, Hans-Georg. Er- hem1eneuta constantemente perante novas posições -. bem como a verdadeira inesgo-
meneutica e Metodica Universale. Torino: Marietti, 1973. p. 9). tabilidade dos conteúdos de sentido a serem compreendidos (LARENZ. 1989. p. 378:
149
GADAMER, 2005, p. 18. O iter hennenêutico não depende de um retroceder ao BIAGIONl, João. A Ontologia Hermenêutica de H. G. Gadamer: reflexões e pet'S•
processo originário de produção, pois na concepção gadameriana o texto (contra- pectivas sobre a 3ª parte de "Verdade e Método". Uberlândia: Universidade Federal
to) é visto como um conceito hermenêutico, um produto intermediário e uma fase de Uberlândia, 1983. p. 16). Corno refere Latour, ·'a cada ve=, tanto o contexto quanto
na realização de um processo de entendimento (acontecer compreensivo), até a pessoa humana encontram-se redefinidos" (LATOUR, [s.d.]. p. 10).
mesmo porque no horizonte da hermenêutica filosófica o intérprete se encontra 154
livre de uma perspectiva da cientificidade gramática ou linguística (as quais pers- Esta facticidade (que também afeta o objeto) impõe que o sujeito cognoscente esteja
crutam a produção do texto enquanto produto final). A compreensão no paradig- jogado no mundo, permaneça sempre junto das coisas que procura compreender e se
ma gadameriano mantém sujeito e objeto em permanente tensão, gerando um re- constitua como possibilidade (füturo) (HOMMERDING. 2003, p. 20 e 38). Miguel
sultado que não é a reprodução da obra interpretada, mas a explicitação de uma Reale adverte que "os instrumentos de conquista do i·eal não existem a priori, mas são
possibilidade verdadeira à luz de uma detenninada situação hermenêutica (GA- constituídos e moldados à lu= das particularidades mesmas do setor que o espírito
DAMER, 2004, p. 29, 393-394, 398; ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, circunscreve ou delimita, visando a atingir, ainda que em caráter provisório, verda-
2000, p. 66). des objetivamente verificadas ou verificáveis" (REALE. 1999, p. 88).
64 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 65
sente e a história pessoal do sujeito cognoscente, sustentada por seus Como o alcance da verdade é o objetivo do procedimento her-
preconceitos. rnenêutico161, presidindo a vida do investigador de maneira incondicional
A finitude irrevogável do ser tem como derivativo a finitude ir- e inequívoca 162 , deve ser enfrentada a questão envolvendo a relação das
revogável da sua compreensão, o que se apresenta como condição para a conclusões hennenêuticas com a própria realidade.
determinação do sentido e para o estabelecimento de relações com outros Inicialmente, cabe frisar que existe uma realidade fática (objeto
seres e objetos igualmente finitos 155 • A inexorabilidade da incompletude de interpretação) e uma realidade hennenêutica (resultado da interpreta-
(não totalidade) da compreensão trazida pela finitude do sujeito cognos- ção)163, pois os contingenciamentos que atingem o intérprete e suas con-
cente é uma dimensão que o ser humano não consegue dar conta nem clusões interpretativas não ilidem a existência de um dado objetivo (rea-
como indivíduo nem como grupo 156 • O homem só compreende depois de lidade fática), que está para além de sua compreensão 164 • O fato do produ-
acontecido, ou seja, depois que ele e o objeto se tomam fatos concretos
detenninados pela história, pela cultura, pela linguagem e pelas circuns- ca de Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade
tâncias fáticas 157 , afirmação da qual resulta a imprescindibilidade de um de Filosofia de Braga, jul./dez. 2000, p. 520.
raciocinar por concreção. Contudo, a própria finitude toma esta atividade 161 A hermenêutica filosófica não se preocupa diretamente com a certeza de seus postula-
complexa, pois se o intérprete é sempre um ser-no-mundo, ao mesmo dos, mas sim com a carga de verdade que eles revelam (VILA-CHÃ, João J. Hans-
Georg Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade
tempo em que o mundo (realidade) o constitui, ele constitui o mundo (por de Filosofia de Braga, jul./dez. 2000, p. 3U5).
intermédio da linguagem) 158 • 162 GADAMER, 2004, p. 57.
A consciência da sua condição finita de alcance da compreen- 163 Interessante o pensamento de Acílio Estanqueiro Rocha, para quem "verdade e reali-
são é o passo primordial para que o intérprete fique atento à alteridade do dade são dimensões interconexas, mas que muitas ve=es se apresentam em descone-
objeto ou a possibilidade do outro estar com a razão. Assim, a finitude xão" (ROCHA, 2000, p. 319). Quanto ao tema da verdade no âmbito da compreensão,
caso se entendesse que efetivamente inexiste uma verdade (fática ou hennenêutica),
não é um elemento restritivo ou uma deficiência do processo, pois é esta como propõe parte significativa da doutrina, como seria possível justificar a refonna
dimensão que permite ao sujeito cognoscente ultrapassar as marcas parti- de decisões judiciais. enquanto ato hennenêutico. senão recorrendo-se a argumentos
culares e estreitas de seus pontos de vista (subjetividade) 159 , acentuando a de autoridade? Ocorre que na constmção e atribuição de sentido, que é o tema desta
dimensão ontológica da atividade hennenêutica, que não se ajusta ao pesquisa, descabe ao sujeito cognoscente recorrer a argumentos de autoridade, pois
ideal cientificista do método ou a lógica da racionalidade instrnmental 16º. questões hierárquicas são despiciendas. No entanto, quando se enfoca a atribuição de
eficácia nomiativa se adentra no plano argumentativo, onde é totalmente cabível falar
em autoridade, pois o sistema jurídico efetivamente atribui eficácia às decisões judiciais
155
ARAÚJO, 2005, p. 56. por meio de conceitos como hierarquia (ex.: decisões dos tribtmais superiores que der-
156
ENGISCH, 1968, p. 34. rogam os julgados de instâncias inferiores, independentemente de seu conteúdo ou da
157
ARAÚJO, 2005, p. 160; S1EIN, 2004, p. 19-21, 49, 65-66 e 67-69. Nas mesmas passa- carga de verdade por elas revelada) (FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Aulas mi-
gens, Stein refere qne, em um viés heideggeriano, o ser hnmano jamais é senhor absoln- nistradas na cadeira Tópicos Avançados de Direito Civil Constitucional II, proferi-
to do acontecer hermenêntico, urna vez que é composto pela sua facticidade (passado), da em 2008/1, no PPG/PUCRS. 2008). Em sú1tese, pode-se conclnir que. enquanto a
por ser e estar jogado no mundo (enquanto facticidade está sempre junto das coisas) e questão da verdade possui enonne significância na descoberta e desvelamento do ob-
por constituir-se em possibilidade, que se apresenta como sendo um futuro que acaba jeto interpretado, toma-se secundária 110 plano da atribuição de eficácia do ato de
sendo un1 passado em face do seu ser-no-mundo que já começou sem necessariamente compreensão, como ocorre 110 caso específico da decisão judicial.
pem:ritir que se opte por ele. Nas três din1ensões de tempo (passado, presente e führro) o l6-I Miguel Reale desvela a impossibilidade de se aceitar a ideia como razão (ser) das
ser hnmano é sempre história e culhrra, ou seja, é constituído e lin:ritado significativa- coisas, como se o pensamento pudesse gerar o ser do qual é pensan1ento: "O fato de
mente por elementos que ele não domina. Por estes fatores é que, na matriz filosófica
heideggeriana, ao ser humano cabe viver unia vida que não escolheu (ao menos por nada poder-se di=er de 'algo' até e enquanto não percebido 011 pensado ou em pro-
completo), principalmente porque seu início e fim lhe escapam, como tan1bé111 defende cesso de percepção ou cognição, não nos autori=a a i,iferir que a zínica realidade
Miguel Reale (REALE, Miguel. A Filosofia em Machado de Assis. ln: O Estado de São concreta seja a do pensamento mesmo no ato de pen8;ar. Seria como di=er que, como
Paulo. São Paulo, 7.dez.1980. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/ nada é suscetível de ser visto sem a lu=, a lu= é, i11 co11creto, o ser de todas as coisas.
media/prosa44a. pdf>. Acesso em: 18 maio 2008. p. 24). O pensamento é sempre o pensamento de algo, o que quer di=er momento da capta-
158
GADAMER, 2005, p. 590; GADAMER, 2004, p. 376; HOMMERDING, 2003, p. 28. ção de algo como objeto que se põe, que se positiva no tempo. (. ..) também seria ab-
159
GADAMER, 2005, p. 590; ARAÚJO, 2005, p. 54 e 66. surdo pretender que somente seja real o que esteja ú1 acto, tra=ido à atualidade da
160 consciência'' (REALE, 1999, p. 61, 104, 107 e 249). Em síntese: ·tr objeto jamais se
ARAÚJO, 2005, p. 157-158. No mesmo sentido: HESSE, 1998, p. 62-63; DUQUE- reduz ao sujeito.
ESTRADA, Paulo César. Lin:rites da Herança Heideggeriana: a práxis na hem1enêuti-
66 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 67
to da atividade interpretativa (realidade hennenêutica) conseguir (ou não) real( ... ) a rigor, só existe sob o prisma gnoseológico, enquanto se con-
abarcar completamente essa realidade fática não é uma questão que diga verte em o bye · to "169 .
respeito à sua existência, já que ela existe independentemente da Questão de fundamental impo1tância é a de que, no plano dos
(in)compreensão pelo intérprete 165 • contratos, os direitos e obrigações que emergem do pacto não são criados
Na discussão que envolve a prevalência entre objetividade e pela interpretação, mas dependem dessa para que alcancem sentido. Se o
subjetividade, deve-se verificar que, se há uma realidade objetiva que contrato existe enquanto ente jurídico autônomo, não tem sentido algum
existe independentemente do intérprete - o qual depende destas circuns- fora da circularidade hennenêutica 170 •
tâncias para alcançar a compreensão (deixar a coisa falar) 166 - a ativida- A declaração negocial e as circunstâncias do caso são realidades
de hermenêutica somente faz sentido em relação ao intérprete (caráter fáticas que existem independentemente da atividade exegética, embora
produtivo da interpretação). A construção da realidade depende da sub- somente sejam apreensíveis ao saber humano por meio do procedimento
jetividade do agente (inexistência de separação entre sujeito e objeto), hennenêutico. Se a finitude do sujeito e o caráter histórico e linguístico
embora a compreensão jamais seja um comportamento completamente da compreensão já condicionam, de antemão, a (im)possibilidade do in-
subjetivo frente ao objeto (universalidade da exegese por meio das di- térprete alcançar a própria realidade fática, deve-se considerar, ainda, que
mensões linguística e histórica) 167 • Nesses termos, não obstante o objeto a mesma incompletude da atividade hennenêutica alcança também as
exista independentemente do sujeito, ele não tem sentido (hermenêuti- realidades que existem apenas no plano hermenêutico, como é o caso do
co) fora da relação com este sujeito 168 • Como refere Miguel Reale, "o resultado da interpretação do contrato.
O contrato, enquanto ente significativo, é uma realidade henne-
165 Gadamer se ocupa apenas do plano hermenêutico, mas isso não conduz à conclusão nêutica em si, produto de uma atividade interpretativa que pode ser con-
de que não aceite a existência de uma determinada realidade objetiva, uma vez que siderada correta ou incorreta perante detenninada situação hennenêutica.
admite a existência de um "verdadeiro sentido que há numa coisa" (verdade fática) e,
inclusive, de "uma inte,pretação correta" (verdade hermenêutica) (GADAMER, Em sua tentativa exegética, o intérprete se debruça sobre elementos con-
2005, p. 29 e 395; GADAMER, 2003, p. 116). Como refere Latour, "não são os ho- cretos (declaração, circunstâncias, e nonnas jurídicas), mas além da apreen-
mens que fa=em a nature=a, ela existe desde sempre e sempre esteve presente, tudo são destes dados somente ocorrer por meio da atividade interpretativa, a
que fa=emos é descobrir seus segredos" (LATOUR, [s.d.], p. 36). A desconfiança conclusão (compreensão do contrato) será uma realidade (hennenêutica)
acerca da existência de uma verdade passa apenas pela condição desta verdade em que também se encontra limitada pelos pressupostos condicionantes da
termos hem1enêuticos. Quando se fala da inexistência de uma verdade está se falando
da impossibilidade de se alcançar henueneuticamente esta verdade, mas não se está compreensão. Assim, não é apenas a realidade fática que se encontra
negando, necessariamente, a sua existência. subjugada aos elementos que condicionam a compreensão, mas também a
166
A esta conclusão resta subjacente a ótica objetivista de Emilio Betti, que não ignorou realidade hermenêutica.
o momento subjetivo da interpretação, nem negou a necessidade da mediação humana • A pretensão de alcançar um sentido absolutamente verdadeiro
no ato de compreender, mas ressaltou a validade existencial do objeto, a partir do qual
seria possível realizar uma interpretação objetivamente válida. No pensamento bettia-
no procedimento interpretativo é utópica 171 , pois como bem refere Gada-
no, a subjetividade do intérprete deve penetrar na estranheza e alteridade do objeto in-
terpretado. Sob esta perspectiva, o objeto "'fala" e pode ser avaliado de fom1a correta radicalização do entendimento de que é o intérprete que constrói o objeto, sem a me-
ou incorreta. Aspecto relevante nessa vertente teórica é a distinção entre "sentido" e diação ou nlitigação aqui exposta. levaria à conclusão de que a realidade só existe a
--significado", pois no entender de Emilio Betti o objetivo da hermenêutica é clarificar partir do "eu", e que o mundo inexiste independentemente de "num''. O entendimento
o sentido verbal de uma detemlinada passagem, que é fixo, e não encontrar o signifi- aqui defendido aceita a ausência de separação entre sujeito e objeto na interpretação.
cado desta. Nesta perspectiva, é possível alcançar semelhanças em pelo menos três mas ressalta que esse amálgama subsiste no iter hem1enêutico. e não no plano fático.
169
elementos abrangidos pela teoria gadameriana, embora a discordância sempre presen- REALE, 1999, p. 33.
170
te acerca da busca pela reconstrução do significado, conforme defendido pela teoria O caráter criativo da atividade henuenêutica possui unia função balanceadora da
bettiana: a força vinculante do objeto interpretado, a necessidade de verificação da interpretação ao indicar que. se de um lado esta não cria o objeto. de outro não se li-
particularidade com o todo (circularidade da interpretação) e a relevância do racioci- ~ta a reconstruí-lo. Assim. se a interpretação contratual não cria os direitos e obriga-
nar por concreção na atividade interpretativa (PALMER, 1997, p. 65-69). çoes que emergem do contrato (pois não é fonte de obrigações). também não se linlita
167
GADAMER, 2005, p. 18. a meramente reconhecê-los de fomia passiva.
171
168 PALMER, 1997, p. 34. O intérprete constrói hermeneuticamente o objeto interpreta- REALE, 1999, p. 111. Sendo a interpretação verdadeira aquela,que alcança com
do, mas a existência do objeto não depende desse agir hem1enêutico do intérprete. A absoluta perfeição a realidade (objetividade da situação complexa exanlinada). toma-
68 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 69
mer, "para una conscienciafinita e histórica, la identidad absoluta de la entre interpretações 175 • Se o produto da atividade hennenêutica tem sem-
conciencia y dei objeto es algo fi1era de alcance; se halla siempre swner- pre sua própria temporalidade e historicidade, deve-se considerar que a
gida en las influencias históricas" 172 • Porque a compreensão é alcançada pretensão de _verdade hennenê~tica também é construída coletivamente
da perspectiva de determinada situação hermenêutica (delineada pela no desenvolvunento do conhecunento humano, por meio do trabalho de
. t'erpretes 176. N a teona
diversos 111 . ga d amenana
. a compreensão não se
historicidade e preconceitos do sujeito), nunca poderá ser o reflexo exato
da realidade objetiva. Nesse sentido é a lição de Eros Roberto Grau: prende às margens da subjetividade, já que a partir da historicidade e da
linguagem o produto da interpretação alcança uma carga de validade que
(. ..) é certo que os fatos não são, fora de seu relato (isto é, fora do re- ultrapassa as marcas da existência finita 177 •
lato a que correspondem), o que são.
Ademais, a verdade hennenêutica não é estática pela simples
O que des(!jo afirmar é a fragilidade do compromisso entre o relato e
seu objeto, entre o relato e o relatado. razão de que a realidade fática não o é, sendo mutável pelo transcurso do
Esse compromisso é, antes de mais nada, comprometido em razão(])
de jamais descrevermos a realidade; o que descrevemos é o nosso Graduação da Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), 2005,
modo de ver a realidade. Além de não descrevermos a realidade, po- p. 5.
rém o nosso modo de ver a realidade, (2a) essa mesma realidade de- 115 Em face das condições peculiares de seu conceito de verdade. na hennenêutica
termina o nosso pensamento e, (2b) ao descrevermos a realidade, filosófica gadameriana não se tem um par~metro absolutamente seguro que permita
nossa descrição da realidade será determinada (i) pela nossa pré- distinguir urna contribuição autêntica de uma mera pretensão de verdade, até mes-
compreensão dela (= da realidade) e (ii) pelo lugar que ocupamos ao mo porque a questão parece estar fora da preocupação filosófica direta de Gadamer.
Como salienta o filósofo, "a reflexão hermenêutica limita-se a abrir possibilidades
descrever a realidade (= nosso lugar no mundo e lugar desde o qual
de conhecimento que sem ela 11ão seriam percebidas. Ela não oferece 11111 critério
pensamos). (. ..)
de verdade" (GADAMER. 2004. p. 307). Para a distinção entre o verdadeiro e o
Também no que tange aos fatos não existe, no direito, o verdadeiro. falso, as ciências do espírito dispõem "somente" de seus discursos. embora a ques-
Inútil buscarmos a verdade dos fatos, porque os fatos que importarão tão da verdade não possa ser colocada como simples demonstração discursiva. A
na e para a consh·ução da norma são aqueles recebidos/percebidos verdade hennenêutica não pode ser demonstrada objetivamente. senão com a expli-
pelo inté1prete - eles, como são percebidos pelo inté1prete, é que in- citação do acordo temático que liga o intérprete e seus pares ao objeto interpretado.
formarão/conformarão a produção/criação da norma 173 • A necessidade de abertura do íntérprete para a alteridade da coisa, deixando que es-
ta lhe fale algo contra suas próprias convicções, parece ser o grande critério gada-
Contudo, a aceitação do caráter produtivo da finitude e da pré- meriano de aferição da correção do produto da ínterpretação ( GADAMER, 2004, p.
compreensão, que corretamente fulmina a possibilidade de uma verdade 53. 56 e 490; GRAU. 2003, p. 109).
representacional absoluta 174, não impede o juízo de correição e de eleição 176
GADAMER 2004, p. 71 e 305. O próprio procedimento judicial (instância onde
ocorre grande parte das discussões envolvendo a interpretação dos contratos) é bastan-
se conceitualmente inatingível pelo intérprete finito e marcado pela radicalidade do te representativo desta instância de constmção da compreensão em âmbito coletivo.
Dasei11, embora em tese não deixe de ser possível a sua consubstanciação. O caráter tanto no que respeita ao aspecto interno do processo (onde diversos sujeitos elencam
linguístico da interpretação impõe a conclusão de que o texto "fala" por intem1édio de suas razões para que se culmine em uma detenninada interpretação ao final) quanto ao
uma línguagem que alcança o intérprete. Sob esta perspectiva, não há falar em uma seu aspecto recursai (onde agem diversos intérpretes institucionais, tantas quantas fo.
ínterpretação correta ·'em si", a qual seria um ideal desprovido de pensamento, pois remas ínstâncias judiciais existentes). Esta dimensão externa e jurispmdencial remete
em cada línguagem está em questão o próprio texto, também porque "toda i11te1preta- à teoria do romance em cadeia (chaim novel) de Ronald Dworkin. para a qual o julga-
ção deve acomodar-se à situação hermenêutica a que pertence" (GADAMER, 2005, dor, ao decidir, participa de uma narração que começou a ser escrita com a formação
p. 514). do primeiro precedente sobre o assw1to tratado. Nesses tenuos, está o intérprete vin-
172 GADAMER, 2003, p. 59. Como bem assevera Larenz, apesar de toda ínterpretação culado com as decisões precedentes na perspectiva do seu ato decisório, que também
pretender ser uma exegese correta, no sentido de conhecimento adequado, apoiado em possui uma natureza prospectiva (DWORKIN, 2000).
177
razões compreensíveis, "não existe, no entanto, uma inte,pretação absolutamente Steín refere que a filosofia sempre recorreu a um fundamento empírico ou a um fim-
correta, no sentido de que seja ta11to definitiva, como válida para todas as épocas" damento último de verdade. sendo a hennenêutica filosófica a incômoda verdade que
(LARENZ, 1989, p. 378). se assenta entre a verdade empírica e a verdade absofota, pois na teoria gadameriana a
173 verdade se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem. A
GRAU, 2003, p. 33.
174 S1EIN, 2004, p. 19-21, 66 e 68-69; PASQUALINl, Alexandre Correa da Câmara. henuenêutica filosófica estabelece a racionalidade de uma verdade 'qlie não pode ser
Hans Georg Gadamer. Texto oriundo de seminário ministrado no Programa de Pós- provada empiricamente ou por meio de um fundamento último (S1EIN. 2004, p. 48).
Interpretação Contratual 71
70 Felipe Kirchn~r
tempo e a ocorrência dos fatos 178 • No campo dos contratos isso é eviden- ticamente abandonando a tese da interpretação razoável 182 , com a conse-
te, uma vez que a conduta das partes posterior à celebração do pacto in- quente defesa da existência de uma interpretação correta (mesmo que
flui decisiva e diretamente no próprio conteúdo da relação contratual embasada em pressupostos argumentativos). O fortalecimento desta cor-
(v.g.: venire contrafactum proprium). A realidade (e a verdade nela con- rente privilegia o tratamento jurisdicional isonômico, principalmente em
tida) é amplamente permeável ao diálogo com o tempo e a sua história 179 • face da função uniformizadora dos tribunais superiores 183 •
O que verdadeiramente interessa à interpretação é a sua preten-
são de correição em relação à detenninada situação hennenêutica, a partir 182 A tese era suportada pelas Súmulas 343 e 400 do STF e Súmula 137 do extinto TFR.
da qual se pode avaliar um detenninado entendimento como sendo falso Talvez o principal motivo para a mitigação das disposições sumulares seja o surgí-
ou verdadeiro (c01Teto ou incorreto em termos de uma terminologia me- mento de 11111 Tribunal Superior (STJ) com a função precípua de unifonnizar a juris-
todológica )180. Se não se pode falar em uma verdade enquanto conceito prudência (o que remete ao sistema institucional do Direito).
estanque e objetificado (fora da história), é possível falar na existência de 183 Nesse sentido, cabe mencionar a decisão paradigmática do REsp 1.026.234, de relato-
ria do ministro Teori Albino Zavascki. no qual se desautorizou a legítimidade da teo-
uma verdade exegética quando o objeto é analisado sob a mesma situação ria da interpretação razoável no âmbito da ação rescisória. discutindo a validade das
··..
hermenêutica. Súmulas 343 e 400 do STF. Com vista ao plano argumentativo e da autoridade insti-
Este é um ponto fundamental: o resultado da interpretação po- t11cional do sistema jurídico, o STJ assim ponderou na Ementa da decisão menciona-
de se mostrar incorreto, não se podendo aceitar a correição de uma du- da: "Afesmo que sejam ra=oáveis as inte1pxetações divergentes atribuídas por outros
tribunais, cumpre ao STJ intervir no sentido de dirimir a divergência, f a=endo preva-
pla verdade sob a mesma situação hermenêutica, a qual não pode ser lecer a sua própria inte,pretação. Admitir inte1pretação ra=oável, mas contrária à
considerada apenas como sendo um paradigma individual, sob pena de sua própria, significaria, por parte do Tribunal, renzíncia à condição de inté,prete
falecer a pretensão de universalidade da atividade hermenêutica. O pró- institucional da lei federal e de guardião da sua obsen1ância. (. ..) A existência de in-
prio Gadamer afim1a expressamente que "a dupla possibilidade de com- te1pretações divergentes da norma federal, antes de inibir a intervenção do STJ (co-
mo recomenda a súmula), deve, na verdade, ser o móvel propulsor para o exercício
preensão é sempre um conjlito" 181 • do seu papel de uniformi=ação." Em seu voto, o ministro Teori Albino Zavascki assim
É por estas razões (que se sornam a argumentos de ordem insti- se posiciona: "Nas duas súmulas há a consagração da doutrina, fortemente assentada
tucional e de política judiciária) que os tribunais superiores vêm sistema- no STF antes da Constituição de 1988, da tolerância da inte,pretação ra=oável da
norma: deve-se aceitar uma inte,pretação da norma que, embora não seja a mais
correta, seja, todm 1ia, ra=oável. (. ..) em nome da segurança jurídica, toleram-se in-
178 Em interessante passagem, Gadamer refere que "'embora deva ser compreendido cada te,pretações equivocadas, desde que não se trate de equívoco aberrante. (.) O STF
ve= diferente, um texto continua sendo o mesmo texto que se apresenta cada ve= dife- vem opondo sistemática resistência, especialmente nos últimos tempos, à doutrina da
rente", sendo que "com isso não se relativi=a em nada a pretensão de verdade de i11te1pretação ra=oável, ainda que não a melhor. (...) tendo em conta afimção institu-
qualquer inte1pretação", especialmente devido ao seu caráter linguístico (GADA- cional do STJ a partir da Constituição de 1988, pode-se di:::er: contraria-se a lei fede-
MER, 2005, p. 408 e 515; GADAMER, 2004, p. 479; ALMEIDA; FLICHINGER; ral não apenas negando sua vigência, mas também dando a ela inte1pretação menos
RHODEN, 2000, p. 175). exata, assim considerada a que for contrária a orientação do STJ. Se não for admiti-
17 g Como diz Gadamer, "uma reflexão sobre o que é a verdade nas ciências do espírito do que o STJ exerça o controle da inte1pretação que as instâncias ordinárias deram à
não pode querer, pela reflexão, subtrair-se à tradição, cuja vinculabilidade desco- lei federal, afastando as inte1pretações diferentes da sua (embora ra=oáveis), deixará
briu" (GADAMER, 2005, p. 32), referindo também que "a historicidade não repre- o Superior Tribunal de Justiça de ser o i11té1prete institucional da lei e, consequente-
senta mais uma delimitação restritiva da ra=ão e de seu postulado de verdade, sendo, mente, o guardião da sua observância. Ao tolerar inte1pretação ra=oável, mas não
antes, uma condição positiva para o conhecimento da verdade" (GADAMER, 2004, exata (ou seja, ao admitir que, paralelamente à i11te1pretação que considera a ade-
p. 125-126), razão pela qual a exigência de um critério hermenêutico de verdade abso- quada, persista outra inte1pretação, ·ainda que ra=oável, da norma), o STJ acaba
luta se mostra como um ídolo metafisico abstrato. operando em sentido oposto ao de suas atribuições. Certamente não estará =elando
180 Aqui se está a propor uma comparação entre resultados interpretativos sob a mesma por dar à norma federal a necessária i11te1pretação uniforme e nem estará atuando
situação hermenêutica, algo realizado do ponto de vista teórico. Sob o filtro da situa- por sua aplicação uniforme para todos os destinatário,s. (. ..) Assim, independentemen-
ção hermenêutica está correto Gadamer quando afim1a que "quando se logra compreen- te de eventuais divergências inte1pretativas no âmbito de outros órgãos judiciários,
der, compreende-se de 11111 modo diferente" (GADAMER, 2005, p. 392). No sentido deve ser considerada como ofensiva a literal disposição de lei federal, para efeito de
gadameriano do processo hennenêutico, realmente não há falar em um compreender rescisória, qualquer inte1pretação contrária à que 'lhe atribui o STJ, seu inté,prete
melhor, sequer sob o ponto de vista de que alguém possui um maior conhecin1ento institucional. (. ..) a doutrina da tolerância da inte1pretação ra=oável está na contra-
sobre detenninada coisa, pois esta sempre sofre a mediação da presença do intérprete. mão do movzinento evoluh·vo do direito brasileiro, que caminha nó-sentido de presti-
181 GADAMER, 2004. p. 416. giar cada ve= mais a força vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores. (...)
72 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 73
A aceitação da coneição de uma dupla significação hennenêuti- Como a história do efeito 188 é a experiência por que passa a
ca do contrato, analisado sob a mesma situação objetiva complexa e co- existência humana finita em seu diálogo com a tradição 189, a questão
mum intenção representada pela declaração negocial, seria urna verdadei- abordada neste tópico remete à historicidade do fenômeno hennenêutico,
ra contradição com a existência do contrato enquanto objeto de represen- a qual surge como princípio básico e questão pennanente da atividade
tação da autonomia bilateralizada das partes. hennenêutica 190, não se tratando de um propósito periférico que assume
As diferentes opiniões sobre o contrato somente podem ser ana-
188 Miguel Reale e José Maria Aguirre Oraa referem que a expressão alemã wirkungsges-
lisadas corno pretensões de verdade em relação ao pacto, que, como ato
chichliche Bewusstsein apresenta dificuldades, tendo sido traduzida de diferentes for-
de previsão, detém existência autônoma perante a vontade individual das mas (REALE, 1999, p. 239; ORAA, José Maria Aguirre. Pensar con Gadamer y Ha-
partes contratantes. Não é pela existência de dissonâncias com relação à bermas. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56. fase. 3-4. Braga: Faculdade de Filo-
determinada disposição contratual que se há de falar na possibilidade de sofia de Braga, jul./dez. 2000, p. 498). No presente estudo se utilizará a expressão his-
mais de urna verdade hennenêutica 184 • tória do efeito, confonne tradução sugerida pelo Professor Doutor Luis Afonso Heck
(HECK, 2007a).
Corno visto, a inexistência de experiências científicas imediatas 1s9 Refere Gadamer que "a história é o que nós fomos antigamente e o que somos agora.
deriva do fato de que o sujeito cognoscente não tem acesso direto aos É o aspecto vinculador de nosso destino" (GADAMER, 2004, p. 49). Todos os seres
objetos via significado, mas apenas via significado em um mundo linguís- humanos são produtos de uma cadeia ininterrupta pela qual o passado se dirige até a
tico, histórico e cultural 185 detenninado (toda reflexão subjetiva implica situação presente, não havendo como anular o que se encontra atrás do factualidade
uma reflexão histórica construída linguisticamente) 186 • Nesse sentido, as do homem, razão pela qual o compreender implica a realização de uma mediação en-
dimensões linguísticas, históricas e culturais são elementos de produção tre presente e passado (GADAMER, 2003, p. 96: GADAMER, 2003, p. 115-116). No
mesmo sentido, salienta Miguel Reale que "a 'nature=a histórica' do ato de conheci-
de sentido que atuam sobre deteiminados suportes fáticos e nonnativos 187, mento não se prende, como poderia parecer, apenas ao fato circunstancial de achar-
sendo relevante realizar uma breve análise destes vetores produtivos (e se o homem 110 mundo, co11dicio11ado pelo que o cerca, mas se vincula antes à histori-
produtores) do fenômeno hermenêutico. cidade mesma do ser humano, czifo perceber já é 11111 atuar, czifo saber já é 11111 proje-
tar-se para algo" (REALE, 1999, p. 53 ). O filósofo segue afimrnndo que "onde não há
Por todas essas recões, justifica-se plenamente a mudança de orientação do STJ em re- finitude não há história" e, inencionando Ortega y Gasset, refere que "nenhum homem
lação à súmula 343/STF, para o efeito de considerar como ofe11Siva a literal disposição de começa a ser homem; nenhum homem conclui a humanidade, porquanto todo homem
lei federal, para efeito de rescisória, qualquer inte1pretação contrária à que lhe ah"ibui o continua o humano que já existia" (REALE, 1999, p. 249 e 251). No âmbito do aspec-
STJ, seu inté,prete institucionaI". Amparando a tese, o STF declarou, no AI-AgR 145.680, to subjetivo da atividade hermenêutica, a história do efeito deve levar o pesquisador a
de relatoria do ministro Celso de Mello, que ··em matéria constitucional não há que se co- colocar em primeiro plano de seu labor interpretativo não apenas a historicidade do
gitar de inte1pretação recoável. A exegese de preceito i11Scrito na Co11Stituição da Repú- objeto analisado, mas também a realização de sua própria historicidade (IBBETT.
blica, muito mais do que simplesmente recoável, há de ser juridicamente con·eta". No John. Gadamer: application and history of ideas. History of Political Thought,
mesmo sentido, o ministro Moreira Alves, no voto do RE 81.429, assim declinou: "Con- v. Vill. n. 3, Winter. 1987, p. 549). Como refere Gadamer, ··somente 11111 ser-aí que
traria-se [preceito normativo} não apenas negando vigência, mas também dando inte,pre- obedece às h·adições, que obedece as suas próprias tradições, isto é, aquelas que lhe
tação menos exata. Em se tratando de dispositivo constitucional, é cabível recurso ex- são próprias, sabe e pode tomar decisões que fa=em história'" (GADAMER, 2007b,
traordinário para examinar, se coffeta, ou não, a inte1pretação que as instâncias ordiná- p. 143).
rias lhe deram. Não fora assim, e delmria de ser o Supremo Tribunal Federal o sumo in- IQO Se a historicidade da compreensão implica a reabilitação da autmidade na atividade
té,prete da Constituição e, consequentemente, o guardião de sua observância". exegética, inexiste uma vertente arbitrária nesta dimensão. Parte da doutrina entende
184
Como refere Erich Danz, não cabe ao intérprete levar em conta as intenções não que a hermenêutica filosófica absolutiza o peso da tradição, defendendo um elemento
manifestadas ou acordos fictícios de vontades (ex.: vontade geral do comércio), mas de continuidade que desconsidera nipturas históricas (HABERMAS, Jurgen. Sobre
antes lhe compete mostrar o estado real das coisas, e não determinar como conteúdo "Verdade e Método'' de Gadamer·. ln: HABERMAS, Jurgen. Dialética e Hermenêu-
da declaração negocial o querido subjetivamente por qualquer dos litigantes (DANZ, tica. Porto Alegre: LP&M, 1987, p. 16; COSTA LIMA. Luiz. Hen11enêutica e Abor-
1955, p. 97-98). dagem Literária. ln: COSTA LIMA, Luiz (Org.). Teoria da Literatura em suas Fon-
185 A questão cultural é dimensionada por Miguel Reale e, no âmbito da interpretação tes. v. L Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002). Gadamer reconhece que a de-
contratual. por Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria (VIOLA, ZACCARIA, 1999, fesa que fommla desta dimensão acaba favorecendo a errônea opinião de que teria as-
p. 439 e 442). sumido uma assunção acrítica da autoridade, como se postulasse um conservadorismo
186 STEIN, 2004, p. 18-21, 65-66, 68-69, 74 e 76; MORATALLA, 2003, p. 35; ARAÚ- tradicionalista (GADAMER, 2004, p. 52). No entanto, embora o resgate da tradição
JO, 2005, p. 90 e 101. pressuponha a existência de elos maleáveis de continuidade, a hemíehêutica filosófica
187
GADAMER. 1993a, p. 144-145. não sustenta uma necessária continuidade de sentido, sendo a apropriação e a trans-
74 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 75
relevância apenas quando o henneneuta pretende resolver uma questão razão pela qual o ato interpretativo deve contemplar uma dimensão histó-
detenninada, como ocorre no uso metodológico da chamada interpretação rica que quantifique a sobrevivência das fonnas temporais passadas e a
histórica 191 . proje~ão d~s!as no futur?: em ut?a atualização prospectiva 192 ,_ à que tam-
A temporalidade do Direito não é sucessiva e linear, pois com- bém e ad1mtido por Eirul10 Bett1 193 . Nesse contexto, cabe salientar que o
porta tanto a interpenetração como a simultaneidade de formas e fases, contrato apresenta certos paradoxos com relação ao tempo 194, pois procu-
ra segurança com relação ao futuro, mas só tem sentido com as tratativas
passadas, ou seja, é moldado pelo passado e feito para o futuro, mas só
formação (descontinuidade) acepções potenciais do continuo. A teoria gadameriana tem sentido no presente que, mesmo sendo o tempo próprio, é havido
confere inteligibilidade ao descontínuo, admitindo a possibilidade de que o intérprete
rechace a tradição ou a assuma conscientemente na dissolução da tensão existente en- muitas vezes como se não existisse (o presente é uma consequência do
tre o objeto e a situação hem1enêutica presente. Em verdade, é apenas a própria cons- passado que visa o futuro) 195 .
ciência crítica que não pode desconhecer sua historicidade constitutiva (ORAA, 2000,
p. 494-495, 497-499 e 502; ARAÚJO, 2005, p. 52 e 82-83; SILVA, 2000b, p. 521-
·· ... 522). Ademais, entre tradição e razão não há nenhuma oposição incondicional (GA- 192 REALE. 1968. p. 224 e 232. Defende Gadamer que "o texto forma parte do todo da
DAMER, 2004, p. 48; MOLLER, 2006, p. 90; SILVA, Maria Luísa Portocarrero. Ra- tradição no qual cada época tem 11111 illferesse objetivo e onde também ela procura
zão e Memória em H. G. Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, compreender a si mesma", sendo que o verdadeiro sentido de um texto "'sempre é de-
Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, jul./dez. 2000a, p. 342). Em face destas afir- terminado também pela situação históricq do inté1prete e consequentemente por todo
mações, cabe delinear que a historicidade possui uma dimensão narrativa e crítica, curso objetivo da história" (GADAMER, 2005, p. 392). Como salienta Ascarelli. a in-
inexistindo história autárquica (sem narração) (MARTINS-COSTA, 2008), pois sendo terpretação jurídica se debruça sempre sobre um objeto (texto ou compo1tan1ento) que
o intérprete sempre um narrador, seleciona e refuta elementos insitos na condição pas- a rigor é passado e histórico, mas que por força da atividade hennenêutica se toma um
sada da qual ele se distingue, muito embora aquilo que foi "esquecido" invariavel- presente projetado ao futuro (ASCARELLL 1959, p. 140). Confonne sustenta Hesse.
mente apareça no discurso quando o sujeito cognoscente leva a sério a força vinculan- "o inté1prete não pode compreender o conteúdo da norma de 11111 ponto situado fora
te do objeto interpretado e a sua responsabilidade dentro do incessante torvelinho do da existência histórica, por assi111 di=er, arq11i111édico, senão somente da situação his-
círculo hermenêutico. Nesse sentido: DÉ CERTEAU, Michel. A Escrita da História. tórica concreta, na qual ele se encontra'' (HESSE. 1998, p. 61). No mesmo sentido:
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 11 e 21. Dessa avaliação hermenêutica GRAU, 2003. p. 38.
surge a inte1pretação histórico-evolutiva que, dizendo com a sintonia entre a ideia 193
Emilio Betti também entende que a exegese nom1ativa não pode prescindir do ele-
originária do objeto e a atualidade presente, não se trata de um método ou critério par- mento histórico, pois o encontro do intérprete com o texto nunca é um encontro dire-
ticular, mas de um caráter lógico da interpretação jurídica (BETTI, 2007, p. 42).
191
to, sendo realizado por meio da tradição (jurisprudência), pois a letra do instrumento
ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 61. A pertença à tradição não se trata normativo deve ser reanimada no contato com a vida social na luz da tradição. A teo-
de uma qualidade restritiva, mas de uma das tantas categorias que tomam possível o
ria bettiana concede enorme relevo à chamada inte1pretação histórico-evolutiva, pois
conhecimento (GADAMER, 2005, p. 430-432 e 471) e o qualificam (as concepções
do momento histórico do sujeito são diversas e acrescentam ao do objeto), sendo exa- na dimensão nommtiva desta vertente teórica o intérprete deve dar um passo além da
tamente essa a dímensão que diferencia a disciplina hennenêutica de uma mera técni- reconstrução do significado do objeto, sintonizando a ideia originária com a atualida-
ca metodológica (GADAMER, 2004, p. 308 e 317). Enquanto a tradição iluminista de presente (movimento do objeto em direção ao sujeito). o que diz com a evolução
visa libertar o sujeito das dependências históricas (autoridade da tradição) por meio da do Direito tendo em vista as transfommções socioculturais (manutenção da eficácia
utilização do método, a hermenêutica filosófica toma produtivo o enredamento histó- normativa do preceito) (BETTL 2007, p. LVIII-LIX, LXIII-LXVII. CII-CV, 5: PES-
rico do homem no mundo, desvelando o paradoxo produtivo da história do efeito: SOA, 2002, p. 36-37 e 99: PESSOA. 2001. p. 60-63: MEIRELES, 2004, p. 131. No
quanto maior a distância da época em que o objeto foi criado, maior a proxÍn1Ídade mesmo sentido: GRAU, 2003. p. 55.
que o intérprete terá dele e maior será a sua compreensão, pois aumentam os dados de l<J.I Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria ressaltam a importância da dimensão temporal
consciência acerca das condições de descarte de interpretações errôneas (GADAMER, no âmbito da hermenêutica filosófica (VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 439).
195
2005, ,P· 393 e 395; GADAMER, 2004, p. 79-80; GADAMER, 2003, p. 41 e 110-111; No Direito o resguardo da tradição está intimamente relacionado com a questão da
ARAUJO, 2005, p. 89). A distância temporal não é um abismo devorador que deve ser justiça e da garantia da segurança jurídica na interpretação, o que implica a quantifi-
transposto porque separa e distância, mas, sin1, um fundan1ento sustentador do aconte- cação hem1enêutica das regras, princípios e critério& .de decisões que se mantêm 110
cer, razão pela qual a tensão entre presente e passado não deve ser dissimulada ou supe- transcurso da atividade jurídica (especialmente jurisprudencial) (CAMARGO, Marga-
rada, mas desenvolvida conscientemente, destacando e fundindo o horizonte que se dis- rida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo
tingue do presente (GADAMER, 2005, p. 405). Por fim, cabe salientar que Miguel Rea- do Direito. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2001. p. 60). Refere Gadamer que "escutar a
le concorda com as premissas da teoria gadameriana (REALE, 1999, p. 31 e 145), mas tradição e situar-se nela é o caminho para a verdade que se deve encontrar nas ciên-
entende que Gadamer teria reduzido o processo cultural a um processo hem1enêutico, o cias do espírito" (GADAMER, 2004, p. 53 e 485), muito emborá õ pertencimento a
que conduziria a uma visão parcial da história (REALE. 1999, p. 240 e 266). uma tradição independe da consciência acerca deste fato.
76 Felipe Kirchper Interpretação Contratual 77
Abordada a dimensão histórica, cabe mencionar que todos os teoria bettiana)2°0, mostrando-se decisiva na pretensão de universalidade
fenômenos objetos da hennenêutica apresentam e representam um ele- da compreensão201
mento de linguagem 196, que confonna não apenas o processo do entendi-
mento entre os seres humanos, mas também a própria atividade voltada à um caráter mediador, eis_que o sujeito tem acesso ao objeto apenas pela via do signi-
compreensão. É a dimensão linguística 197 que determina tanto o objeto ficado estruturado pela lmguagem (elemento de produção de sentido) (GADAMER,
hermenêutico quanto a ação hennenêutica, não existindo nenhum signifi- 2005, p. 523). Nesses termos, a linguagem não pode ser tratada de forma instnmiental,
cado fora da experiência de mundo que se dá na linguagem ( a coisa só se na condição de objeto, como sendo um sistema de signos estudado pela linguística ou
o campo de problemas discutido pela filosofia da linguagem. Primeiro, porque, em
torna algo para o intérprete dentro da linguagem) 198 • Na hermenêutica termos hermenêuticos, ela não é um objeto redutível à dissecação cientificista, qual-
filosófica a linguagem assume uma natureza ontológica, transcedendo .. quer que seja a conjuntura natural ou científica, dizendo mais com a realização do ser-aí
uma influência meramente instrumental 199 (apreensão concedida pela· humano. Assim, aqui não se pretende falar da linguagem dentro do mundo, mas da
linguagem enquanto constitutiva do tmmdo hennenêutico sobre o qual se fala. Como
sustenta Gadamer, todo pensar sobre a linguagem já foi sempre alcançado pela lin-
196
GADAMER, 2004, p. 216 e 566-567. ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, guagem, pois só se pode pensar dentro de uma linguagem. Contudo, deve ser ressalta-
p. 211. Gadamer entende que '"o ser que pode ser compree11dido é linguagem" (GA- do que este entendin1ento - de que inexiste possibilidade de realizar-se uma reflexão
DAMER, 2005, p. 612), ressaltando, air!da, que "a linguagem ocupa a estrutura in- hermenêutica sobre a linguagem por não haver distanciamento (o sujeito só pode pen-
terna da compree11são, ocupando, porta11to, o centro da filosofia" (GADAMER, sar dentro de uma linguagem)- é objeto.de crítica fundada na inexistência de distin-
2005, p. 406). Estas conclusões são representativas da chamada virada (viragem) lin- ção entre os níveis possíveis de linguagem e na falta de uma expressa concepção de
guística, possibilitadora de um pensar além da dicotomia sujeito-objeto. Sobre a pas- linguagem na teoria gadameriana (ALMEIDA: FLICHlNGER; RHODEN, 2000,
sagem mencionada, remete-se o leitor para a interessante obra de Jean Grondin: The p. 178-179 e 202). Segundo, porque o tema transcende as estreitas margens deste tra-
Philosophy ofGadamer. Montreal: McGill-Queen's University Press, 2003. balho, razão pela qual aqui a discussão se linrita ao destaque da estrutura da senriótica,
197
Embora a linguagem não se reduza ao diálogo, no iter hermenêutico a dimensão que distingue três planos de investigação: (1) a análise sintática observa a relação
linguística possui uma estrutura dialógica, na dinâmica da pergunta e resposta. Falar formal do signo linguístico com os demais que integram o sistema onde se encontra
(oral ou textualmente) significa sempre falar a alguém, pois a palavra sempre vai ao situado (desmembrando os elementos componentes de uma frase e examinando sua
encontro do outro, razão pela qual a linguagem também indica um pertencimento do estrutura), enfatizando as regras de sintaxe representadas, sobretudo. pela gramática
intérprete, já que ele não pode se afastar completamente das convenções da lingua- (correta justaposição de vocábulos na constmção sintática): (2) a análise semântica se
gem. A lingua não depende de quem usa, jamais podendo ser reduzida a uma opinião c?ntra no vínculo do sign~ com a realidade que exprime, procurando destacar seu sig-
subjetiva e individual, pois são todos em geral ( e ninguém em particular) que falam de nificado correto sob o pnsma da conotação e denotação: (3) a análise prag111ática se
cada vez (GADAMER, 2004, p. 171,179,207,231,243 e 507; GADAMER, 2007a, ocupa da relação entre o signo e as pessoas que dele se utilizam ( emissor e destinatá-
p. 41; GADAMER, 2007c, p. 49-50, 80 e 85-86; GADAMER, 1998a, p. 203-204). rio), enfocando os efeitos interacionais do uso da linguagem em uma deternrinada
198
GADAMER, 2004, p. 234-235 e 298-299; GADAMER, Hans-Georg. La Dialéctica comunidade linguística (relações sociais que se instauram por meio do uso concreto
de Hegel: cinco ensayos hermenéuticos. Madrid: Ediciones Cátedra, 1994. p. 9. No da linguagem) (FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 144).
200
universo da hem1enêutica filosófica a linguagem assume diversos uiveis de influência: Enrilio Betti adnrite a existência de uma dimensão linguística quando afinna que a
o objeto hemienêutico é detemrinado pela linguagem e constituído linguisticamente; o tarefa do intérprete de reconstmção do significado presente nas fom1as representativas
processo de compreensão é detenninado pela linguagem; a linguagem fonna o hori- é mediada pela linguagem. Porém, embora sustente que o entendimento se realiza por
zonte de uma ontologia hennenêutica (STEIN, 2004, p. 79 e 81). A linguagem é o lo- meio da linguagem, sua análise se linrita ao caráter i:nstnunental deste aspecto do
cal em que o sujeito e o mundo (realidade) se encontram em sua unidade originária, campo hermenêutico, confonne posto no segundo capítulo da obra Teoria Generale
sendo que "aji1são de hori=o11tes que se dá 11a compree11são é o ge11uíno desempe11ho della lnte,preta=ione. A visão bettiana enfoca exatamente aquilo que foi objeto de cri-
e produção da li11guage111" (GADAMER, 2005, p. 492). tica por Gadamer: a visão instrun1ental de que esta é ll111 sistema de signos designati-
199
A linguagem não é um instrumento da compreensão (simples instrumento de conexão vos ~e- um mund~ ~~elinguisticamen_te conhecido. O filósofo italiano refere que as
entre sujeito-objeto) ou um dos dotes atribuídos ao homem que está no mundo (pois o cond1çoes de poss1b1hdade do entendunento demandam duas condições. A primeira é
homem não domina completamente o seu uso a ponto de desfazer-se da linguagem uma figura, forma ou _est:Uhlfa (Gestalt), que diz com as regras sintáticas de agrupa-
após sua utilização), mas, sim, o elemento condicionante e fundamental para que o ser mento dos tennos (o s1gn1ficado dependente da sintática). A segunda é a intencionali-
humano tenha un1 mtmdo, pois é nela que este ganha representação e significado dade, característica da expressão (conjunto de signos sihmdos em um contexto discur-
(GADAMER, 2005, p. 571 e 612; LOPES, Ana Maria D'Ávila. A Hermenêutica Jurí- si_vo ), e não do signo (palavra isolada abstratamente). Esta condição indica que o sig-
dica de Gadamer. Revista de Informação Legislativa, n. 145, jan./mar., 2000, nificad~ não se limi_ta à relação de sinalização dos signos com a coisa representada, se
p. 108). Assim, a linguagem não se apresenta como um objeto próprio de análise, mas e~pandmdo por me10 de uma comunidade de fala (speech co1111111111ity) que diz com 0
abrange tudo o que possa chegar a ser objeto de interpretação (GADAMER, 2005, ~1gno e com um contexto (universo de discurso) referente à coisa significada. É o con-
p. 523; GADAMER, 2004, p. 176; STEIN, 2004, p. 12 e 15), muito embora possua Junto desses componentes secundários do significado linguístico (c01mmidade linguís-
78 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 79
Contudo, na prática jurídica deve-se aceitar o caráter essencial- Pretendendo regular os existenciais da vida humana (v.g.: nas-
mente narrativo da atividade hermenêutica, transcendendo o mero reco- cimento, morte, relações afetivas, etc.), o Direito se apropria da riqueza
nhecimento da sua dimensão linguística. O universo do Direito é estrutu- dos fatos sociais (por serem constituídos e moldados pelos sonhos, espe-
rado narrativamente pelo intérprete por intermédio de determinados pro- ranças, dramas, tragédias, culpas e esforços feitos e desfeitos na experiên-
cessos de produção discursiva que permitem (e limitam) a seleção e a cia sociocultural dos seres humanos), procurando (re)construir a realidade
refutação de elementos ínsitos na condição objetiva interpretada. O ope- por intermédio de uma linguagem ( discurso jurídico) pobre por ser me-
rador jurídico constitui a realidade normativa a pattir de suas ficções ramente normativa e dedutivista, limitando as possibilidades da condição
privilegiando e descartando determinados dados, o que acaba "hipoteti~ social confonne certos padrões (descompasso entre o campo jurídico e o
zando" a realidade. Ignora-se, na maioria das vezes, que as nan-ações, social), o que alija da atividade hennenêutica detenninadas circunstâncias
mitos e metáforas são o substrato do Direito e do contrato 2º2 . fáticas que são imprescindíveis à correta análise da questão 203 , o que se
procura combater neste estudo com a defesa da imprescindibilidade do
raciocinar por concreção.
tica e universo de discurso) que representa o caráter intencional da linguagem e garan-
te sua objetividade. Essa construção teórica apresenta grande semelhança com o que
Na atividade de interpretação dos contratos, o intérprete não de-
seja objeto de interpretação para Betti (formas representativas), além de possuir, in- ve se ater ao sentido literal da expressão, não tomando as palavras pelo
trinsecamente, uma noção de reconstrução, o que atende a natureza da sua teoria sentido da linguagem comum, mas, ~im, em relação a todas as circuns-
(BETI1, 2007, p. XXXIX e XCVI. BETII, 1990a, p. 158 e 207-209; PESSOA, 2002, tâncias do caso. As palavras nunca têm um sentido fixo, pois seu signifi-
p. 59-60, 75, 77-82, 84-87: PESSOA, 2001, p. 66-67). Analisando a estrutura interna cado depende sempre das circunstâncias fáticas, se alterando quando
da construção dogmática linguística supramencionada, o conceito de fom1as represen-
tativas criado por Betti passa a ser significante da própria linguagem presente na ati- estas se modificam204 , o que imp01ta significativamente para que se al-
vidade hermenêutica (MEIRELES, 2004, p. 125 e 137). cance o juízo de que o raciocinar por concreção se faz absolutamente
201
Embora também esteja voltada ao plano externo da estruturação da compreensão, a preten- necessário no âmbito da atividade hennenêutica contratual.
são de universalidade da atividade hermenêutica se concretiza por meio da linguagem, pois Fixado o caráter criativo e sempre incompleto da atividade
é ela que possibilita a articulação do pensamento em toda experiência interhumana, urna
hermenêutica, cabe adenfrar na análise do aspecto crítico do procedimen-
vez que compartilhar a linguagem significa participar de uma tradição que transmite uma
determinada visão e pré-compreensão de mundo (GADAMER, 2004, p. 268). to exegético.
202
DWORKIN, 2000, p. 228; OST, François. Contar a Lei: as fontes do imaginário
jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 58; MARTINS-COSTA, 2008; ZACCA-
RIA, 1996, p. 80-85, 164 e 220-222. Nesse sentido, não parece existir uma diferença 1.5 O Caráter Crítico da Atividade Hermenêutica
ontológica entre a narração contida na sentença judicial e aquela oriunda de uma de-
tenninada obra literária. Tanto o operador jurídico quanto o escritor acabam fonnu- Como visto nos tópicos precedentes, a interpretação depende de
lando uma narrativa a partir de concepções singulares acerca dos mesmos existenciais um ato de decisão que constitui e constrói a significação de um objeto.
da vida humana (v.g.: nascimento, morte, relações afetivas etc.), procurando Devido à inexorabilidade desta patticipação do sujeito na atividade inter-
(re)construir a realidade por intennédio de uma detemlinada linguagem (técnica e es-
tética, respectivamente). Nesse sentido, o "era uma ve=" literário não se encontra tão
203
longe do "trata-se de ação... " com que comumente iniciam os relatórios das decisões Nesse sentido a lição de Ben-Hur Rava: "Na verdade os co11jlitos que se produ=em
judiciais. Contudo, é evidente que a intersecção entre Direito e Literatura não é consti- estão na cena social, porta11to fora do espectro linguístico, mas que são tra=idos para
ttúda apenas por aproximações, mas também por importantes idiossincrasias, inclusi- o interior da ciência e da dogmática jurídica, como forma de relativi=ar este mesmo
ve em tennos de expectativas. Ao Direito, situado no plano deontológico, é requerido conflito, dissimulando a tensão e amalgamando os comportamentos através de um
os linntes da ordem, da segurança e da medida, enquanto com a literatura, que reside 'discurso jurídico oficial', que 'aparentemente ' não apresenta co11tradições e, muito
na dimensão axiológica, se procura a expansão lúdica da beleza, do sonho e da trans- menos,fissuras. (. ..) A linguagem e, mais especificamente, a linguagem jurídica está a
gressão. Ademais, embora trabalhem sobre os mesmos elementos da vida humana, a serviço do status quo do Estado e do poder, que 11sm11 o direito como uma espécie de
literatura expande o conflito de tais existenciais, enquanto o Direito se apropria dos adaptador social da realidade às suas fi11alidades ideologi=adas que se apresentam
mesmos de forma restritiva e superficial, dissimulando a tensão e amalgamando com- escondidas ou reprimidas" (RAVA, Ben-Hur. A Crise do Direito e do Estado como Cdse
Hem1enêutica. Revista da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul
portamentos por meio de um "discurso jurídico" que não deixa de se constituir em um
(AJURIS), n. 101, mar. 2006. p. 31-32).
adaptador social da realidade a detemlinadas finalidades que estão a serviço de pro- 2
0-i LARENZ, 1989, p. 236-239, 375-376: DANZ. 1955, p. 52-53; ROPPO, Enzo. O
postas ideológicas que, na maioria das vezes, estão reprimidas no "discurso jurídico
Contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 169-170.
oficial".
80 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 81
pretativa, é c01Teta a síntese alcançada por José Maria Aguirre Oraa: "se Embora o sucesso da interpretação dependa da apropriação sele-
não há crítica sem hermenêutica, tampouco há hermenêutica sem críti- tiva dos próprios preconceitos, a hennenêutica filosófica não pressupõe
ca"2º5. Ainda quando não possa ser total, esta instância é sempre possível nenhuma neutralidade quanto à coisa ou um anulamento de si li1esmo. A
e necessária206 • compreensão sempre vem precedida de uma autocrítica, inclusive com
A presença da reflexão crítica emancipatória no pensamento relação às verdades que o intérprete entenda possuir2 16 •
gadameriano se evidencia quando o filósofo observa que "o pensar reme- Sequer a reabilitação do preconceito e da autoridade promovida
te para além de si mesmo"2º7, e que "pertence à possibilidade originária por Gadamer pode ser entendida como uma instância acritica217, uma vez
da experiência humana colocar tão radicalmente em dúvida a verda- que o próprio filósofo defende que "nem a autoridade do magistério pa-
de"2º8, sendo "justamente aqui que se encontra a fimção da teoria her- pal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade herme-
menêutica, a saber, inaugurar uma disposição geral capaz de bloquear a nêutica, czga tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda e
disposição especial de hábitos e preconceitos arraigados"2º9• Desta feita, qualquer imposição"218 .
a instância critica não trata da criação de oposições, mas sim da busca A discussão acerca da dimensão critica da atividade hermenêu-
incessante pelo descobrimento da verdade210• Como a interpretação não é tica encampa a análise da pretensão caitesiana de neutralidade do sujeito
uma dominação do mundo objetivo, a compreensão não diz com o estar na interpretação jurídica, inclusive no que respeita ao plano político. No
de acordo com o que ou quem se compreende, mas com o se abrir para a plano do Direito não há como compreender sem se comprometer critica-
alteridade da coisa, pensar e ponderar o que o outro pensa211 • mente com a prática jurídica interpretada. Como adverte Eros Grau, "a
Nesses termos, há produção de reflexão critica na própria fonna neutralidade política do inté1prete só existe nos livros. Na práxis do di-
dialógica da compreensão212 , a qual pressupõe um processo crítico de reito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurfdicas,
acordo, pois implica reflexão e julgamento daquilo que está sendo posto porque jurídicas, são políticas"219 .
em diálogo 213 • Como refere Miguel Reale, "o ato de conhecer é, em si A partir desta concepção, o indigitado autor adota as lições de
mesmo, também um ato de querer" 214 • O entendimento sobre o objeto não Wróblewski para desvelar duas concepções ideológicas da interpretação
implica que o sujeito cognoscente possua opinião idêntica sobre a questão jurídica contemporânea. A ideologia estática, majoritariainente aceita e
inerente à significação, até porque onde há concordância não se precisa centrada em valores como certeza, estabilidade e previsibilidade, exige
mais de nenhum entendimento. Está sempre subentendido na atividade uma função meramente declaratória da interpretação (preceitos nonnati-
hennenêutica que o sujeito compreende o significado do objeto sem ne- vos com conteúdo imutável à atividade do intérprete), limitando o contex-
cessariamente comprometer suas opiniões pessoais215 • to funcional analisado, na prática, apenas à conjuntura histórica do autor
210
apenas na sua acepção estrita de instrumento técnico-jurídico, mas sim como símbolo
BIAGIONI, 1983, p. 58. de uma detemtlnada ordem social -e econôntlca, o que alcança uma dimensão ideoló-
211
ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 23. gica deste instituto jurídico (ROPPO, 1988. p. 28-29). É evidente que a concepção
212
ROHDEN, Luiz. "Ser que pode ser compreendido é linguagem": a ontologia herme- hermenêutica acerca do contrato acompanhou sua exP,loração histórica ideologizada,
nêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, operando um parcial ocultamento ou disfarce da realidade (no caso, do aspecto criati-
Braga: Faculdade de Filosofia de Braga,jul./dez. 2000, p. 556. vo da interpretação), a fim de tutelar deterntlnados interesses de uma classe política e
213
GADAMER, 2004, p. 296-297; STEIN, 2004, p. 82-83, 110 e 113; ORAA, 2000, econontlcamente dontlnante. Para uma maior digressão acerca da influência da ideo-
p. 494-495. logia na conformação do instituto do contrato, inclusive no plano dos aspectos prínci-
214 piológicos que lhe dão suporte, cabe remeter o leitor para a seguinte.passagem da obra
REALE, 1999, p. 70.
215
GADAMER, 2004. p. 25: GADAMER. 2007b. p. 99-122; GADAMER, 2003, p. 103. acima mencionada: ROPPO, 1988. p. 28-40.
82 Felipe Kirchner h1terpretação Contratual 83
do texto normativo. Já a ideologia dinâmica, onde se pode inserir a efer- Como salienta Larenz, a justiça da resolução do caso é uma meta desejá-
vescência da hennenêutica filosófica, adota como contexto funcional as vel e, embora não seja um critério próprio de interpretação, encampa o
relações sociais (históricas), sistêmicas e linguísticas, sendo permeável à universo hermenêutico, pois é da aspiração de uma solução equitativa que
atividade criadora do intérprete e à adaptação do Direito às necessidades parte o impulso para repensar a interpretação de um determinado preceito
presentes e futuras da vida social (quantificação das alterações de contex- normativo e achar novos pontos de vista. Nesses termos, a aspiração de
tos em que o preceito jurídico opera)22º. uma justiça do caso é um fator legítimo no processo hennenêutico quan-
Ademais, a dimensão critica da atividade hermenêutica abrange do não conduz à desconsideração da coisa interpretada, dos demais ele-
a responsabilidade moral e científica do intérprete, tanto no sentido de mentos condicionantes da atividade interpretativa e do resguardo da cer-
que o mesmo, ao buscar a compreensão, não pode se deixar levar por teza e segurança jurídica (que alcançam o plano hennenêutico), ou seja,
arbitrariedades, autoridades espúrias, preconceitos ilegítimos ou interes- quando a busca pela realização da justiça não induz o intérprete a mani-
ses escusos, quanto pelo comprometimento que o sujeito cognoscente pular a coisa de acordo com convicções arbitrárias 223 • Em termos da es-
deve possuir com a busca pela "verdade" hennenêutica. trutura interna da hennenêutica filosófica, poder-se-ia enquadrar a ques-
Dito isso, cabe destacar que a concretização do valor justiça na tão da justiça e da equidade como sendo um dos elementos propulsores
práxis jurídica221 encontra eco na dimensão crítica da hermenêutica222 • do eterno girar do círculo hennenêutico 224 •
220
GRAU, 2003, p. 118-120 e 125-126. Eros Grau exemplifica as mencionadas concep- Professor Dr. Humberto Bergmann Ávila. pode-se demonstrar que o sistema judicial.
ções ideológicas da interpretação jurídica por meio da análise de momentos históricos no âmbito privado. privilegia a realização da justiça particular. em detrimento do res-
da Suprema Corte Norte-Americana. Como exemplo marcante da ideologia estática guardo da segurança jurídica. No âmbito da pesquisa foram analisados os nove casos en-
da interpretação colaciona o caso Dred Scott vs Sa,iford, de 1857, onde a Suprema contrados na jurisprudência do STJ em que o principio da boa-fé objetiva foi utilizado
Corte decidiu que quando a Constituição estadunidense entrou em vigor, os negros como critério de decisão: REsp 554.622: REsp 591.917: REsp 436.853: REsp 464.426:
eram considerados pessoas de condição social inferior (nã -cidadãos), razão pela qual REsp 562.729; AGRG no AG 608.324: REsp 712.591; REsp 401.247: REsp 650.793.
o diploma legal não os teria incluído na referência que faz aos cidadãos. Já a ideologia Dos julgados examinados. em apenas dois (REsp 436.853 e AgRg no Ag 608.324) hou-
dinâmica é exemplificada por intermédio do caso McCulloch vs Ma1J 1land, de 1819, ve menção ao resguardo da segurança na aplicação da cláusula geral. que comumente foi
onde o juiz Marshall afirmou que a Constituição Norte-Americana "se destinm,a a du- utilizada para a realização da justiça particular. inclusive contrariando, em alguns julga-
rar muitos anos, devendo consequentemente adaptar-se as várias crises dos negócios dos. a jurisprudência até então dominante daquela corte. Ademais, oito das nove deci-
humanos" (GRAU, 2003, p. 122-123). Devendo-se enquadrar a hermenêutica filosófi- sões analisadas utilizaram um viés tópico, pois apenas o julgamento do AgRg no Ag
ca gadameriana no espectro da ideologia dinâmica, em face de suas peculiaridades 608.324 partiu do ordenamento na busca da construção da decisão judicial. Nesses ter-
próprias, a concepção de Emilio Betti, por sua vez. deve ser situada em um meio ter- mos. a análise dos julgados demonstrou que os operadores trabalharam com a concepção
mo entre as concepções ideológicas polarizadas. pendendo para a dinamicidade. Em- de que é exatamente a efetivação da justiça particular que garante o resguardo da segu-
bora pregue um ideal reprodutivo, não se fecha ao entorno social e defende a atualiza- rança juridica. encarando este preceito como elemento de legitimação do ordenamento,
ção constante dos conteúdos normativos interpretados. no sentido de que a realização de mna injustiça individual acarretaria uma deslegitima-
221 ção do sistema perante a sociedade. gerando pretensa insegurança social. Contudo, do
Embora a importância do tema mereça uma breve consideração, cabe salientar que a
discussão acerca da aplicação e concretização do valor justiça na prática jurídica ex- teor dos votos analisados não se vislumbrou uma efetiva preocupação com a explicitação
trapola o objeto deste estudo. de critérios que pemritiriam a sistematização dos critérios de decisão. fator importante
222
Interessante mencionar a dicotomia existente entre a busca por uma justiça concreta e para a maximizar o grau de visibilidade e calculabilidade dos julgados. Dito isso. cabe
individual com a preocupação mais do que legítima de resguardo da segurança juridi- referir. por fim. que a atividade de concretização do Direito deve quantificar questões de
ca, pois há situações em que ajustiça vem colada na segurança (sendo o resguardo da ~rdem sistemática (manutenção de uma ordem nonuativa coerente e unitária) e pragmá-
segurança a própria concretização do valor justiça), mas há diversos casos em que há tica (busca de soluções ideologicamente aceitáveis e socialmente justas), como bem salien-
uma verdadeira dissociação destes vetores jurídicos (ÁVILA, Humberto Bergu1ann. ta Francisco Amaral (AMARAL. 2006. p. 93).
223
Aulas ministradas na cadeira Segurança Jurídica e Direitos Fundamentais LARENZ. 1989, p. 420-421.
224
(DIRP145), proferida em 2007II, no PPGDir/UFRGS, 2007). A discussão envolvendo Como referiu o TJRS no julgamento da AC 70024048456, a "'inte,pretação [deve ser]
justiça e subjetividade Gustiça no caso concreto) é perene, pois diz com a própria con- condi=ente com os ideais de eqüidade, moderação e proporcionalidade, pois o Jui=
cretização do justo, para o que ainda não existe conforn1ação definitiva. No artigo A não é sen10 da let' (AC 70024048456, 14ª Câmara Cível. TJRS. Reiª. Desª. Isabel de
(In)Segurança Jurídica na Aplicação das Cláusulas Gerais Privatistas: uma análise Borba Lucas. j. em 12.06.2008). Cabe salientar. ainda. o seguinte precedente tratando
da boa-fé objetiva em perspectivajurisprudencial, apresentado na cadeira Segurança sobre questão contratual: AC 70022499909, 9ª Câmara Cível, TJRS:·Rel. Des. Odone
Juridica e Direitos Fundamentais. ministrada em 2007/I no PPGDIR/UFRGS pelo Sanguiné,j. em 14.05.2008. ·
84 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 85
Feitas estas considerações, cabe salientar que o próprio Gadamer pretação dos contratos. Dentro do universo de possibilidades que poderiam
aponta que a principal objeção a sua te01ia foi a de que o significado henne- ser exploradas, a pesquisa se dirige às particularidades da hennenêutica
nêutico adviria da vinculação que a linguagem tem com toda compreensão e contratual e do conteúdo dos negócios jurídicos, à relevância hennenêuti-
acordo, o que legitimaria um preconceito social em favor das relações vigen- ca da autonomia privada, ao papel das regras e métodos no procedimento
tes225. Essa censura, também fonnulada pela crítica da ideologia habermasia- interp:etativo (e_specia_lrnente. no viés gadameriano) e, por fim, à fixação
na226, perde força quando observado que Gadamer, embora não tenha indica- do objeto e da dunensao func10nal da hennenêutica contratual.
do com clareza os critérios de um proceder crítico227 , defende uma dimensão Porém, antes de entrar no exame dos temas supramencionados,
crítica do compreender em diversos níveis, corno visto neste tópico. cabe destacar que a inserção do estudo no âmbito das categorias presentes
Fazendo o contraponto entre paradigmas, mister se faz delinear no plano do Direito não contradiz a correição da matriz ontológica da
que o exercício crítico presente no âmbito da hermenêutica filosófica não hermenêutica filosófica visto na parte inicial deste estudo. O fenômeno
se coaduna com o ideal reprodutivo bettiano, ou seja, com a ideia de que hermenêutico é amplo e, em sua complexidade, depende da inclusão e
a compreensão deriva da descrição de uma significação a ser meramente assimilação das peculiaridades da área do conhecimento humano em que
captada do objeto228 • atua.
Por fim, em tennos estruturais, cabe salientar que a instância Gadamer construiu um paradigma de compreensão unitário, não
crítica do pensamento hermenêutico contempla juízos de significação e tendo se preocupado especificamente com as peculiaridades do projeto de
validade, no sentido de que, mesmo reflexivamente, o intérprete pode e dever-ser que constitui o universo normativo do Direito. Nesses tennos, o
deve possuir uma atitude de discernimento capaz de aceitar ou rechaçar exame das categorias presentes no Nomos Jurídico não visa desconstruir
as significações compreendidas. Assim, as proposições de sentido estão a matriz gadameriana que se centra no existencial do ser, mas inserir esta
submetidas a um processo crítico que pode legitimar sua validade ou dimensão em um mundo (jurídico) que é construído sob a promessa cons-
refutá-la229, tanto no que respeita ao processo de concreção fática e nor- tante do dever-ser. Dito de outra forma, ao se trabalhar com as categorias
mativa indissoluvelmente presente na atividade hennenêutica, quanto no do Direito, não se está negando a natureza essencialmente ontológica da
plano da aplicação prática do Direito. atividade hennenêutica. ·
Nesta parcela do estudo, que se mantém dirigido a discussões Estando ciente de que a dimensão hem1enêutica encontra-se na
de ordem teórica, serão enfrentadas as peculiaridades próprias da inter- base de toda experiência de mundo, constituindo-se em um processo uni-
tário envolvendo compreensão, interpretação e aplicação, cabe enfatizar
225
GADAMER, 2005, p. 528; ORAA, 2000, p. 493. Stein observa que em muitas situa- as particularidades da hennenêutica contratual. A tarefa será executada
ções o pensamento hermenêutico é colocado de forma dicotômica com a ideia de pen- traçando-~e uma compar~ção com as diferenças existentes com a exegese
samento crítico, fazendo parecer que aquele seria uma forma de raciocinio menor por legal, mmto embora saiba-se que estas duas atividades (interpretação
não contar com instrumentos de investigação adequados (STEIN, 2004, p. 49-50). legal e contratual) não guardam profundas dissociações entre si.
226
Embora Gadamer tenha concordado com parte das críticas trazidas por Habem1as -
especialmente no que respeita à capacidade emancipadora e crítica da reflexão, o que Os pontos de contato entre a teoria da interpretação das leis e
o levou a explicitar mais detidamente alguns conteúdos por ele propostos no primeiro dos negócios jurídicos são mais numerosos do que as diferenças que as
voltuue de Verdade e Método -, sempre defendeu que a crítica da ideologia peca/ separam230, tanto porque a hermenêutica é um tema unitário 231 , quanto
quando não admite a finitude e a limitação de toda a reflexão, supervalorizando a · porque a exegese das leis e dos negócios jurídicos radicam em conceitos
paralelos232 . Esta consideração deve acompanhar o leitor no desenvol-
competência da reflexão e da crítica. Nesse sentido, a hem1enêutica filosófica, com
sua apreensão dialógica e de confrontação de perspectivas, surge como um c01Tetivo à
pretensão de absolutização da reflexão emancipatória (ORAA, 2000, p. 496).
227 230 GRASSETII, 1983, p. 61-63.
ORAA, 2000, p. 502. 231
228 GADAMER, 2005; FERRARA. 1987, p. 131.
STEIN, 2004, p. 102; ORAA, 2000, p. 492. 232
22Q MIRANDA. 1989, p. 133-134.
ORAA, 2000, p. 500-501.
86 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 87
vimento das questões que serão apresentadas neste e nos capítulos sub- se defronta com o momento em que as regras derivadas de uma ordem de
sequentes. autonomia entram em contato com a ordem de heteronomia, urna e outra
Não obstante esse paralelismo, subsistem algumas relevantes es- compondo o ordenamento jurídico regulatório da relação privada238 • As-
pecificidades próprias da interpretação do instituto do contrato, especial- sim, a hennenêutica contratual trabalha com urna multiplicidade de fon-
mente por esta atividade ser matizada pelo preceito da autonomia privada. tes, principalmente no que respeita a complexa coexistência de regras
Talvez o principal elemento de diferenciação seja o fundamento jurídicas e sociais239 •
subjacente ao objeto inte,pretado. Como refere Manuel Domingues de Segundo, focando o procedimento formativo, a complexidade
Andrade, "não se pode contestar que, de facto, a lei procede, como qual- se apresenta pelo fato das normas legais serem sempre constituídas por
quer acto jurídico, duma vontade humana rejlectida e consciente; que é palavras, enquanto os negócios jurídicos podem aparecer na forma de
portanto uma declaração de vontade"233 • Porém, enquanto no contrato a atos da vida e de silêncio240, dificultando a atividade interpretativa que
expressão da vontade é translúcida com relação ao texto da declaração ou jamais pode se dar em abstrato. Desta circunstância deriva a necessidade
ao compmtamento das partes, no caso das leis a formulação da vontade se de uma abordagem necessariamente concreta da relação contratual241 e
encontra opaca, não pennitindo que o operador a entenda e lhe alcance dos contratantes enquanto indivíduos situados, aspecto que também deve
eficácia segundo o querer das pessoas que a emitiram (ex.: membros do ser observado na interpretação da lei, embora com suas paiiicularidades
' • ?4?
corpo legislativo). Desta feita, enquanto a interpretação contratual é pola- propnas- -. .
rizada de forma quase absoluta pelo ato de autonomia 234 , este aspecto não A consequência que deriva desta complexidade material da in-
possui a mesma dimensão, importância e significação no plano da herme- terpretação dos contratos é a de que, como salienta Betti, "a questão in-
nêutica legal235 • te1pretativa não se apresenta em termos uniformes para todas as catego-
Desta polarização da declaração negocial pelos anseios particu-
lares comunicados e objetivados, resulta que a hermenêutica contratual é p. 259), que passa a ganhar autoridade nonnativa quando se relaciona com o ordena-
mais complexa que a atividade inte,pretativa lega/2 36 , o que pode ser mento juridico. Assim sendo . .lei e contrato são metáforas da heteronomia e autonomia
vislumbrado, ao menos, sob três prismas, descritos a seguir. situadas dentro do universo narrativo do Direito, sendo horizontalidade e verticalidade
Primeiro, enfatizando o âmbito da vontade fonnativa, enquanto que se tocam, ou como quer Judith Martins-Costa. que correm paradoxalmente parale-
las (MARTINS-COSTA, Judith. O Pacto no "Sertão" Roseano: os pactos. os contra-
a lei opera apenas com o plano da heteronomia, a interpretação contratual tos, o julgamento e a lei. 2007, no prelo. p. 1). É a partir desta ideia que se irá desen-
está cifrada no entrecruzar (complexo, dialético e escalonado) da auto- volver a dimensão de uma concreção nonnativa no item "A concreção nonnativa da
nomia com a heteronomia237 • Na interpretação dos contratos, o operador interpretação contratual".
238 MARTINS-COSTA. 2005b. p. 132.
239 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992. p. 179-180.
233
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação
das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 42. É de todo evidente que o au-
24 º DANZ, 1955, p. 6-7.
241
tor trabalha com um conceito abrangente de vontade/autonomia. Para uma diferencia- Cabe enfatizar a distinção existente entre contrato e relação contratual. Em seu as-
ção conceitua!, remete-se o leitor para a seguinte obra: FERREIRA DE ALMEIDA, pecto técnico, enquanto essa diz com as nomrns derivadas do poder negocial concer-
1992, p. 245-246. nente às partes contratantes, dizendo com os deveres de prestação. o contrato deve ser
234 Este assunto será objeto do tópico subsequente. intitulado "A autonomia privada e sua reconhecido como fato social que atinge não somente os contraentes, mas também
relevância hermenêutica". terceiros, detemtlnados ou não, impondo deveres laterais ou de proteção (MARTINS-
235
Como refere Jorge Lopez Santa Maria, o que diferencia uma interpretação da outra é o COSTA, 2005a, p. 79 e 81). Contudo. neste estudo a expressão relação contratual se-
fato de que na lei o elemento reitor da atividade hermenêutica é a literalidade da disposi- rá utilizada para designar a dinamicidade do cumprimento do contrato, ou seja, deverá
ção normativa, enquanto nos contratos é a autonomia. (SANTA MARIA, 1966, p. 12). ser entendida como representativa também da fase de cumprimento do contrato.
242
236
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 130. A abstração dos preceitos legais e a concreção dos negócios ou preceitos da autono-
237
Afirma Gerson Branco qne a norma é ato de heterocomposição revestido de autorida- mia privada também é ressaltada por Betti, para quem se deve quantificar as diferen-
de, enquanto o contrato é ato de autocomposição revestido de autonomia (BRANCO, ças entre heteronomia e autonomia (autonormativos);°a partir da qual os contratos são
Gerson Luiz Carlos. As Origens Doutrinárias e a Interpretação da Função Social tidos como regras ditadas nos interesses dos próprios agentes que os põem em prática,
dos Contratos no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) - Fa- devendo ser compreendidos, portanto, no contexto com a órbita social em que se de-
culdade de Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2006, senvolvem (BETTI. 2007, p. 173 e 342).
88 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 89
rias de negócios"243 • Como menciona Francisco Marino, citando Vito contrato é particular e limitado temporalmente, já que visa o adimplemen-
Rizzo, inexiste uma interpretação do contrato, mas, sim, interpretações to248. A lei é impessoal porque se dirige ao cidadão, não ao indivíduo,
dos diferentes contratos 24 4, enquanto na hennenêutica legal há uma maior enquanto o contrato, embora absorva o plano da impessoalidade do orde-
unifonnidade de construção do raciocínio, tendo em vista a padronização namento jurídico, está sempre focado na vontade bilateralizada e situada
do processo legislativo e da forma comunicativa da lei estatal. dos contraentes. Mais importante ainda é a verificação de que enquanto
Terceiro, no plano da hennenêutica contratual é muito mais in- na interpretação das leis o sujeito cognoscente trabalha com destinatários
tenso o entrelaçamento de relações entre os sujeitos de direitos colocados genéricos, na exegese contratual o intérprete deve quantificar o caráter
no plano de uma igualdade recíproca, o que toma ainda mais imperiosa a absolutamente situado de determinados destinatários específicos.
exigência de critérios para a c01Teta composição dos interesses em confli- No que tange à relação com o ordenamento, tem-se que, como es-
to245. Como salienta Joaquim de Souza Ribeiro, enquanto instrumento de tabelece Pontes de Miranda, "deve-se ter presente que as regras de inte,pre-
autodetenninação, o negócio jurídico é um meio de exprimir preferências tação das leis não são adequadas à inte1pretação dos atos jurídicos nem
subjetivas em relação aos bens e às pessoas, e esta liberdade emocional e de vice-versa"249 , ou seja, as regras de inte1pretação voltadas à inteipretação dos
sentimentos jurídicamente insindicável por critérios de racionalidade246 deve negócios jurídicos (arts. 112-114, do CC/2002) não se aplicam à atividade
ser necessariamente quantificada no âmbito da atividade inte1pretativa. hermenêutica que tem como objeto a nonna estatal. Porém, Custódio Ubal-
Dos aspectos abordados nos parágrafos supra deriva a questão dino Miranda adverte que esta última ooservação de Pontes de Miranda deve
atinente à extensão do círculo formado pelos meios inte1pretativos passí- ser entendida com ressalvas, pois se poderia pensar em construir a aplicabili-
veis de serem empregados pelo inté,prete na exegese contratual. Exata- dade das regras de interpretação das leis aos negócios jurídicos25 º.
mente por estar fundada no ato de autonomia bilateralizada, dependente Enfrentadas as particularidades da hennenêutica contratual ca-
da análise dos elementos fáticos e dos vetores axiológicos do sistema be delinear algumas das questões atinentes ao conteúdo do negócio jurí-
jurídico, na interpretação dos contratos há uma expansão das circunstân- dico que interessam à atividade exegética.
cias passíveis de serem consideradas no processo hem1enêutico 247 . Esta
ampliação do material interpretativo deriva tanto da necessária análise da 2.2 O Negócio Jurídico e seu Conteúdo
motivação subjetiva dos contraentes - embora na atividade interpretativa
não haja espaço para a análise da vontade interna dos contraentes-, quan- Sendo o Direito uma ordem nonnativa de regulação da convi-
to da natureza linguística volátil do elemento textual da declaração nego- vência humana sob a exigência da justiça, desempenha tanto a fimção
cial, dimensão que se modifica em face da variedade contextual em que é estática_ de conservar a distribuição dos bens já existentes, mediante a
construída e desenvolvida a relação contratual. categor~z~~ão e atribuição de direitos subjetivos, quanto afunção dinâmi-
Além disso, a principiologia e a teleologia aplicadas e presentes ca poss1b1htadora da renovação deste estado de coisas, por meio da facili-
na interpretação dos contratos são diferentes da atividade hennenêutica tação da circulação de bens, o que se efetiva por intennédio do instituto
desenvolvida tendo como objeto a lei, embora os métodos eventualmente do negócio jurídico ( e principalmente do contrato )251 enquanto instnunen-
to do exercício da autonomia privada252 .
utilizados possam ser os mesmos. A lei é geral e duradoura, enquanto o
248
FERREIRA DA SILVA, Luís Renato. Aulas ministradas na cadeira Interpretação
2 43 dos Contratos (DIRP136), proferida em 2006/I, no PPGDir/UFRGS. 2006.
· BETTI, 2003b, p. 190; BETII, 2007, p. 361.
2 249
-1-1 MARINO, 2003, p. 115. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. 3, Rio de Janeiro: Borsói,
245
BETII, 2007, p. XLII-XLIIl. 1954, p. 324.
250
246
RIBEIRO, 1998, p. 751-752. MIRANDA, 1989, p. 174.
247 251
Confonne será enfatizado no tópico "O ponto de relevância hermenêutica dos tipos Não obstante tenha papel de absoluto destaque. o c01Úrato não é o único instrumento
contratuais e a extensão dos meios interpretativos", a mencionada extensão do círculo jurídico de promoção da circulação de riqueza (ex.: mecanismo da sucessão mortis
formado pelos meios inte1pretativos passíveis de serem empregados pelo i11té1prete se causa).
252
altera (limitação e expansão) confonne a categorial negocial em que inserida a relação ~ A , 1989, p. 13: BRANCO, 2006, p. 28-29. A noção de atividade é essencial
contratual objeto da interpretação, com base no horizonte daquele que detém o que ao ms,tituto do conÍ;ato e à hennenêutica, pois sendo gerado pela ação humana, o con-
aqui será denominado de autoridade da situação hermenêutica relevante. trato e sempre passivei de evolução (MARTINS-COSTA, 2008).
90 Felipe Kirclmer hlterpretação Contratual 91
O liberalismo oitocentista formulou a teoria do negócio jurídico Pietro_ Pe~lingfer!, o Estado moderno não mais se caracteriza pela subor-
sob um modelo que pressupunha a identificação individual dos pa1tici- dinaçao d1cotom1ca entre Estado e cidadão, mas pelo compromisso cons-
pantes e a sobrevalorização do ato de vontade subjetiva. A reconstrução titucionalmente garantido de realização dos interesses de cada indivíduo
crítica operada na segunda metade do século XX, por juristas como Emi- (fm:ci~nalizados em cei:1a ~e_dida pelo interesse social), razão pela qual
lio Betti e Karl Larenz, substituiu a primazia da autonomia da vontade os hmttes ao poder de 11npeno estatal são alcançados com o reconheci-
pela ideia de uma auto1Tegulamentação de interesses, conferindo ao ne- mento e proteção de um espaço inedutível de autonomia privada258 • Por
gócio jurídico uma dimensão social que desvela a realidade socioeconô- esta razão, e também por haver lastro da autonomia na nonnatividade
mica complexa a que os negócios jurídicos estão submetidos253 • constitucional, uma oposição absoluta entre efeitos derivados da lei e
De maneira genérica, o negócio jurídico, no âmbito do Direito efeitos derivados do negóci~ jurídico não se justifica, pois a norma jurídi-
Civil paritário, pode ser conceituado como sendo o ato (ou pluralidade de ca estatal reconhece genencamente o poder criativo da autonomia se
atos entre si relacionados) representativo da autonomia privada e consti- limitando a definir seu âmbito e detenninar requisitos de validade e ~ar-
mas de integração dos efeitos259 •
·•....
tuído de um ou mais comportamentos ou declarações negociais que ex-
•,•
primem um imperativo juridicamente relevante, o qual visa à regulação É profunda a discussão acerca do reconhecimento jurídico da
dos interesses dos particulares nas suas relações privadas (modificação, autonomia e do negócio jurídico que a objetiva no Nomos Jurídico. Em
extinção ou manutenção de determinada relação jurídica) por meio de um viés positivista, que privilegia a ~orma geral do ordenamento estatal
determinados efeitos nonnativos atribuídos pelo Direito segundo a função há um~ pri~azia da ordem jurídica, que concede espaço à criação da au~
econômico-social do ato negocial254 • Nesses termos, o negócio jurídico tonomrn privada. Este estudo abandona a ponderação eminentemente
surge como sendo tanto um instrumento de padronização das relações téc~ca que se !it1;1t_a a reconhecer a abertura do ordenamento para uma
patrimoniais de mercado (ex.: tipos contratuais), quanto um veículo de realidade extraJundica, alcançando a já mencionada natureza social do
individualização e concretização prescritiva de interesses particulares255 • c~n~ato e ? fato de que o me~mo é mais antigo e mais amplo do que o
É no limite destas funções que deve se dar o raciocínio por concreção. Drrei!o, pois mesn1:o antes da sistematização de uma ordenação estatal, as
Da conceituação apresentada retira-se uma importante conclusão: relaçoes contratuais foram suportadas por outros sistemas nonnativos
(normas costumeiras, religiosas, etc.) 26 º.
ao disciplinar a figura do negócio jurídico, o Direito o reconhece como
uma situação de fato capaz de gerar consequências jurídicas256 • Como refe- O negócio jurídico não é uma construção teórica, artificial e
re Carlos Ferreira de Almeida, o negócio jurídico não perde a sua natureza doutrinária, obtida por intermédio de progressivas abstrações, constituin-
negocial e social por ser parcialmente regulado pela lei estatal257 • ~o:se, antes, em um fato social anterior às várias espécies legalmente
No mesmo contexto situa-se o reconhecimento da autonomia tipificadas. O ordenamento constrói os tipos porque já possui o conceito,
privada pelo ordenamento jurídico, o qual possui uma relevante dimensão
política que reflete na concepção acerca do negócio jurídico. Como refere 258
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitu-
ci?nal._3. ed. ~o de Janeiro: R~novar, 1997. p. 54. Lucio Franzese entende que o Di-
253
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. VII-VIII. reito nao possm ~penas a finalidade de controle social, pois cumpre a função de fo-
254
MIRANDA, 1989, p. 60 e 222. O conceito de negócio jurídico é mais amplo do que o mento da comumca?ão intersubjetiva, auxiliando o cidadão (FRANZESE, Lucio. II
conceito de contrato. Formalmente porque sen espectro abrange também os atos unila- Contratto oltre Pnvato e Pubblico. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani
terais (ex.: testamento). Nesses tem1os, o contrato se constituiria em uma espécie do (CEDAM), 1998. p. 35-37, 198 e 218).
259
gênero negócio jurídico, conceito que fatican1ente engloba aspectos fáticos não jurídi- FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 51.
260
cos. Contudo, salienta Gerson Branco que os conceitos foram construídos em momen- Embora a pra'tiºca demonstre_ a correçao
~ da assertiva,
· não parece de todo precisa a ideia
tos históricos distintos, sendo que a dicotomia existente perdeu grande parte de sua re- de que haJa um espaço de liberdade concedido pelo ordenamento, pois em verdade 0
levância com o desaparecin1ento do superconceito de negócio jurídico e o floresci- status libe,tatis do indivíduo, enquanto situação de fato, é anterior ao reconhecimento
mento das discussões acerca do contrato, não havendo efeitos negativos na utilização pelo ordenamento jurídico. Não obstante esta observação, o que aqui se deve frisar é
de uma ou outra locução (BRANCO, 2006, p. 32). ~ue o ordenamento, dentro dos linútes de suas tipificações, concede maiores possibi-
255
RIBEIRO, 1999, p. 472. !td~d~s de autorregul_amentaç~o, (possibilidad_e de conformar livremente suas relações
256
MIRANDA, 1989, p. 72. Ju!1d_1cas) em d~~emnnadas lupoteses (ex.: Drreito Contratual) do qlie em outras (ex.:
257
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 52 e 1.099. D1reito de Fannha) (ROPPO, 1988, p. 135).
92 Felipe Kirchner h1terpretação Coutratrial 93
que é forjado na facticidade das relações sociais e negociais 261 • Os negó- responsabilidade contratual (relação que embasa a coerção estatal) encontra
cios jurídicos nascem espontaneamente a partir das necessidades da socie- uma justificação ontológica apenas no plano da factualidade do negócio, e
dade e dos indivíduos (ex.: circulação de bens), sem ingerência da ordem não no ordenamento que reconhece o agir dos particulares 266 •
jurídica, que os reconhece posterionnente (acrescentando-lhes uma san- A concepção social do negócio jurídico é acolhida pela teoria
ção), após certo grau de desenvolvimento, em virtude da sua relevância preceptiva de Emílio Betti, para a qual a vontade do contraente não é
social (ex.: originalmente os negócios jurídicos são praticados pelo co- propriame~te o conte~d? do ato de autonomia, mas apenas sua fonte ge-
mércio sob a tutela do costume e da boa-fé)262 • radora, pois a nonnatividade do negócio jurídico advém de uma nonna
Os efeitos do ato negocial devem ser buscados no plano social (da (força preceptiva). Nesse contexto, o contrato passa a ser visto corno um
factualidade das circunstâncias do caso), onde o Direito não cria, mas apenas ato representativo da autonomia privada a que a ordem estatal liga O nas-
adapta os efeitos jurídicos criados pelas paites devido as suas próprias neces- cimento, modificação e extinção de detenninadas relações jurídicas. Há
sidades e anseios. Como refere Karl Larenz, as declarações jurídico- um fenômeno de recepção, pois o regulamento privado entra na esfera do
negociais não são apenas situações de fato a que a lei liga detenninadas con- Direito e é elevado, com eventuais modificações que devem ser quantifi-
sequências jurídicas, pois indicam, segundo seu próprio conteúdo (poder cadas hermeneuticamente, a preceito jurídico267•
nomogenético ), as situações que devem surgir, ser mantidas ou extintas263 • O pressuposto bettiano é o de que o Direito é uma disciplina in-
Nesse contexto, autonomia e negócio jurídico se impõem, res- timamen_te ,r~lacionada com a existência hurnana268 , razão pela qual as
pectivamente, como poder pré-jurídico e como instituição pré-legal e normas Jtmdicas (estatais e/ou contratuais) devem ser valoradas na sua
extralegal264 • Se a recepção do negócio é uma questão jurídica, não se típica estrutura social, pois não se separam desta dimensão, mantendo um
perde a natureza social e comunicativa do ato de autonomia, pois o jurídi- liame material com a vida social. Nesses tennos, o Direito é composto
co e o social não se justapõem como sistemas estanques. O ato de autono- pela correlação do universo nonnativo com a realidade social e a auto-
mia se constitui em uma atividade que se reflete na esfera jurídica, embora nomia privada, embora continue sendo recepcionada pelo ordenamento
a quantifique quando de sua produção265 , tanto que o nexo entre liberdade e (qu~ c?n~e?e u~ espaço d~ conformação variável segundo o tipo de ne-
gocio JUndico), e reconhecida como expressão de uma iniciativa nonnati-
261
va ~ré-jurídica (a autonomia já possui um caráter preceptivo no plano
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico e Declaração Negocial: noções
gerais e formação da declaração negocial. Tese para o Concurso de Professor Titular
social). Gerson Branco observa que "a visão de Betti é dúplice: valoriza
de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). São ª. a~ttonomia r·ivada como um dado pré-jurídico e ao mesmo tempo
Paulo, 1986. p. 3-26. lz~nt~ a eficacza des~a autonomia no plano jurídico" pela correspon-
262
MARINO, 2003, p. 17. dencia entre o ato pnvado e as funções socialmente relevantes reconhe-
263
LARENZ, 1989, p. 358; LARENZ, Karl. Derecho Civil: parte general. Madrid: Re- cidas pelo ordenamento269 •
vista de Derecho Privado, 1978. p. 421-422 e 427-428. Esta tornada de posição acerca do negócio jurídico e da auto-
2
6-1 Esta afinnação não conduz ao entendimento de que a autonomia seja urna entidade nomia privada é relevante do ponto de vista hermenêutico, principalmente
não conformada pela intervenção pública, não considerando o Direito Privado corno
entidade preestatal ou extraestatal (FRANZESE, 1998, p. 12).
neste estudo _que se destina à análise da concreção da relação contratual. O
265
Porém, sendo privada, a autonomia não está imune ao olhar público de vigilância, foco não mais_ s~ encontra no siste~na jurídico enquanto organismo produ-
verificação e controle. Nesse aspecto, a liberdade dos contraentes se encontra subor- tor de nonnatlvidade, mas na realidade social que produz, ela mesma a
dinada a ordem de heteronornia em diversos níveis (podendo o ato privado derrogar sua própria normatividade no espaço comunicativo das relações hurnan~s,
algumas normas e devendo respeito incondicional às regras cogentes e imperativas).
Porém, esta subordinação jamais será completa, pois sempre existe unm margem de ::; FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 239-240 e 245; ROPPO. 1988, p. 128-129.
livre conformação da normatividade do contrato (KELSEN, 1998, p. 388; RIBEIRO, MIRANDA. 1989. p. 33-37.
1999, p. 225). Exemplo claro desse espaço de liberdade e conformação se dá com o 268
reconhecimento e validação jurídica a estipulações contrárias a certos parâmetros Pa~lo Grossi chega a afirmar que o negócio jurídico de Betti é um fato completamente
nom1ativos, como usualmente ocorre no reconhecimento de contratos trabalhistas que soctal. (GROSSI, Paolo. Scienza Giuridica Italiana: un profilo storico 1860-1950
formalmente são contrários a nomrns estatais, em razão das peculiaridades concretas. . Milano: Giuffré, 2000. p. 304). ·
269
Ademais, mesmo em face de normas imperativas sempre há a liberdade de não se con- B~TTI, I?90a, p. 1-2; IRTI, Natalino. Letture Bettiane Sul Neg.ozio Giuridico.
tratar (em se excetuando os casos estritos de contratações essenciais). Milano: Giuffré. 1991. p. 9-17: BRANCO, 2006. p. 106-108.
94 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 95
levando em consideração os requisitos e procedimentos previstos no or- verdade que o contrato e o Direito dos contratos272 , enquanto elementos
denamento estatal. jurídicos e normativos, não são exclusivamente redutíveis à operação
Contudo, o negócio jurídico deve ser encarado não apenas como econômica, detendo uma certa autonomia, henneneuticamente :rião podem
um fato cujos efeitos são atribuídos pelo ordenamento, mas, sim, como ::J ser pensados de fonna apartada desta realidade social 273 •
sendo um instrumento c01Telacionado ao ordenamento que visa disciplinar j,1· Embora no sistema brasileiro não haja disposições análogas às
fatos futuros, preenchendo o espaço deixado pelas nonnas dispositivas, o :¾ · regras dos arts. 1.174274 e 1.321 275 do Código Civil Italiano, deve-se con-
que permite a ~doç?º. de critéri~s ?bjetiv~~ de interpretação (desvinculados :'! : siderar que o vetor econômico está subjacente às regras estatais de regu-
?ª vontade ps1cologica). O J?ir~1~0 pos1t1vo surge tanto como ele~e~to JI lamentação do contrato276 , do que é exemplo o mt. 715, do CC/2002, o
mtemo e estrutural do poder Jund1co da vontade, quanto como seu lumte . ;{I qual, regulando o contrato de agência e distribuição, estabelece que "o
e~te~no, se~do queª. autono11?a privada não se a~resenta_c~mo~negação do ·. .· ~.i.~ agente ou distribuidor tem direito à indenização se o proponente, sem
Direito legislado, pois o contem dentro de detenmnados hmites- 70 • ;~ justa causa, cessar o atendimento das propostas ou redu=i-lo tanto que se
··.... Retomando a noção do contrato enquanto fato social, cabe des- )yl torna a11tieco11ômica a co11tiuuação do contrato".
tacar as lições de Enzo Roppo, para quem o contrato, mesmo como con- ~~ Em um estudo voltado à interpretação, cabe destacar alguns as-
ceito jurídico (abstrato!, r~flete uma :ealidade exteri~r a s~ própri?, a qu~l {f{ pectos teóricos envolvendo os negócios jurídicos, especialmente no que
remete para uma rede mtrmcada de mteresses e de s1tuaçoes soc10econo- Jt respeita ao conteúdo deste instituto, que é constituído por preceitos con-
micas. E a partir deste liame dialético com o contexto fático que o meneio- J1i1 cretos - no sentido de que dizem com interesses e sujeitos detem1inados -
nado pensador afirma que "falar de contrato significa sempre remeter -
explicita ou implicitamente, directa ou mediatamente - para a ideia de ·~~
·•~1
soluto relevo. principalmente no plano hennenêutico. Ademais. ao se entender o con-
operação econômica", noção que, na sua materialidade, surge como subs- l trato como sendo a veste jurídica de uma detemúnada operação econômica, não se es-
trato real necessário e imprescindível do conceito de contrato (principal- tá concluindo pela submissão do jurídico à dimensão econômica. Parece correta a as-
mente dos contratos paritários), que não deixa de ser nunca a "veste jurí- sertiva de que o conceito de contrato está indissoluvelmente ligado ao de operação
dico-formal" de uma detenninada operação econômica, ou seja, o instru~ econômica (ainda que conserve uma relevância autônoma. essencialmente no plano
teórico). enquanto o inverso não é necessariamente verdadeiro. Porém. é a nonnatiza-
mento legal para o exercício de iniciativas econômicas271 • Assim, se é ção do instituto do contrato (e das demais nomias estatais) que resta por confonnar a
atividade econômica, e não o inverso, embora haja uma inequívoca simbiose entre es-
270
tes dois sistemas (ROPPO, 1988, p. 12-13 e 19).
BRANCO, 2006, p. 53-57; PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia 272
Aqui o Direito dos Contratos é entendido como sendo o conjunto de nonuas legais e
Privada. Coimbra: Almedina, 1982. p. 18. ··
jurisprudenciais que definem a disciplina dos contratos e, portanto, as suas modalida-
271
Na teoria de Enzo Roppo a noção de operação econômica é ampla, atendendo ao \1· des de funcionamento (ROPPO, 1988, p. 30).
critério objetivo da circulação de rique=a atual ou potencial. A caracterização de mna \ .. 273
ROPPO, 1988, p. 7-8. 10-11 e 127.
operação econômica não se linúta à procura do lucro e do proveito pessoal, assin1 co-
mo o vocábulo riqueza não diz apenas com o dinheiro e outros bens materiais, mas
com todas as utilidades passíveis de avaliação econômica, ainda que não sejam coisas
'i
'
274
"Arl. 1174. Carattere patrimoniale della presta=ione. La presta=ione che forma
oggetto dell'obbliga=ione deve essere suscettibile di valuta=ione economica e deve
em sentido estrito. Nesses termos, a promessa de fazer ou não fazer qualquer coisa .·••· . corrispondere a 1111 interesse, anche 11011 patrimoniale, dei creditore. Tradução livre:
a prestação que forma objeto da obrigação deve ser susceptível de avaliação econô-
gratuitamente em beneficio de alguém - hipótese que de pronto seria qualificada co- .·.·.:.·.·.•I
mica e deve corresponder a 11111 interesse, ainda que não patrimonial, do credor".
mo altruísta e, consequentemente, não econômica - passa a ser representativa de uma . 275
operação econômica, pois é significativa, para o promissário, de uma riqueza verda- _. "Arl. 1321. No=ione. II contralto el'accordo di due o piit parti per costituire, regolare
<leira. O conceito utilizado pelo pensador abrange contratos que diretamente possuem · ·1 o estinguere tra !oro un rapporto giuridico patrimoniale. Tradução livre: O contrato
objetivos de natureza ideal, moral e cultural (e até mesmo existencial), pois a noção '': é o acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir uma relação
que caracteriza a operação econônúca está centrada em critérios rigorosamente objeti- jurídica patrimonial".
276
vos, não sendo ilidida pelo fato do contraente ser movido, subjetivamente, por impul- Enzo Roppo menciona un1 interessante exemplo: se· dois sujeitos se comprometem
sos e finalidades de ordem pessoal. Dito de outra forma, a existência de motivações e reciprocamente - mesmo por ato formal. escrito e assinado - a conservar para sempre
interesses individuais "não econômicos" ou a inexistência de intentos especulativos sua crença política comum ou difundir o sen credo estético. ainda que nas partes exis-
I·
por parte dos contraentes não obstaculiza a caracterização objetiva de uma operação
econônúca. Contudo, cabe salientar que a remissão à operação econômica não des-
oonsid,ra o asp,oto existend,t d, m<rit,s oontr,tações, o qu, """' oomo futo, a, ,b- ~
:1
_ ta a vontade e a convição de se obrigarem legalmente. não há que se falar na existên-
cia de um contrato, exatamente pela falta da patrimonialidade iequerida (ROPPO.
1988, p. 14).
h
!•
Interpretação Contratual 97
96 Felipe Kirchne!"
Vislumbrando a configuração de elementos de existência (no
os quais, sendo sempre relativos às relações fáticas dos contraentes, são
campo do Direito), validade (exigências legais) e eficácia (fatores extrín-
socialmente reconhecíveis e dotados de idoneidade para se el~var a fato
secos que contribuem para a obtenção do resultado visado), Antônio Jun-
juridicamente relevante em viitude _de uma v~loração e ~-ece~ção, posterior,
queira de Azevedo propõe outra classificação tripartida, galgada no grau
por parte do Direito277 . Como salienta Bett1, o conteudo e aquilo que o
de abstração analítica acerca do negócio jurídico. Em um primeiro plano
negócio jurídico é, o que engloba "fórmula e ideia", "palavra e significa-
estariam os elementos gerais, que são comuns e indispensáveis a todos os
do", aspectos que devem ser conectados por intermédio da atividade her-
negócios jurídicos, tais como a fonna da declaração ( v.g.: escrita, oral e
menêutica278. silêncio), seu objeto e conteúdo (disposições contratuais contidas no ins-
Em tennos expositivos, cabe mencionar a tradicional classific~- trumento) e as circunstâncias negociais (os fatos que fazem com que a
ção tripartida entre elementos essenciais (essentialia negotii), naturais manifestação de vontade seja vista socialmente como destinada à produ-
(naturalia negotii) e acidentais (accidentalia negotii). ção de efeitos jurídicos). Já os elementos categoriais possuem duas espé-
Os elementos essenciais, de ordem volitiva, são aqueles neces- cies: os essenciais ou inderrogáveis servem para definir a categoria do
sários à existência do negócio jurídico em relação a sua tipificação_ legal negócio jurídico, enquanto os naturais ou derrogáveis são os que defluem
(sem os quais o suporte fático seria insuficiente), sendo, portanto, msu? da natureza do negócio, podendo ser afastados sem que o negócio jurídi-
cetíveis de serem afastados pela vontade das partes. Estes fatores sao co mude de tipo (ex.: no depósito, o consenso sobre a entrega e guarda do
utilizados na atividade de qualificação dos negócios jurídicos, sendo sig- objeto móvel é elemento categorial essencial, enquanto a gratuidade é
nificativos tanto dos traços característicos dos mais diversos modelos elemento categorial natural). Por fim, os elementos paiticulares são todos
jurídico-negociais (essentialia negotii in abstracto), quanto dos elemen- aqueles opostos em concreto pelos contraentes sem serem próprios de
tos fáticos que justificam a subsunção do instrumento contratual a um tipos de negócios (ex.: condição, tenno e encargo )281 .
determinado modelo jurídico-negocial (essentialia negotii in cqncre_to). Divisando as fontes do negócio jurídico282 , pode-se falar na
Já os elementos naturais, de ordem não volitiva (elementos não quendos existência de um conteúdo bipartido. Em um primeiro plano há um con-
ou ao menos superfluamente queridos), são os que, embora não sendo teúdo expresso ou declarado, que se constitui nas regras ínsitas no ins-
necessários à existência do negócio jurídico ou a sua recondução a deter- trumento contratual e derivadas diretamente do ato de autonomia dos
minado tipo legal, defluem da natureza do negócio, podendo ou não ser contraentes283 , as quais podem ser necessárias (devem ser fixadas para
afastados pelas partes, caso sejam previstos, respectivamente, em normas
dispositivas ou cogentes279 . Por fim, os elementos_ acidentats,_ d~ º;~em 281 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência. validade e eficácia.
volitiva, são aqueles que se apresentam na concreçao do n~goc10 JUn~1co, 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2000. p. 30-39 e 41. Como refere Francisco Marino. '·coin-
cidiriam, portanto, os elementos categoriais inderrogáveis (ou essencias), os elemen-
sem derivarem de sua natureza ou serem exigidos pelo tipo legal (mte- tos categoriais derrogáveis (ou naturais) e os elementos particulares, com aquilo que
gram o suporte fático excedendo~ que a ele é ?s~e1:ci~l~. Diferentemente a doutrina tradicional chama, respectivamente, de essentialia negotii. naturalia ne-
dos elementos essenciais que qualificam o negoc10 Jund1co, os elementos gotii e accidentalia negotii", com a diferença que, para Antônio Jtmqueira de Azeve-
naturais e acidentais dizem com as consequências jurídicas dos negócios do, os elementos (categoriais) naturais são sempre derrogáveis. enqurulto para a pri-
280 meira classificação adotada estes podem ser iuderrogáveis, caso advenham de nonna
jurídicos (constituição, extinção e modificação das relaçõesjuridicas) . cogente (MARINO. 2003, p. 27-29).
282 A classificação a seguir proposta visa uma simplificação das dicotonúas existentes no
conteúdo do negócio jurídico. tema que não se apresenta de fonna unívoca na doutri-
277 BETII, 2003a, p. 160-161. na. Geralmente a matéria é rurnlisada não sob o ângulo aqui proposto (ato de autono•
278 BETII, 2003a, p. 125. mia), mas, sim. sob o prisma da dissecação da relação contratual. enqurutto produto do
219 Saliente-se que parte significativa da doutrina entende que o~ elementos naturais se limitam ato de autonomia. Sob este prisma, Antônio Junqueira de Azevedo, por exemplo, clas-
ao regramento legal que complementa o regramento negocial (enquanto os elementos e~- sifica o conteúdo do negócio jurídico como contendo elementos expressos (o que está
senciais e acidentais seriam obra da autonomia privada), e também que os fatores naturrus contido no instfUlllento ). incompletamente e.,pressos (elementos não contidos no ins-
truntento devido a uma referência incompleta. tais como os direitos e obrigações de
são em verdade efeitos do negócio juridico, siturutdo-se no plruto da eficácia (e não da exi7 tipo contratual escolhido, da qualidade das partes, étc.) e implícitos (fonnados pelos
tência como os elementos essenciais e acidentais). Entende F=cisco Marino que, por ~- elementos naturais) (AZEVEDO. 2000).
zeren; com os efeitos do negócio juridico, os elementos naturais não englobam seu conten- 283
Antônio Jtmqueira de Azevedo propõe uma apreensão ampla do qué seja a declaração,
do, fazendo parte apenas do conteúdo da regulação objetiva (MARINO, 2003, p. 253).
entendendo-a não apenas como sendo o texto do negócio. mas também h1do aquilo
280 MARINO, 2003, p. 25-26, 29 e 253-254; PONTES DE MIRANDA. 1954. p. 65-66.
Interpretação Contratual 99
98 Felipe Kirchner
que o contrato seja jw-idicamente válido) ou eventuais (poderiam não ser da contratação, uma vez que as regras derivadas da autonomia se fimdem
incluídas no negócio )284 • Conjuntamente e de fonna incindível, há uin sistematicamente com as regras e eficácias oriundas das normas legais
conteúdo implícito ou não declarado (não dito do contrato), que é a parte (cogentes ou não), em um amálgama incindível. ·
não contida expressamente na declaração negocial (muitas vezes devido a Sendo inegável que as eficácias das nonnais legais (principal-
uma referência incompleta por paite dos contraentes), composta pelas mente as normas cogentes) compõem a normatividade reguladora da rela-
normas legais (v.g.: direitos e obrigações de tipo contratual escolhido, da ção dos contraentes, não podem ser excluídas da interpretação que se
qualidade das partes, etc.) - as quais se encontram divididas em elemen- debruça sobre a relação contratual. Em uma visão panorâmica da ponde-
tos injuntivos (que podem ser afastados pelas partes) e supletivos (desti- ração global da regulação promovida pelo negócio288 , cabe defender a
nados a suprir deficiências dos atos de autonomia) 285 - e pelas circunstân- relevância do conteúdo da regulação objetiva, composta pelo conjunto de
cias do caso, cuja significância e eficácia são reveladas pelo ato herme- todos os elementos do negócio jurídico, incluídos os dec01Tentes da de-
nêutico após uma operação probatória. A reunião destes conteúdos forma claração negocial e do ordenamento jurídico, inclusive no que respeita às
um conjunto maior, que diz com o conteúdo total ou global do negócio normas de integração (supletivas, cogentes ou dispositivas) 289 •
28 Tais definições se inserem diretamente na problemática da her-
jurídico, ou simplesmente conteúdo do negócio jurídico 6, que sendo
agregado ao paradigma teórico aqui delineado culminará no conceito de menêutica contratual, especialmente porque o conteúdo do negócio jurí-
situação objetiva complexa2 87 • dico é o resultado de sua interpretação, ou seja, é a interpretação que visa
Nesses tennos, ainda que se entenda que o conteúdo do negócio determinar o conteúdo do negócio jurídico290 • O conteúdo da regulação
jurídico é composto exclusivamente pelas regras estabelecidas pelas par- objetiva frequentemente excede o conteúdo do negócio jurídico como
tes, excluindo aquilo que é referido ao ordenamento, do ponto de vista considerado classicamente (pois aportam a este conteúdo outros elemen-
hermenêutico não se pode ignorar que o objeto da atividade exegética tos de ordem objetiva constantes no sistema jurídico e nas circunstâncias
engloba em seu conteúdo as nonnas ínsitas na declaração negocial e do caso), conclusão que somente se toma possível com a utilização de um
aquelas situadas no sistema jw-ídico que tenham pe1tinência com o objeto paradigma hennenêutico amplo o suficiente para abarcar todo o conteúdo
da regulação objetiva, sem depender de uma cisão, deveras artificial,
entre interpretação e integração do negócio jurídico. Aceito que o conteú-
que pelas circunstâncias (contexto) surge como sendo declaração, o que engloba, in- do do negócio é composto pelos elementos objetivos supramencionados,
clusive, a incidência da boa-fé e dos usos (AZEVEDO, 2000, p. 99). Em outra passa- não há razão para dissociações que não se verificam na prática jurídica,
gem, aponta que mesmo no comportamento concludente há uma declaração (tácita), senão quando embasadas por artificialismos de ordem doutrinária.
que a diferencia por ser interpretada por meio de fatos que a revelam (AZEVEDO,
1986, p. 17-18). Francisco Marino acertadamente aponta que o negócio jurídico, en- Apresentadas as peculiaridades do conteúdo do negócio jurídico
quanto ato, não se limita ao seu texto (MARINO, 2003, p. 76). que interessam à interpretação, cabe desvelar a relevância hennenêutica
284 Nesse conteúdo expresso ou declarado se encontra um conteúdo substancial ou pre- da autonomia privada.
ceptivo, fomrndo pelas declarações dispositivas ou preceptivas que regulam o negócio
e disciplinam a relação dos contraentes, e um conteúdo não-preceptivo, que abrange
outros tipos de manifestação e narrativas (demonstratio e consideranda) que auxiliam 2.3 A Autonomia Privada e sua Relevância Hermenêutica
a esclarecer os antecedentes do negócio jurídico e qne, nesta condição, se constituem
em meios valiosos para a interpretação da declaração negocial. Francisco Marino ob-
serva que embora os considerandos do contrato venhan1 separados das disposições
Este tópico pretende situar o negócio jurídico como instrumento
substanciais do negócio jurídico, podem conter declarações preceptivas, tal como do exercício da autonomia privada, posicionando o preceito tanto como
ocorre com a enunciação do motivo detenninante do negócio, aspecto de grande re- elemento estrutural da dimensão ética da pessoa humana (fundamentação
levância, conforme demonstram as regras do arts. 137, 140 e 166, III, do CC/2002. unidimensional), quanto como elemento estrutural da ordem jurídico-
MARINO, 2003, p. 84-85. -econômica no contexto da ação comunicativa que culmina no contrato
285 MENEZES CORDEIRO. Tratado de Direito Civil Português. t. I, 2 ed. Coimbra:
Embora possua independência non11ativa, a autonomia sempre 112, do CC/2002, evita que se recaia em uma "orientação capciosa, for-
deve ser considerada em conexidade com a autonomia do outro e, princi- malista e atomista (. ..) e impõe que o intérprete vá além do 'sentido lite-
palmente, com os parâmetros valorativos legalmente estabelecidos, pois ral das palavras' e do texto do contrato para estender o exame ao 'com-
quando a liberdade individual se encontra desconectada do Direito, recai portamento total', mesmo posterior à conclusão", como bem salienta
no vazio axiológico, no abuso e na desumanização do mercado. Questão E~lio _Betti, p~~a quem a b~s?a pela comum intenção das partes, pos-
interessante se observa com a regra do rut. 112, do CC/2002. Quando o sumdo mdole mtldamente objetiva, não permite que o sujeito cognoscen-
ato de comunicação (que serve à autonomia) atinge o outro se dá uma te se afaste da facticidade da relação contratual na tentativa de reconstruir
simbiose entre autonomias e confiança legítima despertada. Com a inser- uma vontade presumível, ou seja, o que poderia ter sido a comum inten-
ção do elemento fidúcia, os contraentes adquirem o direito subjetivo de ção das partes relativamente à avaliação dos interesses subjetivos300 •
confiar, o que implica a diferenciação das consequências da confiança Nesses termos, a intenção comum do art. 112, do CC/2002, não
jurídica e pré-jurídica. é o sentido que deriva da vontade interna de uma das pmtes que se pre-
A teoria da confiança, subjacente ao art. 112, do CC/2002, en- sume conhecida ou reconhecível na outra, nem o sentido da declaração
contra-se lastreada no trinômio autonomia-liberdade-responsabilidade. em correspondência ao tipo contratual, mas, sim, o sentido que o destina-
Se a confiança fortalece o vetor autonomia, este potencializa e materializa tário tinha o dever de conhecer, tendo em vista as circunstâncias do caso
o elemento fiduciário (fazendo surgir uma confiança forte), tanto que o e o tipo contratual em questão. Assin1, a regra em exame conduz à trans-
ato comunicativo, mesmo quando desconectado de uma declaração, passa cendência do apego ao sentido literal, pois mesmo ·que este elemento
a assumir um determinado papel no plano principiológico. Nesse contex- surja como fator inicial da atividade interpretativa e marco de seu desen-
to, a autonomia surge como um microcosmo normativo do Direito, pois volvimento, há a necessidade do sujeito cognoscente perquirir a inten-
encampa duas de suas principais funções: o resguardo de expectativas ção que se oculta sob a fonna que a declaração exprime, muito embora
legítimas (proteção de condutas comunicativas) e o direcionamento de o art. 112, do CC/2002, não autorize que se prefira a vontade à declara-
condutas (coordenando e modulando a atividade humana), no que a auto- ção, pois esta, enquanto ponto de partida, não pode ser desprezada sob o
nomia é acompanhada pelo princípio da boa-fé objetiva previsto no art. pretexto de que sejam aclaradas intenções interiores dos agentes. Em
113, do CC/2002298 • suma, não é possível ao intérprete buscar a intenção subjetiva para en-
Tendo sido enfocada a influência da regra do art. 112, do tender algo diferente do que foi dito, pois nessa circunstância estaria
CC/2002, no plano da autonomia, cumpre consignar que a intenção ali ignorando a força vinculante do objeto interpretado (primado do texto
mencionada não é o escopo individual, mas, sim, o desígnio comum, ou da declaração negocial). Como antes mencionado, a comum intenção do
seja, o intento concorde formado bilateralmente pelas partes confonne art. 112, do CC/2002, diz com os desígnios objetivados na declaração e
parâmetros de reconhecimento objetivos (na declaração e/ou em compor- na situação objetiva complexa constitutiva do contrato, e não com os
tamentos concludentes), o que abrange não apenas uma determinação escopos subjetivos que não encontram correspondência alguma no ato
causal concorde (intento prático desejado pelas partes), mas também a comunicacional que se objetivou3º1•
divergência e o conflito entre os respectivos motivos e interesses indivi- Cabe ainda salientar um aspecto da estrutura do ato de autono-
duais (que se subordinam ao acordo comum)299 • Essa concepção do art. mia. que interessa de~isivrunente à hermenêutica contratual: o paradoxo
da liberdade que denva da apreensão de uma autonomia bilateralizada.
298 MARTINS-COSTA, 2008; BETTI, 2007, p. 390. Se a análise oitocentista do ato negocial o identifica como sendo o exer-
299 Pode o intérprete recorrer a elementos extrinsecos para aferir a comum intenção con-
substanciada no ato commtlcacional da declaração. Contudo, essa prentlssa traz con-
la declaração. Entendimento diverso (pem1issivo da busca da vontade real) acabaria
sigo a questão referente aos lintltes nos quais o intérprete pode indagar acerca da co- frustrando as expectativas legítimas das partes contratantes (protegendo desproporcio-
mum intenção das partes, especialmente quando o sentido atribtúdo pelo declarante a nalmente os interesses do declarante), além de criar o absurdo de se entender que as
sua linguagem não está reconhecido na linguagem utilizada no instrumento contratual, re~as dos arts. 112 e 1.899. do CC/2002, não possuiriam efeitos diversos no campo
sendo, desta forma, desconhecida e irreconhecível pelo destinatário. A regra do art.
·Óo da mterpretação dos atos e negócios jurídicos (MIRANDA. 1989, p. 184-185).
112. do CC/2002, impõe uma atuação de combinação e restrição recíprocas entre a
º BETTI, 2007, p. 188. 359. 380 e 392; BETTL 2003b, p. 209-211. , .·
declaração e a vontade bilateralizada dos contratantes, razão pela qual não cabe ao in- 301
térprete se valer de todos os meios imagináveis, pois sua análise está condicionada pe- Jvf!RANDA.1989.p.150-151. 173-l74e225.
104 Felipe Kirclmer - Interpretação Contratual 105
cício pleno da liberdade individual 3º2, um exame mais acurado demonstra simult~neamente, declarante e declaratário. Mesmo quando a dinâmica
que a autonomia que culmina no contrato implica uma verdadeira limita- ÍOfl!lªtI:'a do contrato obedece ao procedimento linear da proposta-
ção do espaço de vontade dos indivíduos envolvidos, pois cada um dos acet!ª?ªº - sendo _aquela o ponto de referência demarcador do alcance do
contraentes abre mão de parte de suas pretensões a fim de afirmar um ~eg~c~o e e~t~ a s1mpl:s rea7ão afinnativa à proposta -, o declarante não
projeto conjunto com o outro, visando atingir a um determinado objetivo e o ~mco sujeito da açao, .P?ts o declaratário jamais possui apenas O papel
comum, nonnatizado pela figura do adirnplemento. passivo de puro recept?r, Jª que se constitui, ontologicamente, como sen-
A autonomia, no campo do Direito Contratual paritário, não do ? declarante ~a aceitação que contém e absorve, no universo comuni-
possui um âmbito de domínio unilateral, pois se caracteriza como uma cac10nal da relaçao contratual, o horizonte de sentido da proposta.
esfera de conformação bilateral e interativa no espaço de comunicação ~ . Se do po?to_ de vista _exegétic? cabe a atribuição de um ponto de
que conduz à formação do pacto. Os dois poderes privados, interdepen- relevancia henneneu!tca ~os ~iversos tipos contratuais3º5, sob O prisma da
dentes no plano teórico, só são exercitáveis cooperativamente (liberdade tutela da autodet~nmnaçao nao há razão para se privilegiar a posição do
por intennédio do outro), pois o sujeito contratual é apenas parte de urna declarante, especia~m~n~e quando percebido que a autonomia é exercida
relação que pressupõe a intervenção constitutiva do parceiro contratual, o s~m~re ~~ forma dialog1ca em :1m detenninado e situado contexto comu-
que determina a liberdade positiva de ambos contraentes, cuja bilaterali- mcativo . Se um_contrato supoe duas declarações de vontade (cada uma
dade não se estmtura em um modelo de limites (acasalamento do poder d~la~ c?m, 1:m emitente ~ u1:11 destinatário), estas somente assumem rele-
de um com a não ingerência de outro), mas antes em um modelo de parti- vancta Jundica e hem1eneutica quando se consubstanciam numa totalida-
cipação e de necessária interpenetração de duas esferas de liberdade. Co- de dotada de sentido, conforme se infere da expressiva afinnação de Karl
mo refere Joaquim Ribeiro, "a subjectividade é aqui sempre intersubjec- Larenz3°7•
tividade; a autonomia conjuga-se necessariamente no plura/"303 , até . E~ síntese, a autodet~rminação de cada contraente não pode ser
mesmo porque, corno quer Gadamer, a convenção não diz com a subjeti- vista exegeticamente de forma isolada da autodetenninação do outro, pois
vidade humana ou com a exterioridade de um sistema de regras impostas ambas, enquanto _elementos formadores do consenso, somente podem ser
de fora, mas, sim, com a identidade individual e as crenças representadas pensadas em c~nJunto, uma vez que se condicionam e se limitam mutua-
na/pela consciência dos outros304 • mente, harmomzando-se apenas no acordo que aperfeiçoa O contrato 0
A visão clássica, que apregoa a constmção ideográfica do que res~alta a vertente comunicacional e objetivista apregoada neste estu-
cio jurídico feita no singular e centrada no declarante, não se :::,~:r::t:::::::::1 do. Assnn, o poder nomogenético do sujeito está condicionado não ape-
za com a realidade estmtural do contrato, na qual há necessariamente dois ~as pel~s limites do ~rdenamento que o reconhece, mas confonnado e
sujeitos que participam da formação do negócio, sendo cada um deles, influenciado pe!a mediaçã~ horizontal de igual poder da contraparte, em
uma real e efetiva harmomzação dos interesses privados reguladas elo
contrato. p
302
Na concepção liberal há uma irrelevância da contextualização do ato de exercício da
liberdade, pois o sujeito é visto como investido de um poder individual de autorregu-
Em _conf?m:1idade com a figura gadameriana da fusão de hori-
lação. Contudo, este recorte não permite captar a especificidade distintiva da liberdade zontes, Joaqm~ Ribeiro entende que faz sentido, nessa perspectiva, falar-
contratual, que reside exatamente na relação desta capacidade com os outros poderes -se ,em u11;1a fu~a~ ?e vo~tades que, dando origem a !ex contractus, já não
sin1étricos dos sujeitos com quem o contraente se relaciona (conteúdo do exercício da esta na d1spombihdade mdividual de cada um dos contratantes3os_ Essa
liberdade em situações de poder subjetivo bilateral. como ocorre no contrato). Nesses
termos, a concepção oitocentista contraria a irredutivel sociabilidade do fenômeno 3oscom , ºt , . "O .
contratual e o conteúdo axiológico presente na liberdade enquanto princípio reitor da o sera_ vis o no top1co ponto de relevância hermenêutica dos tipos contratuais
ordenação juridica. Assim, esta apreensão falha decisivamente quando promove uma e a extensao dos meios inte1pretativos".
306
operação conceituai de duplo isolan1ento da relação contratual, ignorando tanto o RIBEIRO, 1999. p. 250-257.
307
meio onde esta se insere (circunstâncias do caso e funções socioeconômicas desempe- LARENZ, 1978. p. 423-424.
308
nhadas pelo contrato), quanto à pessoa do outro contraente (prerrogativas e interesses RJ?l~IRO. 1999. ~- 72 e 638. Carlos Ferreira de Ahneida. por sua vez. entende que
contrapostos do qual ele é portador) (RIBEIRO, 1999, p. 51-53 e 56-58). ª ide~,ª de que !laJ_ª um~ fusão de vontades das partes no contrato se constitui em
303
RIBEIRO, 1999, p. 55 e 58-59. u'.11ª ~o~struç~o 1rreahs~a e inconsistellfe, designadamente quandtf haja uma con-
3 h apos1çao de mteresses' (FERREIRA DE ALMEIDA . 1992. p . 83) . S a1·1ent e-se
0-t GADAMER, 2004, p. 377.
Interpretação Contratual 107
106 Felipe Kirchner.
intensidade escalonadas segundo a situação fático-nonnativa311 , especial-
conclusão percone a diferenciação etimológica e conceituai do que seja mente na análise própria e intrínseca da declaração negocial.
309
autonomia privada e autonomia da vontade . Dito isso, mister se faz retomar o exame do papel da vontade no
A paitir da noção de autonomia bilater~ali~ada se alc~nça uma plano da interpre;aç_ão do co~tra!º· _E1:nbora este eleme~to i~1fl~1encie a
interessantíssima consequência no plano henneneutlco, qual sep, ª. pos- atividade hermeneutica, esta nao e a umca (e sequer a mais propna) fonte
sibilidade da verificação de uma intensidade vinculat_iva de gr~u vanavel, de interpretação, pois sempre acaba se desprendendo do contrato. Esta
proporcional à medida de autodetenninação e à amplitude da liberdade de afirmação é comprovada pela inserção da pactuação em uma cadeia de
decisão disponível perante as circunstâncias do caso, o. que _surge ~~mo circulação de riquezas (autônoma em relação à intenção subjetiva das
uma tese estranha ao regime geral dos contratos, que Jamais adm1tm a partes)312 , pela recepção jurídica das relações contratuais de fato (ou pa-
modulação da intensidade vinculativa. Havendo gradações no nexo de racontratuais) e pela secundarização do aspecto volitivo nos fenômenos
imputação da declaração ao declar~nte, deve hav~r uma cone~p_ondente de massificação econômica e de adesividade contratual. Ademais, certas
diferenciação de eficácia vinculativa310 . Em razao dos_ c?nd1c1ona~t~s teorias de apreensão do fenômeno contratual dão pouca relevância ao
históricos, culturais e psíquicos que acabam por s~r constitu~tes do suJ_e1- papel da vontade, enfocando mais propriamente a questão do tráfego
········ ·- to a liberdade contratual é sempre liberdade situada ~ circuns~anctal, negocial (ex.: análise econômica do Direito Contratual)3 13 .
ra~ão pela qual também o princípio (da liberdade) atuara em medidas de Havendo uma inequívoca tendência para a progressiva redução
do papel da vontade enquanto momento psicológico da iniciativa contra-
que a prática forense demonstra que a contraposição de interesses geralmente ~~sce tual314, o certo é que contemporaneamente o consenso (proposta e aceita-
na fase de execução do contrato, mas mesmo quando surge no m.°m~nto genehco, ção) jamais é formado apenas pela vontade ou pelo ato de autonomia315 ,
há sempre um denominador comum na vontade das partes, o que Justrfi,ca a con~a- os quais se constituem em parâmetros fracos para explicar a complexida-
tação, até mesmo quando a união das vontades dos contratantes se da por razoes
meramente utilitaristas. . .
Jog Enquanto na expressão autonomia da vontade à ~nfase se dá n_o ter:n~ ~ontade,_md~-
311 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 139-140.
cando a mais conspícua manifestação do voluntansmo voltado a s~bJetJv1d?de e a psi- 31 2 Carlos Ferreira de Almeida ·entende que a noção de perfomrntividade - indicativa de
cologia do consenso, no conceito autonomia privada _o P:,so est~ n~ ~ocabulo auto- que os enunciados contraruais ao dizerem algo estão fazendo algo (to s~.v something is
nomia dizendo com O poder jurídico de autodetennrnaçao do md1v1duo na ordem to do something), realizando por si certos atos (quando observados detemlÍllados re-
econô~ca e na concessão de força nom1ativa às decisões individuais (o que não se quisitos) - acrescenta importante contribuição para a fundan1entação do negócio jurí-
restringe à atividade negocial) (MARTINS-COSTA, J~di_th. Novas refle~ões_ sobre o dico descentrada do critério único da vontade humana (FERREIRA DE ALMEIDA.
principio da função social dos contratos. Estudos de Direito do Consumidor. separa- 1992, p. 119 e 122).
ta n. 7. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra, 2005a. p. 59-60; MARTINS- 3 13 FERREIRA DA SILVA, 2006; FERREIRA DA SILVA, 2008.
COSTA, 2005b, p. 131; AMARAL, 2006, p. 345-347; ~~RRE~ DA SILVA, Jorge 314 No entender de Enzo Roppo. a objetivação da atividade exegética satisfaz as exigên-
Cesa. Princípios de Direito das Obrig~~ões no Nov~ C?~igo C!Vll. ln: S~ET, _Ingo cias da sociedade de mercado, que estando organizada economicamente pelas relações
Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constitmçao. Porto Alegre. L1~rana do de consumo, produção e distribuição, exige a garantia da celeridade, segurança e esta-
Advogado, 2003. p. 110-111; AMARAL NETO, Franci~co dos _S~tos. A L1b_erdade bilidade das relações contratuais. Para servir ao sistema de produção capitalista, o
de Iniciati~a Econômica: fundamento, narureza e garantia consttruc1011al. Revista de contrato se desvincula da esfera psicológica, tomando-se um instrunlento essencial-
Direito Civil, n. 37, 1999, p. 26). . , . mente objetivo. O modelo subjetivo atendia a uma economia individualista, fechada e
310 RIBEIRO, 1999, p. 301 e 304-305. A questão é c~mJ.:>l:xa e merecena ana!ise em pouco dinâmica, enquanto o modelo objetivo atende as exigências de tuna economia ca-
estudo próprio. Neste espaço, cabe destacar que o 111d1g1tado autor portugue~ men- pitalista altamente desenvolvida. Por fim, cabe salientar que as transfonnações do con-
ciona a doutrina de Karl Llewellyn, que introduz a distinção entre "'consentunento trato não contrariam, mas antes secundain, o principio da autononúa privada, que não
em branco" e "consentimento específico", sustentando que _apenas neste, ?nde o mais se identifica com o dogma da vontade (ROPPO, 1988, p. 297-298 e 309-311).
consentimento atua diretamente sobre o tipo e os traços gerais da contrataçao (te!- 315 No entender de Enzo Roppo, é possível que um contrato se fonne validamente e
mos negociados), se verifica uma eficácia plena da vinculatividade do :ontrat.°, pois vincule os sujeitos interessados, mesmo que no momeúto de sua conclusão falte com-
no caso do "consentimento em branco", havido nos contratos de ade~ao, ª, v1~1cula- pletamente a vontade de uma das partes ou que esta possua tuna vontade contrária à
tividade alcança apenas as cláusulas qt~e- não se)a~1. desarraz?adas: 1mpropnas o~ pacruação, o que ocorre, por exemplo, na subsistência da eficácia da oferta após a
abusivas. Mesmo que não se queira adl11ltlf a vanab1hdade da mte~s1dade_ vmculati morte do proponente e na prevalência do negócio jurídico aparente quando da confi-
va, no plano hermenêutico deve-se aceitar a existência de uma hier~rqma entre as guração da simulação (ROPPO, 1988, p. 299-300). No mesmo sentj<lo: MIRANDA,
cláusulas negociadas e aquelas previstas contrarualmente por adesao (RIBEIRO, 1989, p. 84.
1999,p.305 e315).
108 Felipe Kirchner Interpretação Contrah1al 109
de da vinculação contratual e sua manutenção, mesmo quando transcen- texto socioeconômico (circunstâncias do caso e sistema jurídico), a partir
dido o aspecto subjetivo daquelas estrnturas316 • do que se extraem impo1iantes vetores exegéticos e juízos atinentes à
busca pela manutenção do equilíbrio contratual (noções de sinalagmatici-
Assim, faz-se necessário agregar à quantificação hennenêutica
dade e comutatividade do contrato )322 •
do ato de autonomia outros elementos que, ao lado da autodetenninação
(pressuposto indispensável ao nascimento da obrigação), justifiquem a A partir destas observações, torna-se evidente que a vontade
produção do efeito obrigatório do contrato e sua perduração317 • De manei- deve ser sempre valorada em conjunto com outras fontes, dentre as quais
ra geral, devem ser identificados e valorados, exegeticamente, a presença se destacam aquelas de ordem objetiva, pois mesmo quando inexiste o
de pelo menos quatro fatores: ( 1) a confiança (que protege as expectati- consentimento (e a vontade em sentido estrito), podem nascer relações de
vas)318 e a boa-fé (que surge como dever específico de direcionamento de tipo contratual323 • No plano hennenêutico, a consequência desta conclu-
condutas)319 ; (2) o interesse comum (art. 112, do CC/2002) que está sem- são é a produtiva aplicação dialética e complementar das regras do art.
pre polarizado pelo adimplemento e indica urna necessária externalidade 112, do CC/2002324 • Como refere Carlos Ferreira de Almeida, se é ce1io
da manifestação da vontade e a consequente "bilateralização" da autono- que a vontade somente se completa com a declaração, não há lugar para a
mia privada32º; (3) a possibilidade (esperada) de alteração da vontade autonomização daquela, sendo imperioso reconhecer que todo fenômeno
originária no curso do cumprimento da relação contratual (principalmente negocial consiste em um processo de comunicação no qual a vontade não
nos contratos de longa duração), em um desprendimento do ato de con- tem relevância positiva325 • •
sentimento na vida do contrato321 ; (4) a valorização hermenêutica do con- Porém, a erosão do papel da vontade psicológica no contexto de
uma apreensão objetiva do fenômeno contratual não atinge o núcleo es-
316 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 92. A comprovação de que o negócio não é um
ato de pura manifestação de vontade parece consubstanciada na análise dos contratos sencial das prerrogativas e da centralidade da autonomia privada no âm-
de adesão e nos fatores de invalidade do negócio jurídico. bito hennenêutico326 • Sendo a declaração negocial o ato representativo da
317 RIBEIRO, 1999, p. 63-68. autonomia dos contraentes, cabe questionar: qual o peso da declaração
318 Carlos Ferreira de Ahneida refere que a confiança nem sempre se constitui em fun- negocial na situação objetiva complexa?
damento essencial e decisivo do negócio jurídico, pois embora sirva de base explicati- Não obstante as mitigações que foram anterionnente apresenta-
va de muitos aspectos dos regimes jurídicos (dizendo com a tutela negocial), não ser-
ve de fundamento unitário específico para a vinculação negocial (FERREIRA DE
das, deve-se considerar que a autonomia privada sempre se constitui no
ALMEIDA, 1992, p. 61-62). De outra ordem, interessante a observação de Enzo Rop-
po, para quem a objetivação da hem1enêutica contratual atende a tutela da confiança, a ção e a posterior relação contratual que se desenvolve mereçam especial atenção, o
qual se alcança dando proeminência aos elementos exteriores da relação contratual, ao que ignora tanto as indissociáveis conexões externas do contrato e da autonomia pri-
significado típico dos comportamentos e a sua cognoscibilidade social (ROPPO, vada (e a inserção destes elementos no 111undo da vida), quanto a dinâmica e os efeitos
1988, p. 301). vinculativos situados no plano interno que comporta aspectos relacionais não subsu-
31 g Como se sabe, a boa-fé atua como critério de interpretação e íntegração do contrato
míveis às declarações de vontade dos contraentes (RIBEIRO, 1999, p. 13-14).
(art. 113, do CC/2002), nonna criadora de deveres anexos, laterais ou instrumentais 322 MARTINS-COSTA, Judith. O Novo Código Civil Brasileiro: em busca da 'Ética da
(art. 422, do CC/2002) e nonna limitadora de direitos subjetivos (art. 187, do Situação'. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 20, 2001,
CC/2002), além de atuar, potencialmente, como elemento mitigador da intensidade de p. 240; MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um 'Sistema em Cons-
posições jurídicas (v.g.: supressio, surrectio, venire contrafact11111 proprium e tu quo- trução': as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista da Facul-
que) e como elemento de validade do contrato (ampliação do artigo 104, do CC/02). dade de Direito da UFRGS, Porto Al~gre, v. 15, 1998, p. 148-149: FERREIRA DA
Conforme sustenta o ministro Ari Pargendler, "nenhum regra111ento genérico pode ser SILVA, Luis Renato. Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código do Consu-
aplicado em concreto se contrariar o princípio da boa-fé objetiva" (REsp 554.622, 3ª 111Ídor. Rio de Janeiro: Forense, 2001b: SILVA, 1976, p. 32: DANZ, 1955, p. 197:
Turma, STJ, Min. Ari Pargendler, DJ 01.02.2006 p. 527, RB vol. 508 p. 28, RDDP RIBEIRO, 1999, p. 51-61, 72, 180, 250-257. 638.
vol. 37 p. 151). 323
FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A Noção de Sinalagma nas Relações Contra-
32º RIBEIRO, 1999, p. 51-61, 72, 180, 250-257, 638.
tuais e Paracontratuais: uma análise à luz da teoria da causa. Tese apresentada na
321 A vontade somente pode ser vislun1brada de forma estática quando o foco de análise
Uníversidade de São Paulo, Faculdade de Direito,jun, 2001a, p. 72.
se li111Íta ao ato contratual (declaração negocial),jamais quando se vislumbra a relação 324
MIRANDA, 1989, p. 198.
contratual formada a partir dele. O corte epistemológico feito neste estudo o afasta da 325
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 93. -· ·
construção do contrato segundo o modelo do consenso, cuja análise se centra essencial- 326
ROPPO, 1988, p. 311.
mente no ato de conclusão da pactuação, sem que o conteúdo, as funções da contrata-
110 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 111
norte da interpretação, e a declaração contratual surge como limite à mu- .. Sequer a r~lação da normatividade contratual com o sistema ju-
tação nonnativa que deriva da alteração das relações fáticas 327 • rídico 1hde a centralidade da autonomia privada na atividade hennenêuti-
ca. Embora haja uma estreita relação entre os planos da autonomia e da
Esta consideração ganha vulto no plano dos critérios objetivos
heteronomia no contexto do universo nonnativo do contrato a análise
de interpretação. Embora a utilização destes vetores (v.g.: boa-fé objetiva
hermenêutica deste remete a uma discussão sempre focada n~ liberdade
função social, postulado da proporcionalidade, etc.) implique o uso d;
individual330, na autodetenninação331 , na autonomia privada e na liberda-
uma fonte de regulação diversa da livre e voluntária detenninação dos
de contratual332 •
interesses privados, não se antagonizam com a vontade das partes - como
se pretendessem a tutela dos interesses públicos em confronto com os Retomando o exame do peso da declaração negocial na situação
interesses privados -, pois visam suprir as deficiências de seu exercício objetiva complexa, cabe destacar que é a livre disposição unificada dos
respeitando a lógica e o espírito de suas escolhas. Nesses termos, nã~ cont_ratan!es que d~limita o horizonte do contrato. Assim, enquanto 0
cabe ao intérprete modificar o sentido do conteúdo do contrato com o fun- senti?º l;t~ral po~s1vel da declaração negocial delimita a interpretação
termmolog1ca do mstrumento contratual, é a conjunção das vontades dos
?e
d?-1nento que detennina,das acepções seriam mais desejáveis do ponto de
contratantes (que não pode ser cingida em duas vontades autônomas) que
vista do rnteresse geral. E de fundamental importância o pensamento de
baliza a compreensão da situação objetiva complexa que fonna e condi-
Enzo Roppo, para quem "inte1pretar UJJl contrato é coisa diferente de mo-
ciona o negócio jurídico. Embora de\.:'ª o intérprete deixar que esse con-
dificá-lo. Modificar UJJl contrato, JJ1es1110 contra a vontade das partes, é em
texto objetivo do contrato fale por si, cabe suscitar dois exemplos eluci-
JJ1uitos casos possível: JJ1as não fingindo i11te1pretá-lo"328 •
dativos sobre a importância da autonomia como elemento delimitador da
Em respeito à autonomia privada, na interpretação dos contra- atividade interpretativa.
tos não se pode abstrair de fonna absoluta a intenção dos contratantes,
No que se refere à tenninologia utilizada pelos contratantes sa-
embora o paradigma hermenêutico adotado não possua um caráter sub-
lienta Erich Danz que se as partes estão de acordo quanto ao sentido' dos
jetivista. O reconhecimento de vetores como o interesse e a utilidade da
pactuação é imprescindível, pois alijar esta dimensão do processo her- 330 A lib~rda~e ~ m~1 ~o~ceito· político-filosófico enquanto a autonomia privada é um
menêutico coloca o cumprimento contratual a um passo do inadimple- conceito _te~co-Jund1_co; co_rrespondendo ~ um espaço de liberdade jurígena e, por-
mento. Embora as relações contratuais sejam polarizadas pelo adim- tanto. atribmda pelo Dire1to a pessoas, relativa a uma pennissão genérica de produção
plemento (pois é esta dimensão que perfectibiliza a comum intenção dos de efeitos jurídicos (MENEZES CORDEIRO, 2000. p. 217).
331
contraentes) e, consequentemente, pelos interesses do credor, a imersão Autonomia privada e autodeterminação não se confi.mdem. pois enquanto aquela diz
subjetiva da atividade interpretativa deve ser controlada, pois podendo c~m ? ~r~cesso de or~~ação que faculta a livre constituição e modelação das rela-
çoes Jun~1cas pelos suJe1:os que nelas participam, a autodeterminação situa-se em um
atingir a esfera de interesse de terceiros, o contrato deve ser interpretado plano mais abrangente, dizendo com a orientação de vida e gestão de interesses refe-
quantificando o elemento objetivo externo (ex.: função social). No cur- rentes à individualidade do cidadão, implicando juízos de valor que normativamente
so do processo orgânico de cumprimento do contrato os motivos passam se encontram associados aos princípios da dignidade e do livre desenvolvimento da
a ser bilaterais, se inserindo, substancialmente, na base do negócio jurí- personalidade humana. Nesses tennos. a autonomia privada constitui-se em princípio
~perativo d~ at'.t~determinação do ser humano (RIBEIRO. 1999. p. 22-23 e 30). Em
dico (art. 166, III, do CC/2002). Em síntese, pode-se afirmar que: (1) a linha de rac1oc11110 comI'.lem_entar. a autodet~mtlnação diz com a capacidade de que-
autonomia privada e a intenção das pa1tes são elementos fundamentais rer, enquanto a autono1111a diz ccom a capacidade de escoiller com base nas circuns-
ao agir hennenêutico; (2) a intenção das partes deve ser analisada con- tâncias (v.g.:criança tem autodetemtlnação, mas não autonomia).
332
fonne as circunstâncias do caso; (3) o contrato gera legítimas expectati- Enquant~ Jo~quim Ribeiro entende que a liberdade contratual é U111 componente da
vas nas partes e em terceiros (princípio da confiança), aspectos que auto?o1111~ pnva?a (RIBEIRO, 1999. p. 21), Judith Martins-Costa sustenta que a auto-
no1111a pnvada mtegra um campo de função no domínio da liberdade contratual
devem ser valorados e respeitados mediante a utilização de parâmetros ~TINS-COSTA. 2005a, p. 75). No campo dos contratos, esse quadro de garantias é
objetivos de interpretação 329 • mstrumental do direito à livre iniciativa econôntlca. apresentando-se como sendo o
meio necessário ao exercício desta garantia constitucional. Adverte Judith Martins-
327
HESSE, 1991, p. 23. Costa q~~, como todo meio, a liberdade de contratar não existe em si, mas para algo,
328
ROPPO, 1988, p. 173-174. estando permanentemente polari=ada e coriformada para os fins··« que se destina"
329 (MARTINS-COSTA. 2005a, p. 64-65).
FERREIRA DA SILVA, 2006.
112 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 113
vocábulos empregados, o intérprete deve entendê-los nesse sentido; não quer Betti, porque a interpretação autêntica integra o âmbito dessa auto-
podendo, mediante interpretação, atribuir significado contrário àquele nomia336. Porém, cabe destacar que a interpretação autêntica, no âmbito
acordo, ressalvados os casos onde presentes o dolo das pattes ou o fim de contratual, também deve ser bilateral, pois descabe ao intérprete levar em
alcançar determinado objetivo ilícito ou consequência antijurídica (prejuízo conta apenas as considerações de uma das partes contratantes, mesmo que
a terceiros). Em razão do poder nomogenético da autonomia privada, as esta provenha do declarante que redigiu por completo as cláusulas de um
partes são livres para dar aos seus negócios o conteúdo que queiram (ob- instrumento de adesão.
servando os limites legais), e sendo este determinado pelo sentido das Ademais, deve-se salientar que, se por um lado a interpretação
palavras empregadas, ao atribuir um significado diferente o intérprete autêntica não se encontra tão vinculada à situação jurídica preexistente
modifica o teor do negócio jurídico, para o que não está autorizado333 . como está a atividade hennenêutica, detendo uma maior discricionarieda-
Já no que respeita aos efeitos da declaração negocial, em maté- de na escolha da apreciação interpretativa (exatamente por estar correla-
ria de interpretação vige a regra dafalsa demonstratio 11011 nocet (a de- cionada ao poder nomogenético da autonomia) 337; por outro parece de
monstração errada ou imprópria não deve prejudicar o Direito alegado), todo evidente que a mesma não possui um valor absoluto. Embora goze
indicando que quando das declarações emitidas resulta uma concorde de posição privilegiada338 , deve ser quantificada, no plano hermenêutico,
manifestação de vontade, mas as partes estão de acordo que há de se pro- em conjunto com os demais elementos norteadores da interpretação.
duzir um resultado diferente do que derivaria do sentido usual (ex.: equí- Cabe frisar, ainda, que as observações dispostas nos parágrafos
voco ao pronunciar as palavras), se produz o outro resultado334, caso essa antecedentes devem ser vistas com ressalvas, pois poderiam conduzir ao
vontade unificada posterior não vise fraudai· a lei ou direito de terceiros. errôneo entendimento de que não há interpretação quando as partes estão
Ainda, se a declaração é passível de ser entendida com diversos de acordo com determinada significação contida na declaração negocial,
significados, mas declarante e declaratário a quiserem no mesmo sentido, pois como visto anterionnente339, a dimensão hermenêutica se encontra
deve-se deixar valer com esta significância, em respeito à autonomia, já na base de toda experiência de mundo. A interpretação autêntica sobre o
que não há razão para a imposição de uma acepção que nenhum dos con- acordo de vontades originário é dependente de questões referentes a pro-
traentes deseja, quando não se avilta a esfera de interesses de terceiros 335 . va, devendo ser avaliada henneneuticamente no contexto das circunstân-
Porém, deve ser esclarecido que estas conclusões derivam da cias fáticas e normativas presentes na situação objetiva complexa.
autoridade determinante da autonomia, a qual se impõe, inclusive, peran- Por fim, deve ser enfrentada, neste tópico, a aplicação das teorias
te os resultados da atividade hermenêutica propriamente dita. Nos casos da vontade e da declaração, discussão que remete à contraposição entre
mencionados se rompem os limites da atividade hennenêutica, pois o intenção e sentido literal da linguagem, aspecto de enonne relevância na
intérprete é levado a simplesmente aceitar uma conclusão derivada da doutrina da interpretação clássica. Enquanto a teoria da vontade se desti-
autonomia dos contraentes, mesmo que a atividade interpretativa, centra- na a dar prevalência à vontade "real" e subjetiva do declarante (na inter-
da na necessidade de se deixar a coisa falar, culmine no alcance de um pretação e no consequente juízo de validade do pacto) quando esta for
significado contrastante com a disposição das partes que indica o signifi- contraposta à declaração negocial 340, a teoria da declaração concede pre-
cado desejado (considerado então como autêntico).
336 BETII, 2007, p. 119, 136 e 156.
Estas considerações remetem à chamada interpretação autênti- 337
BETII, 2007. p. 158.
ca, que provém do mesmo autor do preceito ou da declaração que se pro- 338
Não é a toa que parte da doutrina qualifica a interpretação autêntica como sendo a
cura compreender (ex.: poder legislativo ou contraentes). O poder vincu- "rainha de todas as i11te1pretações." (SANTA MARJA. 1966. p. 48).
lante da interpretação autêntica, no plano dos contratos, opera devido a 339
Especialmente no tópico "O objeto e os limites da atividade hermenêutica''.
3
sua correlação natural com a autonomia formadora do preceito nonnativo -1o A teoria da vontade trouxe como elemento inovador p reconhecimento da atribuição
originário (competência normativa ligada à identidade do autor) ou, como de ?IT1 poder criativo de efeitos jurídicos (nomogenético) à vontade humana. o que é
aceito por este estudo, como antes mencionado. Porém. inúmeras são as criticas a esta
333
concepção, dentre as quais se destacam: a perspectiva individualista; o sentido equí-
DANZ, 1955, p. 78 e 168. voco que a vontade assU111e na formulação da teoria ( encarada ora como poder psíqui-
33
-1 DANZ, 1955, p. 78 e 225. co gerador de efeitos, ora como conteúdo ou objeto da declaração); Íf dualismo vonta-
335
LARENZ, 1989, p. 360. de-declaração que decompõe artificialmente um fato que é ontologicamente uno; o re-
h1terpretação Contratual 115
114 Felipe Kirchner
alheia. Disso deriva a necessidade de uma avaliação hennenêutica que
valência à declaração abstratamente considerada (tal como esta s~ apre- transcenda a literalidade da linguagem empregada, alcançando também o
sentava ao destinatário no ambiente socioeconômico) enquanto mstru- contexto verbal e todas as circunstâncias relevantes 346 . Assim, o disposi-
341
mento tradutor da vontade d as paites . tivo em comento não toma partido de nenhum radicalismo, tornando im-
A primeira questão que merece ser dest_acada é q~e ~s. duas teo- perativa a análise da totalidade do material interpretativo disponível no
rias extremadas devem ser consideradas voluntanstas e subJetlv1stas, uma caso concreto347.
vez que têm como parâmetro fmalístico a vontade das pa_rt~s. As di~eren- O processo de objetivação da atividade interpretativa remete à
ças de concepção residem apenas no objeto pelo qual rra se anah~ar a busca por um sentido que é polarizado não mais pela vontade subjetiva
vontade interna das partes e naquilo que se pretende ~roteg~r: a t~o~a_da dos contraentes, mas pela comum intenção dos mesmos, a qual deve ser
vontade resguarda o declarante e a teoria da declaraçao o trafego JUnd1co alcançada no âmbito da cognoscibilidade do comércio jurídico, ou seja,
e o destinatário 342 . sob o prisma de como o meio social e os usos do tráfico atribuem senti-
A partir desta premissa, deve-se rec?~ecer que a~ te<:_rias da do àquele detenninado gênero de declaração, o que é matizado pela
vontade e da declaração, enquanto modelos teoncos puros, nao sao sufi- boa-fé objetiva, a qual possui o condão de situar a análise no plano da
cientes ao paradigma hermenêutico aqui adotado. Além d~ ~er~m unila!e- concretude da relação contratual (ex.: indicando que a linguagem utili-
ralistas343, estas vertentes teóricas esquecem o aspecto dmam1co do vm- zada não foi a usual). Nesses tenno_s, mesmo sob um viés objetivo o
culo obrigacional, uma vez que cristalizam a vontade no momento da contrato não se identifica com a letra contida na declaração, pois esta se
formação do contrato, sem cuidar de sua evolução. Sendo evjde~te que as constitui, em verdade, em um meio de comunicação portador de um
mais variadas teorias da interpretação acabam por dar relevancia a deter- determinado pensamento que somente se objetiva no contexto da situa-
344 ção objetiva complexa.
minados preceitos das conentes ora em exame , deve-se abando~a: os
radicalismos e buscai· uma posição que represente os pontos positivos Tendo sido salientada a natureza comunicacional da declaração
destes dois grupos de teorias exti·emadas - o que parece consubstanciado negocial, cabe frisar que o aspecto subjetivo desta relação (vontade indi-
na redação do art. 112, do CC/2002 -, até mesmo porque seria absurdo vidual) não pode deixar de ser projetada em uma relação que é por natu-
conceber em um determinado sistema normativo, um subjetivismo ou um reza intersubjetiva (exteriorização e necessidade de cognoscibilidade
objetivis~o puro. Como sustenta Karl Larenz, "a cada uma destas teorias social), pois a declaração deve ser acessível a todos, quer se considere, ou
subjaz uma parte da verdade"345 , razão pela qual as mesmas podem ser não, a cognoscibilidade da declaração como sendo algo autônomo com
relação à vontade efetiva que a originou348 . Nestes termos, cabe adentrar
aceitas com detenninadas limitações.
Como visto a vontade consubstanciada na declaração negocial
346 A concepção objetivista está consignada na teoria da proteção da confiança subjacente
é nos tennos do art. 112, do CC/2002, a vontade relevante e, assim, qua-
à redação do art. 112. do CC/2002. conclusão para a qual a segunda parte do art. 110.
lÍficada pela exteriorização e pela percepção social, ou sej~, é aquela q~e do CC/2002 ("a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja/eito a
ultrapassou a esfera psicológica de seu autor e fez apelo a compreensao reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha co-
nhecimento"). em um viés sistemático. também serve de apoio.
347
curso usual a ficções e presunções quando os efeitos do negócio jurídico nã~ se dão ~ O . 2003. p. 108-109. 214-215 e 255-256. Francisco Marino ainda entende que
?e
em conformidade com o ponto de vista subjetivo; a impossibilidade se e~pl~car o artigo 112, do CC/2002, ao mencionar tanto a intenção quanto o sentido literal da
linguagem, acaba contrapondo um critério de inte,pretação (intenção) indicativo da
tos efeitos jurídicos que se produzem sem ou contra a vontade (ex.: rrrelevancia da re-
necessidade de se examinar sistematicamente a totalidade do material interpretativo,
serva mental) (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992. p. 70, 80-81 e 83).
com um meio de inte1pretação (sentido literal da linguagem), que deve servir como pon-
341 BETTI, 2003a, p. 188. A doutrina indica que o sistema francês adotou a teoria da
to de partida da atividade exegética e contraponto necessário ao exame da situação obje-
vontade, enquanto o sistema alemão optou pela teoria da declaração ( ~ O , 20?3,
p. 142-143; MIRANDA, 1989, p. 224), o que não significa que o tenhan1 feito segum- tiva complexa formada e formadora da relação contratual (MARINO, 2003. p. 209).
348
Como salienta Carlos Ferreira de Almeida, a declaração é um sinal, fato e/ou ato
do os modelos teóricos de fom1a pura e acrítica.
linguístico dirigido ao outro. Embora possa ser expressa ou tácita. escrita ou verbal.
342 FERREIRA DA SILVA, 2006; MIRANDA, 1989, p. 32.
gestual ou produzida por outras fonnas. com ou sem destinatá1io definido. é sempr~
m MIRANDA, 1989, p. 18. ~mitida, dirigida. expedida. transmitida, recebida ou simplesmente conhecida. ou seja.
344 MIRANDA, 1989, p. 132. e sempre referida como comunicação ordenada segundo a estrutura que especifica-
345 LARENZ, 1989, p. 381.
116 Felipe Kirclmer h1terpretação Contratual 117
na análise do procedimento, métodos e regras presentes na interpretação trato que sejam notórios para as partes (circunstâncias do caso), mediante
contratual. prova ou confissão~ p~ra após ~terpretar a declaração negocial 354 , quantifi-
cando os fins econom1cos ahneJados pelos contraentes e os usos sociais355 •
Nesses termos, a atividade exegética não deve se cingir aos li-
2.4 O Procedimento, os Métodos e as Regras de Interpretação
mites da construção jurídica que dê mais tarde ao instrumento (classifica-
Conforme estabelece Pontes de Miranda, a atividade de inter- ção do caso concreto em uma das figuras contratuais típicas). Em matéria
de negócios jurídicos não se pode aplicar uma construção jurídica qual-
pretação do negócio jurídico se desenvolve, em termos instrumentais,
quer para_ após interpretar se atendo a ela. O conceito técnico que se po-
mediante um complexo de operações349. Porém, a complexidade da ativi-
dade não deriva apenas do labor do sujeito, mas também da natureza rnul- nha de etiqueta
. em um contrato ou em uma relação jurídica não influi , a
tifacetária do objeto. priori, na mterpretação. O juízo de que a declaração negocial se trata de
um determinado tipo contratual só pode ser alcançado após a interpreta-
Corno a interpretação dos contratos tem como objeto os elemen- ção do negócio jurídico concreto356 •
•.: .. ·· tos de fato constitutivos do negócio jurídico, os quais compõem uma
situação objetiva complexa na qual se insere o instrumento contratual350, Cabe destacar, também, que o procedimento hennenêutico de-
a atividade interpretativa deve ter em conta todas as circunstâncias do terminativo do significado e dos efeitos jurídicos nada tem a ver com uma
caso351 , as quais devem ser fixadas pelo intérprete antes de proceder à operação de prova ou com a fixação -de oc01Tência ( ou não) de fatos. A
interpretação352 • interpretação dos contratos é posterior à fixação das provas, as quais,
contudo, influirão decisivamente na atividade hennenêutica357 • Coisas
Embora não haja um procedimento fixo, devido a circularidade distintas são os fatos (o que se prova) e o significado dos fatos (o que se
da atividade hermenêutica, um aspecto procedimental merece ser consi- alcança com a atividade exegética). Emílio Betti diferencia com proprie-
derado: a inte,pretação do negócio jurídico depende da .fixação das cir- dade os planos de atuação quando afirma que "na prova trata-se de for-
cunstâncias do caso e, por isso, é salütar que preceda a construção jurí- mar a convicção do juiz sobre o ponto de que o fato a ser provado tenha
dica353. O intérprete deve determinar todos os fatos constitutivos do con- realmente ocorrido: na ilite,pretação, ao contrário, trata-se de entender
o significado e de fixar o alcance da norma jurídica ou de outros precei-
mente corresponda ao ripo contratual em questão (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992,
p. 268-270 e 298).
tos ou espécies jurídicas"358 .
349 PONTES DE MIRANDA. 1954, p. 323. Deve-se afastar, desde já, a concepção de Embora haja semelhanças entre o agir hennenêutico e o proba-
parte da doutrina de que as normas estatais sobre interpretação contratual in1poriam tório, a natureza359 , fmalidade e resultado destas atividades são diferentes:
um determinado procedimento compreensivo. Embora sejam nomrns cogentes (como
será delineado ainda neste tópico), sua apreensão sistemática não impõe um determi-
3
nado procedimento fechado que guie o intérprete rumo à compreensão. 5-1 Gadamer refere que se deve elogiar a compreensão de alguém quando este. julgando,
350
DANZ, 1955, p. 6, 51 e 137. consegue deslocar-se completamente para a plena concreção da situação em que o ou-
351
DANZ, 1955, p. 35 e 93; ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, TI1eodor; WOLFF, Martin. tro atuou, o que não se trata de um saber técnico ou geral, mas de uma compreensão
Tratado de Derecho Civil: parte general. Barcelona: Bosch, 1954. t. I, v. 2, p. 6. de caráter ontológico e situado (GADAMER, 2005, p. 424-425).
355
352
DANZ, 1955, p. 245. Com relação ao sentido usual, cabem duas ressalvas. A primeira, não é necessário que
353 DANZ, 1955, p. 183-184 e 192; BETII, 2007, p. 182-184; BETII, 2003a, p. 126. As a parte conheça os usos sociais para que estes sejam válidos e aplicáveis ao negócio
normas sobre a interpretação não se confundem com as normas supletivas e dispositi- juridico. A segunda, não há lugar para interpretar a declaração de vontade no sentido
vas. Enquanto aquelas servem para desvelar o sentido e configurar a própria espécie usual quando uma das partes tenh[! conhecimento do sentido especial que a outra parte
do negócio jurídico, estas (normas supletivas e dispositivas) servem para delinear os atribuiu (DANZ, 1955, p. 246 e 263-266).
356
efeitos do mesmo negócio juridico. Acerca da aplicação das espécies, tem-se que as DANZ, 1955, p. 29, 49, 86, 183-184, 192,246 e 263-266.
357
normas sobre a interpretação tem precedência lógica sobre as normas supletivas e dis- DANZ, 1955, p. 3, 6 e 7; GADAMER, 2005, p. 444. '
358
positivas, e entre as normas que disciplinam os efeitos da relação contratual e as nor- BETII, 2007, p. 172.
359
mas supletivas, estas tem a preferência. Onde há uma declaração das partes ou um A interpretação não é suscetível de ser objeto de prova, não sendo uma questão de
desenvolvimento integrativo que dela faça parte, em tese não cabe a aplicação das · fato, mas sempre (filosoficamente) de Direito, atinente às tarefas de descoberta do
nomrns que tratem de disciplinar diretamente os efeitos do negócio. (BETII, 2007, sentido, de qualificação dos fatos e de detem1inação dos efeitos juridicos. A aceitação
p. 181-182 e 184). de que a atividade hermenêutica está muito vinculada aos fatos não é suficiente para
Interpretação Contratual 119
118 Felipe Kirchner
Assim, ao embasar a hennenêutica filosófica em critérios diver- v~ ao método cien!ífico, p_oi~, muito embora traga uma compreensão ue
sos do fundamento de certeza defendido pela cientificidade metodológica, nao se reduz ao umverso logico-semântico, não O dispensa369_ q
Gadamer não empreendeu uma cruzada anticientificista 367 e jamais negou A henne~êut!ca ~losófica jamais se apresentou como substituto
a imprescindibilidade do trabalho metodológico nas ciências do espírito, d~ 1;1111ª _met~dologia cientifica. Nesses tennos, a questão central é saber
tendo se iITesignado apenas com relação as suas pretensões monopolis- d1stmgmr ate ?nde a he~1nenêutica, dando conta da racionalidade que
tas368. Mesmo no âmbito interno, a hennenêutica filosófica concede rele- p~~te?de possuir e produz1r, pode se utilizar do método científico, e onde a
c1encrn
•d d pode
370 0 se valer da hennenêutica para dar conta de sua propna ' · cienti-· ·
ramo do conhecimento, razão pela qual aquelas não podem cumprir com o mesmo :fic1 a e . corre que o ~onhecimento fundado na metodologia científica
ideal de disciplina metodológica e de objetividade destas, até mesmo porque as ciên- ~roduz result~dos verdadeiros, mas o método só se torna reahnente produ-
cias naturais deixam de considerar o conhecin1ento histórico (GADAMER, 2004, t1_vo quando vrnc~l~do a questões que não se produzem por meio do conhe-
p. 63; GADAMER, 1998a, p. 153-154; GADAMER, 2007b, p. 185; VILA-CHÃ, ct.mento metodologico, mas da experiência do ser-no-mundo.
2000, p. 305). Mesmo quem considera que todas as ciências estão sujeitas aos mes-
'•• .. •: .. ·· mos critérios de racionalidade, não pode ignorar que os interesses e procedimentos . Embora_ a abord~g~m dos diversos métodos interpretativos não
das ciências do espírito são substancialmente diversos daqueles que animam as ciên- esteja com~r~end!do nos h~mt~s do presente estudo, 0 mesmo não recha-
cias naturais (GADAMER, 2004. p. 368; GADAMER. 1977a, p. 17-18; GADAMER, ça a sua utihzaçao
e. l para atrngir o sentido da relação contr·atual , nao ~ en-
1977b, p. 281; REALE, 1999, p. 203). Gadamer refere que as ciências do espírito, ao trando, de J.Onna a guma, em choque com tal possibilidade A e
lidar com a rica escala do humano, de tudo o que é demasiadamente humano (Nietzs- ~ • t 'f d • , . . . s uemat·i-
q
che), gozam de privilégios que não possui nem a ciência mais exata. Seu objeto não
zaçao sm e •ica o rac10ciruo
h aqm defendido que aceita a relaça~o d.ial e't·ica
entre expenencia
A • A • ,
está submetido a uma ciência explicativa, pois se encontra referenciado a ordens cria- ~ d enneneutica e experiência metódica e'
, o segum · te.. a
das e constantemente modificadas pela intervenção humana, o que impede a formula- cone,1d" usao ·e que o
·fi • alcance da verdade se dá para ale'rn d d"
o proce nnento
ção e perpetuação de garantias teóricas e científicas (GADAMER, 2004, p. 372; GA- meto·1· ico, cientl icista não significa entender que a pra'ti·ca cien · t'fi
1 ica nao
~
DAMER, 2007b, p. 208; GADAMER, 1998a, p. 170). A proposta atual de junção e uti ize metadas que podem ser de grande valia no catninh d
diálogo entre os grupos científicos não se deve ao fato das ciências humanas terem ~ h A 311
• o a compreen-
sao enneneutica
l . . No que diz com o cornbate ao sub.~et·lVISlllO, · por
aumentada sua precisão, mas, sim, ao fato das ciências naturais terem se transforma-
do, admitindo que seu saber está adstrito a uma dimensão temporal e que também se e~emp o, as regras mteipretati'-:as agem como pautas de padronização que
valem de explicações narrativas essencialmente históricas (GADAMER. 1998a, visam a controlar ou gmar a pre-compreensão do intérprete.
p. 153-154; GADAMER. 2007b, p. 185). Ademais, as próprias ciências (humanas ou . Ao _definir o compreender não como um comportamento disci-
naturais) são mais do que o método nelas utilizado. pois como adverte Latour "a ciên- pl!nado e g_inado por regras (procedimento científico) mas como uma
cia não é produ=ida cientificamente, assim como a técnica não o é tecnicamente"
(LATOUR, (s.d.], p. 114). atitude enraizada~~ existência humana (Dasein), a hen~enêutica filosófi-
367
Antes de combater o ideal científico, Gadamer pretendeu acabar com a autoridade da ca transcende a c~~ica_ ao método, :ompendo com a tradição cientificista e
ciência, colocando-a em seu devido lugar ao desmistificar suas pretensões objetivistas converten~o a ':'._tsao 111s,tr:1menta_hsta presente na interpretação clássica
e monopolizadoras. Seu projeto de uma hermenêutica filosófica jamais se apresentou e~ uma_ d1111ensao on!ologi_ca, evitando a "cientifização" da práxis social
corno substituto de uma metodologia científica. O que Gadamer questiona é o método e lillpedrndo que o existencial humano que é o compreender seja reduzido
enquanto garantia de verdade ao reconhecer sua parcialidade no conjunto da existên-
cia humana e de sua racionalidade. Assim sendo, cai por terra a pretensão de objetivi- c~nceito moderno de ciência metódica possa persistir com todo O riaor de s •
dade com o uso de uma determinada metodologia. pois parece ser inegável qúe o mé- aencias que 11 ' , • o uas exz-
º , os, Pº'.·~m, precisemos reconhecer os seus limites e aprender a retomar
todo (seja ele qual for) jamais é neutro ou imparcial (GADAMER, 2004, p. 565). 0
noss~ poder ~ogmhvo, de 11111 saber refletido, que se nutre da h·adição cultural da
368
GADAMER, 2005, p. 15; GADAMER, 2004, p. 50, 297, 368, 508-509 e 535; huma~~zd~de. Nos deverzamos manter isso constantemente em vista junto ao fomento
GADAMER, 2007b, p. 193; GADAMER, 1998a, p. 159 e 167; GADAMER, 1977b, das czenczas pelo homem" (GADAMER, 2007c, p. 25).
369
p. 279; GADAMER, Hans-Georg. Gadamer ln Conversation. New Haven: Yale SIBIN, 2004. p. 31-33.
University Press, 2001. p. 41. Nesse contexto, não se pode dizer, sequer, que a teoria 370
GADAMER., 2003. p. 47-48 SIBIN 2004 10 ·
gadameriana se encontra em tensão com o ethos científico. Refere Gadamer que o ca- t 'li · · · P· · Ap01ando-se no pensamento aristo-
ráter dialógico da compreensão por ele defendido ·•em nada prejudica a extraordiná- :. co_. n~ mesn!~ pass~~en~ Gadamer refere que um método unitário. que abarcasse
ria metodologia da ciência moderna. Quem quiser aprender uma ciência precisa do- ~ienc:s o 7spmto e _c1enc1as da n?~reza. é uma falsa abstração. pois é O objeto que
minar sua metodologia. Sabemos também que a metodologia em si não garante a e:v~. etennm~ o _metodo a ser utilizado. Sendo díspares os objetos das ciências do
produtividade de sua aplicação'" (GADAMER, 2004. p. 263-264). Em outra passa- 371 ARApmt~ e das c1enc1as da natureza. diferentes devem ser suas práticas de abordagem
UJO, 2005. p. 214. . .
gem, o autor assim se posiciona: "parece-me válido para a ciência do homem que o
Interpretação Contratual 123
122 Felipe Kirchner·
A hennenêutica contratual é uma tarefa que requer que o sujeito a compreensão depende da pré-compreensão do intérprete "que, por sua ve=, carece
cognoscente detenha diversas competências em seu horizonte 387 , dentre dafimdamentação teórico-constitucional. A Teoria da Constituição converte-se, com
isso, em condição tanto da compreensão da norma como do problema" (HESSE.
os quais se destacam as aptidões de ordem técnica (v.g.: conhecimento 1998. p. 63). Sobre o tema em exame, a pergunta que se impõe é a seguinte: qual o
sobre o sistema jurídico, a dogmática e a jurisprudência), filológica ( ex.: papel e o poder da doutrina hoje? A importância da pesquisa cientifica na prá.r:is fo-
domínio da língua estrangeira em contratos bilíngues) e fática-material rense é decisiva. principahnente em face da pretensão de resguardar a intersubjetivi-
(v.g.: domínio das condições mercantis do negócio jurídico, bem como dade da atividade hermenêutica. A questão é proposta não de maneira emnlativa, pois
dos usos e costumes que envolvem a contratação), abrangendo preconcei- existe uma forte corrente pregando o poder de nma autoridade arbitrária, que vem de
encontro à pretensão de conceder segurança jurídica à aplicação do Direito. Exemplo
tos trazidos pela doutrina388 e, especialmente, pela lei estatal (ex.: inter- emblemático desta situação se encontra na fala do ministro Humberto Gomes de Bar-
ros no voto do AgRg nos Embargos de Divergência em REsp 319.997-SC, do qual foi
auxiliando na sua compreensão), o que desvela uma estrutura dialógica da compreen- relator para o acórdão: "Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto
são (GADAMER, 2004, p. 68 e 247; GADAMER, 2005, p. 396 e 474-476; GADA- for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdi-
MER, 2007b, p. 39). Destacar um preconceito implica suspender a sua validade, o que ção. O pensamento daqueles que não são AJinish·os deste Tribunal importa como orien-
..... : . ·· se realiza fundamentalmente por meio da estrutura da já mencionada pergunta orien- tação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa A1o-
tada, pois no horizonte gadameriano tudo o que é compreendido é compreendido co- reira 011 Athos Carneiro. Decido, porém, c01iforme minha consciência. Precisamos
mo U111a resposta a uma pergunta, e o sujeito só compreende quando compreende a estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É
pergunta para o qual o objeto é resposta (compreender a coisa significa compreendê-la preciso consolidar o entendimento de que Õs Srs. Ministros Francisco Peçanha Mar-
como resposta a U111a pergunta) (GADAMER, 2005, p. 482, 487-489, 492-493, 507 e tins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ de-
510). Por fim, cabe destacar que mesmo os preconceitos ilegítimos (ex.: derivado de cide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses A1inistros. Esse é
Ullla autoridade autoritária) podem se mostrar verdadeiros no curso da atividade her- o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a douh·ina que se amolde a ele. É
menêutica, pois não há U111a relação direta entre ilegitimidade e incorreição. fimdamental e::o.pressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendi-
387 GADAMER, 2004, p. 358-359. É somente com a posse de U111 horizonte e pré- =es de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corqjosamente assumimos a de-
-compreensão legítimos que o intérprete está habilitado a falar de determinado tema claração de que temos notável saberjurídico - uma imposição da Constituição Fede-
de forma objetiva, com propriedade e rigor científicos (HECK, 2007a). ral. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos
388 O problen1a da pré-compreensão assun1e grande importância na atividade prática do constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja". Em rápida
jurista, especiahnente no sistema de civil law, que é tributário de U111 campo dogmáti- análise histórica da importância da doutrina no curso de fonnação do Direito Privado.
co de conhecimento. Devido aos estreitos limites do presente estudo, não se irá anali- tem-se que no período do Direito Romano a autoridade dos jurisconsultos era outor-
sar diretamente a influência da doutrina na criação, interpretação e aplicação do Direi- gada pelo imperador. tendo a doutrina passado a exercer papel mais relevante a partir
to. Porém, deve-se mencionar a autoridade decisiva desta fonte no plano hennenêuti- do Direito Medieval (Idade Média), onde as fontes jurídicas tomaram-se dispersas de-
co, não apenas pelo fato da mesma estruturar e conformar o Direito, mas porque faz vido a fragmentação do poder centralizador do Estado Romano (período do feudalis-
parte integrante da pré-compreensão de qualquer operador jurídico que pratique a sua mo). Superada a fase de nova centralização de poder em estados nacionais, fruto do
atividade com a minima seriedade. Sustenta Maria Cláudia Cachapuz que "'inexiste período compreendido pelo Direito Moderno, o Direito Contemporâneo iniciou com a
separação estanque entre dogmática e inte,pretação, não apenas pelo fato de os lei como sendo uma fonte nonnativa estática (visão fruto do pensamento positivista).
enunciados dogmáticos tornarem-se relevantes para a inte,pretação jurídica, como o que fez recuar a importância dos doutrinadores. Contudo. a erosão da centralidade
pela ideia de o enunciado dogmático existir em fimção de uma inte,pretação, deter- da nomia (superação do positivismo a paiiir da metade do Século XX) deu novo rele-
minando esta e sendo por ela também determinado. (..) A relação entre dogmática e vo a doutrina, em especial no que respeita a necessidade de adaptação do Direito a re-
inte,pretação, por consequência, não deve ser vista como simples complementarieda- alidades sociais cada vez mais complexas. velozes. fragmentadas e líquidas (Zyg111w1t
de entre dois mundos. Evidencia, antes, o esforço conjunto do inté,prete e da própria Bauman). Porém, o que hoje se percebe é uma crise de identidade da doutrina, que
linguagem para permitir que se chegue e uma solução adequada a cada novo caso deixou de enfocar o Direito e a realidade social regulada. passando a se preocupar
concreto, ao mesmo tempo em que se mantenha aberta a estrutura da norma às expe- apenas com a veracidade dos seus próprios argwnentos, tomando-se seletora dos pro-
riências fi1t11ras" (CACHAPUZ, Maria Claudia. Intimidade e Vida Privada no Novo blemas jurídicos relevantes. Assim. hoje identifica-se um enfraquecimento da doutrina
Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fab1is, 2006. p. 180-182). Em Gadamer há como ciiadora de modelos hermenêuticos. que é a sua função precípua, conforme des-
uma relação essencial entre hermenêutica e dogn1ática (jurídica), embora aquela ocu- tacado por Reale. Como menciona Judith Martins-Costa. os modelos prescritivos são
pe papel dominante, por não ser sustentável a ideia de U111a dogn1ática totalizante e dados pelos legisladores e julgadores, uma vez que suas decisões são impostas e co-
compreendida fora do ato de interpretação, não havendo falar, portanto, em uma dou- gentes, podendo-se falar desse tipo de modelo na doutrina na medida em que deveria
trina perfeita a ser aplicada por meio de simples ato de subsunção (GADAMER, 2005, fornecer modelos hermenêuticos a serem quantificados (e respeitados, ao menos nos
p. 433; MUSEITI, Rodrigo Andreotti. A Hermenêutica Juridica de Hans-George Ga- planos cientifico. argumentativo e/ou politico) pelos legisladores e j1,1lgadores. O evi-
damer e o Pensamento de São Tomás de Aquino. Revista do Centro de Estudos Ju- dente desbalanceamento de ftmções acarreta na doutrina pretendendo constituir mode-
diciários, v. 7, 1999, p. 153). Já Hesse, visando a doutrina constitucional, sustenta que
Interpretação Contratual 129
128 Felipe Kircbner.
horizontes significativa de uma sintonia linguística entre o sujeito e obje-
pretação favorável ao aderente, prevista no art. 423, do CC/2OO2)389 . Se 0 to na qual se realiza a composição da compreensão da interpretação e da
intérprete não vê claramente o sentido da situação objetiva complexa ', ~ 393 '
aphcaçao .
porque lhe são estranhas as relações da vida de que se trata, deve se in-
fonnar com os conhecedores destas relações (v.g.: peritos e técnicos) para A interpretação se dá como um processo de fusão de horizontes,
alcançar os conhecimentos objetivos necessários390 . pois compreender significa descolar e deslocar o horizonte de compreen-
são ao outro sem suprimir o próprio, sendo a fusão representativa da inte-
O já mencionado horizonte é o âmbito de visão que abarca e en-
ração daquilo que se conhece com o que se propõe a conhecer, alcançan-
cerra tudo o que pode ser visto a partir de uma determinada situação her- do a universalidade da compreensão394 .
menêutica391, sendo composto, essencialmente, pela profundidade da pré-
compreensão histórica, cultural e linguística392 do sujeito cognoscente. Cabe ressaltar que, no âmbito da situação objetiva complexa, a
Também por este prisma se percebe que a operação hennenêutica não declaração negocial encerra uma verdadeira fusão dos horizontes dos
realiza o conhecimento exaustivo do objeto, mas promove uma fusão de contratantes acerca do negócio jurídico regulado pelo instrumento. 395
Este, sendo o produto final do acordo de vontades, não encampa nenhuma
... : . ··
vontade singularizada, mas, sim, a vontade unificada dos contratantes
los prescritivos e na jurisprudência tentando fommlar modelos hermenêuticos. Sendo que, sendo algo bastante diverso da mera soma das vontades, não pode
certo que doutrinar não se resume ao estabelecimento de critérios para garantir segu-
rança, a omissão nesse desiderato pelos doutrinadores acaba relegando a tarefa exclu- ser desmembrada, especialmente tend0 como parâmetro a vontade parti-
sivamente para os julgadores, os quais formam uma jurisprudência completamente as- cular de qualquer das partes. O contrato implica a participação em um
sistemática, a qual deve ser sistematizada pela análise doutrinária. No que respeita aõ significado comum no acontecer da comunhão de autonomias, sendo
objeto específico deste estudo, Tércio Sampaio Ferraz Júnior menciona que a doutrina exatamente sobre essa vontade unificada que o intérprete se debruça em
está atrelada à razão (ratio), a qual, no jogo de poder da interpretação, se situa na for- sua tentativa hennenêutica, e é sobre este horizonte que procura fundir o
ça vinculante do objeto, razão pela qual também a doutrina pode e deve estabelecer
seu.
vinculações ao hermeneuta.
38Q Os métodos e cânones de interpretação estão situados na pré-compreensão e na No processo de compreensão, a unidade de sentido a ser alcan-
autoridade da tradição (jurisprudência), auxiliando no controle do subjetivismo çada na atividade hermenêutica se amplia em círculos concêntricos396 ,
(MARTINS-COSTA, 2005b, p. 136). Embora não se constituam em condição ne-
cessária ao compreender, as regras legais e doutrinárias sobre interpretação contra-
3Q3 ROCHA 2000, p. 325.
tual agem como pautas de padronização que visam controlar ou guiar a pré-
-compreensão do intérprete, contribuindo na tarefa de separar os preconceitos legi- J9-I ALMEIDA: FLICHINGER: RHODEN. 2000. p. 176. O deslocamento à alteridade do
timos dos ilegítimos. . objeto pennite que o sujeito cognoscente tome consciência da individualidade irredu-
390 tível do outro._ascer~dendo su~ c?mpreensão a uma universalidade mais elevada, supe-
DANZ, 1955, p. 100. O encontro do intérprete com o objeto não se dá en1 utn contex-
radora da particulandade do mterprete e do objeto. fazendo surgir algo que antes não
to exterior ao tempo e ao espaço que constituem seu horizonte, mas, sim, em um tem-
havia (GACKI. 2006, p. 20).
po e lugar detenuinados (PALMER, 1997, p. 140). No campo da interpretação dos 395
Refere Gadamer que "o inté1prete e o texto possuem cada qual seu próprio 'hori=011•
contratos, o intérprete, de uma forma ou de outra, sempre possuirá um certo horizonte,
te' e todo compreender representa umaji1são desses hori=ontes" que. mesmo separa-
porém o que a atividade hem1enêutica exige é a existência de um horizonte legítimo,
dos como pontos de vista diferentes. fundem-se em um único (GADAMER, 2004.
que abarque as competências técnicas e a realidade socioeconômica em que imersa a
p. 132-405). Guardadas as devidas particularidades teóricas, Betti não apenas aceita a
relação contratual.
391 existência de um horizonte hem1enêutico e histórico (embora utilize a expressão hori-
GADAMER, 2005, p. 399. O horizonte jaiuais se apresenta verdadeiran1ente fechado,
=onte ~spiri~ua~ ~o sujeito pensante) (MEGALE. 2005. p. 147). como alcança a ideia
não detendo limites rígidos, pois ele é "algo no qual trilhamos o nosso caminho e que
do cara!er_drnlogico da compreensão e da fusão de horizontes quando afirma que "só
conosco /a= o caminho", se deslocando ao passo de quem se move, mesmo no que pelo tra1111te de formas representativas (. ..) os homens podem chegar a entender-se
tange ao aspecto histórico, que tan1bém forma e conforma o horizonte do sujeito cog- entre eles e constituir, nas relações recíprocas, comunhões de espiritualidade'º
noscente (GADAMER, 2005, p. 400). (BETTI. 2007, p. XXXIV: BETTt 2003a. p. 79). '
392
Gadamer adverte que "o pensamento central das discussões que se seguem [em Ver- 396
Gadamer entende que o círculo hennenêutico não detém natureza fom1al, não sendo
dade e .Método} é o de que aji1são de hori=ontes que se deu na compreensão é o ge- metodológico, objetivo ou subjetivo, pois descreve um momento estruh1ral ontológico
nuíno desempenho e produção da linguagem" (GADAMER, 2005, p. 492). Assim, o da compreensão (GADAMER, 2005, p. 388-389), servindo para mediar a interação
intérprete e a linguagem (que estrutura sua compreensão) se movem em um único ho- ~ntológíc~~dialética en~e a consciência histórica do intérprete e a abertura interpreta-
rizonte, que é onde o intérprete trilha seu caminho e com ele constitui e estrutura tal ca-
tiva penmtida pelo obJeto. Contudo, embora o ideal mediado pela noção do círculo
minho (GADAMER, 2005, p. 402: GADAMER, 1998a, p. 120: STEIN, 2004, p. 23).
Interpretação Contrahial 131
130 Felipe Kirchner
A inte1pretação não é "o ato", mas "a atividade" ou processo de cor-
pois o movimento da compreensão vai constantemente do todo para a relação .entre palm ras, frases, a tradição, o contexto do caso, e as
1
parte e desta de volta ao todo, que deve ser compreendido a partir do fimções da norma ou do instituto jurídico em causa, bem co1110 a cor-
relação entre aqueles e os valores jurídicos implicados. Como ativi-
individual e o individual a partir do todo, de tal sorte que a concordância dade que é supõe, portanto, 11111 'ir e vir' entre o texto, os fatos e o va-
de cada particularidade com o todo é o correspondente critério para a lor que a ordem jurídica atribui, normativamente, aos fatos regulados
397
justeza da compreensão (movimento parte-todo-parte) , gerando por textos 399 •
concepção prévia de pe1feição (antecipação da coerência pe1feita), que
constitui em uma pressuposição que guia o compreender, indicando que A antecipação de sentido acerca de detenninada disposição con-
só é compreensível aquilo que realmente apresenta uma unidade de senti- tratual400 deve ser confinnada na situação objetiva complexa e esta na
do completa398 • redação do instrumento representativo da autonomia das partes. Havendo
Merece destaque a lição de Judith Martins-Costa, que aponta a um choque entre a antecipação de sentido e o texto e/ou contexto contra-
circularidade hennenêutica entre texto, fatos e valores atribuídos pela tual, o intérprete deve propor um esboço posterior de sentido, uma outra
ordem jurídica em conexão com a necessidade de um raciocinar concre- interpretação a ser também submetida ao texto e/ou contexto contratual.
Se esta se mostrar novamente inadequada, cabe ao intérprete a fonnula-
tamente por meio de critérios de ponderação capazes de conjugar a reali~
ção de quantas forem necessárias até alcançar a compreensão a partir da
dade do negócio com as escalas normativas dadas pelo sistema jurídico:
coisa mesma, pois a circularidade hermenêutica401 consiste no retomo
Vista ao modo processual, a atividade hermenêutica inicia com a qua- reflexivo e contínuo do projeto prévio à coisa interpretada.
lificação dos fatos (em si mesma já resultante de uma prévia inte1pre- No campo da interpretação dos contratos, o movimento da
tação) - isto é, com a sua inserção em determinadas categorias jurí-
compreensão parte-todo-parte alcança a verificação da sistematicidade
dicas ou institutos - prossegue com a confrontação entre os dados
normativos (resultantes daquela qualificação) e o caso; continua com interna e externa da situação objetiva complexa402 , o que remete às dire-
a m,afiação do caso e de suas circunstâncias à luz de elementos axio-
lógico normativos; e finaliza com a ponderação (que inclui a organi- 390 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 130.
zação de todos esses dados) segundo escalas dadas pelo sistema, só 400 A antecipação de sentido que guia a interpretação não ocorre como um ato de subjeti-
então se podendo afirmar - e em vista do caso concreto - qual é o vidade, pois se trata de um acontecer que se dá a partir de uma comunhão com a tradi-
sentido da regulação jurídica proposta por um texto abstratamente ção (MOLLER, 2006, p. 87). Contudo, não se pode olvidar que a mesma se trata de
vazado. (. ..) um golpe de audácia do sujeito que espera ser confim1ado no objeto (GADAMER,
2003, p. 101). O conhecimento circular é diferente do linear pregado por concepções
hem1enêutico se afaste da metodologia científica, não se pode negar qne as conse- positivistas, pois depende de constantes idas e vindas e de atos de desprendimento por
quências pragmáticas do conceito são qualificadoras de um detem1Ínado método de parte do intérprete (HECK, 2007a).
abordagem do objeto interpretado. Nesse sentido a observação de Emildo Stein, para 401 Talvez o mais correto fosse dizer que para Gadamer a compreensão não apresenta
quem "no método hermenêutico a relação entre sujeito e objeto se dá numa relação uma estrutura tipicamente circular (o que indicaria um movimento contínuo de retomo
de circularidade" (STEIN, 2004, p. 26). ~o ponto de partida), mas espiral (LARENZ. 1989, p. 243; ROCHA, 2000. p. 324).
397 GADAMER, 2005, p. 261 e 385-386; HESSE, 1998, p. 62. Não é possível ao intér- Insito a esta noção está a ideia de que o processo de desenvolvimento hermenêutico.
prete se desvencilhar da circularidade da compreensão, razão pela qual a questão não sendo essencialn1ente dialético, nunca retroage ao início, uma vez que cada exegese
é como sair ou evitar o círculo, mas, sim, como estar nele de um modo adequado, ad- conduz a um novo patamar, mais alto e abrangente. Esse fenômeno é bem representa-
quirindo consciência dos prejuízos ilegítimos desconhecidos (LAMEGO, 1990, do pictoricamente pela metáfora geométrica do círculo espiralifonue, referido por
p. 135; RAMOS, Ana López. H. G. Gadamer. Revista Eletrônica A Parte Rei, n. 22. Alexandre Pasqualini, o qual possui círculos que jamais se fecham, sendo uma es-
Disponível em: <http://www.aparterei.com>. Acesso em: 25.09.2007). Enfocando o pécie de "redemoinho que está eternamente subindo e alargando a harmónica 'tri-
plano da constituíção do ser humano, corrobora com o movimento da compreensão formidade' (. ..) entre o sistema, a comunidade dos juristas e o hori=onte da tradi-
parte-todo-parte a observação do ministro Carlos Britto, em voto proferido no proces- ção" (PASQUALINI, Alexandre Correa da Câmara.' O Papel Sistemático Trans-
so de extradição 986: "todo indivíduo é 11111 microcosmo: se faz parte de 11111 todo social, formador da Hermenêutica Jurídica Especialmente no Direito Público. Disserta-
é também 11111 todo à parte; se faz parte de algo, é também algo à parte" (Ext ção (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito. Pontificia Universidade Católica do
986/Bolívia, Rei. Min. Eros Roberto Grau, Tribunal Pleno STF,j. em 15.08.2007). Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 1999. p. 68).
402
398 GADAMER, 2004, p. 72, 74 e 77. GADAMER, 2003, p. 99-100 e 107-108. Essa O círculo hem1enêutico abarca questões internas do fenô1neno interpretativo~ dizendo
pressuposição diz com a coerência da interpretação em seu sentido formal (expressão com aspectos intrínsecos do objeto (parte-todo-parte). mas também externas. da rela-
adequada de pensamento) e material (verdade).
h1terpretação Contratual 133
132 Felipe Kirchner
alcançada, analisando-se tanto o prisma fonnal, do qual se infere que tais
trizes do pensamento sistemático, es~ecial_m:nte_ n~ que respei~a à i,~sepa- nonnas também são leis em sentido estrito (o fato de darem instrnções ao
rab ilidade da normatividade das dzspos zçoes 1urzd1cas cont, atuais. No intérprete para proceder de determinado modo não priva sua natureza de
processo exegético, o intérprete parte da ideia do todo c<:_ntido n~ situa- nonna estatal), quanto o material, pois, em face do princípio democrático
ção objetiva complexa para chegar ao :fra~nento que sao as c~aus~las e da constituição do Estado de Direito brasileiro, seria um contrassenso
contidas no instrumento, de onde deve partir, novai:1~nte, em dtreçao a supor que o legislador, no exercício do poder legislativo, estivesse a emi-
uma compreensão mais clara e completa do todo ongmal, alcan~ando a tir meros conselhos quando da edição destas regras406 • Ao encontro destas
objetividade do conhecimento mediante avanços e re~uos no ~amu:uio da considerações é o pensamento de Carlos Ferreira de Almeida:
compreensão. O significado dos termo~ da declaraçao _negocial s? po~e
ser compreendido na conexão de sentido com a totah?ade ~a situ?~ªº Todas estas regras constantes de fontes formais de direito são verda-
objetiva complexa, sendo que a significânci_a desta tambem esta condicio- deiras normas jurídicas. Podem corresponder 011 não a máximas de
experiência, podem ter natureza ir/juntiva ou dispositiva, podem cons-
nada pelos tennos utilizados na redação do mstrumento. tituir uma rede 111ais ou 111enos apertada de cânones hermenêuticos,
Em se tratando da discussão acerca do procedimento interpreta- mas essa flexibilidade não lhes retira natureza jurídica, como não
tivo mister se faz enfrentar algumas questões atinentes às regras estatais. perdem natureza jurídica quaisquer normas que inspirem na prática
que 'influenciam a atividade interpretativa, ?s quai~, embora n_ão consti1';1a?1 social (. ..) ou que exijam na aplicação 11111 elevado grau de liberdade
0 conteúdo do contrato, integram o conteudo da mterpretaçao do negocio de apreciação407• •
-1 3o LARENZ, 1989, p. 384. tual é de todo evidente, como destacam Francesco Gambino (GAMBlNO. Franceso.
431 LARENZ, 1989, p. 384. L'Interpretazione dei Contratto in Emilio Betti. /11: IRTI, Natalino (Org.).
432 Mesmo se do ponto de vista teórico se entendesse que os cânones e métodos de inter- L'Interpretazione dei Contratto nella Dottrina Italiana. Padova: Casa Editrice
pretação sejam formulados com todo rigor e plenih1de, eles nunca poderiam atuar me- Dott. Antonio Milani (CEDAM), 2000. p. 232) e Giuseppe Zaccaria (ZACCARIA.
canicamente, já que em sua aplicação sempre subsiste um coeficiente imponderável e 1996. p. 162).
438
inapreensível de intuição e destreza pessoal (ANDRADE, 1987, p. 10-11), o que se As principais questões dizem com seu conceito das formas representativas (que se
pode relacionar com a vinculabilidade da pré-compreensão e a ausência de separação constituem no seu objeto da interpretação), visto no tópico "O objeto e os limites da
entre sujeito-objeto presentes no paradigma gadameriano. Como a interpretação se dá atividade hermenêutica"; sua visão fragmentária (não-unitária) do fenômeno henne-
no horizonte do intérprete, não se pode conceber que esta corresponda à aplicação de nêutico embasada em critérios de funcionalidade. visto no tópico "A delimitação do
um método exterior ao mesmo. embora se possa entender que os cânones interpretati- horizonte hem1enêutico'': e sua noção de que a interpretação se constitui em um pro-
vos componham o horizonte do sujeito cognoscente (SILVA, 2005, p. 278-279). cesso essencialmente reprodutivo. visto no tópico "O caráter criativo. construtivo e
433 GRAU, 2003, p. 39 e 104-105. Este problema é reconhecido até mesmo por autores de produtivo da atividade hem1enêutica".
matriz positivista, como se infere da obra de Hans Kelsen (KELSEN, 1998, p. 391-392). m O reducionismo da hennenêutica ao método. promovido por Enúliô.·Betti. é expres-
-1 3-1 O caráter de arbitrariedade deste proceder metódico somente não é mais combatido na samente criticado por Gadamer, embora este tenha reconhecido a importância da teo-
prática jurídica porque, além de aceitar uma margem de livre apreciação do intérprete,
Interpretação Contratual 143
142 Felipe Kirchner_
a apresentação individual de cada postulado, o que atende a critérios di-
Visando uma solução que leve em consideração os ideais de se- dáticos, deve-se precisar que há urna relação de complementação e restri-
gurança jurídica e c01Teção, sem recair nos equívocos de pensamentos ção recíproca entre os cânones hennenêuticos, cttja utilização só pode se
extremados441 , Emilio Betti entende garantir o êxito epistemológico da dar de fonna conjunta. ·
interpretação não apenas com a organização e sistematização da atividade O primeiro cânone hennenêutico proposto é o da autonomia do
hennenêutica nos vários campos do saber442 , mas também com o condicio- objeto ou da imanência do critério hermenêutico, sobre o qual refere
namento da interpretação mediante a utilização necessária de um ferra- Betti que "em verdade, se as formas representativas, que constituem o
mental de ordem metodológica443 , composto por quatro cânones henne- objeto da interpretação, são essencialmente objetivações de uma espiri-
nêuticos. Como o jusfilósofo italiano trabalha com a existência de uma tualidade que nelas está posta, é claro que devem ser entendidas segundo
separação entre sujeito e objeto, os dois primeiros cânones (autonomia e aquele espírito que nelas está objetivado"445 • O postulado induz a neces-
totalidade-coerência) se referem a este pólo da relação hermenêutica sária subordinação do intérprete à coisa ao apontar que o sentido deve
(formas representativas), enquanto os outros dois (atualidade e adequa- corresponder ao que se encontra no dado e dele se extrai, e não ao que
........ ção) dizem com o sujeito cognoscente444 • Embora a exposição contemple para ele se transfere a partir de fora446 •
Nesses termos, Emilio Betti defende a submissão do henneneu-
ria do jusfilósofo italiano no desenvolvimento de um sistema de regras que descreves-.
sem o procedimento metodológico em uma teoria geral da interpretação (GADAMER, ta à coisa interpretada, no sentido de que "a forma representativa deve
2005, p. 18; GADAMER, 2004. p. 369). As observações do filósofo alemão acerca da ser entendida na sua autonomia, segundo a sua própria lei de formação,
teoria bettiana derivam das já mencionadas diferenças dos pontos de partida e chegada sua necessidade, sua coerência e sua racionalidade interiores", e não
de cada um dos pensamentos. Enquanto Gadamer busca o caráter ontológico da com- conforme um sentido extrínseco que ao intérprete pareça mais próximo
preensão e o encontro com o ser no processo hermenêutico, Betti procura o que é prá- ou adequado447 • Esta consideração reflete, ao seu modo, a formulação
tico e útil ao intérprete, visando delinear normas que estabeleçam a diferença entre
uma interpretação certa e errada (ALVARENGA, 1998, p. 80). gadameriana da força vinculante do objeto interpretado, pois ambos os
44 ° Cabe salientar que existem inúmeros pontos de contato entre as correntes de pensa- conceitos demandam uma abertura do intérprete projetada para o desco-
mento. Os cânones interpretaticos. mesmo com as especificidades próprias de estarem nhecido e para à alteridade da coisa, o que implica que aquele deixe valer
inseridos em um pensamento henuético como o de Emilio Betti, realçam e resguar- algo contra suas próprias convicções. O que realmente diferencia as con-
dam importantes aspectos defendidos pela hermenêutica filosófica, embora por cami-
nhos diversos. A possibilidade de aproximação das teorias por meio dos cânones her-
cepções não é o teor do postulado, mas sua consequência dentro de cada
menêuticos foi ressaltada por Juarez Freitas (FREITAS, Juarez. A Melhor Interpreta- vertente teórica. No paradigma bettiano a autonomia do objeto é radicali-
ção Constitucional "Versus" a Única Resposta Correta. 111: SILVA, Virgílio Afonso zada, pois a mesma é conduzida à noção de reconstrução e ao abandono
da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 320). do caráter criativo do procedimento hennenêutico, o que resta sintetizado
441 A correta apreensão da teoria metodológica de Emilio Betti passa, inicialmente, pela por Betti com a menção ao brocardo sensus 11011 est inferendus, sed effe-
análise de sen principal objetivo dogmático, que é o de refutar as posições extremadas rendus (o sentido não deve ser imposto, mas extraído).
das teorias positivistas e da escola do direito livre. Para o doutrinador italiano o positi-
vismo, ao privilegiar a segurança juridica e a certeza do Direito, acabou adotando uma
equivocada concepção estática e anti-histórica do ordenan1ento que colocou em risco o ocupando-se do sujeito cognoscente, visam assegurar a correição da decisão herme-
ideal de correção das decisões, enquanto a escola do direito livre, ao se afastar do aspec- nêutica, o que nos limites internos da teoria bettiana cumpre com seu desiderato de
to negativo da influência da teoria positivista, acabou falhando no sentido oposto, dei- permitir o relacionamento dos fatos aos elementos nonnativos sem que qualquer dos
xando muita liberdade ao operador em sua tarefa de correção da lei, o que acabou por ideais supramencionados seja comprometido (PESSOA. 2001. p. 75-76 e 112-113).
ignorar a necessária subordinação do intérprete à nonna e, consequentemente, resultou -1-1 5 BETII, 1990a, p. 305.
446
no aniquilamento das garantias da segurança jurídica e da certeza do Direito (PESSOA, REALE; ANTISERI, [s.d.], p. 265: Essa fonnulação atende ao conceito das formas
2002, p. 18-19, 22-25, 36-37 e 99; PESSOA, 2001, p. 53, 56, 60-63 e 75). representativas, uma vez que a abertura do sujeito à alteridade se dá perante a "sllJ)e•
+1 2 BETII, 1990a, p. 59, 157 e 304. rioridade do pensamento imanente à declaração em relação ao docu111e11to abstrata•
443
A teoria bettiana é ressaltada por Gadamer como sendo um "importante trabalho" e mente considerado". ou seja, a atividade interpretativa se debruça sobre o espírito que
uma "grande obra" (GADAMER, 2004, p. 455 e 496), o que efetivan1ente demonstra se manifesta ao sujeito cognoscente por meio da fonna, e não com o conceito que
o reconhecimento da importância das considerações de ordem procedimental aqui possa ser atribuído à forma ao se fazer abstração da função representativa da qual é
analisadas. instrumento (BETII, 2007. p. XLIII-XLIV). , .-
+1 4 BETII, 1990a. p. 304. Enquanto os dois primeiros cânones, ao se dirigirem ao objeto, -1-17 BETII. 2007. p. XLIV.
preocupam-se com as garantias da segurança e da certeza do Direito, os dois últimos,
144 Interpretação Contratual 145
Felipe Kirchne_r
(...} desde o início do processo inte1pretativo tem-se um progresso
O segundo cânone, denominado de totalidade e coerência dâ · gradual em direção à compreensão, dos elementos individuais aos
consideração hermenêutica, paite "da premissa de que o todo do discur,: núcleos em que se organi=am, até o todo que neles se articula. A com-
so, como de toda manifestação do pensamento, é gerado por um único preensão, inicialmente provisória, vai-se ape1feiçoando, corrigindo e
espírito e a um único espírito e sentido tende a retornar e limitar-se" dÕ integrando com a crescente extensão do discurso, do qual o inté,prete
que se extrai "uma ilação fimdada na correspondência entre iter genético toma posse, de modo que somente ao final os elementos individuais,
e iter hermenêutico: o critério de extrair dos elementos singulares o sen- todos entrelaçados, resultam quase imediatamente revelados e repre-
tido do todo e de entender o elemento singular em fimção do todo do qual sentados em contornos precisos e perspícuos455 .
é parte integrante"448 • Este postulado identifica a correlação dinâmica de Ademais, em nível normativo parece haver uma profunda rela-
coerência (concatenação produtiva em movimento) que existente (e deve cão do cânone da totalidade e coerência com os postulados do pensamen-
necessariamente existir) entre as partes constitutivas de toda manifestação to sistemático, como expressamente refere Betti com a ideia de sistema
de pensamento e a sua referência comum ao todo a que pertencem, o quê· coerente456 , o que resta consubstanciado na redação do artigo 1.363, do
indica o esclarecimento da significância hermenêutica tanto no entendi~ Código Civil Italiano457 • Este aspecto embasa a noção de concreção nor-
menta da unidade do todo por meio de cada parte, quanto no entendi.meu-. mativa exposta no presente estudo - que extrapola a sistematicidade in-
to do valor de cada elemento em viitude da unidade do todo, ou seja, na terna com a defesa da existência de uma sistematicidade externa e bilate-
relação bilateral449 entre o todo e os seus elementos constitutivos450 • ral-, até porque o filósofo italiano refere que o resguardo da totalidade e
Este postulado possui grande relevância na fonnação do objeto coerência abrange toda manifestação do pensamento, o que encampa
hermenêutico contratual enquanto situação objetiva complexa451 e na tanto as normas jurídicas estatais quanto as declarações individuais458 •
necessidade de concreção, pois prega que "o significado, a intensidade · O terceiro cânone, voltado ao resguardo do papel da subjetivi-
a nuança de uma palavra só podem ser entendidos no contexto em que dade na atividade hermenêutica, é o da atualidade do entender,
palavra foi dita ou se encontra, o significado e o valor de uma proposi-<,~:
ção e daquelas que se associam a ela só podem ser compreendidos pelo· ·· pelo qual o inté,prete é chamado a repercorrer em si mesmo o pro-
nexo recíproco e pelo coryunto orgânico do discurso a que pertencem''451• ,·, cesso criativo e, assim, reviver a partir de seu interior e sempre resol-
No caso da interpretação contratual, defende Betti que o objeto da ativi- i ver na própria atualidade um pensamento, uma experiência de vida
dade hermenêutica não se resume à totalidade individual dos contraentes, ·_ que pertence ao passado, ou s<ifa, a introduzi-lo como fato de experiên-
cia própria, por meio de uma espécie de transposição, no círculo da
mas se expande até a totalidade do ambiente social em que se encontra própria vida espiritual, em virtude da mesma síntese com que o reco-
inserida a relação obrigacional453 • nhece e o reconsh·ói4 j 9 •
Por partir de uma origem comum, que é o pensamento de Sch-
leiennacher, o presente preceito se aproxiina do movimento da compreen- Entende Betti que "aquilo de que nossa mente toma posse en-
são gadameriano parte-todo-parte que compõe a noção de uma circulari- tra, por essa mesma razão, na totalidade orgânica do mundo de repre-
dade hermenêutica que inicia por um projeto prévio fonnado a paitir da sentações e de conceitos que carregamos em nós e dela se toma, por uma
pré-compreensão do sujeito cognoscente454 • Ao encontro dessa conclusão, espécie de assimilação, uma parte viva, szifeita ao seu próprio desenvol-
o entendimento de Betti:
455 BETI1, 2007, p. XLVII.
456
448
BETI1, 1990a, p. 309. BEITI, 2007, p. XLIX-L.
449 457 "Art. 1363. Inte,preta=ione complessiva delle clausole. Le clausole dei contralto si
A relação é bilateral, pois se as partes do texto são iluminadas pelo sentido do texto
inteiro, o texto em seu conjunto é compreendido no confronto continuo com suas par- inte1pretano le une per me==o delle altre, attribuendo a ciascuna il senso che risulta
tes e no continuo exame delas (REALE; ANTISERI, [s.d.]. p. 267). dai complesso dell'atto (1419)." ·
458
450
BEITI, 2007, p. XLVI-XLVII e 37. BETII.2007.p. 189.
459
451
BEITI, 2007, p. XLVII e 37. BETI1, 2007, p. LII: BEITI, 1990a, p. 314. A inversão do processo criativo é um dos
452
BEITI, 2007, p. XLVII. traços mais marcantes da teoria bettiana, influenciando decisivamente o caráter repro-
453
BETII, 2003b, p. 198. dutivo e declaratório desta corrente de pensamento hem1enêutico (GAMBINO, 2000,
454 p. 228).
PESSOA, 2002, p. 108.
I11terpretação Contratual 147
146 Felipe Kirchner ·
cânone em exame se aproximam tanto da historicidade da compreensão
460
vimento e às suas vicissitudes" • O sentido constante na forma represen- defendida por Gadamer 469, quanto da concepção de que a aplicação surge
tativa não chega ao intérprete pronto e acabado, de fonna passiva e me- como elemento integrante do procedimento hennenêutico.
cânica, cabendo ao sujeito reconstruir e reproduzir o sentido com sua Por fim, o quarto postulado, chamado de cânone da adequação
sensibilidade própria461 • Deste aspecto dois pontos merecem destaque. do entender ou da correspondência e consonância hermenêutica, é aque-
Em primeiro lugar, quando Betti afirma que o sujeito se apro- le ''pelo qual o inté1prete deve esforçar-se para colocar a atualidade que
pria do sentido contido na forma representativa com as "categorias de está vivendo em íntima adesão e harmonia com o incitamento que (..) lhe
sua mente"462 em uma "atitude, ao mesmo tempo, ética e rejlexiva"463 , provém do objeto, de modo que um e outro vibrem em pe1feito unísso-
acaba remetendo ao mundo de representações e conceitos que o intérprete no"470. Além do interesse vivo e presente, o entendimento do objeto de-
possui dentro de si464 , o que importa em um reconhecimento da importân- manda uma abe1tura espiritual do sujeito que lhe permita colocar-se na
cia dos preconceitos. Contudo, existe uma inegável dissociação com a perspectiva mais favorável à descoberta da compreensão, o que se carac-
teoria gadameriana, já que Betti critica expressamente a concepção do teriza por uma posh1ra de humildade, afinidade e abnegação das preten-
filósofo alemão acerca dos preconceitos465 , refutando o caráter produtivo sões pessoais com relação ao objeto471 • A utilização do postulado depende
.· '•
dos mesmos e defendendo a necessidade do intérprete prescindir de tais de uma transferência a uma outra espiritualidade a partir da atualidade
elementos466 • presente (conceito próximo ao de situação hennenêutica), o que demanda
O segundo aspecto é o fato de que o cânone em exame determi- uma abertura mental, teórica, congenial e fraterna ao objeto472 •
na ao intérprete a realização de uma tarefa profundamente importante na Este cânone promove uma limitação à liberdade garantida pelo
teoria bettiana: adequar o elemento normativo à realidade social do mo- cânone da atualidade do entender473 , prescrevendo a forma como o intér-
mento de sua aplicação467 • Em tennos teóricos, o postulado assegura a prete deve repercorrer o sentido criativo, qual seja, livrando-se de seus
especialidade da função nonnativa da interpretação, na qual o sujeito preconceitos474 (aspecto negativo) e ampliando seu horizonte para seco-
deve ir além da reconstrução de sentido, sintonizando a ideia originária locar em íntima harmonia com a mensagem que é enviada pela forma
com a atualidade presente. Dito figurativamente, para além do necessário representativa (aspecto positivo), fato que remete ao cânone da autono-
movimento reconstrutivo do sujeito em direção ao objeto (promovido mia do objeto.
pelos cânones da autonomia e da totalidade-coerência), o postulado da Da análise conjunta dos dois cânones voltados ao sujeito se in-
adequação (conjuntamente com o cânone da atualidade do entender, que fere que nunca há uma anulação do henneneuta e de sua atualidade -
será visto a seguir) gera um movimento do objeto em direção ao sujeito, sequer nos processos interpretativos voltados à tradução (de contratos em
aca1Tetando a evolução do Direito e a manutenção de sua eficácia nonna- língua estrangeira, por ex.:), que são sempre muito restritos e limitados475
tiva por meio da quantificação das transfonnações socioculturais, aspecto -, pois se a atualidade do sujeito vai em direção ao objeto, a historicidade
que Betti denomina de inte1pretação histórico-evolutiva468 • Nesse contex- deste também vem em direção à atualidade do henneneuta. Como refere
to, guardando suas especificidades próprias, os elementos trazidos pelo Gadamer, Betti reconhece que "a vinculação do inté,prete com sua pró-
460 BE'ITI, 2007, p. LIII. 469 A relação entre as correntes de pensamento é expressamente reconhecida por Gada-
461 BETII. 2007, p. LIII. mer (GADAMER, 2004. p. 128) e por Betti, que utiliza o tenno historicidade e refere
462 BETII, 2007, p. LIII. a necessidade de resguardo deste aspecto com relação ao sujeito e ao objeto (BETII.
463 BETII, 1990a, p. 318: BETII, 2007, p. LV. 2007, p. LN).
470
464 MEIRELES, 2004, p. 128. BETII, 1990a, p. 319-320.
471 REALE: ANTISERI, [s.d.], p. 268.
465 BETII, Emilio. L'Ermeneutica come Metodica Generale delle Scienze dello Spi-
472
rito. Roma: Cittá Nuova, 1990. p. 88-89. BETII, 2007, p. LV
473 PESSOA, 2002, p. 111; PESSOA, 2001, p. 72. .
466 BETII, 1990a, p. 318; BETTI, 2007, p. LV. 474 É nessa vertente teórica que Betti não assume o caráter produtivo dos preconceitos, se
4 67 PESSOA, 2002, p. 90.
posicionando de maneira oposta a Gadamer, como já frisado.
468 BETII, 2007, p. LVIII-LIX, LXIII-LXVII, CII-CIII, 5 e 42. Este aspecto é tão caro ao 475
BETII, 1990a, p. 324.
filósofo italiano que, em sua teoria, se constitui em um caráter lógico da interpretação
jurídica.
hlterpretação Contratual 149
148 Felipe Kirclmer.
Quarta Regra: aquilo que pode parecer ambíguo em 11111 contrato se
pria posição representa um momento integrante da verdade hermenêuti- inte1preta pelo que é de costume do país482 •
ca"476. Na teoria bettiana não há qualquer pretensão de anulação da subje- Quinta Regra: o uso tem uma autoridade tão grande como ponto para a
tividade do sujeito, mas apenas uma aspiração de que este faça calar seus inte1pretação das convenções que, em todo contrato, as clá11s11las que
desejos pessoais com relação aos resultados da interpretação477 • lhe são usuais são subentendidas mesmo que não venham expressas 483 •
Apresentado este paradigma, cabe mencionar as regras de Sexta Regra: deve-se inte,pretar uma cláusula pelas outras cláusulas
contidas no documento, precedentes ou subsequentes a tal cláusula484 •
Pothier, as quais tratam de presciições de ordem prática. Como adverte
Sétima Regra: em caso de dúvida em uma das cláusulas, a inte1preta-
Judith Maitins-Costa, desde que atualizadas em sua forma expressiva e ção deve ser dada contra aquele que estipulou a coisa, em desonera-
deslocadas de seu fundo ideológico voluntarista, estas regras clássicas de ção daquele que contraiu a obrigação485 •
interpretação auxiliam a concreção478 • Assim sendo, cabe, a seguir, men-
cionar pontualmente as nonnas propostas:
doação fanilliar obedece a uma racionalidade distinta de um contrato de financiamen-
Primeira Regra: o inté1prete deve buscar nas convenções qual foi a to interempresarial) (MARTINS-COSTA. 2005b. p. 148).
intenção comum das partes contratantes, antes de buscar o sentido 482 Feito contrato com um viticultor para cultivo de terra sem declinar os valores do
gramatical dos termos 479 • pagamento, considera-se que estes são os de uso e costume na região (POTHIER,
Segunda Regra: quando uma cláusula é suscetível de duplo sentido, 2001, p. 98). Judith Martins-Costa sustenta que a ahialização da quarta regra de
deve-se melhor entendê-la conforme o sentido que possa ser lógico, e Pothier (usos do país) indica que a boa-fé.nos contratos deve ser interpretada confor-
não conforme o sentido do qual resulte não ser possível estipulação me os usos habituais do local da contratação ou do tráfico jurídico (§ 242, do Código
alguma4 80 • Civil Alemão) (MARTINS-COSTA, 2005b. p. 146).
483 No contrato de compra e venda o vendedor deve garantir e defender o comprador de
Terceira Regra: quando em um conh·ato os termos são suscetíveis de evicções. ainda que não haja cláusula nesse sentido (POTHIER. 2001, p. 98-99). Ju-
duplo sentido, deve-se entendê-los segundo o sentido que melhor con- dith Martíns-Costa salienta que a quinta regra volta-se à integração de lacunas. situando
venha à natureza do contrato481 • como critério também os nsos que devem ser considerados subentendidos, como ver-
dadeiramente deve ser subentendido o contexto em cada texto. e em cada trecho de
476 qualquer linguagem (MARTINS-COSTA, 2005b. p. 146).
GADAMER, 2004, p. 456.
477 m Em llll1 contrato de compra e venda as partes convencionan1 na lª cláusula que "a
REALE; ANTISERI, [s.d.], p. 268.
478
propriedade está sendo vendida livre de todos os ônus reais". e na 2ª cláusula que "o
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 146. Nesse sentido, remete-se o leitor para as vendedor só entende garantir por seus atos". A 2ª cláusula serve para interpretação da
interessantes observações de Paula Forgioni sobre as regras de Pothier: FORGIONI, priuleira, restringe sua generalidade, denotando que o vendedor garantiu apenas que
2007,p.113-117. ele não impôs nenhum ônus ao seu imóvel, estando desobrigado de todos aqueles que
479
As partes convencionaram o aluguel de uma pequena acomodação em uma casa, cuja pudessem ter sido in1postos por outros e não fossem do seu conhecimento (POTHIER,
parte restante é ocupada pelo locador. A locação é renovada nos seguintes termos: 2001, p. 99). Como refere Judith Martins-Costa, a sexta regra é determinativa da in-
"dou minha casa em aluguel a fulano por tantos anos. pelo preço do aluguel anterior". terpretação sistemática, não de um "sistema imanente'', mas 110 sentido de que "uma
Embora "minha casa" em sentido gramatical signifique a casa inteira, é visível que a cláusula se interpreta pelas outras", sendo que a ratio desta nonna pode ser transposta
intenção das partes foi a de renovar o aluguel do quarto já alugado, devendo essa in- para os grupos de contratos e para as cadeias contratuais. indicando que nesses casos
tenção prevalecer sobre os tennos do contrato (POTHIER, Robert Joseph. Tratado "llll1 contrato se interpreta pelo outro" (MARTINS-COSTA, 2005b. p. 148).
das Obrigações. Campinas: Servanda, 2001. p. 96). A regra mencionada foi acollúda 485 Em um contrato de arrendamento se estipula o pagamento com a entrega de certa
na redação do art. 112, do CC/2002. quantidade de trigo, sem especificação do local. A cláusula deve ser interpretada no
480 No fim de llll1a partilha se acorda: "fica acertado entre Pedro e Paulo que Paulo pode- sentido de que a entrega deve se dar 110 donúcílio do arrendatário (POTHIER, 200 L
ria passar por suas propriedades". Mesmo que pelo sentido gramatical de "suas pro- p. 99-100). A norma foi incorporada no sistema brasileiro pelo art. 423. do CC/2002,
priedades" se possa entender tanto as propriedades de Pedro quanto as propriedades aplicável aos contratos de adesão. Ademais. este entendin1ento ampara a teoria dos
de Paulo, a regra diz apenas com as propriedades de Pedro, pois em outro sentido a pontos de relevância hennenêutica dos negócios jurí4icos inter vivos, confonne será
cláusula não contém lógica alguma, pois Paulo não precisa estipular que poderá passar delienado no tópico "O ponto de relevâ11cia her111e11êutica dos tipos contratuais e a
por suas próprias propriedades (POTHIER, 2001, p. 96-97). extensão dos meios i11te1pretativos". Aduz Judith Martins-Costa que na sétima regra
481
Contratado o arrendamento de uma propriedade por nove anos pelo valor de 300 (observar a natureza do contrato pelo viés da assimetria de poderes contratuais) trans-
libras, esta deve ser entendida como a quantia anual, porque é da natureza desses con- parece o postulado da igualdade. dizendo com a função econônúco-social concreta. já
tratos que o preço seja considerado por anuidades (POTHIER, 2001, p. 97). Judith que relativa a imposição no momento da fonnação do contrato (l'vfARTINS-COSTA,
Martins-Costa adverte que a terceira regra de Potlúer (atribuição de sentido conforme 2005b. p. 148).
"à natureza do contrato") deve ser lida confonne a fimção econônúca concreta (ex.:
Interpretação Contrahml 151
150 Felipe Kirclmer .
2.5 A Fixação do Objeto e da Dimensão Funcional da
Oitm1a Regra: por mais generalizados que sejam os termos com os
quais foi concebida wna convenção, compreendem apenas as coisas Hermenêutica Contratual
que a partes contratantes entenderam contratar, e não aquelas nas
quais nem pensaram,. 86 • Gadamer entende que a hermenêutica constitui-se em uma
Nona Regra: quando o objeto da convenção é uma universalidade de "doutrina" sobre as condições de possibilidade e os modos específicos do
coisas, compreende, nesse caso, todas as coisas que particularmente compreender e, enquanto teoria da compreensão prática, consiste em
compõem essa universalidade, mesmo aquelas das quais as partes não tomar consciência do que realmente ocorre quando algo se oferece a
tinham conhecimento,.87 • compreensão de alguém e esse alguém compreende491 • Neste paradigma
Décima Regra: quando em um contrato se expressa alguma situação, teórico, a atividade interpretativa toma-se a pedra angular do conheci-
em consequência da dúvida que alguém possa ter sobre se o compro- mento jurídico, que somente se reconhece como exegese, pois compreen-
misso resultante do contrato se estende a uma tal coisa, esse alguém
não é reputado, por isso, ter desejado restringir a extensão que tal
der é interpretar, estando a ação hennenêutica no núcleo essencial do
compromisso tem de Direito para não alcançar todas as ouh·as coisas saber humano 492 •
,: . •
que não foram expressas,. 88 • Levando em conta estas considerações, a hennenêutica contra-
Undécima Regra: nos conh·atos, assim como nos testamentos, uma tual pode ser conceituada como sendo a atividade voltada à fixação do
cláusula concebida no plural se desdobra, frequentemente, em várias significado493 e da validade das mani_festações de vontade objetivadas e
cláusulas particulares 489 • bilateralizadas dos particulares, detenninando o efeito jurídico produzido
Duodécima Regra: às vezes, o que se encontra ao final de uma frase e o alcance com que vigora o conteúdo negocial 494, mediante a quantifi-
refere-se ao que é comum a toda a frase, e não somente ao que apre-
cede imediatamente, contanto, porém, que este final de frase concor-
cação dos compromissos jurídicos e dos termos da operação econômica
de, em gênero e número, com toda ela490 • perseguida por meio do contrato495 • Embora existam diferenças ontológi-
cas entre a detenninação do sentido e das consequências jurídicas 496, há
Feitas estas considerações sobre o procedimento, os métodos e uma relação muito próxima entre significado e efeito.
as regras de interpretação, cabe enfrentar as questões atinentes à fixação
491 GADAMER. 1993a. p. 144; GADAMER. 2007a. p. 94-95; LARENZ, 1989. p. 292.
do objeto e da dimensão funcional da hermenêutica contratual.
492 PASQUALlNl, 1999. p. 23.
493
486
Como destaca Carlos Ferreira de Almeida, "significado é o que se compreende de 11111
A transação das pretensões das partes não abrange os direitos não conhecidos quando acto de comunicação. Por usa ve=, a inte,pretação é o acto 011 actividade que consiste
da sua assinatura, o que diz, mesmo que indiretamente. com o já mencionado silêncio
eloquente do contrato (POTlllER, 2001, p. 100). na determinação daquilo que terá sido compreendido de 11111 acto de co111u11icação.
487 O contrato de renúncia de herança abarca todas as coisas que fazem parte desta heran- O significado é portanto o objecto imediato da compreensão e o objecto mediato
ça, conhecidas ou não (POTlllER, 2001, p. 101-102). (objectivo) da inte,pretação. Essa incide directamente sobre a compreensão e só
488 No contrato de casamento se acorda que "os fuhrros esposos viverão em comunhão de pela sua mediação, no hori=onte dos limites do destinatário, procura o significa-
bens, que incluirá o mobiliário das sucessões futuras". Esta cláusula não impede que do''. (FERREIRA DE ALMEIDA. 2005. p. 177-178).
494
todas as outras coisas que por direito comum fazem parte da sociedade conjugal este- É sempre a interpretação que detennina o efeito jurídico que nasce (DANZ. 1955,
jam incluídas na comunhão de bens, tendo apenas esclarecido que "o mobiliário das p. 70; MIRANDA, 1989, p. 15, 128-129 e 223), o que remete à abrangência do hori-
sucessões futuras" entra na comunhão (POTlllER 2001, p. 102). zonte interpretativo fixado por Gadan1er, contemplando os fenômenos da compreen-
489 O contrato de doação de uma propriedade a Pedro e Paulo dispõe: "doação da proprie- são, interpretação e aplicação.
dade 'X' a Pedro e Paulo sob a condição de que, caso morram sem deixar filhos, ares- 495
ROPPO, 1988, p. 126-127.
tituirão ao doador ou à sua família". Esta cláusula, concebida no plural, distribui-se 496
em duas cláusulas particulares: "para a obrigação de Pedro que, se morrer sem deixar FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 135-136. Embora haja uma estreita ligação
filhos, depois de sua morte o quinhão da propriedade que lhe pertencia deverá ser res- entre significado e efeito do negócio jurídico (simetria tendencial mediada por um
tituído ao doador ou à sua família" e "para a obrigação de Paulo que, se morrer sem princípio de conformidade), não há uma coincidência conceituai ou de referência. pois
deixar filhos, depois de sua morte o quínhão da propriedade que lhe pertencia deverá aquilo que se compreende não é o mesmo que a atribuição jurídica que consequente-
ser restituído ao doador ou à sua família") (POTlllER 2001, p. 102-103 ). mente se produz. ou seja. não há identificação ontológica entre os conceitos (ex.: da
490 No contrato de compra e venda de uma casa se expressou: "vendo o imóvel com tudo frase "porfavor, pode dar-me 11111 café" podem ser extraídos diversos significados, se-
aquilo que nele continha: trigo, grãos moídos, frutas e vinhos colhidos este ano". A gundo cada um dos contextos situacionais em que for proferida. mas seus efeitos jurí-
expressão "colhidos este ano" se refere à frase toda, e não apenas aos vinhos, já que dicos [A fica obrigado a servir um café para B. que fica obrigado a págar o preço] não
não usado "e o vinho colhido este ano", pois estando no singular não concordaria em estão contidos diretamente no texto da frase e no seu contexto). Embora o significado
número com os demais termos (POTlllER, 2001, p. 103).
Interpretação Contratual 153
152 Felipe Kirchner
qual depende de conexões de sentido que não estão prontas antes do pro-
É incontroverso que a interpretação contratual visa detenninar 0 cesso de interpretação que as desvela 502 • Como visto no tópico anteceden-
significado do negócio jurídico497 , havendo dissenso apenas na fonna te, embora a interpretação seja a responsável pela classificação da relação
como essa tarefa deva ser executada. Os paradigmas trabalhados neste contratual em uma das figuras típicas, a ação exegética não deve ser de-
estudo divergem neste aspecto, pois, enquanto a teoria bettiana entende terminada desde seu início pelos limites da construção jurídica que dê
que o intérprete identifica o significado (caráter reconstrutivo), a henne- roais tarde ao instrumento. A qualificação jurídica é alcançada no âmbito
nêutica filosófica gadameriana entende que o sujeito cognoscente o de- da circularidade hermenêutica, mediante constantes idas e vindas do pro-
tennina (caráter criativo e constitutivo). Assim, o viés interpretativo ado- jeto prévio da compreensão aos elementos que confonnam a relação con-
tado neste ensaio transcende o entendimento de que a hennenêutica se tratual (declaração negocial, circunstâncias do caso e nonnas estatais),
limita à mera fixação do significado, alcançando a noção de que essa sendo equivocada a apreensão de que o sujeito cognoscente pode aplicar
atividade é um ato de decisão que constitui e constrói a significação de uma construção jurídica qualquer (rotulando o contrato) para após inter-
um objeto498 • Nesse sentido, Peter Hãberle afinna que "não existe norma pretar se atendo a ela, pois o conceito técnico que se ponha de etiqueta
... ;.;· jurídica, senão norma jurídica interpretada"499 , o que vem ao encontro em uma relação jurídica não confonna decisivamente a interpretação. O
dos postulados gadamerianos. Como refere Carlos Ferreira de Almeida juízo de que a declaração negocial se trata de um detenninado tipo con-
"a interpretação é um momento formativo da própria essência do negó-' tratual só pode ser alcançado após o percurso no cfrculo hennenêutico 503 •
cio, e não uma simples atividade posterior e até mesmo eventua/"5ºº. Tendo em vista a natureza abrangente do horizonte hennenêuti-
Em face da abrangência da atividade hennenêutica, esta tam- co - que abrange compreensão, interpretação e aplicação -, deve-se reco-
bém se responsabiliza pela tarefa de qualificação jurídica do contrato5º1, a nhecer que a interpretação sempre implica, em certa medida, o desenvol-
preceda logicamente o efeito e entre os mesmos haja a já mencionada simetria tenden- razão pela qual a doutrina indica que a interpretação precede a qualificação jurídica
cial mediada por um princípio de conformidade, existem situações de existência de (SANTA MARIA, 1966, p. 17-18, 25, 27 e 119). Contudo, em se tratando aqui de
significado sem os correspondentes efeitos (ex.: nulidades) e de efeitos independentes uma interpretação contrah1àl sih1ada no contexto da hem1enêutica filosófica. deve-se
(e para além) do significado (ex.: integração) (FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, entender que a qualificação jurídica faz parte da atividade exegética que se sihia no
p. 204-207 e 217). incessante ir e vir do círculo hermenêutico (após a análise das circtmstâncias do caso e
497
GRAU, 2003, p. 21. da qualificação, o sttjeito cognoscente se volta novamente ao objeto na busca de con-
498
Dito isso, vale recordar a lição de que norma e texto nommtivo não indicam a mesma firmação ao seu projeto prévio de interpretação). Nesses tenuos, se ao adentrar no cír-
realidade jurídica, pois enquanto este é objeto da interpretação, a norma contratual é o culo o sujeito deve realizar a atividade interpretativa segundo o entender dos profanos,
seu resultado, sendo que o conteúdo contratual não existe como entidade verdadeira- prescindindo de toda possível constmção jurídica (classificação do caso concreto em
mente nom1~tiva antes do momento da interpretação (MARTINS-COSTA, 2005b, uma das figuras contratuais típicas) (DANZ. 1955, p. 29. 49, 86. 246, 263-266). após
p. 128-129; AVILA, 2006, p. 24, 27, 30-32, 68-70). Contudo, o presente estudo não um primeiro enfrentamento do objeto há o necessário cotejo com os tipos regulados
limita a hennenêutica à atividade que se presta a transfommr textos (disposições, pre- na lei, a partir do que deve o intérprete se voltar novamente ao objeto, percorrendo o
ceitos e enunciados) em normas, pois este é apenas um dos aspectos da interpretação todo da circularidade hennenêutica exigida para a compreensão.
502
em um ambiente já delimitado, que é o jurídico (limitação dentro de uma limitação ÁVILA. 2006, p. 24. 27, 30-32. 68-70. O autor segue afinnando que as nonnas não
antecedente). Como visto, a concepção da hermenêutica gadameriana é expansiva e, são textos nem o conjunto deles. mas os sentidos construídos a partir da interpretação
assim, alcança a própria relação do sttjeito cognoscente com a realidade. sistemática de textos nonnativos, não havendo uma correspondência tmívoca entre
499
HABERLE. 1997, p. 9. dispositivo e nonna. Há casos em que há nonnas sem dispositivos (ex.: princípios da
50
° FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 135. segurança jurídica e da certeza do_ Direito e. no contrato. deveres oriundos da boa-fé).
501
SCALFI, Gianguido. La Qualificazione dei Contratti Nell'lnterpretazione. Mila- dispositivos sem nonnas (v.g.: proteção de Deus no preâmbulo da Constituição e con-
no: Instituto Editoriale Cisalpino, 1962. p. 61 e 153-154. Interessante a apreensão siderandos do contrato), dispositivo a partir do qual se constroem mais de uma nonna
econômica de Enzo Roppo, para quem a qualificação é a operação por meio da qnal o (ex.: legalidade tributária) e conjunto de dispositivos que redtmdam em uma nom1a
intérprete, perante um contrato concreto e situado, individualiza o tipo a que ele per- (v.g.: legalidade. irretroatividade e anterioridade garantem a segurança jurídica)
tence, o qual corresponde a um gênero de operação econômica historicamente deter- (ÁVILA, 2006, p. 31-32). Seguindo essas considerações. pode-se afirmar que, no âm-
minada, que leva em consideração a realidade social em que inserido o contrato. bito da hermenêutica contratual, as disposições contidas no instmmento contratual se
(ROPPO, 1988, p. 133 e 310). Embora sejam operações distintas, existe uma estreita constituem no objeto da interpretação, e o contrato no seu resultado:.·
503
conexão entre interpretação e qualificação dos contratos. Porém, se do ponto de vista DANZ. 1955. p. 29. 49. 86. 183-184. 192. 246 e 263-266.
teórico é possível interpretar sem qualificar, não é possível qualificar sem interpretar,
hlterpretação Contratual 155
154 Felipe Kirchner •
da declaração, e apenas de fonna complementar se debruçaria sobre o
vimento do conteúdo do objeto analisado 504 , tanto porque é constitutiva conteúdo implícito ou não declarado do negócio jurídico510 , o que é de
do sentido, quanto porque a ausência de separação entre sujeito e objeto todo falso, uma vez que é a própria interpretação que fixa o conteúdo
provoca um aporte necessário de novos elementos ao objeto, o que re- (expresso e/ou implícito) do contrato, que inexiste enquanto entidade
505
dunda na inevitável evolução do conteúdo normativo • autônoma.
Nesse contexto de expansão dos limites do agir hermenêutico, o Nesses tennos, a conclusão anterionnente fixada de que o signi-
intérprete passa a ser qualquer pessoa interessada na contratação ou que ficado e a extensão do negócio jw-ídico são resultados de sua interpreta-
entre em contato com a relação contratual (paites, terceiros, destinatários, ção - pois é esta atividade que detennina construtivamente o conteúdo do
juízes, advogados, etc.). Como adverte Carlos Feneira de Almeida, a tese contrato511 , o qual pode ser confonnado hem1eneuticamente por meio de
de que só ao juiz cabe a interpretação do negócio jurídico está ligada ao normas integrativas -, vem de encontro à posição dominante ora comba-
preconceito de que a tarefa hermenêutica somente é exercida em caso de tida. No âmbito da hermenêutica filosófica surge uma concepção da ati-
litígio, o que evidentemente não prospera506 • Nesses termos, este estudo vidade hermenêutica ampla o suficiente para abarcar todo o conteúdo da
abandona a tese (institucionalista)5º7 do intérprete autêntico e encampa, regulação objetiva, sem depender de uma cisão aitificial entre interpreta-
com a devida adequação, a dimensão contida na teoria da sociedade aber- ção e integração do negócio jurídico. Nesse sentido, o entendimento de
ta de intérpretes formulada por Peter Hãberle, para quem Francisco Amaral:
todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive A inte,pretação e a integração jurídicas (..) correspondem à concep-
com este contexto [mesmo aquele que não é diretamente afetado] é, ção h·adicional e ainda dominante no direito brasileiro, isto é, a in-
indireta ou, até mesmo diretamente, um inté,prete dessa norma. O des- te1pretação como processo ou resultado da pesquisa do sentido e al-
tinatário da norma [também] é participante ativo, muito, mais_ ativo do cance das proposições normativas, e a integração como técnica de
. ,os
que se pode supor tradicionalmente, d o processo henneneutzco . preenchimento de lacunas da lei. (. .. )
Estando este normativismo em vias de superação, (. ..} perde sentido a
Limitar a atividade de interpretação contratual aos intérpretes h·adicional difere11ça enh·e inte,pretação e a integração. Admite-se
corporativos ou autorizados jw-ídica ou funcionalmente pelo Estado signi- hoje uma inte,pretação ampla que, absorvendo a aplicação e compre-
509
ficaria um empobrecimento injustificado da atividade exegética • endendo a integração, se constitua em processo contínuo de realiza-
Em face da adoção do paradigma gadameriano e da tese de que ção do direito 512 •
existe uma relação dialética entre contrato e sistema normativo estatal no
A dissociação é falha por estar embasada em duas premissas
âmbito da interpretação do contrato, deve-se considerar como inadequada
falsas. Primeiro, funda-se na vetusta concepção liberal oitocentista, cen-
e artificiosa a posição doutrinária que divide esta atividade em dois mo- trada no dogma da vontade, no sentido de que toda atividade que não
mentos: recognitivo e complementar. dissesse direta e completamente com a vontade das pat1es não seria mais
A decomposição da interpretação se funda na ideia de que esta interpretação, mas sim ato de integração do ato de autonomia (onde a
atividade diria com um aspecto recognitivo atinente ao conteúdo expresso vontade real não fosse mais discutida começaria a integração) 513 • Segun-
50-I 5w Nesse sentido, a posição majoritária: MARINO, 2003. p. 108 e 165: MIRANDA.
FERRARA, 1987, p. 128 e 153.
5o5 HABERLE, 1997, p. 13-14. 1989, p. 121. Carlos Ferreira de Almeida parece aceitar a posição dominante. mas re•
506 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 185. fere que não lhe parece adequada a autonomização do que seria uma interpretação
507 A tese se encontra arraigada na doutrina, do que é exemplo a obra de Erich Danz complementar, pois é "a partir da inte,pretação, embora para além dela, que se pro-
(DANZ, 1955, p. 5, 28, 75, 97, 113, 124-125, 127. 135-136, 183-184, 192, 200-201 e cede a integração" (FERREIRA DE ALMEIDA. 1992; p. 221-224).
511
254). Eros Grau menciona a tese do intérprete autêntico e desvela a existência de uma MARINO. 2003. p. 36.
512
diferenciação qualitativa do momento de aplicação no caso do intérprete-juiz, enfati- AMARAL, 2006, p. 100-101.
zando a questão do ato decisório na produção do discurso do Direito ( GRAU, 2003, 51_3 A doutrina tradicional não estabelece uma clara distinção entre interpretação integra-
p. 62-63, 85 e 87). tiva e integração (MIRANDA. 1989. p. 206). Se ambas tomam por_.base a causa da
5os HABERLE, 1997, p. 14 e 32. ordem de interesses no tipo abstrato do contrato em exame e aplicam em confomlida-
50g HABERLE, 1997, p. 34.
Interpretação Contratual 157
156 Felipe Kirchner ·
543 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 278 e 281. 548 LARENZ, 1989, p. 239-240. A declaração negocial somente poderia ser considerada
544 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 294 corno o objeto exclusivo da interpretação se o seu conceito foi expandido para abarcar
545 A conclusão de que a fase de tratativas integra o objeto da atividade interpretativa é urna entidade ideal que integra todos os elementos adequados à fo1111ação do contrato
aceita pelo próp1io sistema jurídico, conforme se depreende das regras dos arts. 427 e (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 1.100).
429, do CC/2002, as quais definem que a proposta de contrato obriga o proponente, e 549
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 130.
a oferta ao público equivale à proposta quando encerra os requisitos essenciais ao con- 550 ROPPO, 1988, p. 187.
trato, salvo se o contrário resultar dos tem10s da manifestação comunicativa, da natu- 551
RIBEIRO, 1999, p. 15-16. No mesmo sentido: FERREIRA DE ALMEIDA, 1992.
reza do negócio, das circunstâncias do caso ou dos usos. Estas regras legais denotam p. 262-263.
não apenas a importância da interpretação na fase anterior à conclusão do contrato, 552
Como salienta Gadamer, "é preciso assinalar que o problema hermenêutico no pro-
mas também a relevância desta fase na posterior declaração constituída. cedimento oral e no escrito é nofimdo o mesmo" (GADAMER, 2004; p. 399).
546
VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 189. 553
GADAMER, 2004, p. 381.
547 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 297.
Interpretação Contratual 167
166 Felipe Kirchner
ção e para a posição social concreta dos contraentes, pois o princípio ou seja, assume tenuos que tendem a se excluir ao trabalhar com a dialógica or-
da desigualdade material convive com o da igualdade formal; ter pre- dem/desordem/organização (ex.: sempre vislumbra o todo, mesmo que ao considerar a
sentes os motivos que ens(?jaram o ato comunicativo, percebendo, 110 sociedade o indivíduo desapareça e ao considerar o indivíduo a sociedade desapare-
espírito e na letra do Código Civil, o relevantíssimo papel reservado ça); (7) reintrodução do sujeito cognoscente: admite que todo conhecimento é uma re-
às 'circunstâncias do caso '554 • construção e tradução por um espírito situado em um detemrinado tempo e cultura
(MORIN, 1990, p. 93-95 e 106-109: MORIN, Edgar. Da Necessidade de um Pensa-
Considerando o que foi dito, deve-se entender que o horizonte mento Complexo. /11: MARTINS. Francisco Menezes: SILVA. Juremir Machado da
do contrato é constituído por uma situação objetiva complexa555 , uma (Org). Para Navegar no Século XXI. Porto Alegre: Sulina e Edipucrs. 2000. Dispo-
nível em: <http://geccom.incubadora.fapesp.br/portal/tarefas/projetos-em-multimeios-
554 i-e-ii-puc-sp/textos-uteis/ pensamentocomplexo.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2008). Mis-
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 135-136.
555 ter se faz salientar que, embora a simplificação separe e reduza, enquanto o paradigma
Carlos Ferreira de Almeida afirma existir uma composição complexa do negócio da complexidade une enquanto distingue, na teoria de Morin a complexidade e a sim-
jurídico, formado por mais do que uma declaração e por outros atos praticados pelas plificação não são excludentes, pois esta é gerahnente necessária para a compreensão
partes ou terceiros (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 262). Em outra obra, refere do todo (mesmo com os riscos que lhe são inerentes). embora deva ser frisado que não
o autor que se o significado negocial é uno, sua detemrinação é complexa (FERREIRA existe o simples, mas apenas o simplificado (Bachelard). Ademais, a complexidade de
DE ALMEIDA, 2005, p. 154). Nesse contexto, o conceito de situação objetiva foi ad- Morin não se assemelha ao conceito de totalidade. Dito isto, cabe salientar os princi-
jetivado de complexo em aproximação com a teoria do pensamento complexo de Ed- pais pontos de contato da teoria ora em desJaque com o paradignia teórico gadameria-
gar Morin, a qual reagrupa unidade e diversidade no campo do conhecimento ao pro- no. Primeiro, Morin também parte de uma compreensão crítica do ideal cientificista
curar "ao mesmo tempo distingiiir (mas não disjuntar) e reunir" (MORIN, Edgar. O cartesiano por adotar o paradigma da simplicidade, restringindo suas análises ao te-
Pensamento Complexo, Um Pensamento que Pensa. /11: MORIN, Edgar; LE MOIGNE, matizá-las por áreas, na vã tentativa de evitar a desordem (nahiral e necessária), o que
Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Petrópolis, 2000. p. 207). acaba mutilando o pensamento do ser humano e relegando a complexidade das ques-
Salienta o autor que, "à primeira vista, a complexidade é 11111 tecido (. . .) de tões tratadas. Para o autor, a ciência deixa de circunscrever suas competências especiali-
constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do 11110 e zadas no contexto natural (realidade) que é multidin1ensional (simultaneamente eco-
do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efetivamente o tecido de acon- nômico, psicológico, mitológico, sociológico, etc.). Ignorando o fenômeno sistêmico.
tecimentos, ações, interações, retroações, determinações e acasos que constituem o a ciência compreende estas dimensões separadamente, em uma "i11teligê11cia parcelar,
nosso mundo fenomenal" (MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. co111parti111e11tada, 111ecâ11ica, disjuntiva e reducionista que quebra o complexo do
Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 20). Em outra passagem, o paradigma da complexi- mundo, produ= fi·agmentos, J,-acio11a os problemas, separa o que é ligado, 1111idi111e11-
dade é definido como sendo "o conjunto de princípios de inteligibilidade que, ligados sionafi=a o 11111ltidi111e11sio11al (. ..) 111ata11do assim todas as chances de julgamento cor-
uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do zmiver- retivo ou de visão a longo termo", o que talvez a tome mais lúcida sobre uma pequena
so fisico, biológico, antropossocial" (MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. parte separada do seu contexto, mas a mantém cega sobre a relação eutre a parte e o
Lisboa: Europa-América, 1982. p. 246), o que leva à conclusão de que o pensamento seu contexto (MORIN, 2000). Tal visão é bem representada no pensamento anedótico
não produz nem detemrina a inteligibilidade, mas incita o sujeito a investigar e consi- de George Bernard Shaw: "o especialista é o homem que sabe cada ve= mais coisas
derar a complexidade do problema estudado. Os procedimentos cognitivos do pensa- 1111111 terreno cada ve= menor, o que o fará saber tudo sobre 11ada." Morin propõe a
mento complexo, que tratam com a incerteza e a organização, são guiados pelos se- quebra de paradigmas por meio de uma abordagem transdisciplinar dos fenômenos,
guintes princípios: (1) sistêmico-organizacional: liga o conhecimento das partes ao abandonando o reducionismo que tem pautado a investigação científica e
conhecimento do todo; (2) hologramático: inspirado no holograma (onde cada ponto privilegiando a criatividade. traço marcante da hennenêutica filosófica. Nesses
contém a quase totalidade da infomiação do objeto representado), evidencia o parado- tem10s, o pensamento complexo liga a autonomia da filosofia (tradicionalmente pen•
xo dos sistemas complexos, onde a parte está no todo e o todo se inscreve na parte sada de um ponto de vista puramente metafisico) com a dependência do detemrinismo
(ex.: cada célula contém todo o material genético do indivíduo); (3) anel retroativo: científico, evitando tanto a manutenção de uma ciência com dependência e sem auto-
media os processos de autorregulação e rompe com o princípio da causalidade linear nomia, quanto uma filosofia com autonomia e sem dependência. Embora o pensamen•
ao entender que a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa; (4) anel recursivo: to complexo não se reduza à ciência ou à filosofia, pemrite a comunicação entre elas,
supera a noção de regulação com a de autoprodução e auto-organização ao defender servindo-lhes de ponte (MORIN, 2000). Essa linha de raciocínio transcende a impor•
que os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os produz (ex.: o in- tância da transdisciplinariedade na pesquisa científica. uma vez que a destaca não
divíduo produz a sociedade que é produtora da humanidade desse indivíduo ao apor- apenas em seu aspecto externo (uso de vários ramos da ciência na análise de determi-
tar-lhe a linguagem, a cultura e as nonnas); (5) auto-eco-organização: media as no- nado objeto, em uma espécie de interdisciplinaridade), mas também em seu viés in-
ções de autonomia e dependência por intermédio do entendimento de que, embora o terno, que diz com a necessidade de assintllação da multidimensionalidade da realida-
indivíduo seja auto-organizado, depende da energia, infonnação e organização do de por cada um dos ramos da ciência (ex.: a própria henuenêutica jurídica deve reco-
meio ambiente social (ex.: cultura) para salvaguardar a própria autonomia, o que de- nhecer a complexidade de seu objeto), o que se constitui em noçãó -iuuito valiosa ao
nota que esta característica é inseparável de sua dependência; (6) dialógico: une para- presente eshtdo. Segundo, a pattir das noções acima mencionadas, Morin aceita a
digmas que, embora excludentes entre si, são indissociáveis numa mesma realidade,
Interpretação Contratual 169
168 Felipe Kirchner.
Seguindo as preciosas lições de Clóvis do Couto e Silva acerca
totalidade orgânica556 , unitária e dinâmica557 , sempre dotada de sentido da relação obrigacional, tem-se que a unidade desta situação objetiva
(concatenação produtiva), a qual é fonnada pelo instrumento contratual complexa não se esgota na soma dos elementos que a compõem e deve
representativo da autonomia dos contraentes, sua relação com o sistema ser considerada em seu aspecto dinâmico, já que a relação contratual se
jurídico e todas as circunstâncias do caso relevantes que permearam sua encadeia e se desdobra, temporária e historicamente, em direção ao
gênese e desenvolvimento558 , de cujo amálgama reside a imprescindibili- adimplemento de todos os direitos e posições jurídicas objetos da pactua-
dade da concreção normativa e fática no procedimento hennenêutico. ção559, o que impõe a verificação de um aspecto cooperativo, tendo em
vista a exigência geral da socialidade560 •
ideia do movimento da compreensão parte-todo-parte (contida no conceito gadameri- A construção do conceito está centrado na ideia de que tudo o
ano de circulo hennenêutico ), quando afimrn que "só podemos conhecer, como di=ia
que é dito não contempla toda a verdade daquilo que pretendia ser comu-
Pascal, as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o
todo se conhecermos as partes que o compõem", devendo o sujeito ligar as coisas que nicado, remetendo sempre ao que não foi dito, a sua motivação ( causa e
parecem separadas umas em relação às outras. Em tennos sociais (interessante do conteúdo do negócio jurídico). Refere Gadamer que uma pergunta da
.... · ponto de vista da tipificação contratual), Morin entende que o sujeito produz a socie- qual não se sabe a motivação não pode ser respondida, sendo na história
dade que o produz, ou seja. o homem é uma pequena parte do todo social que se encon- da motivação da pergunta que se abre o âmbito no qual é possível a busca
tra em sen interior por meio das regras sociais, da linguagem social e da cultura. Parafra-
seando Marcel Mauss, o autor entende que "é preciso recompor o todo" (MORIN, de uma resposta. É só o não dito que converte o dito em palavra que pode
2000). Terceiro, assim como em Gadamer, a concepção de Morin acerca da constru- nos alcançar, ou seja, um enunciado somente se toma compreensível
ção de conhecimento tem natureza clialógica e aberta, não permitindo a exclusão de quando no dito se compreende também o não dito 561 •
argumentos. O quarto, Morin liga o objeto ao sttieito e ao seu ambiente, em uma au-
sência de separação de tais polos da relação hermenêutica, defendendo, ainda, que o
regras que regem o setor econômico no qual inserida a operação (econômica) a que o
objeto deve ser considerado mais como um sistema-organização. O quinto, o enten-
contrato visa instmmentalizar (MARTINS-COSTA, 2005b, p. 122: LARENZ, 1989,
dimento de Morin vai ao encontro do ideal de concreção (fática e nom1ativa) e de sua
p. 223). Ademais, o conceito engloba, inclusive, as motivações conscientes e incons-
sistematicidade, quando propõe a necessidade do sujeito cognoscente contex-tualizar
cientes da ação humana que· foram objetivadas e que também são suscetíveis de inter-
cada acontecimento em um viés sistemático, vislumbrando que as coisas não aconte-
pretação (GADAMER, 2004. p. 506), pois a noção posta não se linúta às declarações
cem separadamente, pois "toda e qualquer informação tem apenas um sentido em re-
externadas, abarcando até mesmo o silêncio, objeto de grande significância no âmbito
lação a uma situação, a um contexto", o que linguísticamente é percebido com a regra
jurídico (MEGALE, 2005, p. 155).
de que "o sentido de 11111 texto é esclarecido pelo seu contexto" (ex.: a declaração amo-
te pode expressar uma paixão sincera ou a farsa de um sedutor) (MORIN, 2000). m O conceito de situação objetiva complexa atende à concepção da obrigação como
556 processo suscitada por Karl Larenz e desenvolvida nacionalmente por Clóvis do Cou-
Betti utiliza reiteradamente expressões como complexo orgânico e co1if11nto orgânico, to e Silva. a qual entende a relação obrigacional como um sistema de processos (cuja
em consonância com o conceito aqui fommlado de situação objetiva complexa unidade não se esgota na soma dos elementos que a compõem): uma totalidade orgâ-
(BETTI, 2007, p. XLVII, 11, 29 e 37). Em outra obra, o filósofo adverte que "o negó- nica de cooperação (onde credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas)
cio é considerado como um todo unitário, a inte1pretar na sua totalidade: um todo, que se encadeia e se desdobra, temporariamente, em direção ao adimplemento (à sa-
entre c1yas diferentes partes, preliminares e conclusivas, não é admissível uma clara tisfação dos interesses do credor). que atrai e polariza a obrigação, abrangendo ·•rodos
separação" (BETTI, 2003b, p. 176). os direitos, inclusive os formativos, pretensões e ações, deveres (principais e secun-
557
GRAU, 2003, p. 55. A apreensão da existência de uma unidade no curso da relação dários dependentes e independentes), obrigações, exceções, e ainda posições jurídi-
contratual impinge o entendimento de que as condutas subsequentes ao contrato for- cas" (SILVA, 1976, p. 5). Em tennos complementares, cabe mencionar a acepção de
mam um todo único com este (BETTI, 2007, p. 367). Essa conclusão é decisiva do Enzo Roppo sobre a processualidade no âmbito do Direito Contratual (ROPPO. 1988,
ponto de vista hermenêutico, pois alcança a dimensão construtiva e relacional desta p. 125) e de Miguel Reale sobre a processualidade do pensar (REALE. 1999. p. 89).
fase comportamental e comunicacional, transcendendo o paradigma clássico que vê os Com relação ao tema, núster se faz destacar, ainda. que a noção do contrato como
comportamentos posteriores à conclusão do pacto de fomrn estática e meramente processo engloba o uso da tenninologia processo (série de atos conforn1ados no tem-
comparativa com uma declaração inexplicavelmente cristalizada no tempo e no curso po, tendentes a um fim, que é o adimplemento) e procedimento (fonna como os atos
das relações humanas. processuais se dão) ( ex.: conclusão imediata e sumária' nos contratos de adesão e mais
558
São exemplos disso a situação pessoal dos contratantes e as condições gerais do negó- longa e negociada nos contratos paritários) (FERREIRA DA SILVA, 2008).
560
cio. Karl Larenz e Judith Martins-Costa mencionam que a atividade de interpretar não BETTI, 2007, p. 355.
561
se restringe ao que consta no instrumento contratual, pois este não é formado apenas GADAMER. 2004. p. 67, 181 e 575: GADAMER. 2007c. p. 78-79. Ao seguir Urban.
por manifestações de vontade ou por condutas, mas igualmente pelas circunstâncias e Enúlio Betti aceita o fato de que o sujeito compreende mais do' que foi expresso
dados contextuais particulares que o cercam, mesmo aqueles de natureza extrajurídi- (BETTI, 1990b. p. 850).
ca, como os interesses empresariais estratégicos, onde devem ser levadas em conta as
Interpretação Contratual 171
170 Felipe Kirclmer ·
contratual passa a buscar o significado do conteúdo global do negócio
Isso ocorre precisamente e sempre no âmbito da interpretação jurídico, e não mais do parâmetro subjetivo do conteúdo da declaração
dos contratos, onde o instrumento é compreendido nos limites das moti- negocial -, não subsiste a mínima razão para posicionar as circunstâncias
vações dos contraentes, ou melhor, no limite da motivação bilateralizada do caso fora do objeto da interpretação. A ideia de que as circunstâncias
dos contratantes quando da realização do pacto e de sua execução. O relevantes (ex.: comportamento do declarante) se constituem em mero
âmbito do contrato não se esgota naquilo que o instrumento diz, no que a material interpretativo (jacta concludentia) do qual o intérprete extrai a
paitir dele vem à fala. Sua linguagem remete para além dela mesma e da declaração e o seu sentido 565, parece mais um artificialismo do que real-
expressividade que apresenta, não porque a linguagem seja imprecisa, mente ocorre na factualidade do agir interpretativo. Esta desconexão com
mas porque sempre pennanece aquém do que evoca e comunica, pos- a realidade hermenêutica fica bem demonstrada quando se observa, por
suindo um sentido implícito que funciona como um pano de fundo diver- exemplo, que de simples comportamentos resultam relações de tipo con-
so da vontade subjetiva e que necessariamente precisa ser quantificada tratual, razão pela qual não se pode negar que estes elementos fáticos e
pelo intérprete562 • É exatamente pela necessidade de abarcar esses fenô- nonnativos são objeto da interpretação que procurará desvelar o signifi-
menos que não se encontram no contrato, mas, sim, no conjunto global cado, alcance e validade dos contratos ou das mencionadas relações para-
das circunstâncias relevantes (fáticas e normativas), que o objeto da in- contratuais. Já na introdução de sua publicação sobre hen11enêutica, Eros
terpretação adotado neste estudo (situação objetiva complexa) é tão Grau é enfático ao defender que as circunstâncias do caso englobam o
abrangente, confrontando-se com a doutrina clássica (oitocentista e vo- objeto da interpretação, por serem constitutivas da nonna: "ao inte,pretar
luntarista) que limita o objeto da interpretação à declai·ação de vontade563 • os textos normativos e os fatos, elementos do caso, o inté,prete toma
Joaquim Ribeiro já delineou a complexidade orgânica e unitária também como objeto de compreensão a realidade em czyo contexto dá-se
da estrutura normativa do contrato formada não apenas pela declaração a inte,pretação, no momento histórico em que ela se dá" 566 •
negocial, mas também por fontes perfonnativas oriundas dos contextos Deve ser salientado, por fim, que, no âmbito da situação objeti-
situacionais (elementos não consensuais). O autor refere que a concepção va complexa, a declaração negocial encerra uma verdadeira fusão dos
do contrato como sendo um sistema particularizado imerso em outros horizontes dos contratantes acerca do negócio jurídico regulado pelo ins-
sistemas mais amplos possui duas grandes vhtudes. A prhneira, que per- trumento que, sendo o produto final do acordo de vontades, não encampa
mite melhor captar no plano da relação dos contraentes (autonomia pre- a vontade do contratante "A" e do contratante "B", mas a vontade unifi-
sente no desenvolvimento da relação contratual) a produção de efeitos cada dos contratantes. Esta vontade bilateralizada é algo bastante diver-
vinculativos que não poderiam ser normativamente reconduzidos a abs- so da soma das motivações subjetivas, não podendo ser desmembrada,
tração jurídica do acordo de vontades (aspecto nomogenético que al81:~ª o especialmente tendo como parâmetro a vontade patticular de qualquer das
espectro dos efeitos obrigatórios do contrato, dotando-o de un~a deseJavel partes. Há um potencial de alteridade em todo consenso, não sendo o
mobilidade relacional). A segunda, a visão do contrato como mstrumento contrato exceção 567 • O contrato implica a paiticipação em um significado
de nonnação de relações sociais permite dar relevo a aspectos estruturais e comum. Além da natureza no1111ativa, o contrato encerra uma dimensão
funcionais da realidade a ordenai·, potencializando o raciocinar por concre- de solidariedade ético-social no acontecer da comunhão de autonomias.
ção, pois a conduta das partes passa a ser analisada de forma situada, abar- Nesses termos, cabe salientar que é exatamente sobre essa vontade unifi-
cando aspectos institucionais dos sistemas social, econômico e jurídico564 • cada que o intérprete se debruça em seu esforço hennenêutico.
Ressalte-se, ainda, que, se estando liberto do dogma da vontade
565
- pois a partir do conceito de situação objetiva complexa a hennenêutica MARINO, 2003, p. 164.
566
GRAU, 2003, p. 17. Esta afirmação é ratificada em diversas outras passagens de sua
obra: GRAU, 2003, p. 22, 28. 84, 93, 97 e 186.
562 GADAMER, 2004, p. 209-210. Nesta última passagem. Gadamer ainda refere que o 567
Ao encontro destas considerações, a concepção dialógic~ gadameriana acerca da conm-
dizer movimenta-se para trás de si mesmo de duas formas: o que no dizer pennanece nicação humana. a qual se encontra fundada na premissa de que o diálogo não se consti-
não dito, tomando-se presente como não dito no dizer, e o que no dizer se encobre. tui em opiniões contrapostas ou na mera soma da opinião dos interlocutores. mas em
Todos esses níveis da linguagem devem ser captados pelo intérprete em seu esforço uma comunhão de opiniões. em uma interpretação comum do mlllldo. pois ele transfor-
hennenêutico. ma a ambos. O caráter dialogal presente no horizonte do contrato ulrnipassa o ponto de
563 MIRANDA, 1989. p. 178: LARENZ. 1989, p. 377; SANTA MARIA, 1966, p. 8. partida da subjetividade dos contratantes (GADAMER, 2004, p. 140,221 e 387).
5 6-1 RIBEIRO, 1999, p. 15-19.
172 Felipe Kirchner •
568
Dentre os vetores que guardam correlação com o raciocÚlio por concreção. destacam-
-se: o postulado do Dasein, a contemplação hennenêutica da fmitude humana. o
amálgama Últerpretação-compreensão-aplicação. o caráter criativo da atividade exegé-
tica, a ausência de separação entre sujeito e objeto, a força vinculante do objeto Últer-
pretado, a historicidade e a dimensão lÚlguística do fenômeno hem1enêutico, a im-
prescindibilidade da pré-compreensão do sujeito cognoscente e a noção de circulari-
dade hermenêutica. No âmbito do assunto ora tratado. Larenz chama a atenção para o
movimento essencial todo-parte-todo presente na noção de circularidade hem1enêutica
(LARENZ, 1989, p. 337). .
569
Devido ao seu objeto, o estudo enfoca a importância hem1enêutica das circunstâncias
do caso. Porém, cabe ressaltar que as mesmas, na condição de vetor~~ materiais. pos-
suem fundamental importância. também. na formação e conformação da relação con-
- Interpretação Contratual 175
174 Felipe Kirchner-
cado destas na conjuntura, circunstancialidade e facticidade em que fo-
Desenvolvendo uma concepção concretista centrada na tese de ram proferidas 571 •
que existe uma dialética produtiva de complementação e restrição recí-
procas na relação entre os pensamentos (formas de raciocínio) tópico e
sistemático, o estudo irá examinar duas vertentes possíveis da concreção. 1 O RACIOCÍNIO JURÍDICO POR CONCREÇÃO
Primeira, sua dimensão fática, que envolve a mensuração hermenêutica
dos elementos concretos formadores da situação objetiva complexa por No presente tópico será apresentada a estrutura teórica do racio-
meio do postulado nonnativo das circunstâncias do caso. Segunda, seu cínio jurídico por concreção 572 • O cumprimento desta tarefa consistirá no
viés normativo, que encampa a relação entre o ato de autonomia repre- enfrentamento dos pressupostos gerais desta vertente hermenêutica, na
sentado pela declaração negocial e o sistema jurídico, o que abrange uma necessária imposição de limites à sua utilização, na apresentação de sua
dimensão sistêmica mediada pelo postulado da proporcionalidade. correlação com a manutenção da força nonnativa do contrato, na atribui-
Contudo, deve-se salientar que a cisão destes planos se dá por ção dos pontos de relevância hennenêutica dos diversos tipos contratuais
razões eminentemente didáticas, pois é somente na análise conjunta dos e, por fim, no desvelamento da natureza jurídica das circunstâncias do
: . ...
•
aspectos fáticos e nonnativos da concreção contratual que se alcançará a caso e da proporcionalidade, preceitos que irão nortear as duas parcelas
desejada completude no agir hermenêutico. Enfatizar apenas um dos pla- finais desta segunda parte do estudo.
nos (fático-tópico ou nonnativo-sistemático) no iter interpretativo redun-
daria em uma apreensão apenas parcial de um fenômeno complexo que se 1.1 Os Pressupostos Gerais sobre o Raciocínio por Concreção
desencadeia de forma absolutamente unitária.
É por meio destes vetores, conformadores da concreção individua- Em termos conceituais, salienta Miguel Reale que, no plano legis-
lizadora, que a atividade hermenêutica passa a considerar a estrutura única lativo, a concreção jurídica constitui-se na "obrigação que tem o legislador
do caso e, a partir desta, constrói uma compreensão e consequência jurídica de não legislm· em abstrato, para um individuo perdido na estratosfera, mas
estruturada de fonna singular embora com pretensões de universalidade e qum1do possível legislm· pm·a o individuo situado"573 • Voltada ao exame da
intersubjetividade -, de forma que todas as circunstâncias fáticas e norma- interpretação contratual, Judith Martins-Costa assim se posiciona:
tivas repercutam no produto final de uma atividade interpretativa sempre
considerada como instância produtiva, incompleta e crítica570 • A concreção é 11111 método hermenêutico pelo qual as normas de dever
ser (. ..) são compreendidas 'em essencial coordenação com o caso
Nestes tennos, aqui se pretende afastar o erro (e a fácil tenta-
ção!) que deriva do entendimento de que os problemas hermenêuticos 571
REALE. 1997b. p. l e 3-4. Em outro texto. o jusfilósofo brasileiro ressalta que '"toda
podem ser resolvidos tão somente a partir da análise das declarações for-
inte1pretação é condicionada pelas mutações supervenientes, implicando tanto a in-
mais que constituem a relação contratual, pois, como bem salienta Miguel tencionalidade originária do contrato, quanto as exigências Játicas e a.tiológicas
Reale, estas devem sempre ser situadas no complexo unitário de seus ocorridas, numa compreensão global, ao mesmo tempo restrospectiva e prospectiva
motivos e circunstâncias. A um agir hermenêutico que se pretenda mini- (nature=a histórico-concreta do ato inte,pretativo)" (REALE, Miguel. Característicos
mamente sério do ponto de vista científico, não basta a exegese puramen- do Contrato de Concessão Comercial. ln: REALE, Miguel. Questões de Direito Pri-
te fom1al das cláusulas contratuais, uma vez que estes elementos somente vado. São Paulo: Saraiva, 1997a. p. 184).
572
têm significação real quando apreciados em sua concretude, dimensão Refere Fabiano Menke que a denominação concreção do direito (também verificando-
que desvela não apenas o sentido das palavras empregadas, mas o signifi- -se a utilização do tem10 concretização) foi introduzido na ciência juridica pela dou-
trina alemã. a fim de descrever o processo hem1enêutico que supera a técnica da inter-
pretação-subsunção típica do positivismo juridico, promovendo a identificação da
tratual. Exemplo desta situação ocorre com as chamadas relações contratuais de fato nonna do caso concreto a partir da visão total da situação fática (o que aqui se deno-
ou paracontrah1ais (surgidas da proteção da confiança), advindas do contato social, minará concreção fática) e da interpretação do sistema jurídico (denominada nesse es-
comportamentos socialmente típicos (Larenz), relações comunitárias (societárias e de tudo como concreção normativa) (MENKE, Fabiano. A Interpretação das Cláusulas
trabalho) e resultantes da prestação de bens e serviços essenciais (ex.: água, luz, Gerais: a subsunção e a concreção dos direitos. Revista da Ajuris. n. 103, p. 79).
transporte coletivo). FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 27-28; FERREIRA DA 573
REALE, Miguel. O Projeto de Código Civil: situação atual e seus·problemas funda-
SILVA, 2001a. mentais, 1986. p. 6-13.
570
ENGISCH, 1968, p. 389
Interpretação Contratual 177
176 Felipe Kirchner .
-compreensão), elemento nonnativo a ser concretizado (em sua dimensão
concreto, que os complementa e lhes garante força enunciativa', as- sistemática) e problema concreto a ser solucionado577 • Tais elementos são
sim se possibilitando a sua determinação ou especificação. (,,) trata- encarados de fonna dialética e orgânica, pois a teoria da concreção jurídi-
se de um processo multidirecional em que direito e realidade se com-
ca não aceita nenhuma explicação do fenômeno jurídico 578 que derive tão
plementam e inte1penetram continuamente, fornecendo os elementos
necessários à decisão final, Em tal sentido, o termo 'concreção' de-
signa a construção, no caso, do significado da norma jurídica {legal apenas a premissa maior do silogismo, pois o seu domínio é parte integrante da confi-
ou conh·atual) levando-se em consideração as circunstâncias concre- guração da previsão nonnativa. Contudo, cabe mencionar que o autor em exame deixa
tas do caso analisado (elementos fáticos) em sua correlação com de- transparecer que esta simbiose entre norma e realidade se daria apenas nos casos em
terminados elementos normativos, a saber, os princípios, os postula- que o elemento nom1ativo não define de modo suficiente e preciso o seu âmbito de
dos normativos e as regras jurídicas considerados relevm1tes para aquele aplicação. o que não se coaduna com a matriz teórica aqui utilizada (LARENZ. 1989.
caso. Por essa razão, concretizm· implica sopesar os referidos elementos p. 154-157). Por fim. galgado em uma ideologia democrática e como consequência da
fálicos e normativos, de modo que ao 'tomar concreto' o inté1prete adota necessidade de integração da realidade no processo de interpretação, Peter Hãberle de-
uma atitude de ordenação e de estabelecimento de relações compondo e fende a ideia de que todo aquele que vive a norma ( constitucional) acaba por interpre-
entretecendo elementos de ordemfática e nonnativa5 74 • tá-la, razão pela qual toda a sociedade se converte em força produtiva de interpretação
(alargamento do círculo de intérpretes. alcançando todos os órgãos estatais. potências
Em termos estruturais575 , o método concretista576 gravita em públicas, cidadãos e grupos). Nesses tem10s, a interpretação surge como elemento da
tomo de três dados essenciais: compreensão prévia do intérprete (pré- sociedade aberta, sendo ao mesmo tempo 11111 componente resultante da influência
desta e um fator fommdor e/ou constituinte da mesma (HABERLE. 1997, p. 10, 13 e
574
30; BONAVIDES, 1994, p. 228-472).
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 137.
575
576 A expressão método concretista deve ser vista com ressalvas. Embora seja amplamen-
Historicamente, o método concretista foi desenvolvido no campo do Direito por meio te aceita pela doutrina, a fonna de raciocinar por concreção não atende, necessaria-
de estudos voltados ao plano da heteronom.ia, especialmente do Direito Constitucio- mente. a lml pensamento galgado no ideal metódico. o que por certo não ocorre peran-
nal, por grandes expoentes, cada qual oferecendo valiosas contribuições que merecem te o paradigma hennenêutico adotado neste estudo.
ser ao menos smnariamente mencionadas, pois podem ser aplicadas ao plano da inter- 577 HECK, 2006. p. 14. Engisch refere que o raciocínio por concreção contempla refe-
pretação contratual, até porque o Direito Privado é mn dos ran10s mais afeitos ao racio- rências da individualidade do caso e da individualidade de quem decide (EN-
cinio situado (HESSE, 1998, p. 70; LARENZ, 1989, p. 160; GRAU, 2003, p. 54). GISCH, 1968. p. 183).
Konrad Hesse comunga do entendimento gadan1eriano de que a norma somente se 578 O método concretista também assume feições substanciais na seara material de outras
completa no ato interpretativo ( caráter criativo da atividade hermenêutica) e de que a áreas do Direito. É o que ocorre, por exemplo, no Direito de Fanúlia, onde prevalece o
compreensão pressupõe a pré-compreensão do intérprete (STRECK, 2000, p. 244). O entendimento de que a paternidade socioafetiva goza de primazia com relação ao re-
autor entende que a compreensão somente surge em face do problema concreto, de conhecimento fonnal de paternidade. Nesta seara. a consubstanciação do raciocú1io
fonna que a detem1inação do sentido do objeto e a sua aplicação ao caso concreto por concreção ainda assume relevância na questão do procedimento de adoção, onde,
constituem um processo unitário. A ideia de concreção desenvolvida por este pensa- considerando as circunstâncias do caso ( demonstração da paternidade socioafetiva e
dor é a de que o Direito tem a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida de outras provas relevantes acerca do desejo de ser pai/mãe do menor), a jurisprudên-
e a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força cia tem reconhecido inclusive a adoção póstuma (tácita e preexistente aos processos
nom1ativa ( da Constituição) (procedimento hermenêutico submetido ao princípio da nomiativos fonnais). realizando wna interpretação extensiva do art. l.628, do
ótima concretização da nonna [Gebot optimaler Verklichung der Norm]), sendo o CC/2002 (REsp 457635/PB, 4ª Tunna. STJ Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior,j.
procedimento interpretativo adequado quando o intérprete consegue concretizar o sen- em 19.11.2002: AC 70014741557. 7ª Câmara Cível. TJRS. Rei. Des. Ricardo Raupp
tido (Simz) da proposição nom1ativa no contexto das condições reais de uma detenni- Ruschel, j. em 07.06.2006: AC 70003643145, 7ª Câmara Cível, TJRS, Rei. Des. Luiz
nada situação hermenêutica (HESSE, 1991, p. 22: HESSE, 1998, p. 50-51 e 61). Já Felipe Brasil Santos, j. em 29.05.2002). Maiores exemplos poderiam ser trazidos do
Friedrich Muller entende que o texto juridico é apenas a parte descoberta de um ice- Direito Penal. área mais afeita à análise material das questões judicializadas (situação
berg nonnativo composto pela situação concreta, pois a interpretação engloba tanto o nonnada). Nesse campo. pode-se citar a aplicação do princípio da insignificância, que
programa normativo (dados linguísticos da disposição analisada) quanto o seu domí- em razão da análise do contexto fático, afasta a tipicidade da conduta delitiva. raciocí-
nio normativo (parcela da realidade concreta a que anomia se dirige), o qual é apenas nio que pode ser utilizado na seara civil, como decidido pelo TJRS na AC
parcialmente contemplado por aquela dimensão (programa normativo), cabendo ao 70012886412 (ação civil pública sobre improbidade administrativa que tinha como
sujeito cognoscente articular, dentro da atividade de concretização, estes dois proces- objeto dano ao erário apurado em R$ 8,47): "a incidência indiscriminada da norma,
sos parciais que se encontram. teoricamente separados (BONAVIDES, Paulo. Curso sem que tenha o julgador a noção da proporcionalidade e da rccoabilidade, importa
de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 456). Esta apreensão está materia/i::;ar a opressão e a iryustiça. Por isso, condutas que do pontO'(fe vista formal
construída sobre a negação da contraposição entre ser e dever-ser, ou seja, entre a se amoldam ao tipo não devem ensejar punição, quando de nenhuma relevância ma-
norma e a realidade a que ela se dirige. Nessas condições, o elemento nonnativo não é
--
Interpretação Contratual 179
178 Felipe Kirchner .
resse senão no 1110111ento e111 que se trata de aplicar ao facto: pelo que, No mesmo sentido, Karl Larenz adve1te que "o jurista tem que
quando o jurista pensa o facto, pensa-o co1110 111atéria de direito, atender aos factos sociais a que se refere uma norma e tomá-los em con-
quando pensa o direito, pensa-o co111ofor111a destinada aofacto595 . ta quando a inte,preta. Isto é tão óbvio que só aqui se refere porque se
tornou modo o censurar à Jurisprudência o seu 'ensimesmamento auto-
No Direito não pode subsistir uma separação absoluta entre ser suficiente ', como se o que constitui o objecto da regulação jurídica para
(Sein) e dever-ser (Sollen), pois o conteúdo e o significado da norma de ela não existisse"6º1• Enfocando a relação bilateral entre elemento nonna-
dever-ser não é estabelecido sem observância das relações fáticas que tivo e fatos concretos, salienta Judith Martins-Costa que a nonna deve
envolvem a dimensão do ser. Nesse sentido, tem o Direito e todos seus variar na situação fática, sob pena de perder sua visão instrumental, o que
elementos nonnativos (dos quais o contrato faz paite) uma vinculação determina a correlação entre o raciocinar por concreção e a necessária
básica e fundamental à realidade 596 • evolução da ciência jurídica602 , com o que concorda Karl Larenz, para
Sendo o contrato produto da autonomia humana, deve ser anali- quem a concreção contribui decisivamente para o desenvolvimento do
sado na totalidade dos fatores materiais e espirituais que lhe dão substra- Direito603 • .
to, "integrado nas razões históricas de seu desenvolvimento, nas intera- Eros Roberto Grau, por sua vez, também admite que "a aplica-
ções e correlações necessárias com o mundo envolvente da cultura a que ção do Direito não pode ser reduzida meramente a um exercício de apli-
pertence"597 . Reale tem a argúcia de demonstrar, ainda, que esta renovada cação de uma regra ou de um principio", pois o intérprete aplica o Direi-
investigação da objetividade tem como consequência não a negação da to enquanto sistema complexo de nonnatização do caso concreto, o que
subjetividade, mas seu enriquecimento enquanto subjetividade concreta e demonstra que as normas são produzidas caso por caso 604 • O jurista ainda
intersubjetividade598 • faz as seguintes considerações:
A ciência jurídica deve se esforçar para superar os conceitos le-
gais e alcançar as fonnas concretas e reais da vida (histórica, econômica, O intérprete procede a inte,pretação de textos normativos e, conco111i-
sociológica, religiosa, filosófica, etc.), substrato que não deve apenas se tante111ente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os aconteci111en-
tos que compõem o caso se apresentam vai também pesar de 111aneira
apresentar como objeto do Direito (material a ser ordenado pelo universo deter111inante na produção da(s) nor111a(s) aplicável(veis) ao caso.
nonnativo ), mas também como conteúdo do mesmo. A prática jurídica ( ..) a nor111a é produzida, pelo inté,prete, não apenas a partir de ele-
deve rechaçar uma existência burocrática, tanto porque os conceitos jurí- 111entos que se desprendem do te.r:to (111undo do dever-se,'), mas ta111-
dicos devem operar de forma concreta e vinculada, quanto porque as bém a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a
consequências jurídicas se destinam a situações reais. partir de elementos da realidade (mundo do se,'). lnte,preta-se tam-
bém o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade - no
Como assinala Reale, é inequívoca a correlação entre o ato in- momento histórico no qual se opera a inte,pretação - em c1yo contex-
terpretativo e o ato normativo, "não se podendo, senão por abstração e to serão eles aplicados.
como linha de orientação da pesquisa, separar a regra e a situação re- (..) Além disso, os fatos, elementos do caso, hão de ser ta111bém inter-
grada"599. Engisch ressalta que o sentido jurídico de uma nonna não se pretados. (..)
O que incisivamente deve ser aqui afirmado, a partir da metáfora de
595
Kelsen ( ..), é o fato de. a moldura da norma ser, diversamente, 1110!-
NEVES, António Castanheira. Questão-de-Facto, Questão-de-Direito ou O Pro-
blema Metodológico da Juridicidade: ensaio de uma resposta crítica. Coimbra: Al-
600
medina, 1967. p. 55-56. No mesmo sentido: AMARAL, 2006, p. 90. ENGISCH, 1968, p. 63.
601
596
LARENZ, 1989, p. 154; VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 186; ZACCARIA, 1996, LARENZ, 1989, p. 223.
p. 121-122. 602
MARTINS-COSTA, 2008.
597 603
REALE, 1999, p. 63. No mesmo sentido: VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 127, 180, LARENZ, 1989, p. 352.
183-184, 186-187 e 202. 604
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação
598
REALE. 1999, p. 65. e crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 131-132.
SQQ REALE, 1968, p. 247.
- Interpretação Contratual 185
184 Felipe Kirclmer •
A incorporação da dimensão fática no discurso jurídico não de-
dura do texto, mas não apenas dele; ela é, concomitantemente, mol- veria chocar os operadores, eis que o próprio Direito é um nível da reali-
dura do texto e moldura do caso. O inté,prete inte,preta também o
caso, necessariamente, além dos textos e da realidade - no momento dade social, mais próxima da qual se encontra o instituto do contrat0 609 •
histórico no qual se opera a inte,pretação - em czyo contexto serão Os operadores não podem se compadecer com os limites tranquilizantes
eles aplicados, ao empreender a produção prática do direito. da tradi?ão metodológica ou com posições teóricas positivistas que pre-
A norma jurídica é o resultado da inte,pretação. lnte,pretação que - sa- gam o snnples processo de subsunção na atividade hennenêutica, pois é
bemos - não é só do texto escrito - e da própria realidade, no momento de todo evidente que os elementos normativos não detenninam completa-
histórico em que se opera a inte,pretação-, mas também dos fatos. (..,) mente o todo relevante para o deslinde dos problemas jurídicos e sociais. 610
Pois agora sabemos - repita-se - não apenas que a norma é o resul- Como indica Emílio Betti, trata-se de um grande equívoco confundir a
tado da inte,pretação, czyo objeto é o texto, mas também que o intér- lógica do Direito com a lógica fonnal, reduzindo a tarefa da interpretação
prete não inte,preta apenas os textos, porém, em corifzmto com os tex-
tos, os fatos. E, mais, ao contrário do que pensam muitos, imaginando a uma operação de subsunção silogística semelhante, em seu rígido auto-
que basta o saber ler para que se possa inte,pretar corretamente o di- matismo, às operações aritméticas611 •
reito, sabemos ainda que não se inte,pretam simplesmente os textos A distinção absoluta (logicamente pura) entre Direito e fato não
011 11111 texto. lnte,pretamos o direito, todo ele, na sua totalidade, des-
é realizável, pois se é correto afinnar que a relevância dos fatos é mensu-
de a Constituição até os atos normativos menos importantes na hie-
rada em função do elemento normatiyo a ser compreendido e aplicado -
rarquia das fontes do direito6º5.
em função de uma detenninada perspectiva jurídica e situação hennenêu-
É por isso que Eros Grau é enfático ao afirmar que "o direito é tica -, também é verdadeiro que a nonna é selecionada e determinada
contemporâneo à realidade" 6º6 • A relação entre elemento normativo e (mesmo no campo da significação) em função da estrntura concreta do
realidade - que opera a inserção da norma na vida - parece ser indissociá- caso a decidir612 • Como sustenta Engisch, o processo de aplicação do
vel, ocorrendo até mesmo no plano teórico, já que o momento de aplica- Direito apresenta duas faces: a assimilação do fato pela norma e a assimi-
ção integra o agir hennenêutico e o operador sempre supõe a aplicação do lação da nonna pelo fato, o que traduz uma abertura do fato à nonna e
elemento normativo a um caso real ou fictício 607 • vic~-vers~. Essa_ dimensão ~ornplexa não pode ser compreendida ~or
Enzo Roppo explicita um interessante viés acerca do método me~o de smgulandades conceituais como indução e dedução, pois o racio-
concretista no plano dos contratos, entendendo que o raciocinio por con- címo por concreção se utiliza destes dois juízos ao mesmo tempo 6 13 •
creção (dimensão concreta) atua no próprio conceito do instituto. Entende Apropriando-se da metáfora de Peter Hãberle, poder-se-ia dizer
o autor que o contrato, embora seja um conceito jurídico, não pode ser que o contrato é um espelho da realidade que o confonnou, mas é tam-
entendido com a mera consideração de sua dimensão nonnativa, pois esta bém, e ao mesmo tempo, a própria fonte de luz da nonnatividade desta
não constitui uma realidade autônoma. O conceito de contrato reflete uma situação concreta, em face da sua potência nomogenética e função direti-
, • 614 A· - do contrato traduz a realidade concreta do
realidade exterior a si próprio, uma realidade de interesses, relações e va propna . mterpretaçao
situações socioeconômicas, razão pela qual o conhecimento do contrato negócio jurídico nonnatizado pelo instrumento, o que encampa as neces-
depende sempre da atenta consideração da realidade que lhe subjaz e da sidades e possibilidades dos contraentes que transparecem no instrumento
qual ele representa a tradução científico-jurídica. Sequer os fins do con- ou no curso da relação contratual, razão pela qual a atividade hennenêuti-
trato são relativos ao aspecto jurídico, porquanto se encontram voltados à ca não pode superestimar o significado do texto, como oc011e em não
operação econômica instrnmentalizada, sem a análise da qual o contrato raras oportunidades615 •
se toma vazio, abstrato e, consequentemente, incompreensível, já que a
609
própria estrutura da pactuação se altera segundo o contexto em que está GRAU, 2003, p. 124.
610
inserido, inclusive (e especialmente) na fase de cumprimento 608 • ENGISCH. 1968. p. 45.
611
BEITL 2007. p. 229-230.
612
LARENZ, 1989, p. 336: MIRANDA, 1989, p. 115-116.
605 613
GRAU, 2003, p. 22, 28, 84, 93, 97 e 186. ENGISCH, 1968, p. 63.
606 614
GRAU, 2003, p. 38. No mesmo sentido: GRAU; FORGIONI, 2007, p. 26, 40 e 315. HABERLE, 1997, p. 34.
607 615
GRAU, 2003, p. 25, 27 e 34. HABERLE, 1997. p. 43.
608
ROPPO, 1988, p. 7-10 e 24.
h1terpretação Contratual 187
186 Felipe Kirchner ·
devido a inabarcável realidade dos negócios que estrutura -, não havendo
O instante de encontro do texto com a situação fática é a própria razão para falar em uma teoria contratual unitária623 •
nonna jurídica, síntese hermenêutica do complexo fático e axiológico, A premissa teórica deste estudo é a de que a concreçãà não está
elementos inseparáveis da norma estatal ou contratual nos quadr?s ?ª. sua separada da interpretação contratual, pois inte,pretar implica em con-
normatividade. Assim, as circunstâncias do caso e os vetores ax10logicos cretizar614. Como refere Eros Grau, "inte1pretação e concretização se
do sistema jurídico se apresentam, henneneuticarnente, corno sendo com- supe1põem. Inexiste, hoje, inte1pretação do direito sem concretização:
ponentes constitutivos da própria norma. A partir desta noção se identifi- esta é a derradeira etapa daquela" 615 . Por sua vez, Gadamer afirma que
ca facilmente que a concreção diz com o entrelaçamento do dever-ser "o jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determina-
16
(texto nonnativo) com o ser (dados da real~dade_ fática e normativa)~ • do caso concreto, mas procura determinar o sentido da lei, visualizando
Quando o sujeito cogita dos elementos e s1tuaçoes do mundo _da, ~ida construtivamente a totalidade do âmbito de aplicação da lei. É só no
referentes a detenninada nonna, não adentra em um aspecto rnetaJund1co, conjunto dessas aplicações que o sentido de uma lei se torna concre-
pois a própria nonna é composta pela história, cultura e demais caracte- to"616. Segue o filósofo sustentando que "o jurista sempre tem em mente a
617
rísticas do ambiente socioeconômico no qual surgiu e se aplica • lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo deve ser determinado em
Também no campo normativo a facticidade adquire o caráter de relação ao caso em que deve ser aplicado"627 • Imerso no plano da inter-
preceito, de ponto de partida primeiro e detenninante, impedi~do que o pretação constitucional, Hesse assim s.e posiciona:
sujeito cognoscente tome a significação do objeto em se,:1 ~entld? mera- (..) entendimento e, com isso, concretização, somente é possível com
mente abstrato618 • Gadamer afirma ser tarefa da hermeneutlca cnar uma vista a 11111 problema concreto. O inté,prete deve relacionar a norma,
ponte que supere a distância enti·e o elemento normativo e o caso concre- que ele quer entender, a esse problema, se ele quer determinm· seu
to defendendo existir urna ''força produtora de direito inerente ao caso conteúdo decisivo hic et 1m11c. Essa determinação e a "aplicação" da
p~rticular"619 e referindo que "o sentido jurídico de uma le~ determin~-se norma ao caso concreto são um procedimento uniforme, não aplica-
ção posterior de algo dado, geral, que em primeiro lugar é entendido
através da judicação e a universalidade da norma determzna-se basica- em si, a um fato. Não existe inte,pretação constitucional independente
mente através da concreção do caso"610 . Sob o prisma de um elemento de problemas concretos618 .
normativo formado sob o jugo da autonomia, corno é o caso do contra-
to há muito mais razão para a defesa desta forma da raciocinar por con- Como refere Stein, "a inte1pretação do mundo é a inte,preta-
cr~ção, até mesmo porque a narrativa do contrato só pode ser entendida ção da condição fática do ser humano"619 , a qual contempla a sorna de
inte1textualmente. todos os elementos de ordem histórica e cultural concernentes ao caso
O contrato, enquanto elemento textual (texto ou verbo), não analisado (ambiente social historicamente condicionado )630 •
passa de urna mera proposição normativa611 , pois o objeto da interpreta- Embora a concreção implique relacionar algo geral e prévio
ção há de ser a totalidade significativa e axiológica dos elemen!os norma- com urna situação particular, o objeto da interpretação não é sempre
611
tivos contratuais e sistemáticos com a situação normada . E essencial compreendido como algo universal que só poderia ser aplicado posterior-
que o intérprete coloque a vida real corno pano de fundo da atividade mente a uma situação particular. Como refere Humberto Ávila, "não se
hermenêutica urna vez que os conceitos jurídicos não abarcam toda a
623
realidade fen~rnenológica. Esta dimensão parece bem definida até mesmo MARTINS-COSTA. 2008.
624
no plano teórico, pois o contrato é uma categoria plural - especialmente O estudo rechaça a ideia de que interpretação e concretização se constituem em tare-
fas dissociadas, como defende parte significativa da doutrina (ex.: ALVARENGA.
1998, p. 90 e 216).
625
616 GRAU, 2003, p. 31. GRAU, 2003, p. 25 e 75.
626
617 GRAU, 2003, p. 74. GADAMER, 2005, p. 428.
627
618 GADAMER, 2004, p. 376 e 397. GADAMER, 2005, p. 429.
628
61 g GADAMER, 2004, p. 465. HESSE, 1998. p. 62.
62
620 GADAMER, 2004, p. 516. g STElN, 2004, p. 74-75.
630
621 KELSEN, 1998, p. 390-391 e 393. BETTI. 1990b. p. 833-836.
622 REALE, 1968, p. 188.
Interpretação Contratual 189
188 Felipe Kírchner _
Jato, não havendo que se falar em uma inte1pretação isolada dos textos
interpreta a norma e depois o fato, mas o Jato de acordo com a norma e a normativos, desconsiderando-se os fatos envolvidos em dado caso con-
norma de acordo com o fato, simultaneamente"631 . creto"634. É por esta razão que Gadamer entende que "a tarefa-da inter-
A ideia chave do raciocínio por concreção é a necessidade do pretação consiste em concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa
intérprete sempre atentar para uma determinada realidade concreta, não da aplicação"635 .
limitando a atividade hermenêutica aos formalismos meramente abstratos No entanto, até mesmo o sujeito cognoscente (intérprete, seja con-
ou às explicações mediadas pela fundamentação lógica dos silogismos tratante, jurista ou terceiro) é alcançado pela noção de concreção, especial-
jurídicos, como antes delineado. Em certa medida, toma-se ingênua a mente em razão da sua :finitude e da imp01tância da pré-compreensão no
prática de um raciocinar hermenêutico tão somente por gêneros, pois âmbito da atividade hermenêutica. Ao ser humano é impossível se des-
faticamente não existe a figura abstrata do "sujeito de direito", mas, sim, vincular de suas circunstâncias internas (estruturas do ser existencial) e
o homem em seu caráter situado632 • Conceitos são forjados na vida. Con- externas (horizonte do modo de ser da pessoa no meio social, cultural e
ceitos jurídicos são construídos sobre a vida. A interpretação clássica, histórico). A circunstancialidade do ser humano (aspecto orgânico de sua
devido ao seu corte teórico, só enxerga metade do problema. Os conceitos :finitude) inicia pela corporeidade e se estende à correlação intersubjetiva
abstratos do Direito (v.g.: o casal, o homem médio e a mulher honesta) e vinculação afetiva com seus pares, o que implica, desde suas origens,
funcionam como standards, elementos de comparação de significação e razões de conflito e de solidariedade, elementos sempre presentes no
de conformação das consequências jurídicas, mas apenas isso, não alcan- panorama complexo da relação contr~tual636 • É a partir desta dimensão
çando a condição de elementos substitutivos da realidade, razão pela qual que Miguel Reale constrói a noção de ética da situação, a qual busca a
não podem ser alçados à condição de instrumentos de mediação com o con-elação entre o homem situado e a comunidade concreta631 , proposta
real. que assume grande relevância para a interpretação do contrato.
No campo dos contratos, Jorge Cesa Ferreira da Silva defende a Sendo evidente que "a própria exigência de racionalidade na
existência de um "processo interpretativo não limitado às declarações i11te1pretação e aplicação das normas impõe que se analisem todas as
das partes", apontando a existência de uma diretriz da concretude orien- circunstâncias do caso coi1creto"638 , ainda subsiste a questão fundamen-
tadora do novo Código Civi1633 • Nesse contexto, a concretização da dire- tal de se saber em que medida a vinculação com a realidade deve deter-
triz normativa é determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, é minar o conteúdo da interpretação do contrato639, temática que será objeto
determinante em relação a ela, sendo impossível definir como fundamen- do tópico subsequente.
tal e prevalente somente a pura normatividade ou a eficácia das condições
sociais e econômicas que geram e regulam a relação contratual. Há uma
verdadeira reproblematização do Direito, por meio do redimensionamen- 1.2 A Necessária Imposição de Limites ao Raciocínio por
to do elemento normativo, que passa a ser analisado de uma forma mais Concreção
ampla, em conexão com a realidade e com o papel criativo do sujeito
cognoscente que está, assim, obrigado a relacionar o instrumento contra- Corno já delineado, a separação absoluta entre nonna e realida-
tual com a situação hermenêutica concreta na qual se encontra juntamente de traz indesejáveis consequências, especialmente no plano dos contratos.
com o objeto. 6
34 SILVA. 2005. p. 292-293.
A captação da situação na sua particularidade concreta é função 635
GADAMER. 2005. p. 418,432 e 439.
incindível e indelegável da atividade exegética, aspecto que, no entendi- 63 6 RIBEIRO. 1998. p. 751-752. .
mento de Sérgio André Silva, "tem particular importância no âmbito 637
REALE. 1999. p. 210-212 e 226.
638
jurídico, na medida em que se reconhecem as implicações entre norma e Á VILA. 2006. p. 154.
63
g Deve ser considerado tanto que o Direito fixa suas raízes sobre a estrutura ontológíca
dos homens e da comunidade, quanto que o contrato possui destinatários específicos e
631
ÁVILA, 2006,p. 99. um âmbito de aplicação bem mais situado que a nom1a legal. somente fazendo senti-
632
MARTINS-COSTA, 2008. do, portanto, perante o fato concreto (ENGISCH, 1968. p. 193. 195-, 198, 201, 203-
633
FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e Extinção das Obrigações. 204, 222. 346 e 361),
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 44-45 e 225.
Interpretação Contratual 191
190 Felipe Kirchner .
Refere Miguel Reale que o sujeito cognoscente deve superar a
Contudo, a utilização de uma concreção alienante se mostra igualmente fratura do pensamento contemporâneo. Se o henneneuta não pode se
perniciosa, razão pela qual se faz necessário ressaltar a imprescindibili- desvencilhar da experiência humana, também não pode abrir mão dos
dade do alcance de um ponto de equilíbrio entre o abandono da normati- imperativos das categorias racionais. É este o grande desafio da teoria do
vidade em favor da dominação das relações fáticas e a concepção de uma conhecimento: abranger os aspectos da realidade, assegurando relativa
nonnatividade despida de qualquer elemento de realidade 640 • unidade às conclusões hennenêuticas643 •
Nessa relação dialética entre a necessidade hennenêutica de O tema proposto transita por duas questões que merecem desta-
quantificação dos elementos fáticos e nonnativos relevantes e subjacentes que. A primeira, diretamente relacionada à atividade hermenêutica, diz
à declaração negocial - que traz consigo um contributo produtivo de com a solução a ser alcançada em concreto entre o privilégio à realização
complementação do Direito641 - e o resguardo da segurança do tráfico da justiça particular ou o resguardo da certeza jurídica644 • A segunda,
jurídico, existe a necessidade imperiosa de se impor limites ao raciocínio inserta no plano da argumentação, diz com a necessidade do operador
por concreção, fixando balizas ao arbítrio do sujeito cognoscente. O re- sistematizar os critérios de decisão utilizados em seu esforço hennenêuti-
curso retórico à figura do caso concreto não pode se transformar em um co. No campo da prática jurídica, o uso do método concretista recai sem-
apanágio para a ditadura da subjetividade e do descritério. pre no perigo da "assistematicidade" de suas conclusões, cabendo ao
Assim, nesta segunda paite do estudo serão definidas algumas operador quantificar, no âmbito da cir_cularidade hermenêutica, elementos
das condições de procedibilidade do raciocínio por concreção, fixando os que pennitam a promoção, ao menos paulatina, da sistematização das
perímetros da teoria e algumas balizas à atuação do henneneuta. Judith conclusões exegéticas, em respeito à segurança645 •
Martins-Costa externa com precisão a necessidade de se impor limites ao No plano abstrato, já foram definidos, nas duas primeiras paites
raciocínio hennenêutico por concreção: deste estudo, alguns destes balizamentos que derivam dos pressupostos
condicionantes da atividade hern1enêutica. No paradigma gadameriano,
Numa época em que a tarefa hermenêutica está por vezes como que os principais limites objetivos ao raciocínio por concreção estão situados
intoxicada por um excesso de concretização - i111peditiva do discer- no caráter vinculante do objeto interpretado (aspecto teórico que parado-
nir, separar, valorar, ordenar e siste111atizar e, por isso, abstrair, is-
xahnente também resta por detenninar o uso do método concretista) e na
to é, pensar - cabe à doutrina, 111ais que tudo, fixar critérios que
possibilite111 a concreção 1111111 quadro de inteligibilidade e controle pretensão de universalidade do procedimento hermenêutico, aspectos que
intersubjetivos642 • atendem aos postulados da segurança jurídica e da justiça (aspecto práti-
co), pois exigem tanto uma generalização tipificadora que garanta a
6-lo HESSE, 1991, p. 14; VIOLA. ZACCARIA, 1999, p. 183. igualdade de tratamento, quanto uma individualização que garanta a
6-ll LARENZ, 1989, p. 251. Sendo o Direito matizado pelo valor justiça, a tarefa de quantificação das especificidades próprias do caso em exame 646 • Ade-
interpretar envolve a busca pela decisão justa dentro do sentido jurídico do elemen- mais, estas dimensões hermenêuticas se encontram em constante relação
to normativo analisado (GADAMER, 2005, p. 432). Vislumbrando o plano da hete- de complementação e restrição recíprocas.
ronomia, Gadan1er entende que na situação concreta o jurista que se vê obrigado a Quanto à universalidade, cabe mencionar o pensamento de Mi-
atenuar o rigor da lei o faz para não cometer uma incorreção, pois atenuando a lei
guel Reale, para quem "não há condições do conhecimento a não ser em
não faz reduções ao Direito, "mas encontra 11111 direito melhor" (GADAMER, 2005,
p. 419). Aduz Judith Martins-Costa que o cânone fundamental da certeza jurídica função de um mundo circundante, mas são condições universais e neces-
pode ser relativizado, em numerosas hipóteses, pelo princípio superior da justiça sárias a quantos se situem naquelas circunstâncias"647 • No plano da prá-
material (MARTINS-COSTA, 1998, p. 147). No julgamento da AC 590086831, o
TJRS corretamente delineou a premissa de que "a lei não esgota o direito e o direi- 6-1 3 REALE, 1999.p. 17-18.
to não esgota a realidade", razão pela qual no exercício da prestação jurisdicional o 6-1-l Sobre a realização da justiça pa1ticular. em detrimei1to do resguardo da segurança
juiz (enquanto intérprete/aplicador) "quando cria não uswpa: completa o direito" jurídica. remete-se o leitor à discussão já travada 110 tópico '"O caráter ct'Ítico da ativi-
(AC 590086831, 3ª Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. Décio Antônio Erpen, j. em dade hermenêutica".
20.02.1991). Esta decisão ainda posiciona a jurisprudência como fonte normativa, 6-ls MARTINS-COSTA, 1998. p. 130.
6
afimiando o seguinte: "a lei dá a segurança jurídica. A jurisprudência fa= justiça 6-1 ENGISCH, 1968. p. 59-60. , ·
7
no caso concreto." 6-1 REALE. 1999. p. 44.
642 MARTINS-COSTA, 2006, p. 35.
Interpretação Contratual 193
192 Felipe Kirchner •
forma de raciocínio seria desimportante, pois o processo de subsunção se
xis jurídica (principalmente jurisprudencial), destaca-se a máxima de que constitui em fator essencial ao fazer científico (v.g.: classificação, tipifica-
o sujeito cognoscente deve interpretar determinado elemento normativo ção e qualificação da declar~çã? _negocial)654 . O problema_ está tia es_colha
de maneira que a sua interpretação possa ser efetiva e válida para todos os das premissas pelo operador Jund1co. Em outros termos: a rnterpretaçao e a
outros casos similares, ou seja, para as outras situações nonnadas adstri-
tas à mesma situação hennenêutica648 . Essa é uma valiosa lição para que J·urisprudência (em especial dos tribunais estaduais e superiores) devem
conseguir se elevar do concreto, embora d evam sempre quantlºfi ca- , 1o65,-.
se evite um raciocínio por concreção que conduza a conclusões subjeti-
A interpretação deve voltar-se e desenvolver-se em consonância
vas, arbitrárias e alienantes.
com as peculiaridades do caso concreto, mas jamais pode admitir a su-
Não obstante, a principal chave de limitação está no controle do premacia do proble;11a sobre o elemento n01mativo, o qu~ importaria em
caráter criativo da atividade interpretativa por meio do resguardo da força uma agressão ao nucleo fundamental do ato de autonomia. Essa conclu-
vinculante do objeto interpretado 649 . A necessidade de abertura do intér- são afasta o paradigma aqui proposto das apreensões mais radicais sobre
prete para a alteridade da coisa, deixando que esta lhe fale algo contra o método tópico-problemático656 .
suas próprias convicções (força vinculante do objeto interpretado), parece
Também acerca da aplicação de critérios de proporcionalidade e
ser o grande critério presente na teoria gadameriana para a aferição da
ponderação, que acompanham o método co_ncretist~, faz-se necessá~a a
correção do produto da interpretação650 e, consequentemente, para se
fixação de balizas, a fim de evitar o que Judith Martms-Costa denomrnou
evitar a dimensão alienante do método concretista. Nesse sentido, Gada-
de vulgata da ponderação, que se constitui em uma "epidemia quase
mer sustenta que "a tarefa hermenêutica se converte por si mesma num
endêmica segundo a qual 'o caso' é tudo, cabendo ao juiz 'ponderar'
questionamento pautado na coisa em questão, e já se encontra sempre
segundo a impressao - provocada pel o caso em sua sens1ºb 1·1·dz ade " 657 .
co-determinada por esta" 651 .
Enfocando o discurso moral, Maria Claudia Cachapuz aduz que
A fim de evitar o predomínio da subjetividade, deve-se esclare-
não há uma dissociação necessária entre as funções da universalidade
cer como se realiza a construção do significado por via da concreção da
(necessária à estrutura aberta) e da particularidade (reservada à experiên-
situação objetiva complexa, fonnadora de um sistema que se constitui em
cia concreta). Somente com a conciliação destas duas dimensões é que se
fator de legitimação e de limite para a aplicação dessa espécie de raciocí-
dará a equalização entre a segurança da estrutura nonnativa e a impres-
nio652. O método da concreção não afasta - antes requer - a referência ao
cindível abe1tura ao caso fático em exame 658 .
ordenamento e aos seus princípios e, apesar de impor um viés tópico, não
se apresenta como substitutivo do processo de subsunção nem da lógica
da inferência, peculiar ao raciocínio dedutivo 653 . 654 MARTINS-COSTA. 2008.
655 MARTINS-COSTA. 2008.
Nesse contexto, a concreção não pode renunciar a uma possibi-
65 6 GRAU, 2003, p. 98.
lidade de análise abstrata dos casos e da argumentação jurídica. Não se 7
65 MARTINS-COSTA. 2006. p. 34.
pode confundir a crítica ao silogismo fonnal com a defesa de que essa 6 8
5 CACHAPUZ. 2006. p. 144. Cabe delinear um interessante exemplo do uso meramen-
8
te retórico do raciocúuo por concreção. consubstanciado na discussão travada entre os
6-1 LARENZ, 1989, p. 378; VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 98. ministros Nelson Jobin1 e Moreira Alves na ADI 2.212. constante no voto daquele.
9
6-1 Hesse admite tanto que a hermenêutica importa em uma tarefa concretiz.adora (conteúdo Este julgado tinha como objeto a discussão acerca da constitucionalidade da pr~visão
normativo determinado sob inclusão da realidade a ser ordenada), quanto o fato de legal do instituto da reclamação na Constituição Estadual do Estado do Ceara e do
que a interpretação jurídica tem caráter criador (o conteúdo da nomrn interpretada se Regimento Interno da sua Corte Estadual. Como na época o entendimento consolida-
conclui primeiro na interpretação), mas expressamente refere que a atividade exegéti- do do Supremo Tribunal Federal era no sentido de que a figura da reclamação possuía
ca "tem somente neste aspecto caráter criador: a atividade inte1pretativa permanece natureza processual, o Governador do Estado ingressou com a demanda, alegando,
vinculada à norma" (HESSE, 1998, p. 61). fundamentalmente. usurpação da competência da União para legislar sobre processo
650
GRAU, 2003, p. 109. civil (art. 22, I, da CRFB/1988) e ofensa ao princípio da simetria. Nesse co!ltexto, e~11
65
' GADAMER, 2005, p. 358. sendo mantido o entendin1ento da Corte (natureza processual da reclamaçao ), estana
652 configurada a inéonstitucionalidade, o que se conclui por meio de um simples raciocí-
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 137-138. Refere Gadamer que a única pertença à lei
nio silogístico. Contudo, a decisão tomou-se um leading case pelo, fato do STF, na-
que se exige na tarefa de concreção é que a ordem jurídica seja reconhecida como vá-
quela oportunidade, ter alterado sua posição. passando a considerar que a natureza do
lida para todos (GADAMER. 2005, p. 433). instih1to da reclamação se situa no âmbito do direito constitucional de petição (art. 5°.
653
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 138.
194 Felipe Kirchner . Interpretação Contratual 195
Feitas estas considerações sobre a necessidade de se impor limi- que, em não sendo assim, o instrumento perca a sua desejada força nor-
tes ao raciocínio por concreção, cabe adentrar na discussão atinente à mativa no âmbito material. Ocorre que, indubitavelmente, entre o enuncia-
influência do raciocínio por concreção na força normativa do contrato. do nonnativo e a sua real condição de eficácia existe, sempre, a mediação
hermenêutica de significação do elemento interpretado 659•
O que realmente interessa na verificação da relação existente
1.3 A Influência do Raciocínio por Concreção na Força entre interpretação e resguardo da força normativa do contrato é a rele-
Normativa do Contrato vância hermenêutica que decorre dos elementos fáticos, a serem quantifi-
cadas pelo sujeito cognoscente no curso da atividade interpretativa. Como
O raciocínio hermenêutico por concreção abrange todas as fases a conduta anterior e posterior das partes influencia o objeto da interpreta-
da existência do contrato e deve ser exercido por todos os intérpretes que ção, estando diretamente atrelada à fonna de cumprimento do pactuado, é
com ele se deparam (paites, operadores j w-ídicos e terceiros), sob pena de inerente ao agir hermenêutico quantificar todas as relações a paitir das
quais deriva a força nonnativa do pactuado e a autoridade desta dimensão
XXXIV, da CRFB/1988), do que deriva a consequência de que a sua adoção pelo es- no comp01tamento (principalmente posterior) dos contraentes.
tado membro, pela via legislativa local, não implica invasão da competência privativa
da União para legislar sobre Direito Processual üá que o instituto não se insere neste No paradigma hennenêutico aqui delineado, a norma contratual
dominio ). No entanto, o ministro Nelson Jobim encaminhou voto no sentido de que, deixa de ser um dado apartado do caso concreto ou um simples instru-
embora o instituto da reclamação tenha, em seu entendimento, natureza processual, o mento de captação linguística e de medição da validez da realidade, pas-
caso concreto excepcionaria o vício de inconstitucionalidade, o que culminou em um
verdadeiro excesso de concreti::;ação - por se afastar do sistema e da dogmática jurídi- sando a se constituir em um modelo fimcional que dialoga bilateralmente
ca sem explicitar as razões concretas que conduziram sua conclusão hermenêutica -, com as diretrizes normativas do ordenamento jurídico e contém em si as
afastando seu raciocúlio de um quadro de inteligibilidade e controle intersubjetivos, circunstâncias do caso, o que detennina a quantificação do momento situ-
restando por desconsiderar os imperativos das categorias racionais do Direito, sendo
que o privilégio à realização da justiça particular acabou afetando o re_sguardo da c~r- acional (Dasein) como sendo um componente integrante, intrínseco e
teza e da segurança juridica. Na espécie, o julgador acabou desconsiderando aqmlo necessário da atividade exegética. Se para a corrente clássica a nonna se
que a coisa tinha para lhe falar (em a nonna detendo natureza processual, conforme contrapõe ao caso concreto em tennos de ajuste e/ou desajuste, no racio-
seu próprio entendimento, restaria a decretação da inconstitucionalidade) e acabou so-
lapando a pretensão de universalidade de suas considerações exegéticas, porquanto cínio hermenêutico por concreção a atividade interpretativa aceita e intro-
deixou de sistematizar os critérios de decisão utilizados em seu esforço hermenêutico jeta a conexão necessária do elemento nonnativo com a realidade fática
( a fundamentação foi construída apenas para o caso concreto), impossibilitando a sis- (circunstâncias do caso) e nonnativa (totalidade axiológica do sistema
tematização das suas conclusões. Contraponto ocorre no julgamento da AC
70018555144 (2ª Câmara Cível, Rei. Des. Adão Sérgio do Nascúnento Cassiano, j. jurídico). Usando a tenninologia de Miguel Reale, a atividade interpreta-
em 28.03.2007), no qual o TJRS entendeu que a norma de linlitação da continuação tiva passa a quantificar as condições de reali:::abilidade do elemento nor-
da fruição do beneficio previdenciário até a idade de 24 anos deve ser interpretada em mativo analisado 660 • É nesse sentido que a interpretação se constitui em
conformidade com a "situação excepcionalíssima posta 110 caso dos autos", em uma um processo de individualização e concretização do elemento nonnativo
"'leitura não meramente literal da 11or111a, afastando-se o pensamento legalista (... ) e
consentânea às modificações sociais e às peculiaridades do caso concreto". Contudo, em um reviver concreto deste, que experimenta modificações de ajuste às
merece ser exaltado não apenas o teor da construção hermenêutica (que partiu de um peculiaridades de cada nova realidade661 •
paradigma construtivo e criativo), mas o fato de que a decisão judi~ial não recaiu em
uma interpretação concretista alienante, principalmente porque o Julgador externou O tema da concreção contratual influencia diretamente no res-
com exatidão as peculiaridades concretas que excepcionaram a incidência da norma de guardo da força normativa da pactuação privada porque se relaciona com
limitação do beneficio previdenciário: (1) orfandade da autora; (2) autora se encontrar a questão do adimplemento, remetendo ao que poderia ser denominado de
inlpossibilitada de prover seu sustento e de seu filho em virtude da carga exigida pela fa- quantificação das possibilidades do adimplemento como fator determi-
culdade de medicina da UFRGS, que exige dedicação integral dos seus alunos e únpos-
sibilita o trabalho simultâneo; (3) situação excepcionalíssima de a data de formatura não nante da inte1pretação. Como a relação obrigacional constitui-se em um
coincidir com a data de cessação do beneficio previdenciário. Tanmnha foi a preocllpa-
659
ção com a tmiversalidade e cientificidade do decisum, que o relator afinnou que "ao Jui:; REALE. 1981a, p. 8.
não pode ser dado ignorar (os preceitos expressos ou únplícitos no ordenamento), ao 660
REALE, 1968. p. 201: FERRAZ JÚNIOR. 1981.
111enos se tiver alg11111a preocupação cientijica, quer co111 o uso do direito co1110 fator de 661
transformação social quer co111 a própria reali::;ação da justiça 110 caso concreto, co1110 RECASÉNS SICHES, Luis. La Nueva Filosofia de la InterpretaéÍón dei Derecho.
5. ed. México: Porrúa. 1979. p. 276.
valorfimdamental do siste111aj11rídico''.
Interpretação Contratual 197
1.5 A Natureza Jurídica das Circunstâncias do Caso e da sendo decisivo a delimitação das especificidades de sua operacionalidade (ÁVJLA,
2006. p. 124).
Proporcionalidade 712 ÁVJLA 2006, p. 121-122. Hmnberto Ávila sustenta a existência de três tipos de
2.2 Os Elementos que Compõem o Postulado das camente mantidos e reconhecíveis, enquadrados no contexto das circuns-
tâncias concomitantes.
Circunstâncias do Caso
Dito isso, cabe ressaltar que a primeira grande fonnà de con-
O contrato é o contrato e suas circunstâncias, ou seja, é texto e substanciação do postulado das circunstâncias do caso se dá no âmbito da
contexto, razão pela qual sem individuação não há qualquer possibilidade dimensão linguística da interpretação contratual. Dentre os sentidos lite-
de compreensão. Além de interpretar as palavras, gestos e atividades, o rais possíveis, a quantificação do contexto proporciona a concordância
sujeito cognoscente deve interpretar as circunstâncias em que as palavras, objetiva e intertextual da disposição contratual, dando prevalência ao
gestos e atividades são criados e desenvolvidos 773 • Não há conhecimento sentido consoante ao comportamento das partes, ao conjunto de declara-
e interpretação desvinculados de um quadro de significados e de um uni- ções por elas emitidas e à ordenação externa derivada das leis 777 .
verso de narração que os sustentam774 . A dimensão meramente semântica do significado negocial é de
As circunstâncias do caso detenninam o significado das obriga- todo insuficiente. A tese clássica de que o significado do contrato residi-
ções, mas possuem conteúdo incompleto, o qual deve ser preenchido por ria exclusivamente no conteúdo da vontade revelada por sua manifestação
•. ··•.·.·
detenninados elementos fáticos e nonnativos para que se alcance a atri- (declaração negocial) toma por objeto apenas um texto anônimo, descai·-
buição do significado usual correspondente ao ato de autonomia priva- nado, despersonalizado e isolado da relação comunicativa concreta que se
da,775 tendo em vista que a interpretação contratual trabalha com um de- estabelece entre quem o produz e quem dele toma conhecimento 778 •
terminado discurso jurídico. A detenninação de significado de uma declaração depende não
De uma maneira geral, pode-se apresentar a interessante distin- apenas das regras de composição da mensagem (sintática) e dos sinais
ção entre situação de fato enquanto acontecimento e como enunciado, comunicativos utilizados (semântica), mas também das relações entre o
devidamente observada por Karl Larenz776 • Ocorre que no fenômeno uso dos sinais em um dado contexto fático (pragmática), razão pela qual
contratual há detenninadas circunstâncias fáticas dispostas expressamente se faz necessário que o sujeito cognoscente enfoque os efeitos interacio-
na declaração de vontade (selecionadas pelos contratantes entre a multi- nais do uso da linguagem em uma detenninada comunidade linguística e
plicidade inabarcável do constante fluir do acontecer fático), as quais em um contexto social (relações que se instauram por intennédio do uso
assumem, portanto, a condição de enunciados nonnativos (a serem utili- concreto da linguagem) 779•
zados para mensurar os comportamentos posteriores dos contraentes, em Nesse sentido, a necessidade de concreção atinge a análise lin-
regra por meio de processos de subsunção). De outro lado, há todo o resto guística do contrato. Além do significado das palavras variar confonne as
das circunstâncias do caso que delineiam, englobam e fundamentam a circunstâncias em que são fonnuladas e depender das nonnas estatais de
relação contratual, e que, nessa condição, devem ser consideradas como natureza conceituai (estando sempre relacionado com as circunstâncias
acontecimentos relevantes à atividade hennenêutica. 780
fáticas e normativas), aquilo que se compreende como enunciado sem-
Confonne se extrai da teoria preceptiva de Emílio Betti, o rele- pre vem acompanhado de motivações. Os enunciados linguísticos jamais
vante na atividade hennenêutica não é tanto o teor das palavras ou a ma- t~m seu pleno conteúdo de sentido formado a partir de si mesmos, neces-
terialidade da conduta, mas a situação objetiva em que aquelas são pro- sitando sempre da quantificação de urna dimensão relacional e intertextual
nunciadas ou subscritas, ou seja, o complexo de circunstâncias em que a (ex.: a palavra "aqui" não é compreensível pelo simples fato de ter sido
declaração e o comportamento se enquadram como seu meio natural e em pronunciada ou escrita, pois sua significação é complementada pela oca-
que assumem, segundo o ponto de vista da consciência social, o seu típi-
co significado e valor. Nesses tennos, são objeto de interpretação nos 777
LARENZ, 1989, p. 391 e 394. A questão atinente à ordenação externa derivada das
negócios jurídicos as declarações trocadas e os comportamentos recipro- leis denota a dimensão indissociável que existe entre ·concreção fática e nonnativa e.
consequentemente. entre a utilização dos postulados das circunstâncias do caso e da
773 proporcionalidade no iter hermenêutico.
FERREIRA DA SILVA, 2006. 778
774 FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 163.
MARTINS-COSTA, 2008. 779
775 FERREIRA DE ALMEIDA. 2005, p. 163. , ·
DANZ, 1955, p. 56-57. 780
776 DANZ, 1955. p. 18 e 24.
LARENZ, 1989, p. 333-334.
hlterpretação Contratual 227
226 Felipe Kirclmer ·
Nunca é demais frisar que a linguagem varia confom1e condi-
sião em que foi pronunciada)781 . Como refere Gadamer, "nenhuma frase ções geográficas, culturais e sociais (ex.: usos do comércio), e é confor-
é por si mesma uma unidade. Ao contrário, toda frase perte_.,nc~ a uma madora de um modo de construir as declarações negociais, redundando
unidade de sentido que empresta ao todo do texto a sua tensao mterna e na constituição dos usos sociais dentro de detenninada classe. Exemplifi-
o seu tom próprio"182 • No mesmo sentido, Emilio Betti, para quem cativamente, em uma contratação envolvendo pessoas de classes comer-
ciais distintas (contratos de consumo), as palavras devem ser interpreta-
o significado, a intensidade e a nuança de um? P_alm1ra só podem ser das no sentido vulgar; já quando o negócio caiba dentro da órbita especial
entendidas no contexto em que tal palm 1ra foz dita 011 se encontra, o de uma determinada classe comercial (v.g.: contrato de distribuição co-
significado e o valor de uma preposição e daqu<;las que se associ~m a
ela só pode111 ser co111preendidos pelo nexo reciproco e pelo co,yunto mercial ou contrato de construção de uma casa sendo aceitante um arqui-
orgânico do discurso a que pertencem 183 • teto788), a linguagem deve ser compreendida em seu sentido técnico, o
que deve ocorrer também quando o destinatário, mesmo não sendo partí-
Nesses termos, a concreção hermenêutica, mediada pelas cir- cipe de igual classe social/comercial do proponente, conhece o sentido
cunstâncias do caso, é fator detenninante na distinção entre o uso geral e especial que é dado às palavras e não emite manifestação em contrário 789 .
o uso particular da linguagem nas declarações negociais, tendo em vista Ainda mensurando o plano linguístico, Carlos Ferreira de Al-
ser inequívoco que as palavras não têm um sentido fixo 784 . meida ressalta a necessidade de análise de todos os meios acessíveis ao
O significado referencial dos signos utilizados na declaração intérprete, dentre os quais se destaca Ô comportamento global dos decla-
negocial depende sempre daqui!o a que_ re~nete, ou sej_a, ao _seu conte~o rantes, as especificidades linguísticas do local e da profissão, a comuni-
fático e nonnativo, o que toma 1mprescmd1vel a quantificaçao da relaçao dade ou círculo linguístico em que se inserem contrato e contraentes,
globalmente apreendida 785 . É o horizonte da s~tuação objetiva ~omplexa tendo em vista que a situação e o meio falam tão claramente quanto as
que perfaz a verdade dos enunciados contratuais, send? ce~o, amda,, q~e palavras790 .
parte do universo comum dos contratantes se e~contra msendo na propna Carlos Ferreira de Almeida refere que os interlocutores do diá-
dimensão linguística dos enunciados contratuais, por força do ato de au- logo contratual (sejam pessoas fisicas ou jurídicas, destinatários detenni-
. 786
tonomia ou dos comportamentos postenores nados ou indeterminados) participam do processo comunicativo segundo
Erich Danz demonstrou que o intérprete contratual não pode re- determinantes pessoais que abrangem competências linguísticas e para-
cair em dois equívocos: ater-se ao sentido literal das expressões e_ e?ten- linguísticas (v.g.: gestos, entoação e simbologias), abarcando aspectos
der as palavras pelo sentido da linguagem comum. No _cur_so da at1v1dade pessoais (ex.: idade, sexo, cultura, profissão, capacidade econômica, ima-
hennenêutica, o sujeito cognoscente deve entender o s1~1ficado dos t~r- gem social, capacidade e legitimidades jurídicas) e objetivos do estamen-
mos contidos na declaração negocial sempre em relaçao a todas as cir- to social a que estão submetidos. Contudo, há uma graduação hennenêu-
cunstâncias do caso, eis que as palavras nunca têm um sentido fixo, pois tica destas determinações, pois as mesmas ganham relevância interpreta-
seu significado depende sempre dos elementos fáticos e normativos rele- tiva quando integradas em uma esfera de conhecimento mútuo que as
vantes, se alterando quando estes se mo d1.fi1carem787 . tome atendíveis como fatores de compreensão do sentido do texto 791 .
A mesma indefinição presente na conceituação do que sejam as
78 1 GADAMER, 2004, p. 229-230. circunstâncias do caso alcança a abrangência de atuação do postulado no
782 GADAMER, 2007b, p. 123. plano hermenêutico, pois como refere Karl Larenz, "se antes falamos de
783 BETTT, 2007, p. XLVII.
784 FERREIRA DE ALMEIDA. 2005, p. 161. 788 Este exemplo demonstra que a questão tratada trai1scende o enquadrainento jurídico.
785 GADAMER, 1998a, p. 102-104 e 108. pois se aplica tanto aos contratos paritários. quai1to às ·pactuações consumeristas. em-
786 GADAMER, 2004, p. 68. bora nestas o intérprete deva ter um cuidado redobrado no uso da linguagem técnica.
78 7 DANZ, 1955, p. 52-53. Pensando o Direito antes da viragem linguística, Erich Danz em face das normas estatais de ordem protetiva.
posicionou a linguagem como categoria ati_va e ~~festação própria do~ cl!amados 78
g DANZ, 1955. p. 281 e 284.
usos sociais, sendo, em verdade, o uso social mais importante. Refere o Junsta que, 790
FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 162.
sem conhecer a linguagem e os usos da linguagem, é impossível interpr~tar uma_ di: 791
FERREIRA DE ALMEIDA. 2005. p. 165.
claração de vontade, independente da vastidão e brilhai1tis1110 de conhecimentos Jun-
dicos que o intérprete possua (DANZ, 1955, p. 153, 156 e 251-252).
hlterpretação Contrah1al 229
228 Felipe Kirchner ·
para a qualificação hennenêutica da significação de deter-
'circunstâncias hermeneuticamente relevantes', é de agora acrescentar minada questão (tempo em que foi realizada detenninada
que não é possível um catálogo exaustivo de todas as circunstâncias que prestação) 796 ;
.
possam ser hermeneutzcamente re levantes ,,791 . (4) qualidade das partes envolvidas (especialmente nos negó-
De forma não exaustiva, pode-se elencar uma série de elemen- cios intuito personae): em uma compra e venda de detenni-
tos que atribuem significado ~s c_ircunstânci~s d? ca~o,, ~onforme entende nado produto agrícola, se o vendedor é o próprio produtor se
a doutrina793 • Por uma preferencia de orgamzaçao d1dat1ca, os elementos entende ter ele querido vender o bem produzido em suas ter-
serão apresentados isolada e numericamente, com a explicitação de seu ras, salvo disposição em contrário. Já se o produtor é um in-
conteúdo ou de exemplos concretos para cada qual: termediário, o produto terá procedência indetenninada797 ;
(1) espécie e qualidade do objeto: se alguém entra em um res- (5) relação pessoal dos contratantes (laços de amizade, fami-
taurante e diz ao garçom "traga-me um assado e fósforos", liares ou afetivos): se alguém vai a uma loja de aluguel de
a palavra "traga-me" altera de sentido conforme a coisa bicicletas e diz "deixa-me uma bicicleta para esta tarde", e
pedida. Com relação ao assado, signifi~a que o sujeito d~- o proprietário diz "sim", nasce para aquele a obrigação de
··•.·.··
•,
seja obter a propriedade de alguma coisa em troca de di- pagar o preço corrente pelo uso da bicicleta e para o loca-
nheiro, pois se o mesmo objetiva apenas ver o assado deve- dor a obrigação de deixar usar o bem móvel. Contudo, se
ria declarar "traga-me um assado só para vê-lo". Quanto quem diz a mesma sentença for o filho do locador, aquele
aos fósforos, "traga-me" detém o significado usual de con- em regra não será obrigado a retribuir pecuniariamente a uti-
sumir gratuitamente todos os fósforos necessários para lização do bem, pois é usual que os pais concedam o uso de
acender os cigarros consumidos dentro do restaurante, pois objetos gratuitamente aos filhos, razão pela qual para forma-
se o sujeito quiser levar os fósforos para casa, deve decla- lizar a locação o pai teria de dizer "sim, mas pagando"798 ;
• ~
rar esta mtençao expressament e794., (6) relação prévia existente entre os contratantes: toma-se ab-
(2) lugar: se alguém entra no restaurante, a frase "traga-me o solutamente relevante para a atividade hennenêutica a fase
jornal" significa uma pennissão de uso para leitura dentro das tratativas negociais e as contratações anteriores envol-
do estabelecimento, o que se modifica se o sujeito profere vendo as partes ou seus parceiros comerciais, o que denota
·
a mesma sentença perante um ven dedor d e Jornais· 795 ;
a existência de uma conexidade he1n1enêutica que trans-
(3) tempo: o vetor serve de base para comparações (entre cende a mera sistematicidade interna da pactuação;
comportamentos anteriores e posteriores a contratação) ou (7) usos e costumes: se o sujeito diz a um taxista "faça-me o
favor de levar minha maleta até o Hotel X", assume a obri-
192 LARENZ, 1989, p. 293. gação de pagar o preço usual pelo serviço. Contudo, se o
793 Interessante dispositivo sobre as circunstâncias henueneuticamente relevantes se mesmo sujeito escuta alguém dizendo ao taxista que vá até
encontra no artigo 5:102, do The Principies of European Contract Lml', documento o Hotel X e faz o mesmo pedido ao motorista e ao passa-
editado pela Co111111ision on European Contract Lml': --Article 5:102: Relevant Cir~ geiro, não se verifica a obrigação necessária ao pagamento
cu 111stances ln inte1preting the contract, regard shall be had, in particular,. to:· (a)
the circumstances in which it was concluded, including the preli111inary negotzatwns;
de uma retribuição 799 ;
(b) the conduct of the parties, even subsequent to the conclusion of the contract; (e)
796
the nature and pwpose of the contract; (d) the inte1pretation which has already been MARINO, 2003, p. 89.
aiven to similar clauses by the parties and the practices they hm1e established between 797
MARINO, 2003, p. 88-89. A distinção apresentada acaba sendo relevante, também,
7he111selves; (e) the 111eaning co111111011ly given to terms and expressions in the branclz no plano material dos efeitos jurídicos (ex.: resolução áo contrato por perda ou deterio-
of activity concerned and the inte,pretation similar clauses 111ay already have re- ração da coisa).
798
ceived; (f) usages; and (g) goodfaith andfair dealing". DANZ, 1955, p. 55-56.
799
194 DANZ, 1955, p. 54-55. DANZ, 1955, p. 57; MARINO, 2003, p. 89. Diversos são os dispositivos legais nacio-
1 9 s DANZ, 1955, p. 54-55. O lugar tem enorme s_igni?caç~o no ân~bi~o da linguagem, nais (arts. 111 e 113, do CC/2002; arts. 130 e 13 L IV, do revogado'Código Comerci-
pois existem tenninologias e conceituações regionais cuJas pecuhandades podem al- al) e estrangeiros (art. 1.159, do Código Civil Francês; art. 1.368, do Código Civil Ita-
cançar enom1e relevância na atividade interpretativa.
h1terpretação Contratual 231
230 Felipe Kirchner.
uma pousada e diz "traga-me, por favor, um prato de so-
(8) classes sociais e comerciais: a linguagem varia confonne pa", declara que a deseja gratuitamente, diferente de quan-
as regiões (lugar), mas há classes sociais (ex.: comercian- do a mesma sentença resta fonnulada por um hóspede,
tes) que têm uma linguagem própria, característica de um quando o usual é a retribuição financeira 8º2 ;
modo de falar e proceder que resta por desenvolver decla- (11) circunstâncias reciprocamente reconhecíveis presentes na
rações negociais ( atos e omissões) interpretadas sempre em consciência das partes 803 : trata-se de todo o substrato her-
um mesmo sentido nonnal e ordinário que constitui, dentro menêutico avalizado pela objetivação trazida pelos filtros
desta classe detenninada, o uso social 800 ; das expectativas legítimas e de confiança despertadas nas
(9) práticas comerciais: dois sujeitos vindos do interior chegam partes;
à cidade e veem um táxi com a inscrição "livre", e supondo (12) comportamento total das partes: a interpretação contratual
que aquilo queira dizer "grátis", o tomam. Como nas práti- abrange o conteúdo global dos fatos antecedentes (v.g.: nego-
cas comerciais não é usual que o taxista preste seus serviços ciações preliminares) e consequentes (conduta posterior) 8º4 ;
gratuitamente, haverá a obrigação de retribuição 80 1;
.... •.·· (13) conjunto das várias declarações e/ou cláusulas entendidas
(1 O) modo de comportamento (nas fases pré-contratual, contra- como elementos de um todo: diz com a remissão herme-
tual e pós-contratual): um morador de rua que chega em nêutica das partes da regulação com o todo, e deste com as
partes, o que atende aos pressupostos da circularidade
liano; § 157, do Código Civil Alemão) que preveem a aplicação dos usos sociais no hennenêutica805 ;
âmbito hermenêutico. Sobre a atuação destes, deve ser esclarecido que no plano da in-
terpretação dos contratos sua aplicação é imediata, pois para que não se produza o
(14)finalidade e/ou intuito prático visado com a contratação:
sentido correspondente aos usos sociais deve haver uma declaração ou outra circuns- como será visto ainda neste tópico, os motivos detenni-
tância objetiva nesse sentido (DANZ, 1955, p. 63). Os usos ainda formam cânones nantes do negócio (art. 166, III, do CC/2002) são elemen-
práticos de interpretação do contrato, como o entendin1ento de que, no âmbito comer- tos subjetivos do contrato e integram o postulado norma-
cial, se encontra presente a contraprestação mesmo na ausência de convenção do pre- tivo das circunstâncias do caso quando comum a ambos
ço. Existe uma norma tácita em relação aos usos sociais: "aquele que exige de un1 contraentes, apresentando-se como base contratual implí-
fornecedor uma prestação correspondente a sua atividade sem convencionar o preço,
deve pagar o preço usual entre seus clientes". A declaração de vontade deve ser assim
cita e elemento de concreção 806 , assim como a causa da
entendida: "reclamo a prestação em troca do preço que entre seus clientes é usual". A contratação. Cabe ressaltar que a concreção hermenêutica
contraprestação é a corrente entre a clientela. e não a •justa", que em certos casos po- leva em consideração a totalidade congruente dos motivos
de ser outra. Se uma pessoa entra em um restaurante e pede um copo de cerveja sem e interesses individuais no contexto dos fatos oco1Tentes.
pergtmtar o preço, deve pagar o preço usual, não podendo o cliente ou o proprietário
exigir o preço justo, o que demandaria uma declaração expressa antes da realização do
Assim, se a interpretação não se limita ao esclarecimento
contrato (DANZ, 1955, p. 57 e 60-61). A matéria diz, ainda, com a quarta regra de de motivos inconscientes, acaba os quantificando, mesmo
Pothier, a qual afirma que aquilo que pode parecer ambíguo em um contrato se inter-
preta pelo que é de costume do país. (ex.: feito contrato com um viticultor para cultivo
802
de terra sem declinar os valores do pagamento, considera-se que estes são os de uso e DANZ, 1955, p. 61.
803
costume na região) (POTHIER, 2001, p. 98). BETIL 2003b, 180-181.
8
800 DANZ, 1955, p. 281. Os usos comerciais são uma parte dos usos sociais (DANZ, 0-I ROPPO, 1988, p. 171-172. Alguns ordenamentos possuem dispositivos prevendo a
1955, p. 282). Nas contratações envolvendo pessoas que fonnam detenninadas classes quantificação hermenêutica do comportamento total das partes, como oco1Te com os
sociais com pessoas alheias a elas, as palavras devem ser interpretadas no sentido vul- arts. 1.361, item 2 e 1.362, parágrafo único, do Código Civil Italiano. No ordenamen-
gar quando o negócio não caiba dentro da órbita especial destas classes, e no sentido to nacional, a questão encontrava lastro no revogado art. 131, ill, do revogado Código
técnico quando o negócio caiba dentro da órbita especial destas classes (ex.: contrato Comercial. ·
de construção de uma casa fommlado com um arquiteto) ou quando a outra parte co- 805
Existem ordenamentos prevendo esta relação. como ocorre com o ait. 1.363. do Códi-
nhece o sentido especial que é dado às palavras, e não emite manifestação em contrá- go Civil Italiano: "lnte1preta=ione Complessiva dei/e Clausole. Le clausole dei con-
rio (DANZ, 1955, p. 284), como já delienado. tralto si inte1preta110 le une per me==o dei/e altre, attribuendo a ciascuna il senso che
801 DANZ, 1955, p. 58 e 65. No que tange aos efeitos jurídicos dos negócios comerciais, risulta dai complesso dell'atto" , .·
806
só importa o sentido usual da declaração, sendo indiferente que as partes o conheçam MARTINS-COSTA, 2005b, p. 149-150, 152 e 154.
ou o ignorem. O conteúdo do contrato se ajusta, em regra, ao sentido usual.
Interpretação Contratual 233
232 Felipe Kircbner ·
( 18) modo de formação do contrato: o contrato de compra e
que indiretamente, pela análise das circunstâncias objeti- venda pode ser inteiramente estipulado pelo vendedor
vas relevantes 807 ; (contrato de adesão) ou negociado entre as partes; o que al-
(15) natureza e/ou matéria do negócio jurídico: contratado o tera, por exemplo, o ponto de relevância hennenêutica da
aluguel de uma casa por dois anos pelo valor X, esta im- contratação e a sua intensidade vinculativa811 ;
portância deve ser entendida como a quantia mensal, por- Cabe mencionar, ainda, que existem seis elementos fáticos ex-
que é da natureza do contrato de locação que o preço seja pressamente nominados no Código Civil Brasileiro que contribuem na
considerado por mensalidades ( cabendo avaliar, ainda, a atribuição de significado às circunstâncias do caso 812 , os quais, por esta-
compatibilidade do preço com o valor usual praticado no rem positivados, merecem o devido destaque: (1) os usos (art. 113); (2) a
mercado ) 808 ; boa-fé objetiva (art. 113); (3) a finalidade econômico-social do Direito
(16) natureza do tipo legal do negócio jurídico celebrado: este (arts. 187 e 421 ); (4) os bons costumes ( art. 187); ( 5) a causa e os motivos
elemento importa na consideração das peculiaridades do determinantes do negócio (art. 166, III); ( 6) a comum intenção dos con-
···.·.·· tratamento hennenêutico das diversas categorias negociais tratantes (art. 112). Embora não haja espaço neste estudo para uma análi-
(ex.: função econômico-social do negócio, grau de recog- se aprofundada de cada um destes elementos, mister se faz tecer breves
noscibilidade objetiva, nível de expectativas legítimas e de considerações sobre os mesmos.
confiança despertadas nas partes e na sociedade e a exten- A relevância atribuída aos usos surge cumulada com o princípio
são do material interpretativo à disposição do intérprete) 809 ; da boa-fé objetiva, nos termos do art. 113, do CC/2002. Confonne refere
(17) quantificação da modalidade pela qual se procede a exe- Judith Martins-Costa, a nonna legal é detenninativa dos usos negociais,
cução do contrato: exemplificativamente, poder-se-ia dizer verdadeiro critério hennenêutico que diz com elementos de fato implici-
que a execução da obrigação realizada de um detenninado tamente considerados na relação negocial (práticas comerciais e cláusulas
modo não contestado pela parte adversa faz presumir a cor- contratuais habitualmente utilizadas em detenninado setor da economia,
reição da conduta810 ; do comércio ou de categoria profissional), não se confundindo com os
usos normativos, relativos a uma operatividade deste elemento como
8° 7 BETII, 2007, p. 347-348; BETII, 2003b, p. 175-176; MARINO, 2003, p. 89. Exem- norma consuetudinária ou fonte de produção nonnativa813 , embora a dife-
plo desta circunstância se encontra no art. 1.364, do Código Civil Italiano: "Espressioni rença entre os usos normativos e interpretativos esteja situada no plano
Generali. Per quanto generali siano !e espressioni usate nel contralto, questo 11011 funcional, e não ontológico 814 •
comprende che gli oggetti sui quali !e parti si sono proposte di contrattare."
808 MARINO, 2003, p. 89. Esta circunstância remete à terceira regra de Pothier: quando
em um contrato os tem1os são suscetíveis de duplo sentido, deve-se entendê-los se- a expectativa de direito ou faculdade não pachrnda: (4) Tu Quoque: exigência por de-
gundo o sentido que melhor convenha à nature:a do ~on~ato (POTHIER, ~O?l, temtinada parte de algo que também foi por ela descumprido, tomando inexigível de
p. 97). Diversos dispositivos legais preveem esta crrcunstanc1a: art. 1.158, do C~d!go outrem comportamento que ela própria não observou.
Civil Francês: art. 1.369, do Código Civil Italiano. o revogado art. 131, I, do Cod1go 811
MARINO, 2003, p. 112. A composição do conteúdo do contrato é influenciada pelo
Comercial. seu processo de fom1ação. a partir do qual os pontos do regramento de interesses con-
80 9 MARINO, 2003, p. 89 e 261. tidos no negócio poderão (ou não) ser reconduzidos à manifestação de vontade de
810 ROPPO, 1988, p. 171-172. Este pormenor se relaciona como os elementos mitigado- uma ou de ambas as partes.
res da intensidade de posições jurídicas que derivam dos preceitos da boa-fé objetiva e 812
MARTINS-COSTA. 2005b, p. 144-145.
da confiança: (1) Venire Contra Factum Proprium: veda exercício de uma posição ju- 813
rídica em contradição com o comportamento assumido anterionnente, em face da le- MARTINS-COSTA, 2005b, p. 145. No mesmo sentido: BETII, 1990a. p. 341: BET-
gítima confiança despertada, existindo então dois comportamentos lícitos e diferidos TI, 2007. p. 370-371: BETII. 2003b, p. 199. A furição nonuativa é suscitada por
no tempo, sendo que o primeiro (factum proprium) é contrariado pelo segundo; (2) Erich Danz (DANZ, 1955, p. 113), para quem os usos sociais têm especial importân-
Supressio (Ve1111irkung): redução do conteúdo obrigacional pela inércia de U111a das cia para o desenvolvimento do Direito, pois as novas realidades da vida dos povos
partes em exercer direito ou faculdade, gerando na outra a legítima expectativa ~e ~ue fom1am novos usos sociais, a partir dos quais o operador retira novas nonnas jurídicas
a faculdade ou direito não será exercido ( comportamento faz com que certos drre1tos objetivas (DANZ. 1955, p. 158). ' ·
81
não sejam mais exigíveis na sua fonua original, sofrendo minoração): (3) Surrectio: ~ MARINO, 2003. p. 168.
ampliação do conteúdo obrigacional pela atitude de uma das partes, que gera na outra
-- Interpretação Contratual 235
234 Felipe Kirchner •
podem ser considerados decisivos quando conhecidos ou potencialmente
As funções dos usos do tráfego negocial estão dirigidas à ativi- cognoscíveis do declai·atário 821 .
dade hennenêutica, inclusive integrativa do contrato 815 • Detenninando a Havendo pactuação acerca do sentido de tenninado termo, que
relação jurídica, os usos podem servir para a interpretação da declaração
não o usual, deve-se produzir a obrigação que corresponde ao sentido da
negocial ou ser invocados para completá-la, razão pela qual se encontram
palavra dado pelas parte_s, q~e é o senti_do usual no caso ~e.te1minado.
imbricados com diversos elementos condicionantes e constitutivos do
Assim sendo, as detenmnaçoes que denvam dos usos sociais somente
contrato816 .
influem nos efeitos jurídicos em um contexto situado e conforme engen-
Em termos de natureza jurídica, os usos sociais não têm o mes- drados pelo caso concreto 822 .
mo valor de uma nonna de Direito objetivo, sendo parte constitutiva da No que tange à forma de constituição dos usos sociais, cabe re-
declaração negocial, mas em termos funcionais se equiparam aos precei- ferir que há a exigência da reiteração unifonne de ce1tos atos de exterio-
tos legislativos no caso de lacunas normativas 817 . Nesse contexto, cabe ,
rização perceptlve1s - , o que gera um proced er consuetud"mano
• &?3 , · &?4
- . N es-
salientar que não se pode confundir a previsão do ait. 113, do CC/2002, ses termos, não basta que um grupo de pessoas esteja de acordo com de-
como sendo a nonna determinativa dos usos, pois esta apenas determina a
terminado uso (ex.: certos signos que entre eles tenha validade), pois isto
observância de seus elementos constitutivos (ex.: linguagem) no processo
obrigará a eles, mas somente por força do convênio 825 .
hennenêutico 818 .
Embora o postulado das circunstâncias do caso seja completado
Mister se faz ressaltar, ainda, que a utilização desta dimensão
mais diretamente pelos usos, sendo a boa-fé objetiva elemento hennenêu-
do postulado das circunstâncias do caso é limitada, pois as normas deri-
tico autônomo 826 , cabe mencionar que o art. 113, do CC/2002, ainda é
vadas dos usos sociais somente têm eficácia quando exista uma vontade
das partes que persiga precisamente o efeito jurídico que corresponde ao 821 Francisco Marino entende que o intérprete pode se valer do standard do homem
usual. As normas estabelecidas a paitir dos usos sociais são dispositivas e
médio para avaliar o manejo de determinado uso no curso da atividade interpretativa
supletivas para os negócios jurídicos, pois ficam sem efeito perante uma (MARINO, 2003, p. 130).
declaração divergente. 822 DANZ. 1955, p. 150-151, 163, 169. 177 e 200; BETTI. 2003a, p. 127: BETTI. 2003b,
Porém, os usos sociais incidem ainda que as partes não queiram p. 180.
823
sua aplicação, se previamente deixaram de dar expressão a essa vontade As normas dos usos sociais e da experiência são definições ou juízos hipotéticos de
( de inobservância dos usos) dentro do negócio jurídico, o que deve ser conteúdo geral; são nom1as sacadas da experiência. mas teoricamente independentes
dos casos concretos, de cuja observação se deduzem (DANZ. 1955. p. 170).
feito de modo claro e notório nos negócios jurídicos unilaterais e por 824
Cabe frisar a relação existente entre os usos e o costume. Entende Erich Danz que o
meio de um acordo nos contratos 819 . A relação entre os usos contratuais e conceito de uso social e do comércio se subordina ao de costume. pois este abarca to-
a vontade das partes é análoga à existente entre a autonomia e as nonnas das as fonnas de conduta voluntária que o homem faz sua. sendo uma regra individual
dispositivas, já que estas também podem ser afastadas pela livre disposi- de conduta que detém como característica a reiteração nonnal de atos unifonnes.
Quando o proceder do indivíduo corresponde à conduta consuetudinária da comuni-
ção das partes, embora no silêncio produzam seus efeitos no plano ber- dade a que pertence. este proceder se converte em hábito e em uso. O uso é um cos-
menêutico820. Contudo, considerando o ponto de relevância hermenêutica tume social. Quando se fala dos cosh1mes de uma pessoa se está referindo às regras de
situado no destinatário, os usos, enquanto circunstâncias relevantes, só vida e conduta que lhe são peculiares. Em contrapartida. os usos são sempre os cos•
hll11es de uma coletividade maior ou menor (DANZ. 1955. p. 156).
825
815
DANZ, 1955, p. 156.
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 145; MIRANDA, 1989, p. 215. 826
8 6
Em uma análise etimológica, Erich Danz refere que a expressão boa-fé significa
1 DANZ, 1955, p. 150 e 157. confiança. seguridade e honorabilidade, se referindo, sobretudo. ao cumprimento da
7
81 DANZ, 1955, p. 150. palavra dada. O vocáculo "fé" significa fidelidade, querendo dizer que uma das partes
818
O uso social mais importante é a linguagem. pois é do uso desta que o juiz saca as se entrega com confiança na conduta leal da outra no cumprimento de suas obriga•
nom1as juridicas de interpretação que indicam o sentido das palavras usadas pelas par- ções. confiando que esta não a enganará (DANZ. 1955, p. 194). Detendo-se sob o
tes (DANZ, 1955, p. 153 e 156). Sem conhecer a linguagem e os usos da linguagem, é prisma normativo, refere Judith Martins-Costa que a boa-fé significa um modelo de
impossível interpretar uma declaração de vontade, independente da vastidão e brilhan- conduta social, arquétipo ou standard segundo o qual cada pessoa deve ajustar a sua
tismo de conhecin1entosjurídicos que o intérprete possua (DANZ, 1955, p. 251-252). conduta à semelhança do homem reto, obrando com honestidade, lêaldade e probida-
819
BETTI, 1990a. p. 88. de, com consideração aos interesses da contraparte. devendo ser levados em conside-
820
ROPPO, 1988, p. 189-190.
Interpretação Contratual 237
236 Felipe Kirchner-
o contrato deve ser por estes interpretado, desde que o preceito em exame
detenninativo da observância deste preceito (boa-fé objetiva) enquanto não os vede, pois comportamentos habituais que contrariem a boa-fé objetiva
critério de interpretação e integração do contrato 827 • Há grande proximi- não devem ser considerados como critérios válidos de interpretaçãà do negó-
dade entre os elementos 828 , pois, como esclarece Erich Danz, no negócio cio jurídico. Porém, em situações nonnais os usos correspondem a visão da
jurídico a boa-fé também proíbe dar por não querido o usual, sem uma sociedade acerca do negócio, razão pela qual quantificá-los no plano herme-
clara justificativa829 • Embora haja a necessidade de uma observância con- nêutico é fazer jus e prestar respeito ao princípio da boa-fé objetiva831 •
jugada dos preceitos, no plano de suas respectivas aplicações a boa-fé O segundo critério mencionado é a finalidade econômico-social
objetiva possui uma prevalência em relação aos usos 830 , no sentido de que do Direito (arts. 187 e 421, do CC/2002), aqui aplicada ao âmbito dos con-
tratos. Desde logo, cabe referir a relação existente entre a função social e a
rações os fatores concretos do caso, como o status pessoal, cultural e histórico dos en-
volvidos, não se admitindo uma aplicação meramente mecânica e subsuntiva do stan-
função econômica dos contratos. Salienta Judith Martins-Costa que a cau-
dard (MARTINS-COSTA, 2001, p. 240. MARTINS-COSTA, 1998, p. 147-148). sa-função (Betti) evoluiu de um modelo abstrato (causa-função igual em
827 SILVA, 1976, p. 32; MARTINS-COSTA, 2001, p. 240; MARTINS-COSTA, 1998, todos os contratos enquadrados no mesmo tipo legal) para uma causa-
·: ···.·.··· p. 148-149. É senso comum que a boa-fé objetiva permite a repressão de comporta- concreta, pennitindo discernir entre razão justificativa do ato, função eco-
mentos desviantes (moralizando a substância do contrato), permitindo a conciliação nômica do negócio e intento prático das partes. Entretanto, não são desco-
da utilidade do pactuado com a justiça que deve ser inerente à contratação privada. nectadas as ideias de função social e fi.mção econômica dos contratos, pois
Contudo, o resguardo do preceito em seu viés material e hennenêutico possui, ainda,
uma interessante consequência em tem10s de fluição do mercado. Diferentemente do
embora a causa.fimção não se confunda com o princípio da função social, é
que aponta parte da doutrina (para quem a vagueza do preceito encerra "riscos" e cus- um de seus elementos de concreção. Assim, a função social é também fun-
tos na contratação), o resguardo da boa-fé objetiva conduz à segurança jurídica e, con- ção econômico-social, no sentido de que é uma função ligada à utilidade
sequentemente, ao melhor funcionamento do mercado. O resguardo do comportamen- concreta da operação econômica instrumentalizada pelo contrato832 •
to de boa-fé traz consigo tun alto grau de previsibilidade, o que diminui significativa-
Como se sabe, a finalidade instrumental dos contratos é a circu-
mente os custos de transação, aumentando a eficiência do sistema, pois a confiança
despertada reduz a complexidade do sistema social. Nesses tem10s, o comportamento lação da riqueza, razão pela qual se diz que este instituto detém função
honesto não in1plica gasto, mas sim economia, tanto para os contratantes, quanto para econômica por excelência:833 • O contrato é a veste jurídica de uma opera-
o mercado, sendo o preceito em exame um verdadeiro "catalisador da fluência das ção econômica, pois ''falar de contrato significa sempre remeter - explí-
relações no mercado". Contudo, é de todo evidente que a aplicação da boa-fé objeti- cita ou implicitamente, direta ou mediatamente - para a ideia de opera-
va, inclusive no viés aqui delineado, deve se adequar aos ramos em que atua, pois os
ção econômica"834 • Nesse contexto, o contrato visa garantir trocas justas e
graus de exigência variam confonne o ramo científico (ex.: a exigência da prestação
de infonnações se acentua em contratações consumeristas. quando comparada com úteis, 835 possuindo um papel constitutivo de manutenção da agilidade das
detemrinados contratos empresariais, onde a assunção de riscos pelas partes é mais relações econômicas em uma sociedade de mercado (de Direito Privado),
aceitável do ponto de vista comercial e jurídico) ou o contexto fático que é tipificado conjugando um aspecto utilitarista de maximização das oportunidades
pelo ordenamento (ex.: o comportamento esperado de um vendedor de carros usados
econômicas com um aspecto ético de comportamento médio de oportuni-
não é o mesmo de um negociante de roupas fmas em uma loja de luxo) (FORGI9NI,
2005, p. 551-558 e 565; FORGIONI, 2007, p. 128 e 133-134; ZANCHIM; ARAUJO,
dade e vantagens recíprocas 836 •
2007, p. 192-193).
828 Judith Martins-Costa refere que os usos do tráfego negocial estão coligados à boa-fé
Código Civil Português: "os usos que não forem contrários aos princípios da boa-fé são
subjetiva e objetiva, indicando que a boa-fé hermenêutica é mensurada segundo a
juridicamente atendíveis quando a lei o determine" (MARINO. 2003. p. 132-133).
concreta configuração do contexto contratual e a função econônrico-social do negócio 831 MARINO, 2003, p. 131-133.
(MARTINS-COSTA, 2005b, p. 145-146). E1ich Danz defende que a interpretação se- 832
gundo a boa-fé não é nem mais nem menos que aquela que se inspira nos usos sociais, MARTINS-COSTA, 2005a, p. 50~51 e 68.
833
sendo que aquele princípio (boa-fé) se aplica sempre que o sentido da declaração MARTINS-COSTA, 2005a, p. 68. SILVA. Luis Renato Ferreira da. A Função Social
seja duvidoso, quando não se pode detemrinar com segurança seu significado aten- do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão êom a Solidariedade Social. 111:
dendo aos usos sociais, devendo o juiz interpretar a declaração de vontade das par- SARLET, lngo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Li-
tes como a entenderiam e procederiam as pessoas corretas e probas (DANZ, 1955, vraria do Advogado, 2003b, p. 136.
814 ROPPO, 1988, p. 8 e 23.
p. 198 e 200-201).
835
829
DANZ, 1955, p. 197. SILVA . 2003 . p. 127-150 . p. 138. _, ·
836
830 Nesse sentido o § 157, do Código Civil Alemão, que manda interpretar os contratos SILVA. 2003, p. 127-150. p. 137.
"como a boa-fé, com consideração pelos usos do tráfego, o exija", e o art. 3º, 1, do
Interpretação Contratual 239
238 Felipe Kirchner ·
nomia privada como poder jurígeno 841 ; (4) cânone de interpretação do
Contudo, esta finalidade econômica do instituto do contrato é contrato.
mediada com o respeito a uma dimensão social das pactuações privadas, . Embora a dis~ussão acerca dos bons costumes extrapole os li-
o que diz com o princípio da função social dos contratos (art. 421, do 1?~tes deste estudo - ate por~ue remete ao exame do conjunto das regras
CC/2002). Este preceito se encontra em constante relação de comple- eticas que possuem peso social relevante num dado ambiente e momento
mentação e restrição recíproca com os demais princípios contratuais, histórico-, cabe referir que o vetor previsto na parte final do art. 187, do
surgindo do hipercomplexo amálgama axiológico existente no sistema CC/2002, surge como elemento de qualificação das circunstâncias do
jurídico a necessidade de uma autonomia solidária 837 - exercida de for- cas? e, de parâmetro de verifica7ão, da legitimidade da pré-compreensão
ma ordenada, mas não subordinada, ao bem comum -, o que acaba por do mterprete, tanto no que respeita a sua atuação como limitador da auto-
sepultar a concepção voluntarista da autonomia da vontade presente nos nomia privada (ex.: impedindo a restrição desmensurada da liberdade
códigos oitocentistas. pes~oal ?u econôm_ica dos !ndivídiuos), quanto como componente de
O princípio da função social dos contratos surge não somente venficaçao dos matizes da vmculação negocial e do conteúdo contratual
838
como preceito qualificador dos efeitos extraídos da boa-fé objetiva - (ex.: arts. 569, II e 596, do CC/2002) .
.,.•.··· promovendo uma distinção de intensidade dos deveres já impostos pelo
Já_ os motivos detenninantes do negócio (art. 166, III, do
a1t. 422, do CC/2002 (v.g.: aplicação perante terceiros)-, mas também CCl2?02) s:o e_lementos do contrato que integram o postulado nonnativo
como elemento fundante de novos deveres, independentes e autônomos, das circunstancias do caso quando comum a ambos contraentes, apresen-
dentre os quais, no plano hennenêutico, merecem destaque: (1) limite tan~o-se como ?ase contratual implícita e elemento de concreção 842 • Os
(externo) ao princípio da liberdade de contratar 839 ; (2) fundamento (in- mo~vos determmantes têm eficácia como regra de interpretação na indi-
terno) da autonomia privada 840 ; (3) elemento de ressignificação da auto- caçao da base contratual levada em conta pelos contratantes atuando
com~ pressuposto condic~onante da compreensão do negóci~ jurídico
837 MARTINS-COSTA, 2005a~ p. 58. Luís Renato Ferreira da Silva entende que quando
considerado como fato soc_ial e regulamento de interesses econômicos 843 •
a nonna do art. 3°, I, da CRFB/1988, instituiu como objetivo fundamental da Repúbli- No plano da práxis se costuma desprezar a motivação que levou
ca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, colocou em xeque o dogma os agentes a celebrar o acordo, isso porque na maioria das vezes este
oitocentista da autonomia de vontade, impondo o reconhecimento de reflexos externos elemento pennanece na esfera subjetiva de cada contratante. Não aden-
na relação contratual. Nesse viés, a função social se constituiria em uma forma de
concretização do objetivo constitucional da solidariedade social, havendo uma relação
trando na densa seara das discussões doutrinárias acerca da distinção 844
substancial entre o art. 421, do CC/2002 e o art. 3°, Lda CRFB/1988 (SILVA, 2003,
p. 129-132 e 148 e MARTINS-COSTA, 2005a, p. 51). ser~, os quais não estão orientad,o~ para o cump~mento do dever principal de pres-
838 Indubitável a necessidade de se diferenciar o campo de aplicação da função social dos taçao (como ?s d~v~res secund~nos ou acessonos). mas, sim, para a conservação
contratos daquele ocupado pela boa-fé objetiva, a fim de que não se esvazie o conteú- dos bens patr1momais ou pessoais que podem vir a ser afetados pela conexão com 0
do daquele preceito. Quando o legislador optou por positivar estes cânones em dispo- contrato.
sitivos diversos, indicou claramente a existência de disparidades no plano teórico e 841
~º? ~~te prisma a autonm~lia_ privada ganha ênfase enquai1to fonte de produção de
prático. Jorge Cesa Ferreira da Silva apresenta importante linha distintiva ao sustentar Jtmd1c1dade com competeucia para a nomogênese (MARTINS-COSTA. 2005b.
que enquanto a boa-fé objetiva detém uma nonnatividade endógena, o princípio da p. 62).
função social detém uma funcionalidade exógena (FERREIRA DA SILVA, 2003a, 842
MARTINS-COSTA. 2005b. p. 149-150. 152 e 154.
p. 107-115). 843 MARTINS-COSTA, 2005b. p. 151.
839 No momento em que o contrato deixa de cumprir sua função social, a liberdade de 844 Brevemente, _cabe de!inear que a d~utrina distingue os motivos da causa da avença.
contratar não será mais tutelada juridicamente (MARTINS-COSTA, 2001, p. 255- Se~do Judith Martms-Costa. motivo e causa são equiparáveis quando significam a
256; MARTINS-COSTA, 1998, p. 146; SILVA, 2003, p. 132 e 135). ra=ao de ser do_ acordo (aquilo que leva as partes a contratar). Porém, no final do sé-
840 A autonomia privada integra um campo de função no dominio da liberdade contratual culo X~ ? motivo passa a ser o dado psicológico, enquanto a causa passa a represen-
(MARTINS-COSTA, 2005a, p. 75). A função social, por sua vez, integra, constituti- tar o obJetivo-fun do co~trato ou a sua função econômico-social (MARTINS-COSTA.
vamente, o modo de exercício deste direito subjetivo, impondo o reconhecimento de 2?05b, p. 150). Adem1:1s, entende-se que _enquanto os motivos se ligam ao passado.
que toda relação contratual possui tanto uma din1ensão intersubjetiva quanto trans- d1zen~o _com as forças mtei:nas que detem1111aram a volição (aspecto.subjetivo), a cau-
subjetiva (ex.: tutela externa do crédito, interdependência funcional de contratos e ex- sa esta h~a~a ao futuro, agm?o como elemento integrante do acordi{de vontades (as-
tensão da eficácia do pacto a terceiros não detem1inados), o que impõe a incidência pecto objetivo). Contudo, nuster se faz destacar que parte significativa da doutrina
dos deveres de proteção (Schut=pflichten de Stoll) ou laterais (Nebenpjlicthen de Es-
240 Felipe Kirchner · Interpretação Contratual 241
entre motivo e causa do negócio 845 , cabe destacar que aquele, enquanto tenção se encontra mais objetivada do que os motivos, e seu uso evita a
permanece no íntimo do agente, não assume maior relevância na ativida- interpretação gramatical e atomística que conduz ao isolamento da decla-
de hermenêutica. Contudo, quando este elemento se objetiva, seja por que ração negocial em relação ao conjunto das circunstâncias socialmente
razão for (ex.: motivação usual percebida no mercado para a realização relevantes em que foi emitida e se desenvolveu. Embora não cheoue ao
de determinado tipo de negócio jurídico), acaba relacionando-se intrinse- extre?1o da teoria da vontade (art. 1.899, do CC/2002), a comum intenção
camente à causa do contrato 846, e nessa condição toma-se uma circuns- perm1~e ~ alargamento dos meios interpretativos (ex.: quantificação de
negociaçoes e pactos precede~tes não referidos pelas partes na declaração
tância objetiva externa que influencia decisivamente na interpretação
contratual) e o correto maneJo daqueles presentes na situação objetiva
(inclusive na integração contratual)847 , especialmente quanto ao resguardo complexa850•
da autonomia privada e à adequação do negócio às legítimas expectativas
das partes. Assim, no campo da concreção o elemento em exame assume , Fei!a~ estas ressalvas, cabe mencionar o amparo jurisprudencial
ao menos os seguintes papéis: ( 1) critério de atribuição da relevância a vertente teonca ora em exame, principalmente no que respeita ao para-
jurídica da avença; (2) critério de interpretação do pacto; (3) elemento de digma trazido pela súmula vinculante 01, do STF.
:. ·•.·.···· qualificação do contrato; (4) critério de adaptação da contratação em face
da alteração do contexto fático, nonnativo e/ou axiológico 848 • 2.3 A Jurisprudência e o Paradigma da Súmula Vinculante 01,
Por fim, Emílio Betti suscita a comum intenção das partes (no do Supremo Tribunal Federal
sistema brasileiro regrada pelo art. 112, do CC/2002), como elemento de
atribuição de significado às circunstâncias do caso. Sendo que este tópico O entendimento de que a atividade hennenêutica deve necessa-
já foi abordado anteriormente849 , cabe aqui salientar que sendo composta riamente te~ ~m ~o~ta todas_ a~ c~·cunstâncias do caso (âmbito material),
por elementos planificados pela autonomia bilateralizada, a comum in- e!-11 uma analise tcp1c~ do !)ire1to mterpretado, com a utilização de crité-
nos de ponderaçao (ambito procedimental) 85 1, restou consubstanciado
(principalmete italiana) vem refutando a separação absoluta entre causa e motivo, pois 850
este elemento objetivo (seja denominado causa ou motivo) passa a significar tanto a BE~I, 2003b: ~- 210-_211: BETII. 2007, p. 381-382. Cabe salientar, contudo, que a
razão justificativa do ato quanto a função socioeconômica do negócio, em uma unida- mençao de Emilto Bett1 estava voltada ao sistema jurídico italiano sendo aproximada
de conceituai que afasta o indesejável dualismo (FORGIONI, 2005, p. 516-519 e portanto, a referência que aqui se faz ao artigo 112, do CC/2002. ' , •
851
528). Por fim, deve-se esclarecer que a definição conceituai é questão secundária, pois D~ntre as di~posições contratuais existem previsões de natureza principiológicas -
o verdadeiro problema reside em afastar o uso de elementos essencialmente subjeti- s~Ja por prev1sã? ex~ressa ou incidência de nom1as públicas (ex.: boa-fé e função so-
vos. Assim, o decisivo é a fixação das especificidades da operacionalidade dos moti- cial) - e detemnnaçoes semelhantes a regras, razão pela qual a interpretação do con-
vos detenninantes do negócio jurídico. trato de~e-se confomrnr cor~1 a ne?e~sidade de trabalhar com critérios de ponderação e
845 Sendo assunto extremamente complexo, para as pretensões deste esh1do torna-se subst~1çao. En~bº:ª. a doutrina class1ca entenda haver interpretação das regras e pon-
satisfatório destacar que a causa conta com apreensões subjetivistas, entendendo-a de~açao dos p1:11c1p1os. o pre~e1:te estudo aceita a tese de Humberto Ávila. para quem
como razão determinante da vontade de contratar, e objetivistas, as quais têm como existe a capacidade hem1:neuttca de ponderação também das regras (contratuais).
foco a significação social do negócio (FORGIONI, 2005, p. 520). Nesses termos, e exatamente porque ~~a aplicação (?specto da interpretação) depende da quantificação
sem pretender abrir um novo foco para debates doutrinários, cabe destacar que a regra d_e outros fatores_ (fatt_c~s e nornrnttvos) que vão além da análise dedutivista que rela-
do art. 166, III, do CC/2002, possui nítida concepção objetiva, pois o '"motivo deter- c1011a de fonna s1mplona o fato concreto com o tipo legalmente estabelecido (ÁVILA.
minante" destacado na norma não é outro senão aquele que for "comum a ambas as 2006, p. 26 e 52), o que ?e amolda com perfeição no universo exegético gadameriano.
partes", ou seja, aquele que tenha se tornado explícito ou ao menos reconhecível com Como refere Humberto Avila. "toda norma jurídica - inclusive as rearas 0
-só tem seu
o uso de unia diligência normal na sihiação hennenêutica detem1inada. Nesse contex- conteúdo de sentido e sua finalidade subjacente definidos mediante um processo de
to, pode-se afirmar categoricamente que o motivo detemúnante previsto no art. 166, ponderação", o qual acompanha o modo de aplicação das espécies normativas (ÁVI-
III, do CC/2002, ao menos se aproxima da noção de causa do negócio (se ainda se LA, 20_06, _P· 55 e 58~ abarc~do todos os elementos ela atividade hermenêutica (com-
pretender manter a dicotonúa motivo-causa). p~eensao, mterpretaçao e ~phcação ). Conforme adverte Eros Roberto Grau 110 Prefá-
846 A conclusão deriva, também, da narureza das regras dos arts. 140 e 166, III, do CC/2002. cio ~a ob~a de_Humbe~o _A;,ilª: '"a ponderação é um momento no interior da inte,pre-
847 AZEVEDO, 1986, p. 129. taçaolapl~caçao do D1re1!~ (~ ':'IL~· 2006. p. 18). Na interpretação das disposições
848
FERREIRA DA SILVA, 2001a, p. 4-9, 40, 60, 63, 65-74, 82-83, 86, 136-137, 139- contratu~1s faz-se ne,cessana. ut~hzaçao de uma ponderação interna, que diz com a re-
140, 144, 147-155, 166-168, 248-250; FORGIONI, 2005, p. 516-529 e 566-567. ~onstruçao do contendo se1:13anttco por meio do confronto das razões.(fáticas e norma-
849
No tópico "A fixação do objeto e da dimensão funcional da hermenêutica contratual". tivas) em favor de eventuais alternativas interpretativas (ex.: determinação do sentido
-- Interpretação Contratual 243
242 Felipe Kirchner ·
No julgamento do RE 418.918 - decisão condutora do entendi-
na edição da Súmula Vinculante 01, do STF: "Ofende a garantia consti- mento sufragado com a edição da disposição sumular supramencionada -, o
tucional do ato jurídico pe1feito a decisão que, sem ponderar as cir- STF decidiu, por meio de uma análise essencialmente tópica da questão sub
cunstâncias do caso concreto, desconsidera a valide::: e a eficácia de judice 853 , que é incabível a proclamação em abstrato de vício de consenti-
acordo constante de termo de adesão instituído pela lei complementar mento, pois este deve ser demonstrado concretamente, o que demanda a
110/2001 " 851 • avaliação do elemento subjetivo do pactuante no momento da avença e das
circunstâncias específicas e relevantes em que esta foi constituída, implican-
de "pátio" para a verificação de uma cobertura de seguro); e também de uma pondera- do no uso necessário do método concretista, com a consequente quantifica-
ção externa, quando existe o conflito de duas disposições sem que a solução importe ção das circunstâncias do caso. No voto da ministra Ellen Gracie, lê-se:
na decretação de invalidade de uma das cláusulas (ex.: conformação hem1enêutica de
regra que determine a realização de determinada atividade custosa para evitar dano ir- ( .. ) A perquirição acerca de vício em algum dos elementos formado-
reparável ao outro contratante em ocorrendo determinada situação concreta, com regra res da vontade do agente haverá de ser demonstrada caso a caso,
que proíbe a realização de atividades que importem em custos sem a prévia autoriza- acordo a acordo, por demandar avaliação do elemento subjetivo do
ção do contratante interessado) (ÁVILA, 2006, p. 88). Assim como a interpretação e
concretização constitucional são dominadas por ponderação, que alcança as normas 853 A análise tópica é evidenciada por intennédio da simples leitura dos votos proferidos
em sentido contrário e os interesses (públicos e privados) divergentes, que são pro- no RE 418.918. Sobre a questão é relevante destacar dois tópicos. O primeiro, a deci-
tegidos constitucionalmente (HECK, 2006, p. 21), no contrato a interpretação media- são atacada pelo Recurso Especial não esgotou a jurisdição de origem, pois foi prola-
da por um raciocínio de ponderação alcança as diretrizes contratuais e os interesses tada monocraticamente por juiz integrante da Tunna Recursai do Juizado Especial
dos agentes envolvidos, que são protegidos pela pactuação e pelo ordenamento a ela Federal. Por maioria, os ministros superaram o óbice da Súmula 281, do STF ("É
subjacente. inadmissível o recurso extraordinário. quando couber na justiça de origem. recurso
852
Súmula aprovada na sessão plenária de 30.05.2007 e publicada no DJE 31/2007, p. 1, ordinário da decisão impugnada''), devido às seguintes peculiaridades do caso concre-
em 06.06.2007, DJ de 06.06.2007, p. 1 e DO de 06.06.2007, p. 1. A disposição teve to: (1) política judicial, atinente à existência de grande número de processos versando
como base os seguintes precedentes: RE 418;918, RE 427.801 AgR-ED e RE 431.363 sobre a matéria e de outros que virian1 com a manutenção da decisão recorrida; (2) juízo
AgR. As peculiaridades do RE 418.918, condutor do entendimento sufragado com a prévio de que o eventual recurso que encerraria a jurisdição da instância ordinária não
edição da disposição sumular supramencionada, são as seguintes: (1) quanto ao pro- modificaria o teor da decisão então atacada, tanto pelo Enunciado 21, do JEF-RJ, que
blema da correção dos saldos das contas do FGTS, a jurispmdência dos tribunais su- pacificou o entendimento de mérito. quanto pelo Emmciado 26. também do JEF-RJ.
periores assim se consolidou, conforme a súmula 252, do STJ: "Os saldos das contas que impede recurso da decisão monocrática proferida pelo relator (fulminando o agra-
do FGTS, pela legislação infraconstitucional, são corrigidos em 42, 72% (IPC) quan- vo): (3) o precedente criado dificilmente se repetiria em outros casos (o que resguar-
to às perdas de janeiro de I 989 e 44,80% (IPC) quanto às de abril de 1990, acolhidos daria a segurança jurídica). Ainda sobre a Súmula 281. a ministra Ellen Gracie afinna
pelo STJ os índices de 18,02% (LBC) quanto as perdas de junho de 1987, de 5,38% que "o que me leva a superar a preliminar para adentrar o mérito é exatamente a pe-
(BTN) para maio de 1990 e 7,00% (TR) para fevereiro de 1991, de acordo com o en- culiaridade da questão". sendo que o ministro Gilmar Mendes refere que na espécie
tendimento do STF (RE 226.855-7-RS)"; (2) como o passivo referente a tais correções "proporia um distinguishing nessa Súmula 11º 281". Em interessante passagem, o mi-
alcançava a cifra de R$ 42 bilhões (quase 4% do PIB nacional), foi editada a LC nistro Sepúlveda Pertence destaca que "não podemos decidir um caso especial (pois)
110/2001, que estabeleceu uma série de medidas tendentes a garantir o aporte de re- estamos estabelecendo uma orientação". tendo observado o ministro Carlos Velloso
cursos, dentre as quais se encontrava o termo de adesão em que o trabalhador renunciava que "sim, para este caso''. o que restou prevalecendo na questão preliminar ora em
a llllla parte dos direitos reconhecidos pela jurisprudência; (3) fixando entendimento exame. O segundo. houve forte manifestação. capitaneada pelo ministro Marco Auré-
sobre a validade dos termos de adesão previstos na LC 110/2001, as Turmas Recur- lio, demonstrando preocupação com a análise tópica em se tratando de decisão profe-
sais dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (JEF-RJ) rida pelo STF: "preocupa-me muito a.fase que atravessamos no Tribunal, que vislum-
editaram o Enunciado 21, que assim dispunha: ··o trabalhadorfa:=jus ao crédito inte- bro, até mesmo, como uma fase de cifastamento de parâmetros, adotando-se regras
gral, sem parcelamento, e ao levantamento, nos casos previstos em lei, das verbas re- especiais para o caso concreto, e.passando o Colegiado a atuar como se legislador
lativas aos expurgos de índices inflacionários de janeiro de 1989 (42,72%) e abril de fosse." Já o ministro Sepúlveda Pertence assim se manifestou: "(. ..) não creio que
1990 (44,80%) sobre os saldos das contas de FGTS, ainda que tenha aderido ao possamos estabelecer critérios conforme o processo. O Direito, tanto o material
acordo previsto na Lei Complementar 110/2001, dedzddas as parcelas porventura já quanto o instrumental, é único; há de ser obsen 1ado .'.. e aí atua o Supremo Tribunal
recebidas"; (4) a demanda que culminou no RE 418.918 se tratou de ação de traba- Federal no campo pedagógico, porque o quefi=ermos aqui tende a vir a ser observa-
lhador requerendo o creditamento integral das verbas relativas aos expurgos de índi- do por ouh·os tribunais. O Direito é único. Não cabe distinguir: bem, neste processo,
ces inflacionários em sua conta do FGTS, mesmo após aderir ao termo de adesão ins- aplico; mas, noutro processo, não aplico. Creio que a insegurança jurídica grassará;
tituído pela LC 110/2001: (5) não obstante o ingresso da demanda, o STF entendeu paga-se um preço - a meu ver até baixo, módico - por se viver em-i1111 Estado Demo-
que o trabalhador não questionou a validade do tenno de adesão finnado, tendo o crático de Direito, que é a observância do Direito posto."
JEF-RJ decretado de oficio o juízo de invalidade do pacto.
h1terpretação Contratual 245
244 Felipe Kirchner .
O jusfilósofo italiano ainda defende que o moderno raciocínio
pactuante no momento da avença, consideradas as circunstâncias
jurídico tende a interpretação individual, conjugando esta, no plano dos
específicas e indissociáveis da personalidade de cada um. Se, por ou-
tro lado, não ocorre essa aferição no caso concreto, e o que se exa- contratos, com a chamada interpretação técnica855 , que
mina são os termos do acordo - termos esses previstos em legislação repropõe o problema que aparece resolvido naquela determinada ob-
complementarfederal - o que está em causa, verdadeiramente, não é jetiva~1º _do espírito e indaga sua solução independentemente da
a vontade eventualmente viciada do agente, mas a constitucionalidade consc1encza reflexa que o autor possa ter alcançado, enquadrando-a-
da regra instituidora do ajuste. (grifo nosso) no caso de um contrato - não mais na totalidade individual de ambas
as partes, mas na totalidade do ambiente social, segundo as visões ne-
Condenando o critério de construção da decisão então recorrida, le correntes sobre a autonomia privada856 •
que não atentou para as circunstâncias do caso concreto, o ministro Cesar
Peluzo assim observou: Embora os termos de adesão previstos na LC 110/2001 tenham
pec_uliaridades próprias - já que suas disposições estão previstas em legis-
Uma afirmação dessa [de que o ato jurídico pe1feito não prevalece laçao complementar federal, não paitindo diretamente da autonomia do
··•.·.···· em face do Enunciado n. 21 das Turmas Recursais] ganha sentido acei~ante, o que se assemelha? estrntura de uma contratação por adesão-,
quando o julgador diz: diante deste caso co11creto, pera11te as cir-
cunstâ11cias tais, diante da prova tal, testemu11hal ou docmne11tal,
e!ettvamente devem ser considerados contratos em sentido amplo 857, ra-
verifica-se que houve erro. Mas aqui 11ão se examina prova alguma. zao pela qual a constrnção hennenêutica e teleológica consubstanciada na
Fixa-se uma tese. Esta que é a verdade. Por isso, fala-se em traba-
lhador e não se faz referência a 11enhum eleme11to do caso co11creto, tério de classificar por tipos 011 classes as declarações e os comportamentos, levando
porque é para ser aplicada em todos os casos, independentemente em conta o genero de circunstâncias em que se desenvolvem e a que correspondem; e
das características singulares de cada um. Enfim, está-se dando tra- a cada 11111 desses tipos afl•~bui 11111 stgnificado constante sem considerar aquela que
tamento de caráter geral, que, como tal, ofende cláusula da Consti- no caso concreto pode ter sido a efehva e diferente opinião das partes".
tuição. (grifo nosso) 855 BETTI, 2007, p. 373; BETII, 2003b, p. 202. As espécies não se confundem, como é
express~me,nte salienta~o por Betti (BETII, 2003b, p. 201). A interpretação técnica se
Já o ministro Gilmar Ferreira Mendes assim se posicionou: contrapoe a chamada mterpretação psicológica, a qual é apresentada como sendo
"aquela voltada a indagar na objetivação do espírito a 'mens ' de quem a reali=ou''
Já foi demonstrado, e estamos aqui a discutir a tese - disse-o bem o (BETTI, 2007, p. 369).
Ministro Cezar Peluso - de que, a rigor, nenhuma consideração faz o 856 BETTI, 2007, p. 369; BETTI, 2003b, p. 198.
Juizado Especial no Rio de Janeiro sobre 11111 dado caso singular, mas 857 Deve:s~ ressaltar que o ministro Eros Grau sustentou que "'110 caso do 'termo de
presume que todos os acordos foram assinados contra esse valor - adesao a que refere o art. 4° da lei complementar não há contrato, menos ainda
fundamental, claro - da autonomia pessoal, da autonomia de decidir. 'contrato d~ adesão"' pois no caso haveria apenas um comando da LC 110/2001. Não
(..) já se demonstrou também, não é possível, de plano, dizer que há obstant~ tais observações, a conclusão a que chegou o STF (é viciada a decisão que
um critério de não-razoabilidade. (grifo nosso) desco~s1dera acordo sem ponderar as circunstâncias do caso concreto) pode e deve ser
es~e~d1da aos contratos em geral. Primeiramente, se trata de manifestação isolada do
Afastando o entendimento que consagrava uma tipificação social llllillstro Eros Grau, tendo os demais julgadores entendido a questão como se contrato
abstrata, a decisão sumulada do STF detennina ao intérprete que a ativi- fosse, tanto que foram utilizadas em diversas oportunidades expressões como "acor-
dade hennenêutica por ele promovida seja de ordem individual, a qual, do", "avença", "elementos fomrndores da vontade" e "elemento subjetivo do pactuan-
nos dizeres de Emílio Betti, é aquela que t~~º- momento da avença". Segundo, salvo melhor juízo, o fato de haver um rígido
dm~smo po_r parte da LC 110/2001 não invalida a natureza contrahial do tem1o de
parte do critério de considerar as declarações e os comportamentos adesao_ refendo nos. seus arts. 4º e 6°, tanto que expressan1ente delineado na lei a
necessidade de mamfestação de vontade do titular da, conta vinculada com os dita-
em sua concretude específica e ah"ibuir-lhes um significado pertinente ~es es_tabelecidos. A~ três, o próprio ministro Eros Grau defende que na espécie
na medida do possível, com o particular modo de ver neles expresso e atua!·w, (-.J a '.'edaçao d_o v~nire contra factum proprium", que como se sabe é fi-
com as situações e relações existentes entre as partes em concreto, le- gura 3und1ca atmente ao mstltuto do contrato, se relacionando com a confiança recí-
vando em conta as circunstâncias individuais do caso 854 • pr~ca. (MAR!~S-COSTA, Judith. O Sistema na Codificação Civil Brasileira: de
Letbruz a Te1xerra de Freitas. Revista da Faculdade de Direito d'a· UFRGS, Porto
854 BETTI, 2007, p. 372-373. Na mesma passagem o filósofo italiano refere o contrapon- Alegre, v. 17, 1999, p. 469).
to a esta fonna de raciocinio, que vem com a interpretação típica, a qual parte ·'do cri-
Interpretação Contratual 247
246 Felipe Kirchner -
múltiplas a serem analisadas segundo dois tipos de relações: corno texto
Súmula Vinculante O1, do STF, pode ser transposta diretamente para a fechado, pela composição de suas unidades internas; e como intertextua-
interpretação dos contratos em geral, os quais estão subsumidos às mes- lidade, pelo cmzamento de vários enunciados tomados de outros textos,
mas categorias utilizadas nos critérios de decisão do RE 418.918. contemporâneos ou que historicamente antecederam a pactuação, o que
Por fim deve ser referida a grande extensão dada pelo STF à encampa até mesmo as regras constitutivas do ordenamento jurídico 860 •
utilização do método concretista. Ocone que, no caso da Súmula y~cu- Como quer Gadamer,
lante 01, a c01te constitucional se utilizou de vetores do modo de rac10cmar
por mais que represente uma unidade de sentido, um texto continua
por concreção em uma contratação "por adesão qualificada", uma vez que
sendo sempre dependente do contexto que com frequência determina
os ditames dos tennos de adesão estavam previstos na LC 110/2001, a qual pela primeira vez de maneira inequívoca a (sua) significação plutopo-
inclusive trazia os contratos preeestabelecidos em suas disposições anexas. sicional. (.) se destacamos uma única parte de um texto de seu con-
Desta feita, se utilizado o método concretista nesse caso, onde o espaço de texto, ele emudece. Falta nesse caso aforça significativa superior861 •
autonomia do trabalhador-aderente era bastante reduzido, muito mais razão
existe para a concessão de relevância hermenêutica ao substrato fático de É a partir destas observações que se constrói uma sistematicida-
··.·.···· uma relação contratual paritária, onde as questões de fato são ainda mais de nonnativa capaz de desvelar a noção da relação bilateral e dialética 862
decisivas na confonnação do instrumento contratual. que existe entre a pactuação privada e o ordenamento jurídico, dimensão
que desvela a força significativa da nonnatividade do contrato e do ins-
trumento de autonomia das partes. A pretensão deste estudo, ao mencio-
3 A CONCREÇÃO NORMATIVA DA INTERPRETAÇÃO nar a existência de uma concreção nonnativa, é situar o negócio no con-
CONTRATUAL texto do ordenamento jurídico863 , pois o contrato, enquanto elemento
normativo, se insere na cadeia de regulação do Direito. Mesmo a regula-
Nesta parcela final do estudo, o foco de análise se dirige ao viés ção particular se desenvolve de acordo com princípios imanentes que
nonnativo do método concretista, o qual encampa a relação entre o ato de fomrnm o sistema jurídico864 , não havendo razão ontológica para que a
autonomia representado pela declaração negocial e o sistema jurídico, atividade hennenêutica contratual ignore esta dimensão, aceita em outras
abrangendo uma dimensão sistêmica mediada pelo postul_ado da pr?por- situações que, devido à ampliação do objeto da interpretação promovida
cionalidade. Nesse contexto, serão enfrentadas as premissas gerais da nesta pesquisa, já foram situadas no contexto do interpretar (ex.: verifica-
concreção normativa da interpretação contratual, apresentadas algumas ção da validade do contrato).
das peculiaridades próprias do preceito supramencionado e, por fim, refe- Como refere Karl Larenz, na detenninação do sentido da decla-
ridas as premissas da sistematicidade hermenêutica que interessam ao ração o jurista também confronta logo o contrato com a lei, até mesmo
paradigma adotado nesta pesquisa. porque o ordenamento coloca exigências jurídicas específicas ao sujeito
cognoscente, especialmente no que respeita ao significado que o sistema
considera como válido e vinculativo, nas detenninadas circunstâncias
3.1 As Premissas Gerais da Concreção Normativa da concretas865 •
Interpretação Contratual
Como já salientado, o texto contratual é um lugar de outros lu- 860
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 294 e 1099.
gares, pois é sempre uma prática intertextual 858 • Essa observaçã? surge 861 GADAMER, 2007b, p. 123 e 129.
como característica necessária de integração da declaração negocial e da 862
FERREIRA DA SILVA, 2001a, p. 151.
859
relação contratual no âmbito maior do discurso jurídico • 863
MIRANDA, 1989, p. 222.
864
Enfocando especificamente o texto contratual, tem-se que na LARENZ, 1989, p. 147 e 196.
865
declaração negocial se encadeiam enunciados que possuem conexões LARENZ, 1989. p. 231. 343 e 359-360. Exemplificando, quando o cliente diz para o
vendedor "dê-me 1kg de maçãs, por fcwor'', está demonstrando que se obriga ao pa-
gamento do preço, mesmo que subjetivamente assim não o queira. pois o ordenamen-
858 MARTINS-COSTA, 2008. to, nestas circunstâncias fáticas. considera o comportamento juridicamente vinculativo
859 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 165-166.
Interpretação Contratual 249
248 Felipe Kirchner
perímetros. O próprio ordenamento prevê espaços de diálogos mais ou
Este estudo propõe a cisão teórica (e apenas teórica!) do método menos flexíveis, havendo no campo contratual uma grande margem para
concretista, a fim de enfatizar que a relação entre contrato e ordenamento atuação dos sujeitos de direito, do que é exemplo significativo o princípio
é um dos prismas mais relevantes da interpretação contratual. Apenas da liberdade das formas previsto no artigo 107, do CC/2002. Se não há
fora do âmbito de uma hermenêutica jurídica a interpretação do contrato autonomia e liberdade fora do Direito e de uma coletividade juridicamen-
poderia se dar sem a quantificação do sistema (ex.: desconsiderando o te organizada868 , deve-se considerar que a liberdade dos indivíduos é con-
plano jurídico, o contrato absolutamente ilegal pode ser interpretado nor- formadora do sistema normativo que organiza a complexidade do corpo
malmente, sem dar relevo ao seus vícios constitutivos). Como salienta En- social.
zo Roppo, o contrato não é um elemento da realidade física, e o juízo sobre Tal como refere Joaquim Ribeiro, "ainda que com as especifici-
sua constituição nonnativa depende da qualificação de comportamentos dades advenientes da sua natureza de acto de autonomia, de livre inicia-
humanos operada por nonnas jurídicas, pois a sequência de atos necessária tiva dos próprios obrigados (..) o conh·ato integra-se, como um dos ele-
à formação do conteúdo do contrato não depende de um modelo natural e mentos de normação, na ordem jurídica global da sociedade"869 • Segue o
necessário, mas, sim, pré-fixado de modo convencional (e certo modo arbi- pensador referindo que a conexão entre o contrato e a ordem jurídico
trário) pelo Direito, em reconhecimento da realidade social 866 • social é profunda, pois a pactuação não se processa em um espaço vazio
Fator decisivo que merece ser devidamente salientado é o de de normatividade, mas em um universo.institucional que predispõe forma
que, como já frisado, a relação existente entre o contrato e a ordem jurídi- e conteúdo da ação comunicativa e detenninativa dos contraentes. E ape-
ca estatal não é meramente unilateral, mas bilateral, dialógica e dialética. nas o conjunto destes elementos que dota o contrato de um sentido a ser
Se é verdadeiro que o contrato, em seu âmbito material, deve respeitar as intersubjetivamente reconhecido. O sistema jurídico, nesses tennos, não
diretrizes normativas estatais (imposição de limites ao seu objeto) e a sua se posiciona fora e "depois" do contrato, pois é ele também um antece-
inte1pretação deve aceitar as detenninações dos cânones estabelecidos em dente e pressuposto que integra, como componente fundamental, o corpo
lei867; deve-se perceber que a influência do ordenamento atinge o próprio de regras constitutivas da instituição contratual.
núcleo da atividade hermenêutica. O contrato não pode ser interpretado Para além de se constituir em fundamento e base, a ordem jurí-
de forma apartada do sistema jurídico, aspecto este que se encontra inse- dica interfere no conteúdo de significação do pacto, estabelecendo requi-
rido dentro dos esforços de concreção da situação objetiva complexa sitos e limites, fixando efeitos imperativos, predispondo regimes supleti-
formadora da relação contratual. vos ou impregnando, com seus valores e princípios, o sentido do compor-
É verdade que à autonomia privada é reconhecido livre curso tamento declarativo, o que parece ser o principal aspecto a ser enfatizado
dentro das margens demarcadas pelo ordenamento, mas não é menos no plano da atividade hennenêutica. Assim, corno quer Joaquim Ribeiro,
verdadeiro que os atos negociais oriundos desta liberdade pessoal dos "menos do que um radical dualismo de campos opostos, o que se nos
indivíduos tocam (e testam) constantemente os limites fixados normati- depara são, na verdade, duas esferas de regulação comunicantes, com
vamente pelo sistema jurídico, e usualmente acabam redefinindo tais atinências recíprocas", observação que bem enfatiza a conexão dialógica
aqui proposta870 •
(exemplo que ainda poderia questionar a questão da reserva mental do art. 110, do A dimensão enfocada se confinna quando analisada a relação
CC/2002).
866
entres as esferas de autonomia e heteronomia sob perspectiva inversa. Se
ROPPO, 1988, p. 84-85 e 147-148.
867 é inequívoco que o contrato precisa da ordem jurídica para alcançar con-
Este aspecto detennina a verificação da validade do negócio, o qne também faz parte
do processo hermenêutico, como salientado no tópico "A delimitação do horizonte
tornos de operatividade e eficácia, não é menos verdadeiro que o sistema
hermenêutico". Sob este prisma, está-se tratando da relação de detenninação ou vin- necessita do contrato (enquanto fato social) ao reconhecer a autodetenni-
culação existente entre a norma de um escalão superior (ordenamento constitucional e nação da pessoa e a sua liberdade de atuação econômica, o que toma in-
civil) e inferior (sentença judicial, ato administrativo individual ou contrato), a qual
nunca é completa, pois sempre existente uma margem de livre apreciação por parte do 868
escalão inferior, como referem Hans Kelsen e Joaquim Ribeiro (KELSEN, 1998, RIBEIRO, 1999, p. 241.
69
p. 388; RIBEIRO, 1999, p. 225). Essa margem de liberdade é bastante majorada no 8 RIBEIRO, 1999, p. 213.
870
plano dos contratos regrados pelo vértice da autonomia privada, quando comparadas RIBEIRO, 1999, p. 214-216.
outras áreas do Direito (ex.: Direito de Fanúlia).
Interpretação Contratual 251
250 Felipe Kirchner ·
com a sistematicidade interna, ou seja, com a necessidade de que as ex-
dispensável o uso do mecanismo contratual, não apenas para realizaç~o pressões postas no instrumento contratual sejam analisadas de forma glo-
material dos valores constitucionais, mas também para assegurar a funcio- bal e relacional, e não de fonna isolada 876 , aspecto que não suscita maio-
nalidade de uma estrutura social fortemente diferenciada (o que leva à res controvérsias e já insistentemente frisado, principalmente quando
incorporação legislativa e à aceitação jurisprudencial de modelos contra- verificada a noção de circularidade hermenêutica.
tuais surgidos na factualidade das relações negociais e de mercado, do Contudo, a tese principal desvelada pelo aporte do pensamento
que são exemplos os contratos de leasmg. e tlme-s
. hanng
· )sn .
sistemático parece a seguinte: por ser um elemento jurídico inserido no
O contrato integra o sistema jurídico tanto porque dele recolhe universo normativo do Direito, a interpretação do contrato depende de um
pressupostos de criação, manutenção, conformação e coercibilidade, mas caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele (contrato), do texto da
também porque o desenvolve na concretização dos vetores constitucio- declaração até a Constituição, de fonna sempre centrada no ato de auto-
nais da autodetem1inação da pessoa e do espaço de liberdade de atuação nomia e nas suas condicionantes. Por isso a interpretação do contrato é,
econômica do indivíduo, não havendo sentido em sua separação como em certa medida, também interpretação do Direito, pois o texto da decla-
sistema autônomo, ao menos no plano hennenêutico. Joaquim Ribeiro ração e os comportamentos havidos na facticidade da relação contratual
assim se questiona: se o contrato está não estão isolados, desprendidos do Direito e de suas premissas expressas
e/ou implícitas877 •
'dentro' do complexo nor111ativo que é o direito, co1110 ele111ento de
sua diferenciada estrutura de regulação social, co1110 pode si111ultane- Também por este viés se percebe que, no quadro da interpreta-
a111ente ganhar a distância indispensável para se isolar efir111ar como ção do contrato, há urna imbricação limitada do plano da autonomia com
termo de u111a análise comparativa com o próprio sistema de que faz a heteronomia, no sentido de que as normas estatais não se constituem
parte? (.) em nenhum 111omento, nem na sua fase genética, nem na apenas em normas de exame, mas, sim, em normas materiais para a de-
sua fase de execução, o negócio se desliga de seu sistemafundador 872 • terminação do conteúdo e do sentido da pactuação privada 878 • O regula-
Sendo evidente que o contrato não se dilui por completo no or- mento contratual resulta de um concurso de fontes que participam na sua
denamento jurídico, conservando sua alteridade e autonomia quanto à construção e estão em situação de uma constante complementação e res-
trição recíprocas, pois a vontade das partes pode se juntar ou se sobrepor
origem normativa e função específica assinalada pelo próprio sistema
a estas fontes, dadas determinadas condições fáticas e jurídicas (as quais
juridico873 , é inegável sua sistematicidade com o conjunto normativo
são desveladas pelo método concretista).
estatal, estando em constante complementação e restrição recíproca com
seus princípios estruh1rantes 874 • Dito isso, deve ser novamente referido que a existência de fon-
tes diversas do ato de autonomia das paites não significa, necessariamen-
Embora o paradigma trabalhado neste estudo independa de uma
te, fontes contrárias à vontade bilateralizada e aos interesses dos contraen-
apreensão metodológica do fenômeno hennenêutico, mister se faz afirmar
tes (as valorações legais e judiciais podem ser tanto contrastantes quanto
que a tese da concreção normativa encontra lastro no chamado pensamen-
homogêneas ou instrumentais em relação à autonomia privada), até por-
to sistemático 875 , cujo aporte teórico pode ser trazido para o campo da
que o dogma da vontade e a tutela da autonomia são pretensões não coin-
interpretação do contrato. A primeira consequência desta construção diz
cidentes, sendo que esta última dimensão pode ser substancialmente ga-
311
rantida mesmo quando a interpretação prescinde da vontade das partes.
RIBEIRO, 1999, p. 217-218.
872
Exemplo disso são os instrumentos de controle do regulamento contratual,
RIBEIRO, 1999, p. 219 e 222.
8 73 integrantes (ou ao menos dependentes) da atividade interpretativa, e que
BETTI, 2007, p. 190-191.
874 RIBEIRO, 1999, p. 220. podem resultar em uma intervenção não coincidente com as escolhas da
875 Hesse sustenta que a hem1enêutica deve ser construída sobre a base de uma coordena- autonomia privada, mas com os objetivos fundamentais e valores de natu-
ção material entre elemento nom1ativo e as condições de vida ou âmbitos de vida, cu-
jo processo de concretização adota um caráter sistêmico, mas ultrapassa o ponto de
876 MIRANDA, 1989, p. 183.
vista meramente sistemático na interpretação dos textos da nomm (HESSE, 1998, 877
p. 65.). Também Haberle aduz a necessidade dos participantes da interpretação darem GRAU, 2003, p. 40. 127-128 e 186.
878
maior significado ao que o autor denomina de contexto sistemático (HABERLE, HESSE, 1998. p. 71.
1997, p. 11).
h1terpretação Contratual 253
252 Felipe Kirchner ·
contratual 882 , que invariavelmente se fazem presentes (nem que seja sobre
reza ética, social e econômica regentes do ordenamento jurídico, em uma seu aspecto vetorial), a atividade hennenêutica tem o dever de quantifica-
879
ótica solidária (e não meramente pública) da regulação privada • -las, mesmo que as partes não tenham disposto expressamente sobre a sua
Nessa complexidade situacional, se sobressaem, ao menos, qua- incidência. Nesse sentido a lição de Carlos Ferreira de Almeida:
tro aspectos da relação contrato-ordenamento que se mostram extrema- (..) porque antes de ser jurídico, é negócio (e portanto social), o ne-
mente relevantes para a hennenêutica contratual: ( 1) o ordenamento é gócio jurídico vê rejlectidos no seu texto e na compreensão dele uma
elemento estruturante interno do contrato, agindo diretamente sobre seu multiplicidade de regras, com origem e natureza heterogéneas. A di-
conteúdo e significado hennenêutico, e não apenas como elemento exter- mensão normativa do sign[ficado negocial não se contém 1111111 âmbito
no (limite); (2) o ordenamento positivo não interessa à interpretação con- estritamente jurídico, porque se reporta a regras de duas fontes, com
tratual apenas no caso de lacunas a serem supridas com a utilização de alcance e nature=a susceptíveis de distinção: regras propriamente so-
ciais, que são as estabelecidas pela prática reiterada da vida de rela-
normas supletivas, mas sempre; (3) o sistema normativo (e principalmen- ção; e regras propriamente jurídicas (de validade. de composição, de
te seus vetores axiológicos) sempre faz-se presente na circularidade her- metodologia e de equivalência semântica),frequentementefixadas pe-
menêutica e na pré-compreensão do intérprete, razão pela qual o ordena- lajurisprudência e pela doutrina.
·.·.···· mento integra o significado construído pela participação ativa, criativa e Existe todavia uma contínua e essencial inte1penetração enh·e estas duas
produtiva do sujeito cognoscente; (4) o ordenamento detennina premissas classes de regras: porque as regras jurídicas têm naturalmente em conta
a serem observadas no iter hermenêutico (ex.: contratos empresariais os usos e as expectativas genericmnente aceites, reinstit11cionalizm1do as
possuem tratamento interpretativo diverso daquele reservado às relações instituições sociais; porque as regras jurídicas deixam muitas ve::es lugm·
às regras sociais para o preenchimento de suas condições de aplicação
consumeristas, pois o Direito Empresarial impõe a observância de certos
(. ..) e finalmente porque as regras sociais "sh'icto sensu" só têm eficácia
e determinados princípios) 880 • jurídica na medida em que estcgmn satisfeitas as e.-.::igências negativas e
Juntamente com a autointegração que deriva diretamente da au- positivas da ordem jurídica qum1to à significação883 •
tonomia privada dos contraentes, a hermenêutica contratual sempre deve
mensurar elementos decorrentes da heterointegração, o que se dá median- No mesmo sentido o entendimento de Joaquim Ribeiro, que de-
te o recurso a outras fontes, sejam elas fáticas (v.g.: naturezas das coisas e fende uma interpretação que assimile a estrutura relacional do contrato,
usos) ou normativas (ex.: diretrizes axiológicas do ordenamento e equi- não reduzindo sua dimensão ao elemento declarativo, o que ignoraria as
dade). A concreção normativa implica juízos de valor (Reale) mediados conexões contratuais externas (inserção no mundo da vida) e internas
por vetores do ordenamento, ou seja, na coordenação entre situação de (comunicação entre as partes) 884 :
fato (objetiva e complexa) e previsão nonnativa (contratual e legal), já
Sendo a liberdade contratual o principio rector da ordem dos conh·a-
que o intérprete sempre se utiliza (na circularidade hennenêutica e na sua tos, o desafio que se lhe coloca é o de dar satisfação às exigências
pré-compreensão) dos vetores axiológicos do ordenamento (ex.: boa-fé normativas próprias de cada um daqueles planos contratuais, a saber,
objetiva, confiança legítima, bons costumes, usos do tráfego negocial, sen,ir de inshwnento à auto-realização pessoal dos conh·aentes - na
etc.). 881 Existindo fontes heterônomas de detenninação do regulamento especifica forma que ela é possível no âmbito do contrato - ejuridifi-
car convenientemente as relações de troca e de cooperação no mer-
879 ROPPO, 1988, p. 166-168 e 177. cado, respeitando ao mesmo tempq, em medida Sl//iciente, os outros
880 Estas observações certamente não deveriam chocar os operadores jurídicos. Como valores próprios do ordenamento88 '.
sustenta Miguel Reale, a "exigência de inte1pretação global e concreta dos elementos
que compõem, seja um ordenamento legal, seja 11111 instrumento negocial, não repre- Ainda no universo da concreção nonnativa, que impõe uma vi-
senta senão uma versão atuali=ada do antigo ensinamento de Pothier", consubstanciado são organizada dos fenômenos de positivação e, de aplicação do Direito,
no artigo 1.161, do Código Civil Francês: deve-se interpretar uma cláusula pelas ou-
tras cláusulas contidas no documento, precedentes ou subsequentes a tal cláusula 882
ROPPO, 1988, p. 137-138.
(REALE, 1997a, p. 184). 883
FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 173-174.
881 Larenz traz uma questão significativa ao tópico abordado, ao referir a noção de justa 884
causa, que existe, segundo a jusriprudencia alemã, "quando, consideradas todas as RIBEIRO, 1999. p. 14-15 e 638.
885
circunstâncias, não é exigível, segundo a boa-fé, a uma das partes do contrato que RIBEIRO, 1999. p. 13-14.
prossiga na relação obrigacionaf' (LARENZ, 1989, p. 347).
Interpretação Contratual 255
254 Felipe Kirchner -
una ,ponderacwn . , s90 de 1a estructura concreta y de la importancia de los
cabe salientar o pensamento de Miguel Reale, no sentido de que não há interes_es en relación_comparativa con todos los modelos y tipos legales",
interpretação e aplicação de elementos normativos que não impliquem o os q~ais surgem do sISt~ma ou do tráfego jurídico (tipos extralegais como
sentido da totalidade do ordenamento, "nem apreciação de um fato que os diversos contratos mistos e o time-sharing) 891 •
juridicamente não se resolva em sua qualificação, em função da tipicida- Especifica~ente no plano normativo, o contrato passa a ser o
de normativa que lhe corresponde"886 , o que remete à dimensão axiológi- foco da heterogeneidade das relações que lhe são imanentes 892, pois a
ca da normatividade, tão cara ao pensamento do jusfilósofo brasileiro. relação contratual, que juridiciza uma determinada operação econômica
Emílio Betti refere que "a disciplina da lei não se detém dian- é construída por intermédio do ato de autonomia e das nonnas do orde~
te do conteúdo do negócio, limitando-se a registrá-lo tal como as par- namento jurídico que lhe são subjacentes. Nesse sentido cabe delinear as
tes o determinaram, mas abrange, também, aquele conteúdo, esclare- e~pec!ficida_51es _doA p~stula~o normativo da proporcionalidade, que media-
cendo-o, integrando-o e, por vezes, até corrigindo-o" 887 • Segue o ju- ra a dnnensao sistem1ca existente no contrato e no ordenamento jurídico.
rista afirmando que a interpretação não deve se limitar ao exame do
ato normativo, devendo se expandir para a verificação da sua relação
.·.•··· com a totalidade significativa do ordenamento jurídico. Contudo, cabe 3.2 O Postulado Normativo da Proporcionalidade
delinear que, nessa atitude, não há uma interpretação direta do orde-
namento, mas apenas do ato negocial em relação ao ordenamento ,
888 . _Refere Pi~tro Perlin~eri que; verificada a operatividade da pro-
inclusive no que tange à formação do conteúdo do contrato e do objeto porc10nahdade no sistema de hvre mercado, é possível que venha a exer-
cer influência em seu principal instrumento, que é o contrato 893 • Canoti-
da atividade hermenêutica. lho colaciona dois exemplos concretos que explicitam a necessidade do
Essa é uma questão que orienta o presente estudo: ao falar de e~ame da proporc!onalidade no campo da hennenêutica contratual, espe-
sistematicidade no plano hermenêutico, está-se falando da relação do ato cialmente na media?ãº, e?tre regulação privada (campo da autonomia) e
normativo privado (objeto da interpretação) com o sistema jurídico, o que normas e vetores ax10logiços do ordenamento jurídico (campo da hetero-
não implica dizer que essa relação sistemática imp01ta na interpretação de nomia), aspecto pertinente à concreção normativa:
todo ordenamento, o que é de todo evidente. Quando se afim1ou que a
interpretação do contrato é, também, interpretação do Direito, e que a A empresa Z conh·atou dois indivíduos do sexo feminino para o seu
interpretação do contrato depende de um caminhar pelo percurso que se serviço de informática, mas condicionou a manutenção do contrato de
projeta a partir dele (contrato), do texto da declaração até a Constituição, trabalho a três cláusulas: (1) szifeitarem-se a testes de gravidez no
não se está a afirmar que a interpretação contratual perca o foco e passe a momento da admissão; (II) aceitarem como justa causa de despedi-
ser interpretação legal, até mesmo porque, tendo como objeto a situação mento o fato de ocorrer uma grm 1idez durante o contrato; (III) consi-
objetiva complexa, essa atividade sempre se encontra centrada no ato de derarem também como justa causa de despedimento o fato eventual de
virem a servir de "mães de aluguel" durante a vigência do conh·ato.
autonomia e nas suas condicionantes 889 • Como conciliar estas cláusulas com direitos, liberdades e garantias
Assim sendo, parece forçoso o reconhecimento de uma concre- com direitos à intimidade pessoal e o direito de constituirfamilia?
ção nonnativa quando percebido que "la apreciación de cada contrato es
890
A pon~eração ~~trapola o viés_ sistemático ou da argumentação jurídica (ou qualquer
886 REALE, 1968, p. 128. ou1:o ro~lo_teonco que s~ queira colocar nessa atividade). pois sihrnda na abertura do
887 BETI1, 2003a, p. 126. carater cnatlvo e construtivo da interpretação.
888 sçi ENGISCH. 1968, p. 460-461.
BETII, 2007, p. 45.
88q Emilio Betti salienta que a sistematicidade da hem1enêutica atende à própria caracte- sqz REALE, 1999, p. 43.
893
rística nomiativa deste tipo de interpretação e diz com a resolução de problemas práti- PERLIN_GIER.1;, Pietr?. Equilíbrio Nom1ativo e Principio di Proporzionalitá nei
cos, atendendo as suas repercussões sociais (BETII. 2007, p. 218). No pensamento Contratt1. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA. v. 12,
metodológico bettiano, o relacionamento da diretriz normativa com a totalidade do P; 131:151, out./dez. 2002: p. 135. O autor ainda refere que o problema da propor-
ordenamento atende aos cânones da totalidade-coerência e da adequação do entender c10nahdade depende, part1culannente, da noção de autonomia negocial (PERLIN-
e, com este, diz com a adaptação do preceito às transfom1ações do entorno sociocultu- GIERI, 2002, p. 131 ).
ral da relação obrigacional (BETII, 2007, p. LXN e CX:Vill-CXIX).
-- h1terpretação Contratual 257
256 Felipe Kirchner ·
se antagonizam com a vontade das pmtes - como se pretendessem a tute-
(. . .) As entidades patrimoniais e as organi:::;ações sindicais celebraram la dos interesses públicos em confronto com os interesses privados 897 -,
11111 contrato coletivo de trabalho, onde incluíram a cláusula de clo- mas visam delinear sua significação, integrar suas lacunas e suprir as
sed-s/zop, 011 seja, a proibição de contratação de operários não sindi- deficiências de seu exercício, respeitando a lógica e o espírito de suas
calizados. Como conciliar esta cláusula contratual com o princípio da escolhas. Sob este prisma, é vedado ao intérprete atribuir ao contrato
liberdade de associação? 89.,,
significados não partilhados pelos contratantes (além das possibilidades
Em ambos os casos a interpretação contratual - que no para- de sentido da relação obrigacional, tendo em vista a força vinculante do
digma aqui estabelecido encampa o juízo de validade e de aplicação das objeto interpretado), com o fundamento de que aquelas acepções seriam
disposições contratuais -, depende de um juízo que envolve o exame da as mais desejáveis do ponto de vista do interesse geral, pois isto implica-
proporcionalidade das disposições privadas. Acerca desta questão se ria uma verdadeira modificação do pacto interpretado 898 .
apresentam os seguintes questionamentos: Existe a viabilidade de aplica- Feitas estas ressalvas, cabe mencionar que, em linhas gerais, es-
ção do postulado da proporcionalidade no âmbito da interpretação dos tá sedimentada a concepção do dever de proporcionalidade como sendo
contratos? Em que medida? Quais as consequências? um parâmetro de valoração de atos, para aferir se eles estão infonnados
··.·.··" segundo detenninados preceitos superiores inerentes ao todo do ordena-
O desenvolvimento deste tópico iniciará com um rápido en-
quadramento do tema no campo da interpretação das relações obrigacio- mento jurídico (relação parte-todo-parf:e). Este preceito é mais fácil de ser
nais, do que seguirá a análise das especificidades nonnativas próprias sentido do que conceituado, eis que se dilui em um conjunto de proposi-
do postulado da proporcionalidade, a defesa de sua aplicação no âmbito ções que não o libertam de uma dimensão subjetiva: é proporcional (e
da hermenêutica contratual e os efeitos deste posicionamento. Contudo, razoável) o que seja confonne à razão, supondo equilíbrio, moderação e
mister se faz salientar, desde já, que a análise da proporcionalidade no hannonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao
iter hennenêutico não se encontra apartada do uso dos postulados das senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar (historici-
circunstâncias do caso e/ou da razoabilidade, tanto que também nesse dade da compreensão) 899 .
campo prepondera o juízo indutivo na busca pela concreção da relação
contratual 895 . 897 Lucio Franzese questiona a cisão do Direito, referindo que o conceito de privado e
público, mesmo no campo contrah1al, não é ontológico, mas fruto de uma reflexão
Seguindo classificação proposta por Enzo Roppo, a temática com finalidade política (FRANZESE. 1998, p. 1-3 e 218).
deste tópico se insere no exame das fontes contratuais diversas da vonta- 898 ROPPO, 1988, p. 172-174.
de das pmtes - não necessariamente em razão da incidência do dever de 899
Humberto Ávila assim diferencia a proporcionalidade dos demais postulados nonnati-
proporcionalidade, mas, sim, pelas nonnas que, no âmbito interpretativo, vos aplicativos: "O postulado da proporcio11alidade não se c01ifi111de com o da justa
são por ele aplicadas -, as quais operam segundo variantes da valoração proporção: e11qua11to este exige uma reali:::;ação proporcional de be11s que se e11trela-
judicial contrastantes, homogêneas ou instrumentais da autonomia priva- çam 1111111a dada relação jurídica, indepe11dente da existência de uma restrição decor-
rente de medida adotada para atingir 11111 fim externo, o postulado da proporcio11ali-
da896. Ademais, está sob foco a análise de critérios objetivos de interpre- dade exige adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito de uma
tação, os quais, por conterem juízos axiológicos, não podem se afastar medida havida como meio para atingir um fim empiricamente controlável. O postula-
dos critérios subjetivos, que dizem com a busca pela comum intenção das do da proporcionalidade não se identifica com o da ponderação de bens: esse último
partes, embora a atividade hennenêutica não se entregue totahnente a este exige atribuição de dimensão de importância a valores que se imbricam, sem que
co11te11ha qualquer deter111i11ação quanto ao modo como deve ser feita essa pondera-
plano. ção, ao passo que o postulado da proporcio11alidade co11tém exigê11cias precisas em
Como já salientado, embora a utilização de critérios objetivos relação à estrutura de raciocí11io a ser empregada 110 ato de aplicação. O postulado
de interpretação implique o uso de uma fonte de regulação diversa da da proporcionalidade 11ão é igual ao da co11cordâ11cia prática: esse último exige rea-
livre e voluntária detenninação dos interesses privados, estes cânones não li::ação máxima de valores que se imbricam, também sem qualquer referência ao mo-
do de implementação dessa otimi::ação, enquanto a proporcionalidade relaciona o
meio relativamente ao fim, em função de uma estrutura racional de aplicação. O pos-
89.,, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. tulado da proporcionalidade não se c01ifi111de com o da proibição de excesso: esse úl-
Coimbra: Almedina, 2000. p. 38. timo veda a resh·ição da eficácia mínima dos princípios, mesmo nà.ausência de um
895
ÁVILA, 2006, p. 156. fim externo a ser atingido, enquanto a proporcionalidade exige uma relação pro-
896
ROPPO, 1988, p. 168.
h1terpretação Contratual 259
continua sendo o destinatário precípuo dos direitos fundamentais, mas possui um de-
mas jusfundamentais: (2) haveria violação material ao núcleo essencial da autonomia ver absoluto de proteção dos sujeitos privados contra agressões aos bens jurídicos
privada e do próprio direito privado; (3) se configuraria violação ao princípio do Esta- fundamental~1ente assegurad?s pela Constituição. mesmo que estas sejam provenien-
do de Direito em face da imprecisão de aplicação das nonnas jusfundamentais na re- t~s ~a atuaçao de 0~1tros particulares. Assim. evidencia-se a ahiação ambivalente dos
lação privada; (4) inexiste previsão expressa, no caso brasileiro, que detenuine a efi- d1re1tos ~und_a~entais, que de!em~an~ ªf:tações negativas e positivas por parte do Es-
cácia direta; (5) seria possível ao particular renunciar aos seus direitos (sendo vedada tado,_ ct~Ja atl~idade, fora do amb1to pubhco, encontra-se edificada sobre as estrumas
apenas a autolimitação que atinja o conteúdo núnimo do direito constitucionahuente de D1re1to Pnvado (CANARIS, Claus-Wilhelm. A Influência dos Direitos Fundamen-
assegurado) (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle da t~is _s~bre o_Di_reito Privada na Alemanha. ln: SARLET, lngo Wolfgang (Org.). Cons-
Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1999. p. 123; ZITSCHER, Harriet titn1çao, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Ad-
Christiane. Introdução ao direito civil alemão e inglês. Belo Horizonte: Dei Rey, vogado, 2003. p. 36). A quatro, tem-se a teoria da com,eraência estatista origiual-
1999. p. 175). Segundo, tem-se a teoria da eficácia mediata 011 indireta (Mittelbare ~1ente dese~v?lvid~ por Jurgen Schwabe, a qual nega a rele;ância da discu;são trace-
Drittwirkzmg) (adotada pelo Tribunal Constitucional Alemão), criada por Gunter Du- jada n~ste topico, eis que a atuação dos particulares, no exercício da autonomia priva-
rig, a qual defende que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais dar-se- da, sena sempre produto do pemússivo estatal. sendo as ofensas sempre oriundas des-
-ia por meio da interpretação e aplicação das cláusulas gerais (generalklauseln) e dos te (CANARIS, 2~03, p. 6~). razão pela qual não poderia haver a imputação ao parti-
conceitos jurídicos indeterminados, a serem previstos no seio da legislação privada, cular por ofensa ~ norm~ JUsfundamentaL pois este não teria cometido o ilícito se o
sob a égide da axiologia constitucional, havendo, quando muito, vinculação direta E~tado houvesse rnterfendo de fomrn decisiva. Desta feita, o que existiria seria um di-
apenas para o legislador jusprivatista. Desta feita, as posições jurídico-subjetivas, re- reito de d_efesa c~ntr? as ingerências do Estado, mesmo no tráfico privado, envolven-
conhecidas ao particular frente ao Estado, não poderiam ser transferidas de modo dire- d~ uma vrnculaçao d1'.eta apenas do legislador privado e da jurisdição civil. Por fim, a
to para as relações particulares, mas apenas por intermédio de um efeito irradiador mi- crnco, te~-s_e a doutrina norte-americana da state action, para a qual os direitos fun-
tigado, ou seja, as normas jusfundamentais não seriam diretamente oponíveis, como damentais vrncul~1_ apenas o Estado e são invocáveis somente em face de uma ação
direitos subjetivos, nas relações entre particulares. Ao encontro destas considerações é estatal de orde_m 1hctta, sen?o que as condutas privadas estariam imunes a esta espécie
que parece ter sido editado o Enunciado n. 23, aprovado na I Jornada de Direito Civil, de :ontrole, n~o sendo afendas e°: face da Constituição. Assim, somente haveria pro-
promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: "afim- teçao dos p~rticulares quando venficado que a violação cometida contra seus direitos
ção social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o prin- fun_d~~ntms por outro ci~adão pode ser imputada ao Estado. pois fora desta hipótese
cípio da autonomia contratual, mas atenua ou redu= o alcance desse princípio quan- os rnd1viduos pod m argmr em s_eu favor a impossibilidade de praticarem ingerências
do presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade 7
c?ntra as nonuas Jusfundamentai?. Atualmente a tese foi suavizada pela jurisprndên-
da pessoa humana". Ademais, na supramencionada discussão acerca da garantia do cia da S~pr~ma Co~e norte-amencm1a, por intenuédio da ampliação dos conceitos de
1uiuimo existencial em contratações privadas, o TJRS optou pela utilização desta ver- poder publico e_ açao estafa(, ~ec~nhecendo-se a noção de imputação do Estado pela
tente teórica: MS 70013336359, Rei. Des. Jaime Pitem1an, 2° Grnpo de Câmaras Cí- cond~ta do part1,c~lar e da srnulandade deste com o Leviatã, quando do exercício de
veis, TJRS,j. 09.06.2006; Agln 70017472754, Rei. Des. Paulo Vieira Sanseverino, 3• funçao ~statal t1p1c? ~oder s?cia! privado) (GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação
Câm. Cív., TJRS,j. 31.10.2006; AC 70015326994, Rei. Des. Paulo Vieira Sanseveri- Afirmativa e Prmc1p10 Constituc10nal da Igualdade: o direito como instrumento da
no, 3ª Câm. Cív., TJRS, j. 03.08.2006. Em face dos argumentos utilizados no julga- transfonnaçã~ social, a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 88).
mento da ADI 2.591 (chamada "ADIN dos Bancos"), parece que o STF se inclina pe- 917 Refer: Joa~mm de Souza Ribeiro que os linútes que os particulares estão obrigados a
la aplicação da teoria da eficácia mediata ou indireta, embora a questão não tenha si- respeitar nao deve~ ser os mesmos que vinculam os poderes públicos, pois altera-se 0
do, nesta oportunidade, nomeada expressamente pelos julgadores. Ante as questões can~po de valoraçao (RIBEIRO, 1998, p. 745). A questão passa pela análise inicial do
supramencionadas, como adverte Tlúago Sombra, são tecnicamente corretas as dire- fenomeno do_s cham_ad?s pode:·~s sociais, que são os sttjeitos privados dotados de
trizes emanadas da teoria da eficácia imediata, pois a defesa da tese contrária implica- grande podeno econonuco, pohtico e/ou social. capazes de condicionar as decisões da
ria em "11111 pedido de permissão dos direitos fimdamentais ao Direito Privado para pai:e adve:sa (pretensamente hipossuficiente). O reconhecimento destes entes implica
que pudessem incidir nas relações por este reguladas" (SOMBRA, 2004, p. 162), o a d1fe~encia ão ~a~ esferas jurídicas privadas a serem t11teladas pelos direitos funda-
que não poderia subsistir. No mesmo sentido: SARLET, lngo Wolfgang. Direitos 7
mentais, p01s ~xi~ti_rão relações configuradas com a presença dos particulares e dos
fundamentais sociais, minin10 existencial e direito privado: breves notas sobre alguns det~ntores ~o rndigita~o poder_ social, pautadas pela desigualdade e muito semelhm1-
aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares.
SARMENTO, Galdino; GALDINO, Flávio (Orgs.). Direitos fundamentais. Rio de
?e
tes as re:aço_es eficaci~ vertical; e outras onde não há um necessário desequilíbrio
(o que nao sigrufica a venficação de uma real igualdade material), pois verificadas fo-
Janeiro: Renovar, 2006. Contudo, a questão perdeu importância significativa com a r~ da esfera d~s relações de poder. Desta feita, deve haver uma ponderação das ques-
edição do Código Civil de 2002, que prevê um grande número de cláusulas gerais e toes em ~onfli!o, levando-se em conta o substrato fático que penneia o caso, majoran-
conceitos jurídicos indetenninados, preceitos que pemútem que o operador jurídico dê do_-s_e a rntens1dade da proteção na exata medida da desigualdade verificada entre os
primazia à vinculação dos contraentes aos direitos fundamentais por meio destas es- suJeit~s: sendo que est~ consideração não exclui a vinculação dos-':mjeitos privados
pécies de positivação nonnativa infraconstitucional. Enfrentadas as principais verteu- . • aos dtrettos fimdamentais em uma relação de iguais.
tes teóricas, cabe delinear. por terceiro, a teoria dos deveres de proteção, defendida
por Konrad Hesse, Klaus Stern e Claus-Wilhelm Canaris. a qual entende que o Estado_
Interpretação Contratual 265
264 Felipe Kirchner .
Em tennos de excertos jurisprudenciais estrangeiros, Joaquim
Iniciando esta breve análise da jurisprudência, cabe mencionar de Souza Ribeiro apresenta interessante julgado do Tribunal Constitucio-
o voto do ministro Castro Filho no REsp 259.263, onde o Superior Tribu- nal Alemão (Bundesve,fassungsgericht), que acabou se tornando para-
nal de Justiça afirma expressamente que o exame de proporcionalidade digma na jurisprudência daquela Corte Constitucional:
deve nortear os contratos918 •
Outro caso que merece destaque é o do RE-ED-EDv-AgR [discutia-se a} validade da fiança prestada por uma filha de 21 anos,
161.243 919, onde o Supremo Tribunal Federal entendeu que o contrato de para garantia de uma dívida de 100000 DM, contraída pelo seu pai
junto a uma instituição bancária. A fiadora não possuía pah·imônio
trabalho formalizado pela Air France feria o princípio da igualdade, uma próprio de relevo, nem qualquer grau acadêmico ou preparação pro-
vez que a empregadora-reclamada se negava a aplicar o Estatuto Pessoal da fissional, auferindo, como operária, o salário mensal de 1150 DM A
Empresa ao empregado-reclamante, sob a alegação de que este era brasilei- sua queixa teve sucesso, entendendo o Bzmdesverfassungsgericftt que
ro, e não francês, fundando o fator de discrimen exclusivamente em atribu- os h·ibunais ordinários, ao admitirem a eficácia da fiança, tinham vio-
to, qualidade e nota intrínseca do empregado, qual seja, a sua nacionalida- lado o artigo 2°, 1, da Grundgesetz, norma que consagra aquele direi-
de. Cabe ressaltar que na fundamentação da decisão houve a menção ex- to ao livre desenvolvimento da personalidade. Esse direito da fiadora
,·.···· pressa ao postulado da proporcionalidade na mediação da relação contrato era coarctado pela executoriedade de 11111 encargo de tal monta e tão
desproporcionado dos seus rendimentos que importaria a sua asfixia
e princípio da isonomia, tendo sido determinada a aplicação desse vetor
econômica para toda a vida. Na sua fundamentação, o Tribunal fixa
deontológico na regulação do contrato de trabalho então examinada. como pressupostos de uma inten,enção correctora, ah·m1és, designa-
No julgamento do HC 12.547920 , onde examinado contrato de damente, da determinação da ineficácia do acto, a constatação de
alineação fiduciária e decreto de prisão civil por descumprimento, o minis- conseqüências vinculativas invulgarmente onerosas para uma das
tro Ruy Rosado Aguiar Junior utilizou a proporcionalidade para fixar o partes, em resultado de sua iriferioridade estrutural 923 .
entendimento de que a interpretação do contrato denotaria que a relação No sistema da common lm11 cabe mencionar o famoso caso
negocial (elevação da dívida de R$ 18.700,00 para R$ 86.858,24 em menos Shelley versus Kramer, onde a Suprema Corte Norte-Americana conside-
de 24 meses, em face da previsão de juros em patamar considerado abusi-
rou inconstitucional a presença de cláusula discriminatória em um contra-
vo) e as consequências da aplicação da ordem jurídica (imposição de prisão
to de Direito Privado, por ofensa ao princípio da igualdade, em aplicação
para apenas uma das partes) não possuíam equivalência, em face da inci-
mediada pelo postulado da proporcionalidade924 •
dência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Feitas estas considerações, deve-se ressaltar que o dever de pro-
Na AC 70003742103 921 , o Tribunal de Justiça do Estado do Rio porcionalidade, enquanto postulado normativo, toma-se importante para a
Grande do Sul decidiu que feria a proporcionalidade a incidência do art. interpretação do contrato não por estabelecer a realização de um estado
8°, da Lei 10.209/2001 (e dos ditames da Medida Provisória que antece- de coisas - pois esta dimensão é regulada pelo instrumento contratual -,
deu esse dispositivo) na relação contratual sub judice, pois a indenização
pelo não pagamento antecipado de pedágios em valor correspondente ao 923 ln: V. Juristenzeitung, 1994, 408 s., apud RIBEIRO. 1998, p. 749-750. Verifica-se
dobro do valor dos fretes era desproporcional e impunha a reparação de claramente que nesta decisão a Corte Constitucional Alemã se utilizou do princípio da
prejuízos não efetivos922 • igualdade e do dever de proporcionalidade, além do preceito do livre desenvolvimento
da personalidade humana. para interpretar o contrato. a fiança prestada, as condições
918
pessoais da fiadora e de sua desigualdade material perante a instituição financeira.
REsp 259263-SP, 3ª T., STJ, Min. Castro Filho, DJ 20.02.2006 p. 330. 924
O caso foi edificado perante a teoria da state action, mas se tomou paradigma por
919
RE-ED-EDv-AgR 161243, Tribunal Pleno, STJ, Min. Sydney Sanches, DJ adotar entendimento de que a ação estatal de ordem ilícita pode ser verificada na
17.12.1999, V. 01976-02, p. 415. própria atuação jurisdicional. No caso em exame (Shelley versus Kramer), a Su-
920
HC 12.547, 4ª. T., STJ, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 12.02.2001 p. 115, RSTJ vol. prema Corte norte-americana considerou inconstitucional a presença de cláusula
148 p. 387. discriminatória em um contrato de direito privado, pois llllla Corte estadual havia
921
AC 70003742103, 2ª Câmara Especial Cível, TJRS, Revisora e Redatora para Acór- concedido medida injuntiva ao particular, considerando legítima e válida a mencio-
dão Desª. Marilene Bonzanini Bemardi, j. em 29.05.2002. nada disposição negocial. Se antes tratava-se de um negócio entre sujeitos privados,
922
No caso concreto, o valor dos pedágios que não forrun adiantados girava em tomo d: houve a publicização da questão quando o judiciário passou a -'chancelar o ato
R$ 5.000,00, enquanto o dobro dos fretes (quantum estabelecido pela Lei (SOMBRA, 2004, p. 196).
10.209/2001) beirava R$ 200.000,00.
hiterpretação Contratual 267
266 Felipe Kirclmer
De início, cabe mencionar que o raciocínio sistêmico contribui
mas por determinar o modo corno a regulamentação privada se relaciona com a hennenêutica contratual principalmente na verificação da sistema-
com o ordenamento e com os efeitos jurídicos emanados do amálgama ticidade interna da declaração negocial (análise textual), bem como na
existente entre os planos da autonomia e heteronomia. Nesse contexto, é análise da sistematicidade externa da nonnatividade do conti·ato (análise
importante frisar que o exame da proporcionalidade não ~e s!1:1ª fora da intertextual e correlacional), em especial no que se refere à relação desta
atividade interpretativa - como se fosse uma tarefa posterior a mterpreta- dimensão com as diretrizes oriundas do ordenamento - criando pontes
ção, atinente a conformação de suas concl~s~es -, mas, sim, em um pro- pennissivas do diálogo entre os níveis de heteronornia e autonomia -
cesso ativo e condicionante do ato hermeneutico. tema objeto deste tópico. Contudo, mister se faz ressaltar que a inserção
Buscando a congruência dos atos com os seus fms, o pri~cípio do pensamento sistemático em uma obra norteada pela amplitude e aber-
da proporcionalidade indica que a relação co~tr_atual pod~ ser eficiente, tura dogmática da hermenêutica filosófica - atitude que põe em choque a
atingindo econômica e juridicamente o ~eu obJetivo e~pecifi~o, ,~as pode metodologia com a apreensão filosófica - importa em uma verdadeira
não ser proporcional quanto aos fins cohrnados pelo_ sistema J':nd1c~ (ex.: apropriação teórica, que nem sempre se amoldará com exatidão nos pu-
justiça, equilíbrio da relação contratual, boa-fé obetiva e funçao social do rismos de cada escola de pensamento. Contudo, a noção de interpretação
·,••" contrato) ou em razão da posição ocupada por um dos contratan~es (ex.: sistemática é aqui adotada sem radicalismos, procurando retirar de suas
hipersuficiência econômica do fr~nqueador no ~ontra~o de franq_ma). Sem considerações aquilo que possa contribuir para o desenvolvimento de
desconsiderar a absoluta relevância da autonomia na mterpretaçao contra- uma atividade hermenêutica sempre ci1ativa e construtiva, mas também
tual, cabe destacar que a busca do hermeneuta não se resu~e, à ~nálise do -sempre concreta e matizada pelo objeto interpretado 927 •
tráfego jurídico, mas atinge a verificação e a busca do eqmhbno do des-
locamento patrimonial, pois a proporcionalidade, enquanto ~ânon~ partí- da Ciência do Direito. culnúnaram por influenciar o pensamento contemporâneo:
cipe do iter interpretativo, vai além do aspecto formal da d11Uensao eco- Hans Kelsen admitiu que as normas jurídicas são molduras a serem preenchidas pela
ação do intérprete: Theodor Viehweg preconizou importantíssimo avanço ao elaborar
nômica do contrato. a teoria da incompleh1de do_ sistema: Josef Esser trouxe considerações acerca dos
Por fim, cumpre destacar que não é dado ao intérp~ete i~npor os principios gerais do Direito e da justiça social dentro do sistema, bem como da inci-
seus valores aos contratantes, a pretexto de avaliar a proporc10nahdade de dência dos princípios constitucionais positivos e materiais para a criação jurispruden-
um contrato. Mesmo à luz de uma Constituição que mostra vocação diri- cial; Walter Wilburg reconheceu a mobilidade do sistemajuridico: Karl Engisch apor-
tou teoria sobre os conceitos juridicos indetemunados: E1nil Lask se deteve na pro-
gente, o controle de proporcionalidade deve r~sp~i!ar a mar~e~ de l_i?er- blemática dos valores. salientando, principalmente. sua sistematização dinâmica; Wal-
dade relativa ao poder de conformação dos md1viduos. Nao e legitimo ter Burckhardt trouxe à lume a diferenciação entre justiça lógica e justiça ética (KEL-
que a aferição da proporcionalidade _culmine por romper com_a margem SEN, 1998. p. 390-391; FREITAS. Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito.
de liberdade de que gozam os particulares na regularnentaçao de s~as 3. ed. São Paulo: Malheiros. 2002. p. 44: PASQUALINI. 1999. p. 102; CANARIS.
relações. O dever de proporcionalidade, antes, controla o ~so dess~ ~is- 1989 p. 67). As teorias citadas se constituem nas principais contribuições que redun-
cricionariedade, para prevenir excessos evidentes, mas nao substitui o daram nas doutrinas contemporâneas de Norberto Bobbio. Karl Larenz. Claus-
Wilhelm Canaris. Robert Alexy e Ronald Dworkin. Para maiores considerações sobre
contratante pelo intérprete. a história do pensan1ento sistemático. destaca-se a seguinte obra: MARTINS-COSTA.
2000.
926
CANARIS, 1989, p. LXV-LXVI e 22: BISINGHINI, D'ALESSANDRO, 2000, p. 58.
3.3 Os Pressupostos da Sistematicidade Hermenêutica Longe de ser uma aberração, como pretendem os críticos do pensamento sistemático,
a ideia do sistema jurídico se justifica normativamente a partir do princípio da justiça
Confonne acentua Canaris, o significado da ideia de sistema para e de suas concretizações nos preceitos da igualdade e da segurança jurídica, estando
a ciência do Direito é dos ternas mais discutidos da metodologia jurídica lastreada, ainda, na busca de um núnimo de racionalidade dogu1ática, na identifica-
ainda em nossos tempos925 , havendo as mais diversas opiniões doutrinárias ção das instituições com sistemas de ações e interações, na ideia do Direito como
926 sendo um sistema de comunicações e no apoio sociológico da estruturação jurídica
sobre sua aplicabilidade, verificabilidade, importância e validade • (CANARIS, 1989. p. 22).
927
Descabe abandonar as imprescindíveis contribuições da teoria sistemática pelo fato de
92s o desenvolvimento do pensamento sistemático dependeu do trabalho e esforço de a mesma possuir certas limitações. As críticas ao pensamento sisterhático derivam e
inúmeros pensadores. sendo importante, sem pretender esgotar o tema, t:cer. br~~es variam. evidentemente. da concepção que se tenha sobre o que seja a interpretação
considerações e homenagens sobre as mais variadas teorias que, na evoluçao h1stonca
- hlterpretação Contratual 269
268 Felipe Kirchner ·
tem apenas no plano teórico da inter-relação existente entre ordenamento
Afora as questões de ordem linguística, o liame teórico do pen- e ciência do Direito. Como bem refere Menezes Cordeiro, "a lógica ima-
samento sistemático com a hennenêutica contratual encontra-se na con- nente do Direito e as proposições externas necessárias ao seu estudo e à
secução da concreção, que vislumbra o sistema nonnativo (ordenamento sua aprendizagem constituem um todo que só em abordagens analíticas
e contrato) na sua real condição de totalidade axiológica. No que tange ao pode ser dissociado" 930 • Nesse contexto, são as noções de unidade e or-
contrato, já se verificou que o instrumento e suas nonnas singulares so- denação interna, conjuntamente com a hierarquia, que compõem o grande
mente podem ser entendidas em consonância com o conjunto axiológico ideário de concatenação do sistema jurídico, pois são estes os elementos
e de regras particulares que compõem o ordenamento928 • centrais na maioria das definições doutrinárias, mesmo daquelas que par-
Logo de início, cabe salientar que este estudo aceita a concep- tem e chegam a lugares de conhecimento tão diversos 931 .
ção de que o sistema jurídico é uno, pois as dicotomias propostas pela
doutrina (ex.: sistemas externo e interno, cientifico e objetivo)929 subsis- teóricos, dos quais muitos restaram aproveitados na dogmática aqui defendida. sendo
conveniente salientar: sistema de puros conceitos fundamentais (Stammler, Kelsen e
sistemática. Como mencionado, este estudo procura abandonar os radicalismos exis- Nawiasky); sistema lógico (juríspmdência dos conceitos); sistema axiomático-
tentes, visando adequar as premissas básicas do pensamento sistêmico com uma apreen- dedutivo (Ulrich Klug. Victor Kraft e Hasso Harlen); sistema como conexão de pro-
são da interpretação contratual que é confonnada pelas condicionantes da hem1enêuti- blemas (Max Solomon e Fritz Von Hippel); sistema de decisões de conflitos (juris-
ca filosófica, da qual resulta uma concepção bastante an1pla do fenômeno da compre- pmdência dos interesses de Philipp Heck): sistema de institutos jurídicos (Savigny);
ensão que não deve ser restringida pela concepção sistêmica. Nesses termos, se a ati- sistemas estático e dinâmico (Bobbio) (CANARIS, 1989 p. LXIX. 27-53. 55-66, 84-
vidade hermenêutica quantifica as diretrizes do pensamento sistemático (ex.: unidade, 85; BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10 ed. Brasília: Universi-
inseparabilidade das normas, ordem hierárquica e ordenação axiológica ou teleológi- dade de Brasília, 1997, p. 71-74 ). Estas concepções foram refutadas por Canaris em
ca), jan1ais nega a criatividade do intérprete. Aceitando que as diretrizes normativas suas individualidades. por não serem capazes de exprimir a adequação valorativa e a
do contrato (objeto da interpretação contratual) e do ordenamento se constituem em unidade interior da ordem jurídica (CANARIS. 1989. p. 280).
instâncias relativamente abertas e dialógicas, o estudo continua trabalhando com o fa-
93 ° CANARIS, 1989, p. LXIX. Francisco Amaral entende que a concepção sistêmica
to de que o significado não é extraído do sistema, mas do amálgama complexo exis- alcança não apenas a visão unilateral do relacionamento das normas, devendo se es-
tente entre as peculiaridades do objeto interpretado. a pré-compreensão do sujeito, as tender para a compreensão global do Direito, atingindo a totalidade (unitária. coerente
circunstâncias do caso a solucionar e as vertentes sistemáticas do Nomos Jurídico in- e dinâmica) das nom1as. relações e instituições que compõem o sistema jurídico
terpretado. (AMARAL, 2006, p. 40).
931
928 Muitas das opiniões contrárias ao pensamento sistemático defendem sua invalidade na Kant caracterizou o sistema como "a unidade sob uma ideia de conhecimentos varia-
confrontação com a ideia clássica de ordenamento, no sentido de que, embora ambas dos" ou como "11111 cor/junto de conhecimentos ordenado segundo princípios". Eisler o
as teorias abarquem as características da hierarquia, coerência interna e compleição de define como sendo "uma multiplicidade de conhecimentos, unificada e prosseguida
ideias. tão somente a opção pelo ordenamento conteria urna perspectiva teleológica, através de 11111 princípio, para 11111 conhecimento co1y1mto ou para uma estrutura ex-
opinião a muito ultrapassada, desde que Canaris, no escopo da teoria de Karl Larenz, plicativa agrupada em si e unificada em termos interiores lógicos''. Para Savigny o
desvelou uma das mais importantes características do sistema jurídico: a ordem axio- sistema significa a "concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as
lógica ou teleológica interna (CANARIS. 1989, p. 66-67). Porém, para além da distin- regras de Direito numa grande unidade.'' Para Rudolf Stanunler seria "uma unidade
ção linguística, aduz Judith Martins-Costa que ""ordenamento e sistema, como se sabe, totalmente coordenada.'' No entender de Julius Binder, seria "um c01/junto de concei-
não são sinônimos. O ordenamento é o cor/junto das normas que regulam a vida jurí- tos jurídicos ordenado segundo pontos de vista unitários.'' Sob a ótica de August
dica em certo espaço territorial. O sistema exprime as ligações, nem sempre existen- Hegler, o sistema é "a representação de um âmbito do saber numa estrutura signifi-
tes, entre essas normas" (MARTINS-COSTA, 2000, p. 43). Salienta-se que, no pre- cativa que se apresenta a si própria como ordenação unitária e concatenada." Para
sente estudo, o termo ordenan1ento será empregado em seu viés sistemático. Heinrich Stoll. seria um "c01y11nto unitário ordenado.,. Na visão de Hehnut Coing.
929 São extremamente multifacetadas as concepções de sistemas suscitados pela doutrina. poderia ser traduzido como sendo uma "ordenação de conhecimentos segundo 11111
Karl Larenz possui concepção dualista, defendendo existir um sistema externo, relacio- ponto de vista unitário". Max Weber o caracterizou como sendo "a concatenação de
nado à ciência do Direito e sendo constituído de conceitos gerais abstratos (generali- todas as proposições jurídicas, obtidas por análise, de tal modo que elas formem, en-
zação de elementos a partir dos chan1ados tipos jurídicos), e um sistema interno, que tre si, um sistema de regras logicamente claro, em sOogicamente livre de contradi-
seria o próprio ordenamento positivo (LARENZ, 1989, p. 338 e 534; CANARIS, ções e, sobretudo e principalmente, sem lacunas." Para Canaris, o sistema pode ser
1989, p. 26). Nesta mesma vertente, Canaris defende a existência de um sistema lógi- objetivamente conceituado "como sendo uma ordem teleológica de princípios gerais
co-científico, que diz com o sistema de conhecimentos, ao lado de um sistema objeti- de Direito." Por fim, para Bobbio o mesmo diz com "uma totalidade ordenada, um
vo, que diz com o sistema dos objetos de conhecimento que formam o ordenamento co1yunto de entes entre os quais existe uma certa ordem" (CANARfS, 1989, p. 10-11
(v.g.: leis, costumes, doutrina. jurispmdência, etc.) (CANARIS, 1989, p. 13). A des- e 29; BOBBIO, 1997. p. 71).
peito disso, inúmeras outras concepções surgiram, trazendo consigo relativos avanços
-- Interpretação Contratual 271
270 Felipe Kirchner ·
Aproximando-se dos vetores gadamerianos, tem-se que também
Embora este estudo não comp01te uma análise mais aprofunda- neste paradigma a hermenêutica jurídica jamais ocupa um lugar secundá-
da dos meandros da teoria sistemática, cabe referir a imprescindibilidade rio, uma vez que a interpretação tópico-sistemática, em última analise, é
tanto da interpenetração e complementação mútua dos pensamentos sis- atividade "não exterior ao objeto de sua apreensão" 936 , sendo capaz de
temático e tópico, quanto da quantificação da inseparabilidade das nor- engendrar as multifacetadas características do sistema frente ao inarredá-
mas no plano hennenêutico 932 • Como defende Judith Martins-Costa, "o vel desenvolvimento histórico, social e cultural.
raciocínio tópico é de valia, porque possibilita situar os problemas em Tecidas estas breves considerações, cabe adentrar na análise das
aberto a partir de uma multiplicidade de perspectivas", sendo que "o características do sistema jurídico, as quais interessam à tarefa de concre-
raciocínio jurídico não se desenvolve nem de uma forma 'puramente' tização da relação contratual por criarem pontes permissivas do diálogo
tópica, nem 'puramente' sistemático-dedutiva" 933 • Nesse contexto, Nor- entre os níveis de autonomia e heteronomia.
berto Bobbio assim se posiciona sobre a interpretação sistemática: De início, cabe ponderar sobre a unidade interna do sistema,
(a interpretação sistemática) tira os seus argumentos do pressuposto pois tamanha é a sua importância para a dogmática jurídica e outros ra-
de que as normas de um ordenamento, ou mais exatamente, de uma mos do pensamento científico que Miguel Reale chega a referir que "não
parte do ordenamento (. ..) constituam uma totalidade ordenada (. ..), existe ciência sem certa unidade sistemática, isto é, sem entrosamento
e, portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente lógico entre as suas partes componentes. O direito, por exemplo, como
integrar uma norma deficiente recorrendo ao chamado "espírito do
sistema", 111esmo indo conh·a aquilo que resultaria de uma inte,preta- experiência humana, como fato social, (...) passou a ser objeto de ciência
ção meramente litera/934 • tão-somente (...) quando adquiriu unidade sistemática"937 • No mesmo
sentido o magistério de Norberto Bobbio, para quem "a complexidade do
Cumpre colacionar, ainda, o entendimento de Juarez Freitas: ordenamento (...) não exclui sua unidade. Não poderíamos falar de orde-
namento jurídico se não o tivéssemos considerado algo de unitário" 938 •
A inte,pretação sistemática deve ser entendida como uma operação
que consiste em ah·ibuir, topica111ente, a melhor significação, denh·e
Além de referir que "a ideia de sistema significa o desabrochar de uma
várias possíveis, aos princípios, às normas esh·itas (ou regras) e aos unidade numa diversidade, que desse modo se reconhece como algo coe-
valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o so do ponto de vista do sentido" 939 , Karl Larenz assim se posiciona, fa-
alcance e superando antinomias em sentido a111plo, tendo e111 vista zendo menção ao movimento circular da interpretação jurídica:
be111 solucionar os casos sob apreciação 935 •
A unidade do siste111a repousa na irredutível relação de todos os ele-
mentos constitutivos com esse cenh·o fundado em si próprio (co1110 a
032 No julgamento da AC 70024048456 (14ª Câmara CíveL TJRS, Reiª. Des". Isabel de deste último repousa nos elementos constitutivos, que se definem, jus-
Borba Lucas, j. em 12.06.2008) o TJRS concluiu que as "disposições legais relacio- tamente, pela posição que ocupam em face dele). Trata-se, portanto,
nadas com os direitos constitucional, obrigacional e de proteção às relações de con- de algo comparável a 11111 círculo, ao passo que, ao invés, o sistema de
sumo (. ..) devem ser inte,pretadas de forma sistemática"( ... ) "não me parece correta conceitos que se deter111ina pelos princípios da lógica formal se asse-
a aplicação pura e simples dessa regra especial, sem o seu conji·onto e inte,pretação melha, digamos, a uma pirâmide940 •
sistemática com os princípios constitucionais, de direito obrigacional e de proteção
ao consumidor, mormente porque ao Jui= cumpre interpretar e aplicar de forma inte- 936
grada as normas legais vigentes, assegurando a ampla defesa, do contraditório e o FREITAS, 2002, p. 82.
937
devido processo legal". REALE, 2002, p. 63.
938
933 MARTINS-COSTA, 2000, p. 80 e 370-371. Viehweg, instigado pelo pensamento BOBBIO, 1997, p. 48.
939
de Vico, elabora a técnica de pensamento tópico que se funda, inicialmente, nas LARENZ, 1989, p. 20.
noções de topai (lugar ou senso comum) e endoxa (entendimento dos mais sá- 140 LARENZ. 1989. p. 20. Interessante a observação de Judith Martins-Costa sobre o
bios), ou seja, em pontos de vista considerados relevantes e consensualmente binôruio fonuado pela unidade e a existência de um núcleo fundamental no ordena-
aceitos, que nesta condição servem para solucionar os raciocinios que são estrutu- mento: "Esta unidade na diversidade pode-se expressar, contudo, de duas maneiras
rados a partir do próprio problema trazido ao intérprete (MARTINS-COSTA, distintas: 011 como um círculo, 110 qual os elementos constitutivos do sistema se agre-
2000, p. 356-360). gam em torno de um centro, repousando a unidade do sistema na irrt;dutível relação
934 BOBBIO, 1997, p. 76. de todos os elementos constitutivos com esse centro fundado em si próprio ou como
935 FREITAS, 2002, p. 80.
Inte1pretação Contratual 273
Contudo, a noção de abertura encontra limites formais e materiais, 956 Judith Martins-Costa aduz que "sistemati=ação e assistemati=ação constituem, assim,
ontológicos e racionais. Judith Martins-Costa observa que "não se pode a polaridade dialética na qual se desenvolve o sistema aberto, eis que tende11te à
permanente ressistemati=ação'' (MARTINS-COSTA. 2000. p. 377).
entender a expressão sistema aberto em sua literalidade. Um sistema 57
g "A abertura como incompleitude do conhecimento científico acresce assim a abertura
completamente aberto é um não-sistema, uma contradictio in term.inis. como modificabilidade da própria ordem jurídica. Ambas as formas de abertura são
Devemos, pois, entender por sistema aberto um sistema que se auto- essencialmente próprias do sistema jurídico e 11ada seria mais errado do que utili=ar
,.,, . de mod o apenas re lat.zvo ,,955 .
reJerencza a abertura do sistema como objeção contra o significado da formação do sistema na
Ciência do Direito ou, até, caracteri=ar 11111 sistema aberto como uma contradição em
si." E dentro da ótica das espécies de sistema que compõem a sua doutrina. segue Ca-
952 CANARIS, 1989, p. 12. naris argumentando que o "sistema não é fechado, mas antes aberto. Isto vale tanto
953 BOBBIO, 1997, p. 21. para o sistema de proposições doutrinárias ou 'sistema científico', como para o pró-
g5 4 PASQUALINI, 1999, p. 106. Larenz comunga desta concepção: "O sistema interno prio sistema da ordem jurídica, o 'sistema objetivo'. A propósito do primeiro, a aber-
não é(..,) 11111 sistema fechado em si, mas 11111 sistema aberto, 110 sentido de que são tura significa a incompletude do conhecimento científico, e a propósito do último, a
possíveis, tanto mutações na espécie de jogo concertado dos princípios, do seu al- mutabilidade dos valoresjurídicosfimdamentais" (CANARIS, 1989, 109 e 281).
cance e limitação recíproca, como também a descoberta de novos princípios; seja QSS FREITAS. 2002, p. 50. Transcendendo a transfonnaç,ão pela ação do legislador. o
em virtude de alterações da legislação, seja em virtude de novos conhecimentos da sistema é aberto também pela possibilidade da (re)descoberta de outros princípios que
ciência do Direito ou modificações na jurisprudência. A ra=ão última disso é, para se sucedem no desenvolvimento histórico de uma sociedade, muito embora ainda pos-
falar como Canaris, 'que o sistema, como unidade de sentido de uma ordem jurídi- sua, internamente, fundamentos fixos (v.g.: as cláusi.Jlas contratuais ou as cláusulas
ca concreta, comunga do modo de ser desta, quer di=er, assim como não é estático, pétreas constitucionais) que orientam e garantem a manutenção da unidade do orde-
mas dinâmico, apresenta, portanto, a estrutura da historicidade'" (LARENZ, 1989, nan1ento e o resguardo do binômio estabilidade (segurança jurídica)·e mutabilidade
p. 592). (desenvolvimento normativo) (FREITAS, 2002. p. 59).
g5 5 MARTINS-COSTA, 2000, p. 43.
Intetpretação Contratual 277
276 Felipe Kirchner ·
O direito abre para sistematizar e sistematiza para abrir. Tudo se
Em sintonia com a noção de incompletude da atividade henne- passa como se a ordem jurídica, e111 cada instância e instante, pren-
desse e libertasse o inté1prete: a tarefa do sistema é i111pedir que a
nêutica, o pensamento sistemático defende, corno corolário lógico da abertura se transfor111e 1111111 vórtice de indeter111inação e o da abertu-
ideia de abertura, que o Direito (e suas regulações normativas particula- ra, por sua vez, obstar que o sistema se converta num buraco negro
res) adquire as características de ser um sistema inacabado e inacabável, autofágico963 •
potencialmente contraditório normativo e axiologicamente959, considera-·
ção que se mostra correta também quando analisado o prisma da interpre- Sendo o ordenamento de natureza valorativa, tem-se que inter-
tação contratual. Canaris assim se posiciona: namente o mesmo contém uma ordenação axiológica ou teleológica964 , já
que constituído de valores voltados para um determinado fim. Sobre esta
(. .. ) a formulação do sistema jurídico - possivelmente em oposição a característica, Canaris assim se pronuncia:
outras Ciências - nunca pode chegar ao fim, antes sendo por essên-
cia, u111 processo infindável; aí reside também u111 certo sentido prá- (...) o significado do sistema para a obtenção do Direito torna-se evi-
tico, derivado do sistema ser aberto. (. .. ) De fato a formação de um dente quando se subscreva a opinião, aqui defendida, do sistema "in-
·.•·"
..... sistema co111pleto numa determinada orde111 jurídica permanece terno" de 11111a ordem jurídica como axiológico ou teleológico; o ar-
sempre um objetivo não totalmente alcançado. Opõe-se-lhe, invenci- gumento sistemático é, então, apenas uma forma especial de fi111da-
velmente, a natureza do Direito. (...) Uma determinada ordem jurí- 111entação teleológica e, como tal, deve, desde logo, ser admissível e
dica positiva não é 11111a "ratio scripta", 111as sim 11111 conjunto histo- relevante. Pode-se, nessa linha,falar de u111a "capacidade de deriva-
ricamente formado 960• ção teleológica ou valorativa" do sistema, desde que se enfoque que a
"derivação" não se deve entender no sentido de dedução lógica 111as
A ideia de abertura sistemática (e hermenêutica) fornece ao sim no de ordenação valorativa965 •
Nomos Jurídico, ainda, as condições ideais, ao menos do ponto de vista
teórico, para que o mesmo mantenha sua estabilidade. A capacidade para Deste modo, quando o intérprete realiza uma hierarquização ou
abarcar novos valores histórico-culturais pennite ao sistema jurídico ordenação sistemática, de certa forma está, mesmo que por via reflexa,
acompanhar o inevitável desenvolvimento por que passam as sociedades fazendo uma afinnação sobre o conteúdo axiológico do Nomos Jurídico
no revolver dos tempos961 , noção que se afina com a historicidade da interpretado. Assim, o jurista acaba por lidar com os valores e, em espe-
compreensão gadameriana e com a interpretação histórico-evolutiva pre- cial, com os princípios gerais da ordem jurídica, os quais sempre estão e
sente no pensamento metodológico de Emilio Betti. Sobre o tema, cabe sempre estarão por detrás de qualquer interpretação, mesmo nas situações
mencionar a lição de Juarez Freitas: que se situam no plano da autonomia966 • Aduz Miguel Reale que
(. ..) não se deve supor 11111 11111ndo jurídico acabado fora do pensamen- todo contrato deve ser visto co1110 uma unidade normativa resul-
to, tampouco pretender constituir oufor111ular um conceito de sistema tante da concreta valoração dos fatos feita pelos contraentes, mo-
fechado à base de definições alheias ao mundo dos valores 111ateriais tivo pelo qual a inte,pretação sistemática e teleológica se impõe
e históricos. O direito positivo é aberto, vale dizer, a ideia de 11111 su- de maneira irrefi·agável. (...) Nessa ordem de ideias, insisto em
posto cor/junto auto-suficiente de normas não apresenta a menor afirmar que o elemento teleológico é o núcleo por excelência da
plausibilidade, s<efa no plano teórico, seja no plano empírico962 • exegese contratual967 •
forma e concede força normativa, o que diz, tambem, com a opos1çao de tência de lacunas e contradições nonnativas e axiológicas no sistema, do
que resulta que este não apresenta sempre respostas prontas ou potenciais
limites à forma de raciocinar por concreção969 .
à resolução do caso em que deve ser aplicado 975 •
O processo sistemático, que atribui ao operador a necessidade
de identificação e materialização dos princípios e valores norteadores da 912 LARENZ. 1989. p. 376-377.
situação objetiva complexa, também obriga o intérprete, no âmbito da 973 LARENZ. 1989. p. 387-388. Analisando o plano da heteronomia. Larenz refere duas
interpretação que encampa a aplicação, dar concretude_ aos_elem~n!os possibilidades de desenvolvimento dos elementos nonnativos. cujo raciocínio importa
axiológicos e teleológicos que confonnam essa mesma s1tuaçao obJet1va ao presente estudo. O primeiro seria um desenvolvimento imanente. pois incide no
complexa (sejam oriundos do ordenamento e/ou do at~ de auto_nomta dos plano originário da teleologia da disposição nomiativa, quando existe uma lacmia. O
contraentes) tarefa essencial ao resguardo e promoçao da umdade e da segundo seria o desenvolvimento superador. que está além do limite literal. mas den-
consistência' do ordenamento e da sua força normativa970 . O intérprete tro do quadro dos elementos axiológicos diretivos da disposição nonnativa (que no
caso dos contratos se encontram na situação objetiva complexa), sendo aplicável
deve respeito não somente aos valores direta ou indiretamente contidos quando evidenciada uma questão jurídica que não pode ser solucionada pelo desen-
nos elementos normativos, mas também às finalidades que por eles são volvimento imanente {LARENZ, 1989, p. 444, 517-518).
(mesmo que programaticamente) instituídas. Esta observância deve ser 974 Canaris refere que no procedimento interpretativo o s1tjeito deve levar em conta a
perfectibilizada em um processo exegético global, qu_e embora sem~r_e necessidade de "11111 controlo teleológico - pelo menos implícito - quanto a saber se a
esteja vetorialmente polarizado pelo ato de autonomia, deve perqmm premissa maior 011 o conceito mais vasto tomados ao sistema com1111ica111 plena e
acertadamente o conteúdo valorativo significado" (CANARIS, 1989. p. 187). Sendo
sobre a vontade do sistema (também constitucional). o instrumento contratual um microssistema nom1ativo (que não se encontra apartado
Cabe referir, ainda, que a concepção sistemática impõe a obri- do ordenamento). a lição se aplica também para a análise restrita da declaração, onde
gatoriedade do hermeneuta evitar, tanto quanto possível, as antinomias o sentido de cada disposição nonnativa deve ser buscado pelo sujeito cognoscente, le-
entre nonnas estatais e disposições conh·atuais971 , e destas consigo mes- vando em consideração os elementos teleológicos e axiológicos do caso concreto (cir-
cunstâncias) e do sistema jurídico. Este limite diz com a busca pela finalidade com
que o elemento nonnativo foi editado, bem como com a carga valorativa implícita no
g 68 FREITAS, 2002, p. 71-72. mesmo (LARENZ, 1989. p. 230). Descobertos estes dois aspectos, a interpretação ja-
9 6g Juarez Freitas radicaliza o potencial do paradigma ora tratado quando afirma que mais pode desconsiderá-los.
75
"a inte1pretação jurídica é sistemática ou não é inte1pretação" (FREITAS, 2002, q Do mesmo modo que deve ser evitada a falácia de que o sistema é sempre dado, de
p. 174). antemão. como pronto e acabado, não se deve ter, a p,:iori. a premissa de que o mes-
g 7o FREITAS, 2002, p. 158. mo exige sempre uma detemúnada solução. pois, como refere Canaris, "o que pareça
911 A necessidade de superação das antinomias no ca1~po da in~erpreta~ão contra~~l é (.. .) como conh·ário ao sistema, pode, pouco mais tarde, surgir ulh·apassado. (..) Pa-
mencionada por Francesco Viola e Giuseppe Zaccana, os quais menc1011am a utiltza- ra além (..) do 'controlo teleológico', cada argumento sistemático coloca-se assim
ção do princípio da coerência (VIOLA. ZACCARIA, 1999, p. 184). Sobre o tema, ainda sob a da possibilidade de um desenvolvimento ou modificdção do sistema"
remete-se para a seguinte obra: PECZENIK. Aleksander. On Law and Reasou. Dor- (CANARlS, 1989, p. 189-190).
drecht: Kluwer Academic Publishers, 1989.
CONCLUSÃO
amplitude das circunstâncias passíveis de serem consideradas no processo (55) As circunstâncias do caso auxiliam a interpretação contra-
hermenêutico se altera confonne o horizonte do contratante que detém a tual tanto na busca pelo alcance da significação do instrumento, quanto
autoridade da situação hermenêutica e a consideração da estrutura rele- na consubstanciação dos elementos que remetem a concepções materiais
vante para a eficácia jurídica do negócio, o que demonstra que a questão do entorno social (ex.: cláusulas remissivas à realidade e atinentes ao seu
interpretativa não se apresenta em termos unifonnes para todas as catego- objeto, motivo e causa).
rias de negócios.
(56) Sendo impossível definir com exatidão o que sejam as cir-
( 51) Em regra, se o ponto de relevância hennenêutica se situar cunstâncias do caso, pode-se conceituá-las como sendo as condições fáti-
no destinatário da declaração ( o que deriva do alto grau de recognoscibi- cas e objetivas que fonnam o ambiente geral do contrato, englobando o
lidade objetiva e da confiança despertada pelo negócio), somente podem contexto verbal (espaço textual e intertextual das disposições contratuais
ser consideradas na interpretação as circunstâncias que estejam compreen- no todo unitário da declaração) e situacional (situação do discurso) da
didas no horizonte deste, ou seja, aquelas circunstâncias que o declaratá- contratação, encampando o todo da situação espaço-temporal (econômi-
rio teve ciência real ou potencial, o que implica uma consequente limita- ca, histórica e cultural) patticular que compreende o objeto e os interlocu-
ção dos meios interpretativos à disposição do hermeneuta. Já se o ponto tores que participam da relação contratual.
de relevância hennenêutica se situar no declarante (o que deriva do baixo
(57) O postulado das circunstâncias do caso atua de maneira
grau de recognoscibilidade objetiva e da confiança despeitada pelo negó-
multifuncional, pois, além de se constituir em meio para interpretar (e
cio), há um incremento do material interpretativo, sendo que em determi-
colmatar) a declaração negocial, é verdadeiro elemento do todo complexo
nados casos poderão ser quantificadas até mesmo circunstâncias ocultas
que forma o contrato, trazendo consigo fatores fonnativos da contratação
aos interessados, como ocorre nos negócios mortis causa, por força do
que atuam em conjunto com o texto do negócio jurídico. Se a dimensão
art. 1.899, do CC/2002.
textual da declaração negocial diz o essencial do que aconteceu, não diz
(52) No curso do raciocínio por concreção devem ser avaliadas como aconteceu, nem evidencia a plenitude da eficácia jurídica frente à
as condicionalidades hermenêuticas envolvendo o problema concreto e as dinâmica sociojurídica.
valorações oriundas do sistema jurídico, o que se realiza, :respectivamen- (58) Como já mencionado, as circunstâncias do caso devem ser
te, por meio dos postulados nonnativos aplicativos das circunstâncias do fixadas antes da interpretação de qualquer espécie de contrato, por meio
caso e da proporcionalidade, que assumem a condição de metanormas de prova ou confissão. Somente são válidas no processo hennenêutico
(nonnas de segundo grau), estabelecendo a estrutura de interpretação, aquelas que se mostrm·em reciprocamente reconhecíveis, ou seja, aquelas
compreensão e aplicação das nonnas contratuais, principalmente em rela- que os contraentes possam ou devam conhecer com o uso de uma dili-
çijo aos mencionados elementos fáticos e nonnativos que compõem a gência nonnal no exato contexto objetivo em que concluído o contrato e
relação contratual. desenvolvida a relação contratual.
(53) Enquanto o postulado das circunstâncias do caso age na (59) As circunstâncias do caso abarcam os elementos fáticos
concreção fática, quantificando aspectos da normatividade intrínseca da das negociações precedentes e das manifestações concomitantes e poste-
pactuação ao relacionar a declaração negocial com as condições fáticas riores à conclusão do contrato, sendo descabido o descarte de qualquer
objetivas em que a relação contratual nasceu e se desenvolveu, o postula- destes elementos em virtude de uma suposta co~tradição com o sentido
do da proporcionalidade atua na concreção normativa, desvelando a nor- literal da declaração negocial, uma vez que no âmbito da circularidade
matividade extrínseca do contrato ao relacionar o instrumento com os hermenêutica o sentido do texto contratual é pro_visório.
vetores jurídicos e axiológicos do ordenamento.
( 60) Em termos de estruturação, o postulado das circunstâncias
(54) A interpretação tem que ter em conta todas as circunstân- do caso se aproxima do dever de razoabilidade, especialmente quando
cias do caso, pois estas estabelecem critérios, modos de :raciocínio e ar:
gumentação que dão à declaração negocial a significação que esta possm
Interpretação Contratual 297
296 Felipe Kirclmer
este exige a relação das nonnas gerais com a individualidade do caso ção: (i) usos (att. 113); (ii) boa-fé objetiva (art. 113); (iii) finalidade eco-
concreto (desvelando a perspectiva que a nonna deve ser aplicada e em nômico-social (arts. 187 e 421); (iv) bons costumes (art. 187); (v) causa e
quais hipóteses o caso deixa de se enquadrar no elemento normativo, motivos detenninantes (art. 166, III); (vi) comum intenção (art. 1'12).
devido as suas especificidades) ou a vinculação da norma com a realidade (64) Há uma relação bilateral e dialética entre contrato e orde-
a que faz referência (exigindo um suporte empírico adequado ao enqua- namento jurídico, pois o pacto se insere na cadeia de regulação do Direi-
dramento legal e demandando uma relação congruente entre a medida to. Se é verdadeiro que o contrato deve respeitar as diretrizes nonnativas
adotada e o fim a que ela prete11de atingir). estatais, não é menos verdadeiro que os atos negociais tocam (e testam)
(61) As circunstâncias do caso apresentam-se tanto como enun- constantemente os limites fixados pelo sistema jurídico (algumas vezes
ciado normativo (constando expressamente na declaração negocial), redefinindo tais perímetros). O contrato integra o sistema jurídico não
quanto como situação de fato (que mesmo sem constar na declaração apenas porque dele recolhe pressupostos de validade, mas também por-
delineiam e fundamentam a relação contratual), mas, embora detenninem que o desenvolve na concretização dos vetores constitucionais da autode-
o significado das obrigações, possuem um conteúdo incompleto que deve terminação da pessoa e do espaço de liberdade de atuação econômica do
·••:"'
ser preenchido por detenninados elementos fáticos e nonnativos. indivíduo.
(62) Na dimensão linguística do contrato, a quantificação do ( 65) O contrato se integra corno um dos elementos de norrna-
contexto proporciona a concordância objetiva e intertextual das dispo- ção. da ordem j~r!dica. A pactuação não se processa em um espaço
sições contratuais, concedendo prevalência hermenêutica ao sentido vaz10 de normatividade, mas em um universo institucional que predis-
consoante ao comportamento das partes, ao conjunto das declarações põe forma e conteúdo da ação comunicativa dos contraentes, dotando
por elas emitidas e à ordenação externa derivada das leis. As palavras o contrato de um sentido a ser intersubjetivamente reconhecido. O
utilizadas na declaração negocial estão sempre relacionadas com as sistema jurídico não se posiciona fora ou "depois" do contrato, já que
circunstâncias fáticas ( variando conforme as circunstâncias em que este se situa no complexo normativo que é o Direito, e em nenhum
são formuladas) e normativas (sendo dependentes das normas estatais momento se desliga de seu sistema fundador. Nesses termos, a ordem
de natureza conceituai). Além disso, aquilo que se compreende sempre jurídica estatal interfere no conteúdo de significação do pacto, não
vem acompanhado de motivações, uma vez que os enunciados linguís- havendo razão ontológica para que a atividade hennenêutica contratual
ticos jamais têm seu pleno conteúdo de sentido formado a partir de si ignore esta dimensão.
mesmos, necessitando sempre da quantificação de uma dimensão rela- (66) Menos do que um radical dualismo, contrato e ordenamen-
cional e inte1iextual. to constituem-se em duas esferas de regulação que se comunicam e inter-
(63) Não sendo possível construir um catálogo exaustivo de to- penetram continuamente. A interpretação contratual depende de um ca-
dos os elementos fáticos que sejam hermeneuticamente relevantes, podem minhar pelo percurso que se projeta a partir da pactuação, do texto da
ser destacados alguns fatores que atribuem significado às circunstâncias declaração negocial até a Constituição, alcançando a totalidade significa-
do caso: (i) espécie e qualidade do objeto; (ii) lugar; (iii) tempo; (iv) qua- tiva do ordenamento jurídico de fonna sempre centrada no ato de auto-
lidade das partes; (v) relação pessoal dos contratantes; (vi) relação prévia nomia e nas suas condicionantes. Contudo, é de todo evidente que nesta
dos contratantes; (vii) usos e costumes; (viii) classes sociais e comerciais; atividade não há uma interpretação direta do ordenamento, mas apenas do
(ix) práticas comerciais; (x) modo de comportamento; (xi) circunstâncias ato negocial em relação ao sistema jurídico.
reciprocamente reconhecíveis; (xii) comportamento total das partes; (xiii) (67) Da complexa relação contrato-ordenamento se sobressa-
conjunto de declarações e/ou cláusulas entendidas como elementos de um em quatro aspectos relevantes para a hermenêutica contratual: (i) o or-
todo; (xiv) finalidade e/ou intuito prático visado com a contratação; (xv) denamento é elemento estruturante interno d~ contrato, agindo direta-
natureza e/ou matéria do negócio jurídico; (xvi) natureza do tipo legal de mente sobre seu conteúdo e significado hermenêutico, e não apenas
negócio jurídico; (xvii) modalidade de execução do contrato; (xviii) mo- e.amo elemento externo (limite); (ii) o ordenamento positivo não inte-
do de formação do contrato. Ademais, existem seis elementos fáticos ressa à interpretação contratual apenas no caso de lacunas a serem su-
expressamente nominados no CC/2002 que desempenham a mesma fun-
Interpretação Contratual 299
298 Felipe Kirclmer
dível para a compreensão da complexidade normativa presente na situa-
pridas com a utilização de nonnas supletivas, mas sempre; (iii) o siste- ção objetiva que fonna o contrato, inclusive no que respeita ao combate
ma normativo (e principalmente seus vetores axiológicos) sempre se faz de antinomias das disposições internas do contrato e destas com as nor-
presente na circularidade hennenêutica e na pré-compreensão do intér- mas estatais.
prete; (iv) o ordenamento detennina premissas a serem observadas na (73) Com o reconhecimento da unidade hennenêutica entre sis-
atividade hermenêutica. tema e contrato se alcança a real condição deste como instrumento nor-
(68) A doutrina endossa uma tríplice caracterização do dever da mativo. No plano prático, a noção de unidade se relaciona com a dinâmi-
proporcionalidade, que atua nos seguintes exames: (i) adequação da rela- ca parte-todo-parte presente na circularidade hennenêutica, indicando a
ção meio e fun; (ii) necessidade do meio escolhido; (iii) proporcionalida- complexa inter-relação que os textos nonnativos guardam uns com os
de entre o ônus imposto e o beneficio trazido. outros. Este aspecto redunda na chamada inseparabilidade da nonnativi-
(69) Como os motivos (circunstâncias), os meios (tipicidade e dade das disposições jurídicas, a qual indica que a disposição contratual
espécie contratual) e os fins (adimplemento) são fatores invariavelmente somente se esclarece na totalidade do sistema, pennanecendo obscura e
presentes nos atos que cuhninam na fonnalização do contrato, a propor- ininteligível quando analisada à parte dos demais elementos nonnativos
cionalidade atua como critério de adequação do sentido entre estes ele- que compõem a situação objetiva complexa, por mais claro que seja o seu
mentos. O postulado ministra parâmetros para que o sujeito cognoscente enunciado.
formule juízos acerca das intervenções existentes na bilateralidade da (74) É a partir da noção de hierarquia interna que a doutrina ma-
relação contrato-ordenamento, coordenando a forma como a regulamen- joritária entende que a influência do sistema jurídico no campo da herme-
tação privada se relaciona com o sistema e com os efeitos jw-ídicos ema- nêutica contratual se limita à imposição de limites. Contudo, a correição
nados deste amálgama entre autonomia e heteronomia. desta premissa não invalida a pretensão de que a relação entre os planos
(70) O postulado da proporcionalidade indica que a relação da heteronomia e da autonomia evolua para uma fonna verdadeiramente
contratual pode ser eficiente, atingindo econômica e juridicamente o dialógica.
seu objetivo específico, mas pode não ser proporcional quanto aos fins (75) A característica da ordenação indica tanto que o contrato
colimados pelo sistema jurídico ou em razão da posição ocupada por está ordenado com/pelas diretrizes legais, quanto o fato de que as n011nas
um dos contratantes. Assim, a utilização do postulado pennite que a da declaração negocial se encontram dispostas escalonadamente, com a
hermenêutica contratual transcenda à análise formalista do tráfego prevalência teleológica de algumas sobre outras.
jurídico (dimensão econômica), auxiliando na manutenção do equilí- (76) É a abertura do sistema jurídico que pe1mite o alcance do
brio do deslocamento patrimonial, sem deixar de considerar a relevân- amálgama normativo entre contrato e ordenamento no entrecruzar da
cia do ato de autonomia. autonomia com a heteronomia. O contrato é complementado hermeneuti-
(71) Não é dado ao intérprete impor os seus valores a pretexto camente pelos vetores materiais e axiológicos presentes no ordenamento,
de avaliar a proporcionalidade de um contrato. Mesmo à luz de uma mas também resta por completar esse mesmo ordenamento, na medida
Constituição que mostra vocação dirigente, o controle de proporcionali- em que desenvolve e concretiza os vetores constitucionais da autodeter-
dade deve respeitar a margem de liberdade relativa ao poder de confor- minação da pessoa e do espaço de liberdade de atuação econômica do
mação dos indivíduos. Visando coibir excessos, a proporcionalidade con- indivíduo, como antes salientado.
trola o uso da liberdade de que gozam os particulares para confonnarem (77) A atividade hennenêutica contratual contempla uma di-
suas relações, embora não substitua o contratante pelo intérprete. mensão relativa à ordenação axiológica ou teleológica dos elementos
(72) A dialeticidade hermenêutica entre contrato e ordenamento nonnativos interpretados, pois, como toda nonna possui natureza valora-
encontra lastro nas características do pensamento sistemático, as quais tiva, ao realizar uma hierarquização das disposições contratuais o intér-
criam pontes pennissivas do diálogo entre os níveis de heteronomia e prete está, mesmo que por via reflexa, fazendo uma afinnação sobre o
autonomia. Não obstante a necessária utilização do pensamento tópico conteúdo axiológico desse sistema.
pelo método concretista, o pensamento sistemático se mostra imprescin-
300 Felipe Kirchner
. Luis Renato. Aulas ministradas na cadeira Interpretação dos Contratos _ _. Hermenêutica em Retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática.
(DIRP136), proferida em 2006/I, no PPGDir/UFRGS, 2006. Petrópolis: Vozes, 2007c. v. 3 .
. Aulas ministradas na cadeira Tópicos Avançados de Direito Civil Cons- _ _ . Poema y Dialogo: reflexiones em tomo a uma selección de textos de
titucional II, proferida em 2008/1, no PPGIPUCRS. 2008. Ernst Meister. ln: GADAMER, Hans-Georg. Poema y Dialogo: ensayos sobre
. Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio los poemas alemanes más significativos dei siglo XX. Barcelona: Gedisa, p. 142-
de Janeiro: Forense, 2001b, 165 p. 155, 1993a.
FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contrato: conceito, fontes, formação. _ _. Sentido y Ocultación de Sentido em Paul Celan. ln: GADAMER, Hans-
Coimbra: Ahnedina, 2005. Georg. Poema y Dialogo: ensayos sobre los poemas alemanes más significativos
_ _. Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico. Coimbra: Almedi- dei siglo XX. Barcelona: Gedisa, p. 118-129, 1993b.
na, 1992. _ _. Teoria, Técnica e Prática: a tarefa de uma nova antropologia. ln: GA-
FORGIONI, Paula. Contrato de Distribuição. São Paulo: Revista dos Tribu- DAMER, Hans-Georg; VOGLER, P. (Orgs.). Nova Antropologia: o homem em
nais, 2005. sua existência biológica, social e cultural. (Antropologia biológica), São Paulo:
. Interpretação dos Negócios Empresariais. ln: FERNANDES, Wanderley. Universidade de São Paulo, p. 1-19, 1977a. 1.v.
Contratos Empresariais: fundamentos e princípios dos contratos empresariais. _ _. Considerações Finais. ln: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, P.
São Paulo: Saraiva, p. 77-155, 2007. (Orgs.). Nova Antropologia: o homem em sua existência biológica, social e
FRANZESE, Lucio. II Contratto oltre Privato e Pubblico. Padova: Casa cultural. v. 7 (antropologia filosófica), São Paulo: Universidade de São Paulo, p.
Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 1998. 276-289, 1977b.
FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 3. ed. São Paulo: . Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Malheiros, 2002. 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2005, v. l.
_ _. A Melhor Interpretação Constitucional "Versus" a Única Resposta Corre- . Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
ta. ln: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2004. v. 2.
Malheiros, 2005. _ _. Yo y Tu, la Misma Alma. ln: GADAMER, Hans-Georg. Poema y Dialo-
_ _. Hermenêutica Jurídica: o juiz só aplica a lei injusta se quiser. Revista da go: ensayos sobre los poemas alemanes más significativos del siglo XX. Barce-
Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS), n. 40, lona: Gedisa Editorial, p. 57-61, 1993c.
p. 39-52, 1987. GAMBINO, Francesco. L'Interpretazione del Contratto in Emílio Betti. ln: IRTI,
GACKI, Sérgio Ricardo Silva. Perspectivas do Diálogo em Gadamer: a Questão Natalino (Org.). L'lnterpretazione del Contratto nella Dottrina Italiana.
do método. Cadernos Instituto Humanitas Unisinos, n. 16, p. 2-28, 2006. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), p. 233-248, 2000, 641 p.
GADAMER, Hans-Georg. A Razão na Época da Ciência. Rio de Janeiro: GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da
Tempo Brasileiro, 1983. Igualdade: o direito como instrumento da transformação social, a experiência
_ _. La Dialéctica de Hegel: cinco ensayos hennenéuticos. Madrid: Edicio- dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
nes Cátedra, 1994. GORLA, Gino. EI Contrato: exposición general. Barcelona: Bosch Cada Edi-
torial, 1959. t. l.
===·
116 p.
. EI Giro Hermenéutico. Madrid: Rogar, 1998a.
EI Problema de la Conciencia Histórica. 2. ed. Madrid: Tecnos, 2003. GORDLEY, James. The Philosophical Origins os Modem Contract Doctrine.
Nova Iorque: Oxford University Press, 1991.
. Emílio Betti e a Herança Idealista. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 1, GRASSETTI, Cesare. L'Interpretazione dei Negozi9 Giuridico: con particola-
São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1996. re riguardo ao contratti. Padova: Casa Editríce Dott. Antonio Milani (CEDAM),
1983, 273 p .
===· . Ermeneutica e Metodica Universale. Torino: Marietti, 1973.
Gadamer ln Conversation. New Haven: Yale University Press, 2001.
_ _. Herança e Futuro da Europa. Lisboa: Edições 70, 1998c.
GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação e
crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
Interpretação Contratual 307
306 Felipe Kirchner
LATOUR Bruno. Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia simétrica.
. Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Editora 34, [s.d.].
Paulo: Malheiros, 2003. LOPES, Ana Maria D'Ávila. A Hermenêutica Jurídica de Gadamer. Revista de
___ ; FORGION1, Paula. O Estado, a Empresa e o Contrato. São Paulo: Informação Legislativa, n. 145,jan./mar., p. 101-112, 2000.
Malheiros, 2007 . KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
. Prefácio. ln: ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da LAMEGO, José. Hermenêutica e Jurisprudência. Lisboa: Fragmentos, 1990.
definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, p. 17-18, LARENZ, Karl. Derecho Civil: parte general. Madrid: Revista de Derecho Pri-
2006. vado, 1978.
GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo: _ _. Metodologia da Ciência do Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste, 1989.
U nisinos, 1999. LINGE, David. E. Introduction to Gadamer's Philosophical Hermeneutics. ln:
_ _. The Philosophy of Gadamer. Montreal: McGill-Queen's University GADAMER, Hans-Georg. Philosophical Hermeneutics. Berkeley: University
Press, 2003. of Califomia Press, 1977.
GROSSI, Paolo. Scienza Giuridica Italiana: un profilo storico 1860-1950. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos Relacionais e Direito do Con-
Milano: Giuffré, 2000. sumidor. São Paulo: Max Limonad, 1999.
HÃBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos MACNEIL, Ian. The Relational Theory os Contract: selected works of Ian
Intérpretes da Constituição: contribuição para_a interpr_etação pluralista e "pro- Macneil. Londres: Sweet & Maxwell, 2001.
cedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antomo Fabns, 1997. MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Interpretação do Negócio Jurídico:
HABERMAS, Jurgen. Sobre "Verdade e Método" de Gadamer. ln: HABER- panorama geral e a atuação do princípio da conservação. Dissertação apresentada
MAS, Jurgen. Dialética e Hermenêutica. Porto Alegre: LP&M, 1987. na Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, 2003.
HECK, Luís Afonso. Apresentação. ln: CACHAPUZ, Maria Claudia. Intimid~- MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor.
de e Vida Privada no Novo Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fabns, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
p. 31-38, 2006 . MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista
. Aulas ministradas na cadeira Teoria da Argumentação Jurídica e a dos Tribunais, 2000, 544 p.
Questão da Fundamentação Jurídica (DIRP118), proferida em 2007 /I, no . Aulas ministradas na cadeira Fundamentos Culturais do Direito Pri-
PPGDir/UFRGS, 2007a. vado (DIRPI00), proferida em 2008/I, no PPGDir/UFRGS, 2008.
. Aulas ministradas na cadeira Teoria da Argumentação Jurídica de _ _. O Direito Privado como um 'Sistema em Construção': as cláusulas gerais
Robert Alexy (DIRP146), proferida em 2007/II, no PPGDir/UFRGS, 2007b. no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio UFRGS, Porto Alegre, v. 15, p. 129-154, 1998 .
Antonio Fabris, 1991. . Novas reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. Estu-
. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Ale- dos de Direito do Consumidor: separata n. 7. Coimbra: Faculdade de Direito de
manha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. Coimbra, 2005a.
HOMMERDING, Adalberto Narciso. O Parágrafo 3° do Artigo 515 do Código _ _. O Método da Concreção e a hlterpretação dos Contratos: primeiras notas
de Processo Civil: uma análise à luz da filosofia hermenêutica (ou hermenêutica de uma leitura suscitada pelo Código Civil. ln: DELGADO, Mário Luiz;
filosófica) de Heidegger e Gadamer. Revista da Associação dos Juizes do Rio ALVES, Jones Figueirêdo (Orgs.). Novo Código Civil: questões controvertidas.
Grande do Sul (AJURIS), n. 91, p. 9-57, 2003. São Paulo: Método, 2005b. v. 4.
IBBETT, John. Gadamer: application and history of ideas. ln: History of Politi- . O Novo Código Civil Brasileiro: em busca da 'Ética da Sihiação'. Revis-
cal Thought, v. vm. n. 3, Winter, 1987. ta da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 20, p. 211-260, 2001.
IRTI, Natalino. Letture Bettiane Sul Negozio Giuridico. Milano: Giuffré, _ _. O Pacto no "Sertão" Roseano: os pactos, os contratos, o julgamento e a
1991. lei 2007, no prelo.
. Principi e Problemi di Interpretazione contrattuale. ln: IRTI, Natalino _ _. O Sistema na Codificação Civil Brasileira: de Leibniz a Teixeira de Frei-
(Org.). L'Interpretazione dei Contratto nella Dottrina Italiana. Padova: Casa tas. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 17, 1999.
Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), p. 609-641, 2000, 641 p. _ _. Prefácio. ln: CACHAPUZ, Maria Claudia. Intimidade e Vida Privada
. Testo e Contesto. Padova: CEDAM, 1996. no Novo Código Civil Brasileiro. Pmio Alegre: Fabris, p. 31-38',-2006.
Interpretação Contratual 309
308 Felipe Kirchner .
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Aplicação dos Princípios da Proporciona-
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Porto Alegre: lidade e da Razoabilidade no Direito Civil. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro,
Globo, 1925. V. 9, 11. 33, p. 177-197, 2006.
MEGALE, Maria Helena Damaceno e Silva. A Teoria da Interpretação Jurídica: ORAA, José Maria Aguirre. Pensar con Gadamer y Habermas. Revista Portu-
um diálogo com Emílio Betti. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 91, guesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga,
p. 145-169,jan./jun. 2005. p. 489-507,jul./dez. 2000.
MEIRELES, Ana Cristina Pacheco Costa Nascimento. A Atualidade da Herme- OST, François. Contar a Lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo:
. nêutica de Emílio Betti. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito Unisinos, 2004.
da Universidade Federal da Bahia, n. 11,jan./dez. 2004. PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1997.
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle da Constitucio- PASQUALINI, Alexandre Correa da Câmara. Hans Georg Gadamer. Texto
nalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1999. oriundo de seminário ministrado no Programa de Pós-Graduação da Pontifícia
MENDES, Sérgio da Silva. Hermenêutica da Criação e dos Esquecimentos: o Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), 2005.
Holzwege do mandado de injunção. Revista Forense, v. 390, p. 177-211, _ _. O Papel Sistemático Transformador da Hermenêutica Jurídica Es-
mar./abr. 2007. pecialmente no Direito Público. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade
MENEZES CORDEIRO. Tratado de Direito Civil Português. 2. ed. Coimbra: de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Pmto Alegre,
Almedina, 2000. t. I. 1999. 215 p.
MENKE, Fabiano. A Interpretação das Cláusulas Gerais: a subsunção e a con- PECZENIK, Aleksander. Ou Law and Reasou. Dordrecht: Kluwer Academic
creção dos direitos. Revista da Ajuris, n. 103. Publishers, 1989, 442 p.
MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Interpretação e Integração dos PERLINGIERI, Pietro. Equilíbrio Nonnativo e Principio di Proporzionalitá nei
Negócios Jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. Contratti. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA, v. 12,
MÕLLER, Josué Emilio. A Aplicação da Hermenêutica Filosófica Contribuindo p. 131-151, out./dez. 2002.
para a Efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais. Revista da Procurado- _ _. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed.
ria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v.30, n. 63, p. 69-98,jan. 2006. Rio de Janeiro: Renovar, 199.7.
MORATALLA, Domingos Agustín. Historia y Filosofia em H. G. Gadamer. ln: PESSOA, Leonel Cesarino. A Teoria da Interpretação Jurídica de Emílio
GADAMER, Hans-Georg. El Problema de la Conciencia Histórica. 2. ed. Betti. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, 119 p.
Madrid: Tecnos, p. 9-37, 2003. _ _. A Teoria da Interpretação Jurídica de Emilio Betti: dos métodos interpre-
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Lisboa: Europa-América, 1982. tativos à teoria hermenêutica. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 6, p. 51-
. Da Necessidade de um Pensamento Complexo. ln: MARTINS, Francisco 78, 2001.
Menezes; SILVA, Juremir Machado da (Orgs). Para Navegar no Século XXI. PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra:
Porto Alegre: Sulina e Edipucrs. 2000. Disponível em: <http://geccom. Almedina, 1982.
incubadora.fapesp.br/portal/tarefas/projetos-em-multimeios-i-e-ii-puc-sp/textos- PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsói,
uteis/pensamentocomplexo.pdt> Acesso em: 28 jan. 2008. 1954. t. 3.
. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. _ _. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1962. t. 38.
- - . O Pensamento Complexo, Um Pensamento que Pensa. ln: MORIN, _ _. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1972. t. 56.
Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: POTHIER, Robert Joseph. Tratado das Obrigações. Campinas: Servanda,
Petrópolis, p. 197-213, 2000. 2001, 788 p.
MUSETTI, Rodrigo Andreotti. A Hermenêutica Jurídica de Hans-George Gada- RAMOS, Ana López. H. G. Gadamer. ln: Revista Eletrônica A Parte Rei. n.
mer e o Pensamento de São Tomás de Aquino. Revista do Centro de Estudos 22. Disponível em: <http://www.aparterei.com> Acesso em: 25 set. 2007.
Judiciários, v. 7, p. 151-155, 1999. RAVA, Ben-Hur. A Crise do Direito e do Estado comQ Crise Hennenêutica Revista
NEVES, António Castanheira. Questão-de-Facto, Questão-de-Direito ou O da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS), n. 101,
Problema Metodológico da Juridicidade: ensaio de uma resposta crítica. p. 23-43, mar. 2006.
Coimbra: Almedina, 1967. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia, v. 6, São Paulo:
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Paulus, [s.d.]. ,.
Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001.
Inteipretação Contratual 311
310 Felipe Kirchner
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A Obrigação como Processo. São Paulo:
REALE, Miguel. A Filosofia em Machado de Assis. ln: O Estado de São Paulo: Bushatsky, 1976.
São Paulo, 7.dez.1980. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/media/ SILVA, Maria Luísa Portocarrero. Razão e Memória em H. G. Gadamer. Revis-
prosa44a.pdf>. Acesso em: 18 maio 2008. ta Portuguesa de Filosofia. v. 56. fase. 3-4. Braga: Faculdade de Filosofia de
_ _. A Teoria da Interpretação Segundo Tullio Ascarelli. ln: REALE, Miguel. Braga, p. 333-344, jul./dez. 2000a.
Questões de Direito. São Paulo: Saraiva, p. 1-16, 1981a. SILVA, Rui Sampaio. Gadamer e a Herança Heideggeriana. Revista Portuguesa
_ _. Característicos do Contrato de Concessão Comercial. ln: REALE, Mi- de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, p. 521-
guel. Questões de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, p. 183-189, 1997a. 541,jul./dez. 2000b.
_ _. Diretrizes de Hermenêutica Contratual. ln: REALE, Miguel. Questões de SILVA, Sergio André R. G. da. A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Her-
Direito Privado. São Paulo: Saraiva, p. 1-6, 1997b. menêutica Filosófica de Hans Georg Gadamer. Revista Tributária de Finanças
_ _. Experiência e Cultura. Campinas: Bookseller, 1999. Públicas, n. 64, p. 276-295, set./out. 2005.
_ _. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SOMBRA, Thiago Luís Santos. A Eficácia dos Direitos Fundamentais nas
_ _. O Direito como Experiência. São Paulo, 1968. Relações Jurídico-Privadas: a identificação do contrato como ponto de encon-
_ _ . O Projeto de Código Civil: situação atual e seus problemas fundamen- tro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.
tais, 1986. STEIN, Emildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre:
_ _. Processo Legislativo e Normas de Interpretação Autêntica. ln: REALE, EDIPUCRS, 2004.
Miguel. Questões de Direito. São Paulo: Saraiva, p. 57-65, 1981b. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração
_ _. Teoria e Prática do Direito: concubinato e sociedade concubinária. São hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
Paulo: Saraiva, 1984. 2002.
RECASÉNS SICHES, Luis. La Nueva Filosofia de la lnterpretación dei De- VILA-CHÃ. João J. Hans-Georg Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia,
recho. 5. ed. México: Porrúa, 1979. v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, p. 299-318, jul./dez. 2000.
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. A Constitucionalização do Direito Civil. Boletim VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e lnterpretazione: linea-
da Faculdade de Direito, Coimbra, v. LXXIV, p. 729-755, 1998. menti di teoria ermeneutica dyl diritto. Roma: Laterza, 1999, 480 p.
_ _. O Problema do Contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio WARA T, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. v.1, Porto Alegre: Sérgio
da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999. Antonio Fabris, 1994.
ROCHA, Acílio da Silva Estanqueiro. O Ideal da Europa: Gadamer e a herme- ZACCARIA, Giuseppe. Questioni di Interpretazione. Padova: Casa Editrice
nêutica da alteridade. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Dott. Antonio Milani (CEDAM), 1996, 269 p.
Faculdade de Filosofia de Braga, p. 319-332,jul./dez. 2000. ZANCHIM, Kleber Luis; ARAÚJO, Paulo Dóron Rehder de. Interpretação Con-
ROHDEN, Luiz. "Ser que pode ser compreendido é linguagem": a ontologia tratual: o problema do processo. ln: FERNANDES, Wanderley. Contratos Em-
hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, presariais: fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo:
fase. 3-4, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, p. 543-557,jul./dez. 2000. Saraiva, p. 159-202, 2007.
ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988. ZANITELLI, Leandro Martins. Tópica e Pensamento Sistemático: convergência
SANTA MARIA, Jorge Lopez. Interpretación y Calificación de los Contratos ou ruptura? ln: MARTINS-COSTA, Judith. A Reconstrução do Direito Priva-
frente ai Recurso de Casación en el Fondo en Materia Civil. Chile: Jurídica do. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 121-144, 2002.
de Chile, 1966, 133 p. ZITSCHER, Harriet Christiane. Introdução ao direito civil alemão e Inglês.
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e Belo Horizonte: Dei Rey, 1999. 348 p.
direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direi~
tos sociais nas relações entre particulares. ln: SARMENTO, Galdino; GALDI-
NO, Flávio (Orgs.). Direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SCALFI, Gianguido. La Qualificazione dei Contratti Nell'Interpretazione.
Milano: Instituto Editoriale Cisalpino, 1962.
SCOGNAMIGLIO, Claudio. Interpretazione dei Contratto e Interessi dei
Contraenti. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), Padova,
1992.
ÍNDICE ALFABÉTICO
e
• Conclusão ....................................................................................................... 281
• Concreção fática da interpretação contratual .................................................. 213
• Concreção normativa da interpretação contratual... ........................................ 246
• Concreção. Hermenêutica e concreção ........................................................... 173
• Concreção. Raciocínio jurídico por concreção ............................................... 175
• Contrato. Hermenêutica contratual ................................................................... 84
Clarice von Oertzen de Araujo Eduardo Ely Mendes Ribeiro Florence Cronemberger Haret Dr. em Direito Constitucional. Prof. Titular da Fa-
Ora. em Direito Tributário pela USP. Graduada em culdade de Direito do Recife - UFPE. LO. em Direi-
Ora. e M.ª em Direito pela PUC/SP. Graduada em Dr. em Antropologia Social. Me. em Filosofia. Gra- to Constitucional - UERJ. LO. em Teoria do Es-
Direito e LO. em Direito. duado em Filosofia. Direito. Prof.ª conferencista.
tado - UFPE. Membro da Academia Brasileira
Cláudia Viana Elizabeth Accioly Francis Kanashiro Meneghetti de Letras Jurídicas e da Academia Brasileira de
Ora. em Direito Público pela Faculdade de Direito Ora. em Direito Internacional e Diplomada em Dr. em Educação. Me. e graduado em Adminis- Ciências Morais e Políticas. Miembro dei Insti-
da Universidade da Corunha. Prof.ª da Escola Su- Estudos Europeus pela Faculdade de Direito de tração. Prof. Universitário. tuto Ibero-Americano de Derecho Constitucional -
perior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado Lisboa. Prof.ª Universitária. Adv. e consultora ju- Francisco Carlos Duarte México. Miembro dei Consejo Asesor dei Anuario
e do Ave. rídica internacional. Ibero-Americano de Justicia Constitucional, Cen-
Dr. pela Universidade Técnica de Lisboa e pela Uni- tro de Estudios Políticos y Constitucionales (CEPC)
Christian Baldus Eloise Helena Livramento Dellagnelo versidad de Granada - Espanha. Dr. em Ciências Ju- - Madrid. Prof. Universitário.
Prof. da Faculdade de Direito da Ruprecht-Karls-Uni- Pós-Ora. pela Universidade de Essex - Inglaterra. rídicas e Sociais. Me. em Direito. Graduado em Di-
versitãt Heidelberg, Deutschland (Alemanha). Direc- Ora. em Engenharia de Produção. M.ª em Adminis- reito. Proc. do Estado do Paraná. Prof. Universitário. James José Marins de Souza
tor no lnstitut für geschichtliche Rechtswissenschaft tração. Bela. em Administração e em Letras - Por- Geraldo Balduíno Horn Pós-Dr. em Direito do Estado pela Universitat de
"Instituto para a Ciência Jurídica e Jurisprudencial tuguês e Inglês. Bolsa sanduíche na Escola de Ad- Barcelona - Espanha. Dr. em Direito do Estado
Dr. em Filosofia da Educação. Me. em Educação. pela PUC/SP. Professor.
Histórica": História do Direito; Direito romano; Direi- ministração Pública da University of Southern Cali- Esp. em Antropologia Filosófica. Graduado em Fi-
to civil (Direito das coisas; Direito das sucessões); fornia (USC) em Los Angeles. Prof.ª Universitária. losofia. Prof. Universitário. Jan-Michael Simon
Direito alemão e europeu e Direito comparado. Everton das Neves Gonçalves Jurista pela Faculdade de Direito de Rheinische
Germano André Doederlein Schwartz
Claudia Maria Barbosa Dr. em Derecho Internacional pela Universidad de Friedrich-Wilhelms-Universitat Bonn - Alemanha:
Dr., Me. e graduado em Direito. Estágio doutoral Direito penal, Direito processual penal, Direito in-
Ora., M.ª e Graduada em Direito. Prof.ª Universitá- Buenos Aires. Dr. e Me. em Direito, área de con- sanduíche na Université Paris X-Nanterre. Estágio
ria. Membro do Instituto Latinoamericano para una centração em Instituições Jurídico-Políticas. Gra- ternacional penal e Criminologi~.
Pós-Doutoral na University of Reading (UK). Prof.
Sociedad y un Derecho Alternativos - ILSA, com duado em Ciências Econômicas e em Direito pela Universitário.
sede na Colômbia. Consultora ad hoc do MEC. Faculdade de Direito. Professor.
Interpretação Contratual 321
320 Kirclmer
Luís Alexandre Carta Winter Márcio Bambirra Santos
Jane Lúcia Wilhelm Berwanger José Renato Gaziero Cella Dr. em Integração da América Latina. Me. em Inte- Dr. em Administração. Me. em Economia. Professor,
gração Latino-americana. Esp. em Filosofia da Edu- Administrador de Empresas, Economista, Esp. em
Doutora em Direito Previdenciário. M.ª em Direitos Dr. em Filosofia e Teoria do Direito. Me. em Di- cação. Graduado em Direito. Prof. Universitário. "Computação" e "Política Científico-Tecnológica".
sociais e Políticas Públicas. Prof.ª Universitária. reito do Estado. Pesquisador da Universidad de
Zaragoza - Espanha. Prof. Universitário. Luis Fernando Lopes Pereira Mareio Pugliesi
João Bosco Lee Dr. e LO. em Direito. Dr. em Filosofia. Dr. em Edu-
Pós-Dr. pela Università degli Studi di Firenze -
Dr. em Direito Internacional pela Université de José Renato Martins Itália. Dr. em História Social. Me. em História. cação. Bel. em Direito. Graduado em Filosofia.
Paris li. Me. em Direito Internacional Privado e do Dr. em Direito Penal. Me. em Direito Constitucio- Esp. em Pensamento Contemporâneo e em Histó- Prof. Universitário.
Comércio Internacional pela Université de Paris li. nal. Bel. em Direito. Prof. Universitário. ria e Cidade. Graduado em Direito e em História. Marcos Kahtalian
Graduado em Direito. Prof. Universitário. Prof. Universitário.
José Ricardo Vargas de Faria Me. em Multimeios pela Unicamp. Pós-graduado
João Paulo F. Remédio Marques Doutorando pelo Instituto de Pesquisa e Plane- em Administração de Marketing. Prof. de gradua-
Luísa Neto
Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni- jamento Urbano e Regional. Me. em Administra- ção e pós-graduação.
Ora. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Coimbra e Prof. Universitário da ção e Eng. Civil. Prof. Universitário.
versidade do Porto - Direito constitucional - Di- Marcos Wachowicz
mesma instituição.
José Sérgio da Silva Cristóvam reito biomédico e Direito da medicina. Prof.ª da Dr. em Direito. Me. em Direito pela Universidade
João lbaixe Junior Dr. em Direito Administrativo pela UFSC, com es- Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Clássica de Lisboa - Portugal. Graduado em Direi-
Me. em Direito. Pós-graduado em Filosofia. Pres. tágio de doutoramento na Universidade de Lisboa. Luiz Antonio Câmara to. Prof. Universitário.
do CEADJUS. Me. em Direito Constitucional pela UFSC. Advoga- Dr. e Me. em Direito. Prof. Universitário em cur- Margarida Azevedo Almeida
Jorge Cesar de Assis do publicista. Professor em cursos de graduação e sos de graduação, especialização e mestrado. Ooutoranda pela Faculdade de Direito da Univer-
pós-graduação em Direito. sidade de Coimbra: Direito privado. M.ª Prof.ª do
Graduado em Direito e em Curso de Formação de Luiz Carlos de Souza
Oficiais pela Academia Policial Militar do Guatupê. Joseli Nunes Mendonça Me. em Ciências Contábeis e Atuariais. Esp. em Instituto de Contabilidade e Administração do
Prom. da Justiça Militar. Prof. da Escola Superior Ora., M.ª e Graduada em História. Prof.ª Universitária. Administração Financeira e em Política e Estraté- Porto, Instituto Politécnico do Porto.
do Ministério Público da União. Membro do Mi- gia. Prof. Universitário. Margarida da Costa Andrade
Julimar Luiz Pereira
nistério Público da União.
Me. em Educação Física pela UFPR. Esp. em Luiz Henrique Sormani Barbugiani Ooutoranda pela Faculdade de Direito da Univer-
José Antonio Savaris Treinamento Desportivo. Graduação em Lic. em Me. em Direito pela USP. Pós-graduado lato sensu sidade de Coimbra: Direito privado. M. ª Prof.ª da
Dr. em Direito da Seguridade Social. Me. em Di- Educação Física. Prof. Universitário. em Direito Processual Civil, Direito Material e Pro- Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
reito Econômico e Social. Juiz Federal. cessual do Trabalho, Direito Tributário e Direito Sa- Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha
Lafaiete Santos Neves nitário. Graduado em Direito pela UNESP, com ha-
José Augusto Delgado Dr. em Desenvolvimento Econômico. Me. e gradua- bilitação especial em Direito Empresarial. Membro Pós-doutoranda em Direito. Ora. em Direito Cons-
Esp. em Direito Civil e Comercial. Bel. em Direito. do em História. Prof. Universitário. Pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social titucional. M.ª em Ciências Jurídico-Políticas. Esp.
Cesarino Junior, Seção brasileira da "Société lnter- em Direito Constitucional. Prof.ª Universitária.
José Carlos Couto de Carvalho Lafayette Pozzoli nationale de Oroit du Travail et de la Sécurité Socia- Mário João Ferreira Monte
Subprocurador geral da Justiça Militar aposenta- Pós-Dr. pela Universidade La Sapienza - Roma. le" - SIDTSS. Membro do Instituto Brasileiro de
do. Prof. Universitário. Dr. e Me. em Filosofia do Direito. Graduado em Dr. em Ciências Jurídico-Criminais pela Universi-
Ciências Criminais - IBCCRIM. Membro do Insti-
Direito. Adv. Prof. Universitário. tuto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP. dade do Minho. Me. e Pós-graduado em ciências
Jose Edmilson de Souza Lima jurídico-criminais. Prof. Universitário.
Dr. em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Me. Lauro Brito de Almeida Manuel da Costa Andrade
Masako Shirai
em Sociologia Política. Dr. e Me. em Controladoria e Contabilidade pela Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Univer-
USP. Prof. Adjunto da UFPR. sidade de Coimbra: Direito público - Direito penal e Ora., M.ª e Graduada em Direito. Membro da Co-
José Elias Dubard de Moura Rocha Direito processual penal. Prof. Catedrático da Fa- missão de Exame da Ordem da OAB-SP e da Co-
Dr., Me. e graduado em Direito pela UFPE. Prof. Liana Maria da Frota Carleial culdade de Direito da Universidade de Coimbra. missão de Ensino Jurídico da OAB-SP.
Universitário. Pós-Ora. pela U!]iversité Paris XIII, no Centre de
Manuel Martínez Neira Massimo Meccarelli
José Engrácia Antunes Recherche en Economie lndustrielle (CREI) -
França. Ora. e M.ª em Economia. Graduada em Dr. em Direito. Prof. Universitário na Universidade Prof. Catedrático de História do Direito Medieval e
Dr. em Direito pelo Instituto Europeu de Florença: Ciências Econômicas. Prof.ª Universitária. Carlos Ili - Madrid. Moderno. Coord. do Programa de Doutorado em
Direito privado. Prof. da Faculdade de Direito da Mara Regina de Oliveira História do Direito da Università degli Studi di
Universidade Católica Portuguesa, Centro Regio- Lucas Abreu Barroso Macerata - Itália.
nal do Porto. Dr. em Direito. Prof. da Universidade Federal do Ora., M.ª e Bela. em Direito. Prof." Universitária.
Melissa Folmann
José Henrique de Faria Espírito Santo. Marcelo Pereira de Mello
M.ª em Direito pela PUCPR. Diretora Científica do
Dr. em Ciência Política. Me. em Sociologia. Gra-
Pós-Dr. em Labor Relations pelo lnstitute of Labor Lúcia Helena Briski Young duado em Ciências Sociais. Prof. Universitário. IBDP. Prof.ª da Graduação e Pós-graduação em Direi-
and Industrial Relations - ILIA - University of Michi- Esp. em Auditoria e Controladoria Interna, Gestão to Previdenciário e Proc. Previdenciário. Advogada.
gan (2003). Dr. e Me. em Administração. Gradua- Empresarial e Direito, Direito Tributário e Meto- Marcelo Weitzel Rabello de Souza
Néfi Cordeiro
ção em Ciências Econômicas. Prof. Universitário. dologia do Ensino Superior. MSc. em Coimbra - Portugal. Pres. da Associa-
ção Nacional do Ministério Público. Subprocura- Dr., Me. e graduado em Direito. Graduado em Enge-
José Ramón Narváez Luciano Salamacha . dor geral da Justiça Militar em Brasília. nharia e Oficial Militar pela Academia Policial Mili-
Dr. em Teoria e História do Direito pela Universi- Dr. em Administração. Me. em Engenharia de tar do Guatupê. Oes. Federal. P~o!. Universitário.
dade de Florença. Prof. associado da Univer- Produção. Pós-graduado em Gestão Industrial e
sidade Nacional Autônoma do México. MBA em Gestão Empresarial. Prof. Universitário.
Interpretação Contrahial 323
322 Felipe Kircbner
Salvador Antonio Mireles Sandoval Valdir Fernandes
Nuno M. Pinto de Oliveira Paulo Nalin Pós-Dr. pelo Center for the Study of Social Chan- Pós-Dr. em Saúde Ambiental. Dr. em Engenharia
Dr. em Direito pelo Instituto Europeu de Florença: Dr. em Direito das Relações Sociais. Pesquisa em ge, New School for Social Research. Dr. e Me. Ambiental. Me. em Engenharia Ambiental. Gradua-
direito privado, direito das obrigações e dos con- nível de Doutorado na Università degli Studi di Ca- em Ciência Política pela University of Michigan. do em Ciências Sociais. Academic Partner do pro-
tratos. Prof. da Escola de Direito da Universidade merino. Me. em Direito Privado. Prof. Universitário. Me. em Ciência Política pela University of Texas jeto Advancing Sustainability da Alcoa Foundation.
do Minho. - EI Paso. Graduado em Latin American Studies
Paulo Ricardo Opuszka pela University of Texas - EI Paso. Prof. Univer- Vanessa Hernandez Caporlingua
Nuria Belloso Martín Dr. em Direito. Me. em Direito, na área de Direito sitário. Prof. Assistente. Pesquisador convidado Ora. e M.ª em Educação Ambiental. Graduada em
Ora. em Direito pela Universidade de Valladolid. Cooperativo e Cidadania. Bel. em Direito. Prof. no David Rockefeller Center for Latin American Direito. Prof.ª e pesquisadora em cursos de gra-
Prof. Titular de Filosofia do Direito na Universidade Universitário. Studies, Harvard University como J. P. Lemann duação e no Programa de Pós-graduação em Edu-
de Burgos (Espanha). Coord. do Programa de Dou- Pedro Costa Gonçalves Visiting Scholar. cação Ambiental.
torado em Direito Público. Repres. do Opto. de Di- Vicente Brasil Jr.
reito na Comissão de Doutorado. Dirigente do Cur- Dr. em Direito Público pela Faculdade de Direito Samuel Rodrigues Barbosa
so de Pós-graduação "Especialista Universitário em da Universidade de Coimbra e Prof. Universitário Dr. em Teoria do Direito. Me. em Ciências da Reli- Me. e Esp. em Direito. Juiz do Tribunal Adminis-
Mediação Familiar"na Universidade de Burgos. da mesma instituição. gião. Graduado em Direito. Prof. Universitário. trativo Tributário do RS (TARF). Advogado e Con-
Rafael Rodrigo Mueller sultor Fiscal. Perito e Auditor Tributário. Professor
Octavio Augusto Simon de Souza Saulo Tarso Rodrigues
Dr. e Me. em Educação. Graduado em Administra- Universitário.
Me. no Alabama, EUA. Juiz do Tribunal de Justiça Pós-Dr. em Direito Constitucional e Teoria do Es-
Militar do Rio Grande do Sul. ção de Empresas. Prof. do Programa de Mestrado In- tado pela Uppsala University - Suécia. Dr. em Vittorio Olgiati
terdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento. Sociologia do Estado e do Direito na disciplina de Dr. em Sociologia do Direito. Prof. Associado da Fa-
Oksandro Osdival Gonçalves Direitos Humanos pela Faculdade de Economia da culdade de Direito da Universidade de Macerata -
Rainer Czajkowski
Dr. em Direito Comercial - Direito das Relações So- Universidade de Coimbra. Me. em Direito do Es- Itália.
Me. e graduado em Direito. Pró-Reitor Acadêmico
ciais. Me. em Direito Econômico. Prof. Universitário. tado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Vladimir Passos de Freitas
e Prof. Universitário.
Osmar Ponchirolli Prof. Universitário e Pesquisador.
Renata Ceschin Melfi de Macedo Dr., Me. e Lic. em Direito. Prof. Universitário de
Dr. e Me. em Engenharia de Produção. Esp. em Sergio Said Staut Jr. graduação e de pós-graduação.
Didática do Ensino Superior. Graduado em Filoso- M.ª e Graduada em Direito. Prof.ª Universitária
Lic. Dr. em Direito. Prof. Universitário. Vladmir Oliveira da Silveira
fia. Bel. em Teologia. Prof. Universitário.
Silma Mendes Berti Pós-Dr., Dr. e Me. em Direito. Graduado em Direito
Pablo Galain Palermo Ricardo Tinoco de Góes
Ora. e M.ª Graduada em Direito. Prof.ª Universitá- e em Relações Internacionais. Prof. Universitário.
Dr. em Direito pela Universidade de Salamanca - Doutorando em Filosofia do Direito. Me. em Direi-
ria. Juíza Auditora do Tribunal Eclesiástico da Ar-
Espanha: Direito penal, Direito processual penal e to. Prof. Universitário. Wladimir Brito
quidiocese.
Criminologia. Rivail Carvalho Rolim Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni-
Silvia Hunold Lara versidade de Coimbra: Direito público. Prof. da
Paolo Cappellini Pós-Dr. na Universidade de Barcelona em Socio-
logia Jurídica e Criminologia. Dr. em História. Prof. Ora. em História Social. Graduada em História. Escola de Direito da Universidade do Minho.
Prof. Catedrático de História do Direito Medieval e Prof.ª Universitária.
Moderno. Coord. do Programa de Doutorado em Universitário. Willis Santiago Guerra Filho
Tercio Sampaio Ferraz Jr. Pós-Dr. em Filosofia. Dr. em Ciência do Direito
Teoria e História do Direito. Diretor da Faculdade Roberto Catalano Botelho Ferraz
de Direito Università degli Studi di Firenze - Itália. Dr. em Direito Econômico e Financeiro. Me. em Dr. em Direito. Dr. em Filosofia pela Johannes pela Fakultãt für Rechtswissenschaft der Univer-
Gutemberg Universitat de Mainz. Graduado em sitãt Bielefeld. Me. e graduado em Direito. LO. em
Paula Távora Direito Público. Prof. Universitário. Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e em Ciên- Filosofia do Direito. Prof. Universitário.
Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universi- Roland Hasson cias Jurídicas e Sociais. Prof. Universitário.
Wilson Alberto Zappa Hoog
dade de Coimbra: Direito privado. M.ª Prof.ª da Fa- Dr., Me. e graduado em Direito. Prof. Universi- Thiago Rodrigues Pereira
culdade de Direito da Universidade de Coimbra. tário. Me. em Ciência Jurídica. Perito Contador Auditor.
Pós-Dr. em Direitos Humanos pela Universidade Prof. Doutrinador de Perícia contábil, Direito con-
Paulo Ferreira da Cunha Ronaldo João Roth Católica de Petrópolis - UCP. Dr. e Me. em Direito tábil e de Empresas em cursos de pós-graduação.
Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni- Juiz de Direito da Justiça Militar do Estado de pela UNESA/RJ. Prof. adjunto da UERJ e do PPGD
versidade de Coimbra e Dr. em Direito pela Uni- Wilson Furtado Roberto
São Paulo. Membro correspondente da Academia da UCP. Coord. adjunto do PPGD da UCP. Advo-
versidade de Paris li. Prof. Catedrático da Facul- Mineira de Direito Militar. Prof. Universitário. gado e Consultor Jurídico. Me. e Esp. em Ciências Jurídico-internacionais
dade de Direito da Universidade do Porto. pela Faculdade de Direito da Universidade Clás-
Rui Bittencourt sica de Lisboa. MBA em Gestão Empresarial pela
Paulo Gomes Pimentel Júnior Fundação Getulio Vargas. Bel. em Direito.
Me. em Direito. Advogado. Membro do Núcleo de
Doutorando da Universidade de Salamanca - Es- Pesquisa em Direito Civil e Constituição. Prof.
panha. Me. e graduado em Direito. Esp. em Di- Universitário.
reito e Cidadania. Pós-graduado em Jurisdição
Constitucional e Processos Constitucionais. Sady Ivo Pezzi Júnior
Me. em Educação e Trabalho pela UFPR. Pós-gra-
Paulo Mota Pinto
duado em Gestão da Qualidade pelo lnstiMo de
Dr. em Direito Privado pela Faculdade de Direito Tecnologia do Paraná. Pós-graduado em Marketing.
da Universidade de Coimba. Prof. da Faculdade Prof. e Coord. do Curso de Administração.
de Direito da Universidade de Coimbra. Deputado
da Assembleia da República Portuguesa.