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Tendo como objeto de análise a hermenêutica contratual, a

presente obra investiga as bases sobre as quais surge a com-


preensão do contrato, delineando os caminhos necessários
à efetivação da atividade interpretativa, com destaque para
a imprescindibilidade de um raciocinar por concreção.

Utilizando a hermenêutica filosófica gadameriana como


base teórica primária, a pesquisa não se preocupa com a
demonstração de vias de condução e correição da atividade
exegética, procurando, antes, apresentar os pressupostos
que possibilitam e condicionam a interpretação do contrato
e as estruturas que garantem a concreção da relação con-
tratual. Sem pretensões de dominar o fenômeno hermenêu-
tico, esta investigação científica procura compreendê-lo.

Nos matizes da concreção jurídica, o estudo enfrenta os as-


pectos fáticos e normativos contidos na situação objetiva
complexa que forma o horizonte do contrato, mediante a
utilização dos postulados normativos das circunstâncias do
caso e da proporcionalidade. Ademais, a pesquisa alcança os
limites desta forma de raciocinar, fixando parâmetros e crité-
rios que posicionem o método concretista em um quadro de
inteligibilidade e controle intersubjetivos, imped indo que o
recurso retórico à figura do caso concreto se transforme em
um apanágio para a ditadura da subjetividade e do descri-
tério, resguardando a segurança jurídica nas relações con-
tratuais.

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97 66186

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FELIPE KIRCHNER

Mestre em Direito Privado pela


Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS. Gra-
duado em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do
Sul - PUCRS. Defensor Público
no Estado do Rio Grande do
Sul, onde atua perante a 3ª

INTERPR.ETAÇ -
Defensoria Pública de Direitos
Humanos e dirige o Núcleo de
Defesa do Consumidor e de Tu-
telas Coletivas - NUDECONTU e
na Coordenação da Revista da
Defensoria Pública. Desempe-
nhou a função de Subdefensor
Público-Geral para Assuntos Ju-
CONTR T L
rídicos em 2013-2014 e presidiu
o Conselho Estadual de Defesa l-lermenêutica e Concreção
do Consumidor - CEDECON nos
Biênios 2011-2012 e 2013-2014.
Exerce a docência na Pontifícia
Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUCRS e, como
convidado, na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul -
UFRGS nos cursos de Especiali-
zação em Educação, Ética e Di-
reitos Humanos da Faculdade de
Educação - FACED e em Direito
do Consumidor na Faculdade
de Direito, na Escola Nacional de sJT•º
Defesa do Consumidor - ENDC
e na Escola Estadual de Defesa { \
do Consumidor - ESDC. ~ ~•.-.,1.,.,_ t< t-u~.ri n~l,.•,i;:a
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EDITORA AVUIADA
Felipe Kirchner

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e-mail: editora@jurua.com. br

INTER RET ÇÃ
ISBN: 978-85-362-6138-6
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l-lermenêutica e Concreção
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Editor: José Emani de Carvalho Pacheco

Kirchner, Felipe.
K58 Interpretação contratual: hermenêutica e concreção./
Felipe Kirchner- Curitiba: Juruá, 2016.
324p.

1. Contratos. 2. Hennenêutica (Direito). 3. Direito comercial.


I. Título.

CDD 346.07
CDU 347.44 Curitiba
000171 Juruá Editora
2016
À Carla, ao Ricardo e ao Miguel, que não me deixam
esquecer das coisas importa,ites da vida que estão para
além da busca de meus ideais.
"Alguns homens vêem as coisas ~amo são e di=em porquê?
Eu sonho com as coisas que nzmcaforam e digo por que não?"

George Bernard Shaw


...
APRESENTAÇÃO

O trabalho do Felipe Kirchner, que agora apresenta em livro


sua dissertação de mestrado apresentado ao Programa de Pós-
-Graduação em Direito (PPGDir) da UFRGS, não é pouco ambicioso:
aplicar a teoria hermenêutica gadameriana para entender a interpreta-
ção contratual por meio do raciocínio por concreção.
Conhecendo o autor desde -quando o mesmo era estagiário na
Procuradoria do Município de Porto Alegre, quando lá atuei como Pro-
curador, sabia que o desafio seria enfrentado com a destreza que lhe é
peculiar e, mais, com um texto erudito e elegante.
Na melhor tradição dos trabalhos que têm sido apresentados no
PPGDir UFRGS, o autor disserta sobre a matéria em duas grandes par-
tes. Na primeira examina.a.filosofia hermenêutica de H G. Gadamer e a
transpõe para a espécie contratual debruçando-se sobre as peculiarida-
des com que se deji-onta o inté1prete do contrato.
Esboçado o cenário teórico da hermenêutica contratual, a segun-
da parte destina-se à construção da aplicação aos casos concretos, para
tm1to consolidm1do o necessário raciocínio por concreção, contraposto ao
raciocínio por subsunção tradicionalmente advogado para a hermenêutica
jzn-ídica e, em especial, aplicado na intepretação dos contratos.
Para bem edificar sua posição, o autor examina, de um lado, as
circunstâncias fáticas (o que agrupa sob a denominação de concreção
fática) e, por outro lado, o postulado normativo da proporcionalidade
(para expor a concreção normativa).
Essa segunda parte, tratando de concreção, não poderia dei-
xar de enfrentar casos concretos, o que é feito por meio do exame de
decisões judiciais, dissecadas com o instrumental teórico anteriormente
desenvolvido.
Tratar desses temas, conjugando-os e aplicando-os à inte,pre-
tação contratual, importou em que a obra enfrentasse situações bastante
complexas. Por ocasião da banca de exame da dissertação, da qual tive a
honra e a satisfação de participar, a discussão foi extrêinamente rica.
10 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual li

Sob a sempre certeira e precisa orientação da Professora Doutora Judith O autor consegue, entretanto, refi,tando o ponto de vista bettia-
Martins-Costa, o autor debateu e defendeu suas posições que, para a 110 demonsh·ar que, nem este é absolutamente refi'atário à riqueza da
felicidade e engrandeci111ento da doutrina nacional, agora vêm a público. hermenêutica gadameriana, nem esta ignora o limite que, nas relações
Pessoalmente enriqueci-me com a discussão e com a leitura do conh·atuais se impõe, por isso afirmando que "a Juução do iutérprete
texto à época (lá se vão quase sete anos), e em vários mo111entos, defron- não é a de reviver a intenção dos contratantes quando_ do mome11t?
tando-me com alguns pontos de divergência com meu modo de pensar, genético, mas a de construir o sentido do contrai~ a partir de seu lwr~-
balancei em minhas convicções, o que é afimção precípua de um traba- zonte e da situação objetiva complexa em que se msere, ~empre respe1-
lho desse porte. taudo a autouomia das partes co11trata11tes co11s11hsta11cmda na decla-
ração negocial".
Agora, relendo o trabalho para elaborar essa apresentação, re-
Ouh·o ponto que demonstra as virtudes e dificuldades que o te-
lembrei os pontos de divergência e pude ver o quanto foi importante re-
ma apresentava é a ideia cenh·al do h·abalho. A i11te1pretação conh·atual
considerar alguns deles após o aprendizado que o texto me deu.
só é possível por meio de um raciocínio por c~ncreção: A espil~l10sa
E isto porque o Felipe enfrenta, com desassombro, questões questão entre autonomia privada e limites valoratzvos do s1ste~1a crz_a um
que poderiam ser melindrosas. impasse, solucionado pelo Felipe ,c~m galhardia ,~a consh·uçao da mter-
A primeira que é de suma importância reside no confronto en- pretação como dependente rac10c11110_por concreçao.. .
tre a teoria de Gadamer (reconhecidamente não desenhada para as es- O raciocínio h·adicional do direito parte de conceitos
pecificidades do direito) e a teoria de E. Betti (que se debruça de for111a (pré)determinados que buscam enquadrar os fatos. Subsumem-se os fatos
muito detalhada, para alé111 de u111a teoria geral da interpretação, sobre nos conceitos.
a inte1pretação jurídica e, dentro desta, a inte,pretação dos contratos).
Este proceder ignora a realidade conh·atual. O conh·ato, mais
O autor consegue apontar as divergências, expondo porque lhe do que um ato jzwídico lato sens11 da modalidade ne~ócio jurídico bil~t~-
parece que a ideia gada111eriana que refi1ta o papel atribuído por E. Betti
ral, h·aduz uma relação enh·e os conh·atantes, relaçao e~sa que tem szmz-
ao 111étodo deve prevalecer. Dentro da ideia bettiana de "objetivação do
le com uma relação processual. Assim, o conh·ato não e um ato, mas um
espírito", o texto a ser inte,pretado conté111 o entendimento que a inte-
pretação busca encontrar, com isto ansiando assegurar uma menor in- complexo de atos. Não é estático no momento de sua redação, mas proje-
tervenção do subjetivismo do inté,prete. tado e consh·uído no tempo da sua execução. Não é um ato encerrado em
sim mes1110, mas um ato finalístico.
A isso opõe-se Gadamer que atribui clara relevância à partici-
Sendo assim, os próprios conceitos utilizados pelos conh·atantes
pação do inté,prete na criação (e não na mera descoberta) de sentido.
necessariamente se amoldam à relação contratual desenvolvida. E esta,
Em se tratando de inte,pretação contratual, há uma clara busca por ser uma relação jurídica (criadora de direitos e deveres, ônus, facul-
da intenção comum dos contratantes, reconhecendo o art. 112 (no nosso dades, ações e exceções) é existente no tempo e no espaço determmad?s
sistema, como também ocorre e111 vários outros) que inte,pretação deve pelos conh·atantes. O conh·ato é uma r~a~idade hist1ri~a e cultural, nns-
buscar 111ais a intenção nela declarada do que a literalidade do texto turando-se com a historicidade e espaczalzdade do dzrezto como um todo.
(aquilo que a doutrina italiana chama de princípio da ultraliteralidade).
Por isso, compreender o cont,:ato carece do entendimen~o de
Se há uma intenção co111um, e a inte1pretação do contrato tem todo o desenvolvimento dessa relação. E aqui que enh·a a consh·uçao do
como finalidade buscar essa intenção comum, parece que existe, sim, autor sobre as circunstâncias, fático-:negociais e a proporcionalidade,
umafimção reveladora da real intenção das partes. ambas entendidas co1110 postulados normativos. Apenas a consideração
Sem essa busca ter-se-ia um intervencionismo na autonomia de todas as circunstâncias fáticas permite ql(e se apreenda a vontade
das partes e uma minoração da liberdade contratual. Já se vê que reco- objetiva contida no conh·ato. Essa junção fática tem, necessariamente,
nhecer um papel criador para os casos contratuais vai contra a ideia de que ser avaliada pelas lentes axiológicas d?·?r~enamento, P,º'~derando-
que o contrato decorre da vontade comu111 das partes que se bilateraliza -se e proporcionalizando-se os valores aplzcavezs e co111pat1ve1s com os
na declaração negocial. fatos e vice-versa. '.·
12 Felipe Kirchner

Daí afirmar: "A interpretação tem que ter em conta todas as


circ1111stâncias do caso, pois estas estabelecem critérios, modos de raci-
ocínio e argumentação que dão à declaração negocial a significação
que esta possui 110 contexto material. Deixando de quantificar um só
ponto das circunstâncias do caso, altera-se o sentido da declaração, que
deixa de corresponder à verdadeira situação, resultando em um possível
PREFÁCIO
(e provável) efeito jurídico falso".
Tudo isto e muito mais que se contém nesta rica dissertação
que agora vira um livro a iluminar a teoria da interpretação contra-
tual, permite que se conclua com o que é uma premissa do autor. Se a Durante muitos séculos, a Filosofia e o Direito Privado anda-
interpretação não cria os direitos e deveres obrigacionais oriundos do ram de mãos dadas. Depois se afastaram, como se ao Direito positivo
contrato, estes não existem fora da interpretação porque o contrato é fosse dado caminhar descolado de uma reflexão constante sobre si mes-
interpretação. mo, suas premissas e seus condicionalismos, a utilidade que o justifica e
Com a precisão que lhe é peculiar, diz Felipe Kirchner: "Se o há de pautar o mister de seus artífices. Essa cisão, felizmente, vem sendo
contrato existe enquanto ente jurídico autônomo, não tem sentido al- posta em xeque por aportes recentes,-tanto por parte de filósofos quanto
gum fora da circularidade hermenêutica". por meio de doutrinadores que se ocupam com a Teoria Geral do Direito
Livro que faz pensar, livro que fa:::: ponderm·, livro que faz Civil. Símbolo potente dessa reaproximação necessária enh·e os dois
aprender. Essa a obra que me coube apresentar. Obra de um jovem autor campos é o próprio fato de a Comissão Elaboradora do Código Civil de
que já a produziu no mestrado! Autor que na labuta diária como Defen- 2002 ter tido como presidente o filósofo Miguel Reale, aliás, grande civi-
sor Público, sabe que o direito só existe se aplicado e que aplicar o direi- lista, como comprovou ouh·o dos grandes, Clóvis do Couto e Silva, em
to é entendê-lo e entender é sempre fruto do inte1pretar. texto que há de ser lido e relido 1•
É também sintomático da reaproximação entre os campos da
Luis Renato Ferreira da Silva Filosofia e da Teoria Geral do Direito Civil o texto de Felipe Kirchner,
que tenho a alegria de prefaciar. Elaborado como dissertação de 111es-
Mestre em Direito - UFRGS; Doutor em Direito -
h·ado no Programa de Pós-Graduação e111 Direito da Universidade Fe-
USP; Professor Acijunto na UFRGS.
deral do Rio Grande do Sul, o trabalho busca analisar os pressupostos
que possibilitam e condicionam a inte1pretação do conh·ato, segundo a
hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Não se h·ata de um
estudo sobre a inte,pretação conh·atual em si, nem mesmo sobre seus
métodos ou suas prescrições, mas de um passo anterior, voltado a ques-
tionar: a partir de que pressupostos e esh·uturas de raciocínio é possível
a compreensão dos conh·atos? Como se dá a compreensão dos elementos
fáticos e normativos que formam a declaração negocial, o conh·ato e a
relação conh·atual?
Estruturado segundo o "plano francês", o exame inicia com
dois capítulos dedicados à compreensão da· atividade hermenêutica:
seu objeto, seu caráter criativo, construtivo, produtivo e crítico, bem

COUTO E SILVA. Clóvis. Miguel Reale. civilista. Revista dos Tribunais. v. 672.
São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 53 - 62.
14 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 15

como as peculiaridades da hermenêutica contratual, mais complexa os princípios e regras do ordenamento, implicando, portanto, toda inter-
que a atividade interpretativa legal. Na segunda parte, contendo três pretação contratual no exame articulado entre te.Y:to, contexto e regra-1.
capítulos, volta-se a examinar o raciocínio jurídico por concreção, E mais: inte1pretamos não apenas textos, mas, por /gual, con-
atentando aos seus postulados gerais e àqueles específicos à herme- dutas, intenções (desde que objetivadas), fatos, indícios e também o si-
nêutica contratual. lêncio, para qualificá-los segundo as categorias do Direito, chegando à
O escopo é ambicioso, mormente para uma dissertação de mes- solução de um caso concreto (o chamado "momento aplicativo", não
trado que, a rigor, não exigiria a originalidade na abordagem, mas dele cindível, senão artificial e analiticamente, do "momento compreensi-
se sai o Autor com sucesso. Conquanto imerso na filosofia gademeriana, vo5 "). Por isto, di::: Kirchner, na inte1pretação contratual, "a força vin-
não ignora ser a interpretação contratual imantada pela finalidade que culante do objeto diz com o primado da declaração negocial, pois o sen-
levou os contraentes a firmar determinado ajuste de interesses. Como tido literal possível do texto conh·atual surge como base semântica possí-
disse de outra feita, contratos são aqueles ousados atos de conteúdo pa- vel de significação, detendo dupla missão: é ponto de partida para a
trimonia/2 pelos quais queremos, hoje, prever, organizar e regrar o ama- indagação do sentido e h·aça, ao mesmo tempo, os limites da atividade
nhã. São atos de apreensão de "pedaços do fi1turo" por meio da autono- inte1pretativa"6. Porém, de modo algum a relevância da declaração há
mia privada, pelos quais regulamentamos determinados problemas práti- de ser confundida com a inte1pretação literal. O Autor chama a atenção
cos: doar, vender, fornecer, locar, emprestar, consh·uir, h'ansportar, para a dimensão intertextua/ da declaração 11egocia/ (sistematicidade
associar-se, etc. interna e externa) e pela concreção do contexto fático e normativo em
A constatação sobre o peso do elemento pragmático na inter- que se insere o contrato a ser compreendido.
pretação conh·atual faz perceber a especificidade adquirida nesse campo A análise procedida, com efeito, valora adequadamente o racio-
pela tarefa hermenêutica no contraste com a inte1pretação de ouh·os cínio por concreção, pontuando, em certeira passagem, os seus pressu-
fenômenos. Quando inte1pretamos um conh·ato, inte1pretamos, sempre, postos, pelos quais "a força enunciativa dos elementos normativos con-
um texto em seu contexto, em vista de uma bem concreta finalidade práti- tratuais passa a ser compreendida em essencial coordenação com o caso
ca3. Não nos limitamos a "ah·ibuir sentido" a um texto, embora a ah·i- concreto, em um processo multidirecional entre Direito e realidade, di-
bzâção de sentido seja o passo inicial de toda interpretação. Também mensões que, nesse paradigma, passam a se complementar e inte1pene-
ah·ibuímos relevância - e a ah·ibuímos 'mais' ou 'menos' - isto é: valori- trar continuamente". Joga luz, portanto, 110 postulado normativo das
zamos determinadas cláusulas, qualificamos juridicamente as previsões circunstâncias do caso - ao qual dedica o núcleo da segunda parte de
das partes, para saber, por exemplo, se estamos frente a um termo ou sua dissertação-, pelo qual "o conh·ato é interpretado a partir das cir-
uma condição, uma cláusula penal ou uma cláusula de limitação do de- cunstancias concretas e de sua correlação com determinados elementos
ver de indenizar, uma resolução por inadimplemento com eficácia ex normativos e ax:iológicos do sistema jurídico". Mas não descura dos
t1111c (resolução em sentido esh"ito) ou com eficácia ex 1m11c (resilição). males do "excesso de concreção ", por via do qual a atividade hermenêu-
Essa valori:::ação se dá, ademais, por meio de pesos específicos, a saber, tica esgota-se num pobre e empobrecedor "Direito do caso", descolan-
do-se das bases dogmáticas do sistema jurídico que garantem aos con-
tratos a segurança e a estabilidade que os tornam úteis como meios de
MARTINS-COSTA. Judith. Como ham1onizar os modelos jurídicos abertos com a apreensão do fi1turo.
segurança jurídica dos contratos? (notas para uma palestra). Revista Brasileira de
Direito Civil - IBDCivil. v. 5. Jul/Set 2015, p. 68. Também publicado em RJLR a.
2 (2016), 11. 1, p. 1051-1064. Aspectos do tema são também analisados em MAR-
4
TINS-COSTA, Judith. Contratos. Conceito e Evolução. /11: LOTUFO, Reuan; Explana essa trilogia, SCOGNAMIGLIO, Claudio. L'Autonomia Privata come Cano-
NANNI, Giovanni Ettore (Orgs.). /11: Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, ne di Interpretazione dei Contrato. Cadernos IEC. n. 6. Canela: Instih1to de Estudos
2011. p. 23 e ss. Culturalistas, ago./2015. p. 10.
5
Desenvolvo esta temática em MARTINS-COSTA. Judith. A Boa-Fé no Direito "A atividade hermenêutica é 11111 processo unitário envolvendo compreensão, inte,pre-
Privado: critérios para a sua concretização. São Paulo: Marcial Pons, 2015, § 49 tação e aplicação" (Este livro, Conclusão 5). , ··
6
a 53. Este livro, Conclusão 4.
16 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 17

O alerta é muito necessário. Tem sido sublinhado o fenômeno do Já por estas breves indicações poderão os leitores perceber
desenvolvimento pluralista do Direito dos Contratos em nossos dias. É com que diligência o Autor se lançou ao desvelamento das complexas
mesmo uma ficção falar-se em "o contrato" como um esquema unívoco. dimensões da hermenêutica dos contratos, auxiliando, com sua cuidado-
Há "os contratos", uns suscitando fortes doses de intervenções heterôno- sa análise, a tarefa, muito necessária, da construção de uma doutrina da
mas, outros abrindo largo campo para o exercício da autonomia privada; inte1pretação coerente com a ji·agmentação e heterodoxia do fenômeno
uns voltados a compor interesses que se contrapõem, outros organizando contratual em nossos dias. Por esta razão, recebeu de ilustre Banca
interesses que andam em pen-a/elo; uns tendo quase a generalidade da lei Examinadorall o conceito A e recomendação para publicação, sábio
(com cláusulas predispostas destinada em vigorar em milhares de situa- ditame que, agora, felizmente, resta realizado.
ções concretas), outros sendo singularmente formatados; uns destinados a
formar-se, executar-se e adimplir-se instantaneamente, outros predispostos Judith Martins-Costa
à duração no tempo para cumprir com sua utilidade. E todos, absoluta- Doutora e Livre Docente em Direito pela Universidade
mente todos, hão de ser interpretados, "pois a atividade hermenêutica de São Paulo. Vice-presidente do Instituto de Estudos
sempre ocorre, mesmo perante um objeto de fácil compreensão " 7• Culturalistas (IEC). Membro da Academia Brasileira
lnte1pretar um contrato é, portanto, uma atividade situada, tan- de Letras Jurídicas. Advogada, Árbitra e Parecerista.
to pelo caso quanto pelos dados normativos advindos do ordenamento.
Diz bem Felipe Kirchner: "o ordenamento é elemento estruturante inter-
no do contrato", interessa à inte1pretação contratual não "apenas no
caso de lacunas a serem supridas com a utilização de normas supletivas,
mas sempre", fazendo-se presente, principalmente, por seus vetores axio-
lógicos, "na circularidade hermenêutica e na pré-compreensão do intér-
prete", e, assim, determinando "as premissas a serem observadas na
atividade hermenêutica "8.
Entre essas, destaca o Autor, além do postulado normativo das
circunstâncias do caso, o da proporcionalidade. Este "ministra parâme-
tros para que o szgeito cognoscente formule juízos acerca das interven-
ções existentes na bilateralidade da relação contrato-ordenamento, coor-
denando a forma como a regulamentação privada se relaciona com o
sistema e com os efeitos jurídicos emanados deste amálgama entre auto-
nomia e heteronímia"9. O controle da proporcionalidade, porém, não
resta ao alvedrio do intérprete, antes devendo respeitar a margem de
liberdade desfrutada pelos particulares para autorregularem os seus
recíprocos interesses. Trata-se, pois, de umafimção de controle que atua
negativamente, para coibir aqueles excessos no exercício da liberdade
contratual que venham a atingir as fimções dos contratos como meios de
deslocamento patrimonial no tráfego jurídico 10, permitindo a circulação
da riqueza.

7
Este livro, Conclusão 2.
8
Este livro, Conclusão 67.
9
Este livro, Conclusão 69. 11 Os Professores Francisco dos Santos Amaral Neto, da UFRJ; Huniberto Ávila. então
10
Este livro, Conclusões 70 e 71. da UFRGS; e Luis Renato Ferreira da Silva, então da PUC/RS.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 21
Capítulo I - ATIVIDADE HERMENÊUTICA ............................................. 31
1 O Horizonte da Atividade Hennenêutica ........................................... 31
1.1 O objeto e os limites da atividade hem1enêutica ........................ 31
1.2 A delimitação do horizonte hermenêutico ................................ .43
1.3 O caráter criativo, construtivo e produtivo da atividade
hermenêutica .............................................................................. 51
1.4 A incompleh1de da atividade hermenêutica ............................... 62
1.5 O caráter crítico da atividade hermenêutica ............................... 79
2 A Hermenêutica Contratual ................................................................ 84
2.1 As particularidades da hermenêutica contrahial.. ....................... 85
2.2 O negócio jurídico e seu conteúdo ............................................. 89
2.3 A autonomia privada e sua relevância hennenêutica ................. 99
2.4 O procedimento, os métodos e as regras de interpretação ........ 116
2.5 A fixação do objeto e da dimensão funcional da
hermenêutica contratual ........................................................... 151
Capítulo II - HERMENÊUTICA E CONCREÇÃO .................................... 173
1 O Raciocínio Jurídico por Concreção ............................................... 175
1.1 Os pressupostos gerais sobre o raciocínio por concreção ........ 175
1.2 A necessária imposição de limites ao raciocínio por
concreção ................................................................................. 189
1.3 A influência do raciocínio por concreção na força normativa
do contrato ................................................................................. 194
1.4 O ponto de relevância hermenêutica e a extensão dos meios
interpretativos ·································:········································201
1.5 A natureza jurídica das circunstâncias do caso e da
proporcionalidade .................................................................... 208
2 A Concreção Fática da Interpretação Contrahial.. ............................ 213
2.1 O postulado normativo das circunstâncias do casó .................. 213
20 Felipe Kirchner

2.2 Os elementos que compõem o postulado das circunstâncias


do caso ..................................................................................... 224
2.3 A jurisprudência e o paradigma da Súmula Vinculante 01,
do Supremo Tribunal Federal... ................................................ 241
3 A Concreção Normativa da hlterpretação Contratual.. ..................... 246
3.1 As premissas gerais da concreção normativa da INTRODUÇÃO
interpretação contratual ............................................................ 246
3.2 O postulado normativo da proporcionalidade .......................... 255
3.3 Os pressupostos da sistematicidade hermenêutica ................... 266
CONCLUSÃO ................................................................................................. 281
Tendo como objeto de análise a hennenêutica contratual 1, o pre-
sente estudo pretende investigar as bases sobre as quais surge a compreen-
REFERÊNCIAS ............................................................................................. .301 são desse instituto sociojurídico, delineando os caminhos necessários e
ÍNDICE ALFABÉTICO ................................................................................ .313 adequados à efetivação da atividade interpretativa, com destaque para a
imprescindibilidade de um raciocinar por concreção no plano exegético.
Nesse contexto, cabe salientar, desde já, que a pesquisa não de-
tém uma preocupação direta em demonstrar vias de condução e con-eição
da atividade interpretativa2 • Visando alcançar as estruturas que garantam

Sem negar a influência da teoria da interpretação explicitada em todas as espécies con-


tratuais e ramos do Direito, o estudo tem como foco primário os contratos paritários.
2 Esta pesquisa irá enfocar as estruturas transcendentais que condicionam o compreen-
der (modo de ser do fenômeno interpretativo), tendo-se excluído da análise aquilo que
para as teorias clássicas da interpretação surge como função primordial: a análise e
enunciação de cânones interpretativos (FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Texto e
Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico. Coimbra: Almedina, 1992. p. 200-201).
Sem pretender negar a importância do procedimento metódico e as convergências
existentes entre os cânones de interpretação e os pressupostos da hennenêutica filosó-
fica, o estudo atende ao alerta de Karl Larenz: "Não é tarefa de uma metologiajurídi-
ca, ao contrário do que pretende uma opinião amplamente dijimdida, estabelecer
uma espécie de catálogo de regras de procedimento, czifa observância estrita pudesse
garantir resultados acertados. (. ..) A tarefa da metodologia é mosh·ar a possibilidade
e os modos específicos de proceder deste pensamento. (. ..) Não é necessário (. .. ) acei-
tar a validade exclusiva do conceito cientifiscista de ciência" (LARENZ, Karl. Me-
todologia da Ciência do Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste, 1989. p. XXI-XXII). Como
adverte Miguel Reale, a aceitação irrestrita do modelo das ciências (naturais) resultou
na equívoca redução da teoria do conhecimento à teoria da ciência, o que resta mais
nocivo quando se esquece - o que-ocorre çom o pensamento majoritário - que as ciên-
cias são momentos essenciais de uma cultura (REALE, Miguel. Experiência e Cultu-
ra. Campinas: Bookseller, 1999. p. 24-42). A busca P.ela c01Teição interpretativa, em
sentido estrito, é tarefa tanto do estudo instrnmental da interpretação dos contratos,
que visa delinear regras que guiem o intérprete, quanto da teoria da argumentação,
que visa oferecer bases para a constrnção e estrnturàção do raciocínio jurídico. Deve-
se reconhecer que a questão da retórica, em especial, traz importantes complementos
ao marco teórico aqui apresentado, principahnente no que respeid ·à explicitação de
conteúdos do procedimento compreensivo (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
22 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 23

a efetiva concreção da relação contratual, a análise estará voltada aos senso comum teórico dos juristas brasileiros5• A construção do pensa-
pressupostos que possibilitam e condicionam a interpretação do contrato, mento jurídico neste estudo acabará conduzindo o leitor para alguns ques-
segundo a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, aqui adotada tionamentos produtivos6, os quais passam longe dos limites tranquilizan-
como base teórica primária. 3 Em face desta escolha (ao seu modo arbitrá- tes da tradição metódica voltada simplesmente ao estabelecimento de um
ria), o estudo pretende conjugar esta matriz filosófica com a base dogmá- "sentido e alcance" da atividade hennenêutica cabalmente definíveis a
tica do Direito Privado voltada à interpretação do contrato, procurando • -7
priori.
contribuir com as discussões neste campo do saber jurídico, que se cons- Estando ciente do condicionamento dos seus pontos de partida8
titui no foco primordial do presente exame científico. e buscando alinhar a pesquisa com construções teóricas que proveem da
A consecução destes objetivos demanda, necessariamente, a experiência prática (cultural, ética, social, jurídica e política )9, este estudo
f01mulação de um juízo crítico acerca da reflexão metodológica4, o que
implica a superação do pensamento dogmático que há muito habita o s STEIN, Emildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: EDlPU-
CRS. 2004. p. 78 e 82; WARAT. Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris. 1994. v. 1. p. 22. Embora não se_pre~en_d~ dis~utir es~e
Método: traços fundamentais de uma hennenêutica filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vo- senso comum teórico, cabe ressaltar que grande parte da doutrina Jund1ca atnda nao
zes, 2004. v. 2, p. 339; HECK, Luís Afonso. Aulas ministradas na cadeira Teoria da introjetou a mudança de paradigma havida na filosofia, relativamente a viragem lin-
Argumentação Jurídica e a Questão da Fundamentação Jurídica (DIRP118), pro- guística e a constituição de mundo pela cõmpreensão. Os operadores do Direito conti-
ferida em 2007/I, no PPGDir/UFRGS, 2007a; HECK, Luís Afonso. Aulas núnistradas nuan1 indelevelmente mergulhados em seus hábitos, num conjunto de crenças, práti-
na cadeira Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy (DIRP146), proferi- cas e pré-juízos arraigados a opiniões anteriores, como se tais fossem verdadeiros
da em 2007ili, no PPGDir/UFRGS, 2007b ). Porém, a necessária escolha e delimitação dogmas. fazendo com que pennaneçam reféns da cotidi'.111ida?e, que se trAad~z na e~-
do tema da pesquisa implica, necessariamente, wna tomada de posição excludente de pressão como sempre o direito tem sido (STRECK, Lemo Lmz. Hermeneutica Jun-
outras possibilidades, e uma delas é analisar as influências da teoria da argwnentação dica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Ale-
na atividade hermenêutica. De qualquer modo, cabe mencionar que, salvo melhor juí- gre: Livraria do Advogado. 2002. p. 38), o que resta por impedir a necessária releitura
zo, a explicitação da compreensão, em tem1os de construção de wn raciocinio juridi- do fenômeno juridico, especialmente no campo da teoria da compreensão.
co, se constitui em wn momento posterior ao fenômeno hermenêutico, pois, como sa- 6 Tratando sobre os paradigmas contrahrnis, destacam Eros Roberto Grau e Paula For-
lienta Gadamer, "quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende" gioni que "mais dificil é aceitar que o novo e o antigo se mesclam e, 110 resultado ge-
(GADAMER, 2004, p. 317). Embora sejam momentos distintos, há wna inegável re- ral, as ji-onteiras de 11111 extrato são fluidas, impossibilitando a confortável ilusão da
lação entre interpretação e argumentação, pois se de wn lado o caráter dialógico da segurança jurídica" (GRAU, Eros Roberto: FORGIONl, Paula. O Estado, a Empre-
compreensão exige o uso da argumentação entre os locutores (sujeitos e objetos), sa e o Contrato. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 15).
mesmo no plano interno do pensar, de outro a argumentação pressupõe a interpreta- 7 MORATALLA, Donúngos Agustin. Historia y Filosofia em H. G. Gadamer. ln:
ção, uma vez que só argumenta legitimamente quem compreende a alteridade da coisa
GADAMER, Hat1s-Georg. EI Problema de la Conciencia Histórica. 2. ed. Madrid:
e do outro. Embora existam diferenciações evidentes, a proximidade entre as dimen-
Tecnos,2003.p.25.
sões ora examinadas é tamanha que parte da doutrina entende que não é possível in- 8 Miguel Reale reconhece que. no início de toda investigação. há um problema prévio
terpretar sem argumentar, assim como não é possível argumentar sem interpretar
de seleções de conteúdo e definição de prioridades. o que implica naturais e de~em~-
(VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e Inte,preta=ione: lineamenti di
nadas escolhas e atitudes axiológicas (REALE. 1999. p. 194). O presente ensmo nao
teoria em1eneutica de! dirítto. Roma: Laterza, 1999. p. 100-101 e 233-234). Ademais,
pretende esgotar as discussões acerca do tema tratado, mas atltes suscitar novas vias
é inequívoca a necessidade da compreensão vir à tona, o que se dá por intermédio da possíveis de abordagem do problema hem1enêutico. as quais jamais chegarão a um tal
argumentação, aspecto que está intimamente correlacionado a busca pela objetividade ponto de maturidade que encerre o diálogo. pois como suscita Gadatner, ''seria 11111
no funbito hennenêutico (alcance da intersubjetividade quando a compreensão se ele- mau hermeneuta aquele que imaginasse poder 011 dever ter a última palmwa" (GA-
va ao plano de wna intercomunicação). Nesses termos, deve ser reconhecido que a ar- DAMER, 2004, p. 544). No mesmo sentido Miguel Reale, para quem "a busca de
gwnentação pode fazer-se presente até mesmo no plano subjetivo do compreender, universalidade não exclui, mas antes exige, a consciência da pe1fectibilidade 011 da
mas, em tennos teóricos, esta dimensão parece estar representada no aspecto aplicati- nature=a inacabada e sempre provisória de todas as formas de conhecimento, filosó-
vo que é inerente à atividade hennenêutica. fico e científico" (REALE. Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva.
Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria entendem existir um perfeito paralelismo entre a 2002. p. 66).
hem1enêutica filosófica e a hem1enêutica jurídica (VIOLA, ZACCARIA, 1999, 9 GADAMER, 2004, p. 561: ROCHA. Acílio da Silva Estanqueiro. O Ideal da Europa:
p. 189-190; ZACCARIA, Giuseppe. Questioni di Interpretazione. Padova: Casa Gadamer e a hem1enêutica da alteridade. Revista Portuguesa de Filosofia. v. 56,
Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 1996, p. 65). fase. 3-4, Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, jul./dez. 200Ô;· p. 326; VIOLA,
-1
GADAMER, 2004, p. 133. ZACCARIA, 1999, p. 436: MENDES, Sérgio da Silva. Hennenêutica da Ciiação e
24 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 25

procura responder às seguintes perguntas: A partir de que pressupostos e antes de tudo, prá~ica, temporal, intencional, histórica, linguística, dialéti-
estruturas é possível a compreensão do contrato? Em face destes elemen- ca e universal 13 • E o desvelamento desta dimensão complexa e dos pres-
tos condicionantes, como se dá a compreensão dos elementos fáticos e supostos condicionantes da compreensão que pennitirá a apresentação de
nonnativos que fonnam a declaração negocial, o contrato e a relação uma doutrina da interpretação contratual que conceda relevo às vicissitu-
contratual? des humanas e à autoria criativa do sujeito cognoscente, aspectos que
Estes questionamentos dirigem o foco de análise, posicionando- servirão de sustentáculo à indispensável busca da concreção fática e nor-
-o conscientemente a um passo do que tradicionalmente se entende por mativa da relação contratual, aspecto inerente à realidade nonnativa cons-
interpretação contratual 10, exatamente ali onde se encontram os antece- tituída pelo Código Civil de 2002.
dentes indispensáveis à consecução desta tarefa. Nesses termos, o viés Em razão da natureza ontológica do paradigma hennenêutico
objetivo do estudo precede a todo comportamento subjetivo do intérprete escolhido, nem todas as condições que serão desenvolvidas possuem ou
e a todo procedimento metodológico das ciências da compreensão, inclu- fazem parte de um procedimento ou método, no sentido de que quem as
sive no que respeita à aplicação de suas regras e cânones 11 • No lugar de compreende possa aplicá-las por si mesmo 14 • Antes, estas condições de-
pretender dominar o fenômeno hermenêutico, aqui procura-se compreen- vem estar dadas ao intérprete, de modo a possibilitar o desenvolvimento
dê-lo. Recuando a análise, pretende-se contribuir para que o intérprete próprio do processo exegético 15 • Como dito, aqui não se pretende desen-
ache o verdadeiro caminho da compreensão e o desbrave sobre bases volver ou estabelecer um determinado procedimento compreensivo apre-
mais firmes, seguras e, principalmente, verdadeiras. sentando pautas para a interpretação do contrato (discurso prescritivo),
Seguindo esta vertente, cabe salientar, desde já, que o presente
estudo se debruça sobre uma hennenêutica mais vivida do que pensada, está imerso e que se constitui no espanto primordial e na origem de toda e qualquer
indagação ontológica. A identidade existencial do homem e o mundo estão comple-
pois antes de se constituir em um instrumento à disposição do homem, o tamente fündidos, pois o ser é ser-mundano, razão pela qual o compreender é wn mo-
compreender é aqui assumido como sendo a estrutura constitutiva do do de ser do Dasein como ser-no-mundo (o saber é uma espécie de ser).
Dasein (ser-az)1 2 e uma dimensão intrínseca do ser humano a qual é 13 PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1997. p. 145, 214 e 216;
' ' MORATALLA, 2003, p. 17-18 e 20; REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História
dos Esquecimentos: o Holzwege do mandado de injunção. Revista Forense, v. 390, da Filosofia, v. 6, São Paulo: Paulus, [s.d.], p. 250. Como afinna André Araújo. "na-
mar./abr. 2007, p. 181. da mais claro que, desde Gadamer, a hermenêutica não mais poderia ser (apenas)
10
Atualmente a interpretação ainda quer ser, antes de tudo, l.lll1a doutrina do método, o ferramenta a serviço da técnica auxiliar da compreensão dos textos" (ARAÚJO,
qu_e ~arante seu lugar técnico-científico. Nessa condição, encontra-se presa à lógica do 2005, p. 158).
14
s_uJe1to cognoscente, baseada na dicotomia sujeito-objeto e alheia a importância da Nesse sentido o entendimento do próprio Gadamer: "No co,yunto de nossa investiga-
lmguagem e ao caráter construtivo do processo hem1enêutico, buscando a mera extra- ção mostrou-se que a certe:::a proporcionada pelo uso dos métodos científicos não é
ção de um sentido imanente ao objeto interpretado, por meio da adoção de métodos de suficiente para garantir a verdade. Isso vale sobretudo para as ciências do espírito,
conhecimento que trabalhan1 com a lógica cientificista do conhecer para dominar mas de modo algum significa uma diminuição de sua científicidade" (GADAMER.
(GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: a virada hem1enêutica. 2005, p. 631). Heidegger e Gadamer posicionaram a tarefa hennenêutica à margem da
Petrópolis: Vozes, 2007b. v. 2, p. 158; MOLLER, Josué Emilio. A Aplicação da metodologia própria das ciências da natureza e da tarefa de elencar regras de interpre-
Hem1enêutica Filosófica Contribuindo para a Efetivação dos Direitos Humanos Fun- tação textual, enfocando a explicação fenomenológica da própria existência humana
damentais. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul v 30 (PALMER, 1997, p. 51). Não se trata de um caráter "ametódico'' ou "antimetódico"
n. 63,jan. 2006, p. 82; ARAÚJO, André Gustavo de Melo. A Atualidade do .Àco~te~ da hermenêutica, mas no reconhecimento de que esta trabalha em outra perspectiva
cer: contribuição à leitura do projeto dialógico de mediação histórica na hermenêutica que não aquela derivada da científicidade cartesiana. As ciências do espírito se desen-
filosófica de Hans-Georg Gadamer. Dissertação apresentada na Universidade de São volvem em uma dimensão que se encontra para além da questão do método. No cerne
Paulo: Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma- da teoria gadameriana encontra-se a critica à visão unívoca de racionalidade que limi-
nas, nov. 2005, p. 20). tou a filosofia a wna discussão metodológica (GACKL, Sérgio Ricardo Silva. Perspec-
11 tivas do Diálogo em Gadamer: a Questão do método. Cadernos Instituto Humanitas
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fündamentais de uma hem1e-
nêutica filosófica. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. v. 1, p. 16. Unisinos, n. 16, 2006, p. 8-11: BRITO, Evandro Oliveira de. Consciência Histórica e
12
A expressão Dasein (ser-az) indica a situação existencial do ser hl.lll1ano em sua facti- Hermenêutica: considerações de Gadamer acerca da'teoria da história de Dilthey. Re-
cidade, ou seja, a condição (hl.lll1ana) que compromete o homem com situações e ins- vista Trans/Form/Ação. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, n. 28 (2), 2005,
tâncias por ele não escolhidas. A chave para o entendimento deste preceito está na p. 150). -· .·
15
partícula aí, significativa do mundo concreto, real e cotidiano, no qual o ser humano GADAMER. 2005, p. 391.
26 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 27

mas, sim, apontar e dissertar sobre as condições que sempre se dão na influenciado decisivamente o Direito Privado, hoje resta obscurecida 19 •
atividade hennenêutica, enfatizando aquilo que invariavelmente acontece Independentemente das eventuais discordâncias que possam surgir - até
com o intérprete, independente do que este deseja, faz ou deveria fazer mesmo porque o diálogo transdisciplinar importa na mútua transposição
(discurso descritivo), sem negligenciar, evidentemente, a busca de solu- de questões teóricas aos campos do saber envolvidos, o que é deveras
ções práticas que envolvam a atividade de compreensão do contrato. problemático -, o rigor científico não pennite mais ignorar as lições que
O estudo contempla peculiares preocupações em termos biblio- serão aqui apresentadas20 •
gráficos. Em um viés transdisciplinar16, procura-se projetar ao exame da Por deter um viés transdisciplinar, talvez o grande desafio deste
hermenêutica contratual as originais e indispensáveis lições da hermenêu- estudo seja inserir satisfatoriamente, do ponto de vista científico, uma
tica filosófica de Hans-Georg Gadamer 17, realizando um contraponto matriz hermenêutica ontológica (situada no plano do ser) no universo
produtivo, naquilo que for possível, com a teoria metodológica de Emílio normativo do Direito (situado no plano do dever-ser construído por meio
Betti1 8• O objetivo desta intersecção é estabelecer pontes discursivas entre de detenninados institutos e categorias jurídicas)21 • Sobre esta questão,
a doutrina civilista e os elementos trazidos genericamente pela análise cabe suscitar que o necessário enfrentamento das categorias presentes no
filosófica, retomando aspectos de uma tradição que, não obstante tenha plano do Direito não contradiz a correição da matriz ontológica da her-
menêutica filosófica, não havendo, a priori, nenhuma pretensão de des-
16
A conquista de autonomia e independência por um determinado ramo do conheci- construção deste paradigma. O fenômeno hermenêutico é amplo e, em
mento humano não pode significar isolamento científico. Gadamer entende que a sua complexidade, depende da inclusão e assimilação das peculiaridades
pesquisa interdisciplinar surge como um dos desideratos da ciência, havendo a ne- da área do conhecimento humano em que esteja atuando (no caso o Direi-
cessidade do pesquisador olhar para além de seu campo de trabalho, encarando as to Contratual )22 .
suas reflexões com novos olhares e oxigenando questões há muito tempo conheci- Adentrando de forma introdutória e superficial na concepção
das. A escolha desta pesquisa pela abordagem filosófica não é aleatória, pois a sua
gadameriana, mister se faz salientar que, perante este paradigma, a her-
visão de totalidade ''está implicitamente presente e operante em qualquer auto-
reflexão em nível de pesquisa" (GADAMER, Hans-Georg. Teoria, Técnica e Práti- menêutica assume a finitude do intérprete, a historicidade da compreen-
ca: a tarefa de uma nova antropologia. ln: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, P.
(Org.). Nova Antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultu- 19 Como refere Betti, "desde tempos remotos, no campo do direito, o território mais
ral. v. 1 (antropologia biológica), São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977a, p.
fértil de questões inte1pretativas é o direito civil", até mesmo porque foi no âmbito
5; GADAMER, Hans-Georg. Considerações Finais. ln: GADAMER, Hans-Georg;
privado que se deu a formulação dos cânones hem1enêuticos fundan1entais que, poste-
VOGLER, P. (Org.). Nova Antropologia: o homem em sua existência biológica,
riom1ente, foram exportados e dominaram o Direito Público (em especial o Direito
social e cultural. v. 7 (antropologia filosófica), São Paulo: Universidade de São Constih1cional) (BETTI. Emilio. Interpretação da Lei e dos Atos Jurídicos. São
Paulo, 1977b. p. 276 e 278-279). Paulo: Martins Fontes. 2007. p. XLIT-XLIII). James Gordley entende que a filosofia
17
STEIN, 2004, p. 71. O Direito como um todo se apresenta como um lócus privilegia- transformou significativamente o trabalho dos juristas, sendo a partir daquele ramo do
do para a aplicação da hennenêutica filosófica (HOMMERDING, Adalberto Narciso. saber que o contrato foi organizado em uma doutrina sistemática e coerente pela pri-
O§ 3º do art. 515 do Código de Processo Civil: uma análise à luz da filosofia herme-
meira vez. Ademais, o autor refere que a estruh1ra de conceitos contrah1ais dispostas
nêutica (ou hennenêutica filosófica) de Heidegger e Gadamer. Revista da Associação
na ordem estatal, por comungar desta origem comum. é similar nos sistemas de civil
dos Juízes do Rio Grande do Sul, n. 91, 2003, p. 17), razão pela qual a mesma influen-
law e common lall' (GORDLEY, James. The Philosophical Origins os Modern Con-
cia até mesmo o campo específico da interpretação dos contratos.
18 tract Doctrine. Nova Iorque: Oxford University Press, 1991. p. 1-2 e 230).
Como antes mencionado, a hennenêutica filosófica é adotada neste estudo como base 20
teórica primária, sendo que a concepção bettiana servirá, diretamente, para a apresen- HECK, 2007a.
21 As nomrns jurídicas são criadas a partir dos operadores deônticos pennitido, proibido
tação das diferenças de objetivos que existem entre uma apreensão ontológica e meto-
dológica do fenômeno hermenêutico. Contudo, como ficará claro no desenvolvimento e obrigatório.
22 Gadamer construiu rnn paradigma de compreensão w;iitário. não tendo se preocupado
da pesquisa, as diferentes pretensões de cada paradignrn não afastam as possibilidades
de diálogo, nas quais será possível identificar expressivas aproximações em temas de com as peculiaridades do projeto de dever-ser que constih1i o universo nom1ativo do
fundamental importância para o alcance da compreensão. Como refere Richard Pal- Direito. Nesses tennos, o exame das categorias presentes no Nomos Jurídico não visa
mer, há espaço para uma hennenêutica orientada pela objetividade e método e outra desconstruir a matriz gadameriana que se centra no·existencial do ser, mas inserir esta
pela historicidade da compreensão, sendo o fenômeno hennenêutico amplo e comple- dimensão em um mundo (jurídico) que é construído sob a promessa constante do de-
xo demais para abarcar apenas uma concepção (PALMER, 1997, p. 68 e 75-76). Nes- ver-ser. Dito de outra fonna, ao se trabalhar com as categorias do Direito, não se está
se sentido: VIOLA; ZACCARIA, 1999, p. 198-201. negando a natureza essencialmente ontológica da atividade hennenêutica.
28 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 29

s~o. (autoridade da tradição) ~ a questão da linguagem como princípios É a partir da estrutura do Dasein e do condicionamento da ati-
basicos e pressupostos produtivos pennanentes no caminho fenomenoló- vidade interpretativa à necessidade de "deixar a coisa falar" que se alcan-
gico em direção à coisa mesma, que se constitui na pedra fundamental ça a indispensabilidade hem1enêutica do raciocínio por concreção, pelo
sobre a qual é edificado um projeto prévio de compreensão. Esses pres- qual a força enunciativa dos elementos nonnativos contratuais passa a ser
supostos ~ão são af~s~ad~s nem mesmo quando se tem em vista um obje- compreendida em essencial coordenação com o caso concreto, em um
t~ essencialmente dmarni~o como o contrato. A realização da cornpreen- processo multidirecional entre Direito e realidade, dimensões que nesse
sao nunca começa do vazio e sempre coloca em jogo as várias possibili- paradigma passam a se complementar e interpenetrar continuamente.
dades de conhecimento por meio de urna estrutura prévia que condiciona Nesse viés, o contrato é interpretado a partir das circunstâncias concretas
a cornpreensã? _e fonna expectativas de sentido extraídas da relação pre- e de sua correlação com detenninados elementos nonnativos e axiológi-
ceden!e do suJeito cognoscente com o objeto. Nesse sentido, o agir inter- cos do sistemajurídico24 •
pretativo sempre pertence a uma situação hermenêutica específica e já se Porém, a tarefa deste estudo não se restringe à apresentação dos
~ncontra prefigurado pelos juízos prévios que o sujeito tem sobre o objeto matizes da concreção jurídica. A pesquisa alcança, ainda, os limites desta
mterpretado (pré-compreensão), os quais, de modo consciente ou incons- forma de raciocinar, fixando parâmetros e critérios que posicionem o
ciente, comandam seu discurso e compreensão. método concretista dentro de um quadro de inteligibilidade e controle
. Partindo desta projeção inicial, cabe ao intérprete esclarecer e intersubjetivos, já que seu excesso i!llpede processos de discernimento,
convahdar seus preconceitos (legítimos) por meio de mediações autênti- abstração, valoração, ordenação e sistematização; obstaculizando, assim,
cas (perguntas orientadas) no diálogo com a alteridade da coisa deixando o próprio nascimento e desenvolvimento do agir científico que se deve
pos~ibilidades ao objeto, o que ocorre quando não se silencia o' complexo fazer presente tanto na dogmática (aspecto teórico) quanto na narrativa
honzonte do contrato, que deve ser desvelado e trazido ao horizonte do jurídica (aspecto prático)25 • Este desiderato cumpre com a necessidade de
intérprete. Essa atividade, que é realizada sem a intervenção necessária de se impor limites à onipotência da reflexão 26, preocupação que diz com o
um procedimento metódico, dá-se estruturalmente de forma circular ou resguardo da segurança jurídica nas relações contratuais27 •
esp~alifonne (na dicção _de Hassemer), pois demanda que o intérprete Em tennos esfruturais, a primeira patte do estudo tem como
r~ahze um _retomo re~exivo e co~tinuo ao projeto prévio de compreen- objeto as especificidades próprias da atividade interpretativa, na qual
sao, a partrr da relaçao estabelecida e desenvolvida com a coisa a ser são enfrentados os pressupostos fundamentais da teoria geral da herme-
compreendida. nêutica (Tópico A) e desenvolvidas algumas das questões essenciais à
A necessidade imperativa e cogente do sujeito "deixar a coisa interpretação contratual (Tópico B). Assentadas as premissas basilares
falar" constitui-se na tarefa primeira, constante e última da atividade do fenômeno hennenêutico que se debruça sobre o instituto do contrato,
hennenêutica, já que esta se inicia na coisa, se desenvolve por meio de a segunda parte tem como tema a influência do método concretista no
mediações dialógicas entre o projeto prévio e o objeto e termina quando o âmbito da interpretação contratual, apresentando as considerações ge-
herme~eut~ encontra as verdadeiras possibilidades de interpretação na rais sobre o raciocínio por concreção (Tópico A) e enfrentando as pecu-
convahdaçao de tal projeto naquilo que está interpretando. O resultado liaridades da concreção fática, relativa ao contexto material significati-
de~tas _consideraçõ~s ~ o amál~ar~1a hermenêutico entre sujeito e objeto, 24 MARTINS-COSTA, Judith. O Método da Concreção e a Interpretação dos Contratos:
pois nao apenas o mterprete sai diferente do processo hennenêutico mas primeiras notas de uma leitura suscitada pelo Código Civil. /11: DELGADO, Mário
também a coisa, que embora mantenha sua singularidade (e a alteridade Luiz; ALVES, Joues Figueirêdo (prgs.). Novo Código Civil: questões controvertidas.
d~ tradição),. ganha_ novas e verdadeiras possibilidades de ser compreen- São Paulo: Método, 2005b. v. 4, p. 136-137.
dida, adqmrmdo diferentes unidades de sentido em um horizonte mais 25 MARTINS-COSTA, Judith. Prefácio. ln: CACHAPUZ. Maria Claudia. Intimidade e
amplo 23 • Vida Privada no Novo Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 2006. p. 35.
26
GADAMER, 2005, p. 449.
27
O contrato inegavelmente visa garantir previsibilidade e certeza aos contraentes.
23
~~ID"?-, Custódio ?e; FLICHINGER, Hans-Georg; RHODEN, Luiz. Hermenêu- pennitindo o planejamento particular. protegendo expectativas legítimas e razoáveis e
potencializando a possibilidade de cumprimento das promessas. tanto pela fomializa-
tica Filosofica: nas trilhas de Haus-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
p. 61-68. ção do acordo quanto pela possibilidade de coação estatal.
30 Felipe Kirchner

vo da relação contratual (Tópico B) e, ainda, da concreção normativa,


atinente à relação da pactuação privada com as diretrizes do ordenamen-
to jurídico (Tópico C).
Ence1rnndo esta parte introdutória, cabe destacar que o estudo
logrará êxito se sua narrativa contribuir, ao seu modo, para o delineamen- Capítulo I
to de uma doutrina jurídica da interpretação contratual que se conjugue
adequadamente com uma teoria da compreensão, de cujo amálgama seja
possível extrair a conciliação das pretensões objetivas da teoria herme- ,..
nêutica com o reconhecimento da subjetividade criadora do sujeito cog- ATIVIDADE HERMENEUTICA
noscente, na unidade integrante e dinâmica da transdisciplinariedade da
pesquisa que foi aqui proposta28 • Como fez Emílio Betti29 , no diálogo que
agora se passa a construir com o leitor cabe reivindicar apenas a liberdade
de manifestação do pensamento próprio do autor deste estudo científico, Procurando conjugar os campos da filosofia e da Teoria Geral
cumprindo a missão que cabe ao pesquisador de dizer a verdade segundo do Direito Civil, em um viés transdisciplinar que norteou e confonnou
sua ciência e convicção. esta pesquisa científica, a primeira parte do estudo está voltada para a
discussão das matérias atinentes às especificidades próprias da atividade
interpretativa. No primeiro tópico serão considerados alguns dos temas
referentes à teoria geral da hermenêutica, reservando-se para o segundo
capítulo o desenvolvimento de questões atinentes à teoria geral da her-
menêutica contratual.

1 O HORIZONTE DA ATIVIDADE HERMENÊUTICA

No presente tópico será apresentada a estrutura teórica do hori-


zonte hermenêutico, em seu plano geral, o que compreenderá tanto a fi-
xação de seu objeto, limites e alcance, como a defesa de um caráter pro-
dutivo, incompleto e crítico da interpretação. Subsidiária e complementa-
riamente, serão enfrentados algumas das estruturas e pressupostos fun-
damentais da teoria gadameriana que interessam à interpretação dos con-
tratos, exatamente por condicionarem e possibilitarem esta atividade.

1.1 O Objeto e os Limites da Atividade Hermenêutica

No paradigma gadameriano, a hennenêutica, enquanto teoria da


compreensão, consiste em tomar consciência do que realmente ocon·e
quando algo se oferece à compreensão e o sujeito compreende, consti-
tuindo-se, mais concretamente, na arte da interpretação daquilo que passa

28 REALE, 1999, p. 22.


2g BETTI, 2007, p. XV e XXXI-XXXII.
32 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 33

a ser compreendido30 • Nesses tennos, o desenvolvimento do pensamento Esta matriz teórica permite que a atividade hennenêutica con-
hennenêutico gadameriano não diz com "o que fazemos, o que devería- tratual alcance a conexidade existente entre a declaração negocial e os
mos fazer, mas (com) o que nos acontece além do nosso querer e fa- elementos fático-nonnativos que constituem a relação contratual. Porém,
zer"31, precedendo todo comportamento subjetivo e metodológico. toma-se produtivo traçar um paralelo desta vertente com a concepção
Para a hennenêutica filosófica, a dimensão exegética se encon- metodológica de Emílio Betti que, embora seja mais restritiva 34, aporta
tra na base de toda experiência de mundo 32 , pois a compreensão transcen- interessantes elementos para uma atividade hermenêutica jurídica, situada
de sua condição enquanto modo de conhecer, constituindo-se no próprio no plano do dever-ser, principalmente no que respeita à centralidade des-
modo de ser do homem. O sujeito sempre interpreta, uma vez que é a tinada à questão da fonna.
atividade hennenêutica que produz toda e qualquer compreensão. Essa Para o jurista italiano, a possibilidade de compreensão surge
noção amplia significativamente o objeto da atividade hermenêutica, que quando o intérprete se encontra na presença das chamadas formas repre-
passa a responder, também no plano da práxis, pela experiência e realida- sentativas35. Enquanto o vocábulo forma denota a relação unitária de
de que engloba o intérprete, o objeto e a relação destes entre si e com o elementos sensíveis que conserva a marca de quem a criou (aspecto físico
mundo (natural e jurídico) que os constitui e condiciona33 • da declaração ou comportamento )36, o tenno representativa diz com a

30
GADAlvIER, Hans-Georg. Poen1a y Dialogo: reflexiones em tomo a uma selección de dir o aspecto teórico e prático, já que "a 7iermenêutica filosófica não é ela própria a
textos de Ernst Meister. ln: GADAlvIER, Hans-Georg. Poema y Dialogo: ensayos so- arte do compreender, mas a sua teoria" (GADAlvIER, 2004, p. 10 e 34).
bre los poemas alemanes más significativos dei siglo XX. Barcelona: Gedisa, 1993ª. 34 PESSOA, Leonel Cesarino. A Teoria da Interpretação Jurídica de Emilio Betti: dos
p. 144; GADAlvIER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: Heidegger em métodos interpretativos à teoria hermenêutica. Revista Trimestral de Direito Civil,
retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2007a. v. 1, p. 94-95. v. 6, 2001. p. 64-66. Na mesma passagem o autor aponta que Emílio Betti distingue a
31 interpretação de outras fonnas de conhecimento quando restringe seu objeto às fonnas
Refere Gadamer que a atividade hennenêutica é "o modo de ser da própria pré-sença
(Dasein)", e que "hermenêutica é uma palavra que a maioria das pessoas não conhe- representativas, conceito com características bastante próprias. O objeto da interpreta-
ce (. ..) nem precisa conhecer (. ..) mas ainda assim a experiência hermenêutica atinge- ção bettiana não é uma coisa simples, mas uma objetivação do espírito, fato que irá
as e não as exclut', o que denota que a compreensão é um acontecimento, e não mais condicionar toda a construção teórica, culminando na concepção reconstrutiva do pro-
llll1 mero processo mecânico de aprendizagem. Este aspecto é tão relevante na obra cedimento hermenêutico, como será apresentado no tópico "O caráter criativo, cons-
gadameriana que o filósofo refere que, originarian1ente, pretendia nominar sua obra trutivo e produtivo da atividade hennenêutica".
Verdade e Método com o título Compreensão e Acontecimento (GADAlvIER, 2005, 35 BETft Enlilio. Teoria Generale della Interpretazione. 2. ed. Milano: Giufrré,
p. 14 e 16; GADAlvIER, 2004, p. 280, 561 e 563; GADAlvIER, 2007a, p. 115; GA- 1990a. v. L p. 59 e 62.
DAlvIER, Hans-Georg. Herança e Futuro da Europa. Lisboa: Edições 70, 1998c. 36 BETIC Enrilio. Teoria Generale della Interpretazione. 2. ed. Milano: Giufrré~
p. 24). Após Gadamer, a compreensão não pode mais ser vista como um simples ato 1990b. v. 2, p. 802 e 817. Miguel Reale entende que "ao contrário de preexistirem no
do homem, tendo de ser quantificada enquanto evento que ocorre no homem (PAL- espírito formas definitivas, o que o caracteri=a é antes o poder de ir sempre consti-
MER, 1997,p. 217). tuindo novos e adequados esquemas e processos de capatação do real, o qual, a rigor.
32
A visão de Gadamer é tão ampla que abarca, inclusive, o estudo dos fenômenos natu- só existe sob o prisma gnoseológico, enquanto se converte em objeto" (REALE, 1999.
rais (GADAlvIER, 2004, p. 138). Emilio Betti discorda deste entendimento, referindo p. 33). A questão da fonna e de sua representatividade é de fündan1ental importância
ser impróprio qualificar como interpretação o diagnóstico de um fenômeno fisico e a no campo jurídico, especialmente de sua interpretação, pois enquanto em outras esfe-
explicação de fenômenos naturais (BETTI, 2007, p. XLII, XCIV e XCIX). A centrali- ras de manifestação humana (v.g.: arte) a representação não se encontra aprioristica-
dade da atividade hem1enêutica uo plano da interpretação dos contratos é evidenciada mente vinculada a uma fomia. no direito a representatividade nonnativa legal e con-
por Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria (VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 105, 129- tratual se encontra invariavelmente, e·m maior ou menor grau, vinculada a uma deter-
133, 183 e 435). minada forma prescrita para o âmbito material ou processual (ex.: tipos contratuais,
33
GADAlvIER, 2004, p. 566; GADAlvIER, 2007b, p. 180. Na teoria gadameriana a cláusulas obrigatórias, número mínimo de testemunhas, etc.). Como salienta Betti, "o
experiência e a realidade estão dimensionadas no âmbito racional do que pode ser ob- negócio deve responder àqueles mesmos requisitos de estrutura a que deve satisfa::er
jeto de acordo, o que circunscreve a hem1enêutica dentro de uma dimensão ético- para configurar 11111 negócio existente e válido: os requisitos de relevância para a in-
prática (SILVA, Rui Sampaio. Gadan1er e a Herança Heideggeriana. Revista Portu- te,pretação são ligados por um nexo de coerência harmônica aos requisitos estrutu-
guesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Facnldade de Filosofia de Braga, jul./dez. rais de validade e de existência jurídica'' (BETII,2007, p. 350; BETTI. Emílio. Teo-
2000b, p. 529-530). O caráter prático da atividade hermenêutica é salientado por Ga- ria Geral do Negócio Jurídico. Campinas: LZN, 2003b. t. 2. p. 11~)- Como contrato
damer quando este afirma que "a essência da reflexão hermenêutica consiste justa- e autonomia privada são fenômenos sociais, a fomia atende a uma exigência de recog-
mente em que ela deve surgir da práxis hermenêutica", embora não se possa confim- noscibilidade. essencial ao entendimento da espiritualidade alheia. uma vez que um
34 h1terpretação Contratual 35
Felipe Kirchner

manifestação de um espírito revelado ao intérprete por meio da fonna e Conjugando as teorias, pode-se afinnar que, enquanto para Ga-
que com ele procura comungar (plano metafisico do sentido da comum damer o objeto da interpretação é a própria realidade (limitada pela lin-
intenção das partes contratantes). Sob o prisma da teoria bettiana, o obje- guagem e historicidade )41 , para Betti a coisa a ser conhecida é mais restri-
to da interpretação é a manifestação objetiva de um pensamento que se ta, pois se encontra limitada pela noção deformas representativas. Embo-
consubstancia por meio de um comportamento prático. A representativi- ra a dissonância, as c01Tentes de pensamento concordam que a· interpreta-
dade do pensamento (situação objetiva complexa) chega ao intérprete por ção tem como objeto um sentido que não se limita à fonna e aos elemen-
intermédio da forma (declaração negocial e circunstâncias) 37 , razão pela tos fisicos que a constituem. Como refere Emílio Betti no contexto her-
qual o objeto da interpretação não é uma espiritualidade que fala ao intér- mético de seu pensamento, o "objeto de inte,pretação é sempre a decla-
prete (vontade subjetiva), mas a objetivação de uma espiritualidade em ração documentada (ato representativo da a11to11omia), e não o docu-
uma detenninada fonna (representativa) que se põe entre a espiritualidade mento que a representa"42 .
do autor e do intérprete, em um processo triádico que envolve a fo11na Assumido o paradigma gadameriano de que o procedimento
representativa e dois polos espirituais38 • Contudo, cabe destacar que o hermenêutico sempre ocorre, mesmo quando o intérprete se depara com
presente estudo rechaça esta cisão, encampando a noção gadameriana de um objeto de fácil compreensão já que não há como fugir do fato de
que na atividade hermenêutica inexiste uma separação entre sujeito e que a compreensão se realiza por meio da interpretação -, cabe enfrentar
objeto. a questão da (in)aplicabilidade do bi;:ocardo in claris cessat (11011 .fit) i11-
Existem dois aspectos da teoria bettiana que merecem ser desta- te1pretatio43, representativo da ideia de que as disposições claras dispen-
cados. Primeiro, o efeito representativo do objeto independe da intenção e sam o interpretar44 • Esta questão detém grande utilidade prática, seja por-
do pensamento ter sido manifestado com um fim representativo, razão
espírito diferente, conforme o espírito da época e da sociedade para a qual a norma é
pela qual faz pat1e da atividade hennenêutica a busca pelo valor (repre- destinada a valer" (BETTI, 2007, p. 32).
sentativo) implícito nos comportamentos práticos que dizem com o negó- 41 A henuenêntica filosófica visa exatamente a superação da filosofia da subjetividade a
cio jurídico39 • Segundo, a representatividade contida na forma é dinâmica partir da quantificação do vínculo do sujeito cognoscente à tradição e a influência da
e dialoga com o entorno sociocultural e histórico em que o objeto está história na construção de qualquer texto. admitindo que o intérprete jamais conseguirá
inserido, o que remete à necessidade de um raciocinar por concreção4º. superar a sua própria facticidade. detenuinadora da sua experiência de mundo (OLI-
VEIRA. Manfredo Ara(tjo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia
Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001. p. 227-229).
ato só é reconhecível pelos outros por meio de sua forma e nenlmm negócio existe 42 BETTI, 2007, p. 400.
sem uma forma que o tome socialmente reconhecível, pois é esta que revela a tomada -B Carlos Maxinriliano adverte que o brocardo . en1bora expresso etn latin1~ não te111
de posição do contratante em relação aos interesses em jogo, mesmo que este não te- origem romana. pois Ulpiano ensinou exatamente o contrário: quamvis sit ma11ifestis-
nha consciência disto. Por fim, cabe destacar que esta recognoscibilidade é dirigida, si11111111 edictum praetoris, attamen 11011 est 11eglige11da i11te1pretatio ejus (embora cla-
pois a exigência não abrange toda a sociedade, mas o círculo onde o contrato possui ríssimo o édito do pretor. não se deve descurar da interpretação respectiva). O autor
relevância jurídica, em confomudade com a estrutura típica do negócio (BETTI, ainda adverte que a este conceito os tradicionalistas opõem a máxima de Paulo: cum
2007, p. 350; BETTI, Enulio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Campinas: LZN, in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quaestio (quando nas pa-
2003a. t. 1, p. 79, 181, 183 e 187; BETTI, 2003b, p. 179). lavras não existe ambiguidade. não se deve admitir a pesquisa acerca da vontade ou
31 BETTI, 1990a, p. 61; BETTI, 2007, p. XX:XIII-XCVII. Mister se faz esclarecer que a intenção). Contudo, confom1e consta no Digesto, este brocardo só se refere aos testa-
noção de fonua representativa não se limita às declarações negociais externadas, pois mentos, enquanto a paremia de Ulpiano abrange a generalidade dos éditos pretorianos
o conceito encampa até mesmo o silêncio, objeto de grande significância no âmbito (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Porto Alegre:
jurídico (MEGALE, Maria Helena Damaceno e Silva. A Teoria da h1terpretação Jurí- Globo. 1925. p. 40-41).
44 FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contrato: conceito, fontes, fonnação. Coimbra:
dica: um diálogo com Emílio Betti. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 91,
jan./jun. 2005, p. 155). Almedina, 2005. p. 140. O brocardo pode ser lido dt; duas fonnas: nonfit, indicando
3s ME GALE, 2005, p. 148-149. Analisando a estrutura interna da construção dogmática que quando da clareza não há interpretação: e cessai, indicando que. em face da clare-
linguística de Betti, pode-se afirmar que o conceito de fom1as representativas passa a za, a interpretação deve ser "interrompida". Claudio Scognamiglio ressalta uma outra
ser significante da própria linguagem presente na atividade hennenêntica. apreensão da paremia. a qual indica que, quando o ·significado textual é unívoco, não
39
BEITI, 2007, p. XXXV-XXXVI. podem ser usados cânones hermenêuticos diversos daqueles que pregam o resguardo da
40 literalidade do instrumento contratual (SCOGNAMIGLIO, Claudih: Interpretazione
Emílio Betti colaciona o exemplo da transformação da interpretação da lei sem altera-
dei Contratto e Interessi dei Contraenti. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani
ção (legislativa) de seu texto, pois a redação da nonna pode ser ''preenchida por um
36 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 37

que a noção existe desde o romantismo 45 e ainda se encontra disseminada não estando a interpretação do contrato condicionada ao fato dele não ser
em muitos manuais, seja porque até mesmo pensadores de enon11e rele- claro (deixar margem a dúvidas)49 •
vância (como o próprio Gadamer) deixam margem a contradições com o A segunda, de que os textos jurídicos carecem de interpretação
entendimento de que a atividade hen11enêutica é inerente a qualquer for- não apenas quando são destituídos de clareza, mas sempre, especialmente
ma de conhecimento humano 46 • pelo fato de que devem ser aplicados a detenninados casos concretos,
O aporte teórico da teoria aqui sustentada pen11ite a superação tarefa para a qual inexistem soluções previamente estruturadas e que le-
do brocardo. Nesse sentido, Miguel Reale entende que a regra jurídica vem em consideração apenas o objeto interpretado 50 • A interpretação
''jamais pode deixar de ser inte,pretada, não podendo haver norma que literal do brocardo considera como suficiente a enunciação da disposição
dispense inte,pretação (essencialidade do ato inte1pretativo)"47 • Não se nonnativa como juízo lógico, ignorando que a nonna se trata de um ins-
deve confundir interpretação com dificuldade de interpretação, não sendo trumento disciplinador de relações sociais e que, por essa razão, sua aná-
a obscuridade um pressuposto para a necessidade de efetivação da com- lise sempre depende de sua inserção nas questões práticas do caso concre-
preensão, o que traz consigo duas conclusões, explicitadas a seguir48 • to. A atividade hermenêutica não se compadece com a mera subsunção,
A primeira, de que a qualificação de clara concedida à deten11i- pois demanda questões relativas à aplicação dos preceitos51 •
nada diretriz nonnativa somente pode ser um resultado do processo inter- Os problemas trazidos pelo brocardo apenas são evitados com a
pretativo, e nunca um dado preexistente e pressuposto, o que ignoraria o seguinte restrição da máxima em exame: as regras claras dispensam
caráter construtivo da exegese. A clareza não é premissa, mas resultado, (apenas) o esforço inte,pretativo. Embora todo texto deva ser interpreta-
do, nem todo texto apresenta dificuldades de compreensão 52, com o que
concorda Gadamer quando afinna que "todo esforço de querer compreen-
(CEDAM), Padova,1992, p. 301). Nesta parcela do estudo a discussão acerca dobro-
cardo em exame enfatizará a primeira acepção apresentada (quando da clareza não há
der começa quando nos deparamos com algo estranho, provocante e
interpretação). desorientador" 53 •
45
ALMEIDA; FLICHJNGER; RHODEN, 2000, p. 176.
46
STElN, 2004, p. 51. Exemplificativamente, cabe colacionar três passagens da obra 49 BETTI, 2007, p. 231-232: GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso Sobre a Inter-
gadameriana onde se verificam as aparentes contradições mencionadas: (1) "A tarefa pretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 70-71: AMARAL,
da inte1pretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é con- Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 94:
troverso e é preciso alcançar a reta compreensão da biformação" (GADAMER, MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Interpretação do Negócio Jurídico: pano-
2004, p. 398); (2) "a hermenêutica se impõe onde não há entendimento com os de- rama geral e a ah1ação do princípio da conservação. Dissertação apresentada na Uni-
mais e consigo próprio" (GADAMER, 2004, p. 213); (3) "hablamos de inte1pretació11 versidade de São Paulo, Faculdade de Direito, 2003. p. 65: GRASSETTI. Cesare.
cuando el significado de 1111 texto no se comprende en 1111 primer momento. Una inter- L'Interpretazione dei Negozio Giuridico: con particolare riguardo ao contratti. Pa-
pretación es entonces necesaria; en oiros términos, es preciso uma reflexión e.,plícita dova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 1983. p. 96-97: ALPA, Guido:
sobre las condiciones que hacen que el texto tenga tal o cual significado. EI primer FONSI, G.: RESTA, G. L'Interpretazione dei Contratto: orientamenti e tecniche
presupuesto que implica el concepto de inte1pretación es el carácter 'extrafío' de della giurisprudenza. Milano: Dott. A. Giuffré, 1983. p. 165-166. Como adverte Jorge
aquello que debería ser compreendido. En efecto, aquel/o que es inmediatamente evi- Santa Maria, a obscuridade e o juízo de validade do contrato não são requisitos para a
interpretação, pois tais qualificações (clareza e validade) são exatamente os resultados
dente, aquel/o que nos convence por la simple presencia, no reclama ningzma inter-
da atividade hermenêutica, mais precisamente do momento indissociável que Gada-
pretación" (GADAMER, Hans-Georg. EI Problema de Ia Conciencia Histórica.
mer denomina de aplicação (SANTA MARIA, Jorge Lopez. Interpretación y Califi-
2. ed. Madrid: Tecnos, 2003. p. 43-44). cación de los Contratos frente ai Recurso de Casación en el Fondo en Materia
47
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. São Paulo, 1968. p. 250; REALE, Civil. Chile: Juridica de Chile, 1966. p. 12-14, 31, 45-46).
Miguel. Diretrizes de Hermenêutica Contratual. ln: REALE, Miguel. Questões de Di- 50 GRAU, 2003, p. 25 e 32. .
reito Privado. São Paulo: Saraiva, 1997b. p. 3. 51
A noção de que a hermenêutica é um processo unitário envolvendo compreensão,
48 interpretação e aplicação, será enfrentada no tópico seguinte, intihilado "A delimita-
ALMEIDA; FLICHJNGER; RHODEN, 2000, p. 177; MIRANDA, Custódio da Pie-
dade Ubaldino. Interpretação e Integração dos Negócios Jurídicos. São Paulo: Re- ção do horizonte hermenêutico".
52
vista dos Tribunais, 1989. p. 118; FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação SILVA, Sergio André R. G. da. A Hermenêutica Jurídica sob o Influxo da Hennenêu-
das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 129-130: HESSE, Konrad. Ele- tica Filosófica de Hans Georg Gadamer. Revista Tributária de Finanças Públicas,
mentos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Ale- 11. 64, set./out. 2005, p. 290-291. , ··
53
gre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. p. 53-54. GADAMER, 2004, p. 217-218.
38 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 39

Como neste tópico está-se enfrentando os limites do agir her- intérprete para a alteridade do outro e/ou do texto, e a sua disposição de
menêutico, cabe delinear que nessa atividade há uma pertença do sujeito deixar valer algo contra si, ainda que não haja nada ou ninguém que
cognoscente com relação ao objeto a ser conhecido, ou seja, há um cons- assim o exija, além de seu rigor ou consciência científica57 •
tante atuar da coisa sobre o intérprete54 • A tarefa primordial do sujeito é A aceitação da força vinculante do objeto interpretado não limi-
não permitir que suas concepções prévias sejam impostas perante o obje- ta o projeto da compreensão, mas o expande para um âmbito além das
to e o sobrepujem fora da relação da circularidade hennenêutica, pois a próprias possibiliçlades do intérprete, âmbito demarcado por seu horizonte
compreensão deve surgir da coisa mesma. Em outros termos, o intérprete hennenêutico58 • E no objeto que o intérprete tem um encontro consigo
deve deixar a coisa falar 55 , já que a hermenêutica filosófica reconhece mesmo, devendo reconhecer no outro e no diverso a alteridade do comum
que aquilo que se compreende fala também e sempre por si próprio: a (fusão de horizontes)59 , razão pela qual a pertença do intérprete ao objeto
pretensão de verdade contida no objeto surge como sendo a premissa de interpretado não indica uma prevalência hierárquica deste e nem ilide a
todo o esforço hennenêutico, o qual somente se torna eficiente dentro dos condição do sujeito como elemento produtivo da atividade hennenêutica,
limites estabelecidos pela coisa56 • O compreender exige a abertura do uma vez que o produto não é o produtor60 .
No campo da hetmenêutica contratual, a força vinculante do ob-
5
-1 Gadamer refere que todos os seus trabalhos hermenêuticos surgiram da ideia de forta- jeto interpretado diz diretamente com o primado do texto da declaração
lecimento do outro contra si, ou seja, do deixar o outro viger contra si mesmo (GA- negocial61 , mas também com a complexidade das circunstâncias (fáticas e
DAMER, 2007b, p. 23-24). Sobre o tema, refere Miguel Reale que "o espírito proje-
ta-se sempre, e necessariamente, como intencionalidade, para algo, para o ser, e isso
mente, jogando para o plano argumentativo a própria compreensão, como ocorre usual-
de111onstra que o ho111e111 não conhece porque quer, mas si111 porque, em grau maior
mente na lide forense. Nas palavras de Fernando Pessoa (PESSOA. Fernando. Liber-
ou 111enor, não pode deixar de conhecer" (REALE, 1999, p. 53), afirmando ainda que
dade), não pode o sujeito cognoscente transfom1ar os objetos interpretados em "pa-
"todo ser (. ..) para ser suscetível de conheci111ento, já deve ter, i111anente a ele, alg11-
peis pintados com tinta", aplicando-os em uma situação em que está indistinta "adis-
111a possibilidade de deter111inação, co1110 condição lógica a priori de sua apreensão
tinção entre nada e coisa nenhuma".
pelo szyeito, que só 'cria• o objeto na medida em que tra= algo para si, na condicio-
nalidade de suas possibilidades de captação" (REALE, 1999, p. 33). Erich Danz con- s1 GADAMER. 2005, p. 355-358 e 472: GADAMER. 2007a. p. 107: GADAMER.
corda com tais premissas, referindo que, no plano contratual, a declaração de vontade Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática.
só produz os direitos e obrigações que correspondam a sua significação (DANZ, Petrópolis: Vozes, 2007c. v. 3, p. 79: GADAMER, Hans-Georg. Yo y Tu. la Misma
Erich. La Interpretación de los Negocios Jurídicos. 3. ed. Madrid: Revista de Dere- Alma. ln: GADAMER, Hans-Georg. Poema y Dialogo: ensayos sobre los poemas
cho Privado, 1955. p. 16). alemanes más significativos dei sigla XX. Barcelona: Gedisa, p. 57-61, 1993c,
55
GADAMER" 2004" p. 331: GADAMER. 2005 . p. 355 e 385-386; GADAMER.. 2003., p. 60-61.
58 GADAMER, 2007b, p. 23-24. Cotejando a doutrina exposta com a teoria bettiana,
p. 100. Gadamer refere que '"a tarefa hermenêutica se converte por si 111es111a 1111111
questiona111ento pautado na coisa em questão, e já se encontra sempre co- para além das semelhanças existentes com o cânone da autonomia do objeto. o postu-
determinada por esta" (GADAMER, 2005, p. 358). Em outra passagem, o filósofo lado da força vinculante do objeto interpretado se aproxima do conceito de forma re-
afimrn que "o sentido que se deve co111preender somente se concreti=a e se completa presentativa, no sentido de que parte significativa da promoção da experiência deriva
na interpretação", e '"esta ação inte1pretadora se 111anté111 totalmente ligada ao senti- do próprio objeto em sua fomrn. A diferença entre os posicionamentos reside no fato
do do texto. Ne111 o jurista e 11e111 o teólogo consideram a tarefa de aplicação como de que o pensamento de Gadamer está focado totalmente no plano hem1enêutico da
11111a liberdade .fi·ente ao texto" (GADAMER, 2005, p. 436). Heidegger descreve esta fusão dos horizontes, enquanto Betti ressalta a importância do objeto tisico na sua
estrutura na dinânúca do "ler o que está lá". condição de portador de um sentido espiritualizado, o que não parece ensejar uma re-
56
GADAMER, 2004, p. 317, 331-332, 394 e 529. O texto não é um pretexto para que o futação completa dos conteúdos contidos nas duas teorias. em termos comparativos.
intérprete fale aquilo que lhe convém (ALVARENGA, Lúcia Barros Freitas de. Direi- SQ GADAMER, 2007c, p. 25. A pertença do sujeito ao objeto interpretado ressalta.
tos Humanos, Dignidade e Erradicação da Pobreza: uma dimensão hermenêutica ainda, a atribuição vinculada do intérprete-na construção do significado. A defesa da
para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. p. 215), questão que força vinculante do objeto diz com a busca de um nonnativismo ético por intem1édio
deve ser bem entendida, pois não há outro critério de objetividade além do contraste das linútações do construir no processo hermenêutico,. aumentando o poder de vincu-
das opiniões prévias do intérprete com as coisas mesmas (ALMEIDA; FLICHlNGER; latividade do contrato.
60
RHODEN, 2000, p. 62). Contudo, deve ser esclarecido que a força vinculante (auto- REALE: ANTISERI, [s.d.], p. 249.
61
nonúa do objeto) não é absoluta, pois jamais pode recair em uma ingênua negação da Mesmo em um paradigma hennenêutico abrangente pode-se defender a existência de
intersubjetividade. Nesses termos, núster se faz mencionar que os problemas herme- uma base semântica possível de significação e de um linúte semântico intransponível.
nêuticos surgem não apenas quando o operador deixa de perceber o caráter vinculante As expressões e vocábulos fonnadores da declaração negocial possÚém certa expecta-
do objeto interpretado, mas também quando adota esta dimensão apenas discursiva- tiva de sentido relacionada com os usos da linguagem e com as defmições de direito
Interpretação Contratual 41
40 Felipe Kirclmer

normativas) em que construída e desenvolvida a relação contratual. 62 Em va que deriva da alteração das relações fáticas e axiológicas64 • O sentido
face desse contexto, o intérprete deve exercitar um prudente positivis- literal possível da declaração negocial surge como limite à interpretação
mo63, pois a declaração contratual surge como limite à mutação nonnati- (base semântica possível de significação), detendo uma dupla •missão: é
ponto de pattida para a indagação do sentido e traça, ao mesmo tempo, os
Privado, o que se apresenta como limite à atividade interpretativa (LARENZ, 1989, limites da atividade interpretativa65 . O primado do texto contratual, que
p. 168; ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplica- importa na quantificação da autonomia privada66, indica que uma exegese
ção dos princípios juridicos. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 108; RE 71.758, Min. que não se situe no âmbito do sentido literal possível do pacto67 ou no
Oswaldo Trigueiro). Ademais, a discricionariedade e a criatividade da interpretação significado intelectivo possível das pretensões e motivações objetivas das
está limitada pelo significado usual e real dos termos (situações de uso da língua)
(OLIVEIRA, 2001, p. 13), sendo que a realização de uma redefinição (atribuição de
partes (além das possibilidades de sentido da relação obrigacional) já não
sentido que não corresponda aos usos) é possível, desde que justificada e livre de arbi- é propriamente interpretação, mas, sim, modificação de sentido, o que
trariedades, com fundamento nas circunstâncias do caso que constituem a situação ob- foge à competência do operador jurídico68 •
jetiva complexa.
62
Como refere Karl Larenz, "'o jui:; está, na inte1pretação do contrato, vinculado às 6-1 HESSE. Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio
bases de valoração aceites pelas partes, se é que a sua actividade haja ainda de con- Fabris, 1991. p. 23.
tinuar a ser inte,pretação do contrato" (LARENZ, 1989, p. 362). O caráter vinculan- 65 LARENZ. 1989. p. 387. É o sentido literal que delineia o quadro das significações
te da coisa, em dizendo também com as circunstâncias (fáticas e normativas) em que que podem, a priori, ser atribuídas à declaração negocial (função delinritadora) embo-
construída e desenvolvida a relação contratual, alcança vários aspectos do não dito. ra deva ser considerado que o sentido literal é sempre incerto, hipotético e equívoco
Para além do pressuposto hermenêutico de que é o não dito que converte o dito em (FERRARA, 1987, p. 140; LARENZ, 1989, p. 387, p. 417: MARINO, 2003, p. 81).
palavra que pode alcançar o homem (v.g.: pergunta que o texto se propõe a respon- Custódio Miranda adverte, ainda, que "da análise do direito comparado pode concluir-
der), não são raras as situações em que o não dito ganha mais relevância que aquilo -se que o sentido literal da linguagem, na inte1pretação dos negócios jurídicos, cons-
que se encontra expresso. O texto narrativo do Direito tem natureza ambivalente, pois titui-se apenas no ponto de partida e que todos os sistemas, com exceção do anglo-
encampa aquilo de que fala, mas também aquilo de que nele falta, sendo relevante americano, recomendam que, na dúvida 011 ambiguidade de tal sentido, se indague a
hem1eneuticamente não apenas suas presenças, mas também suas ausências. Como sa- intenção que lhe está subjacente" (MIRANDA, 1989. p. 223-224).
lienta Carlos Ferreira de Almeida, "o texto exprime, para além do que é dito e referi- 66 o operador não pode superar ou desconsiderar a autonomia dos contraentes, atribuin-
do, também o que não é dito, mas só pressuposto e implícito, segundo uma lógica do ao contrato significados não partilhados pelas partes. o que importa na considera-
conversacional, que interfere igualmente na compreensão e a completa" (FERREIRA ção de uma limitação da interpretação pela quantificação da autononria pdvada. A fi-
DE ALMEIDA, 1992, p. 165). Exemplificativamente, cabe mencionar o voto do mi- xação das cláusulas contratuais envolve a seleção de determi11ados cdtérios e a conse-
nistro Carlos Britto na ADI 3.510, relativa à Lei da Biossegurança (11.105/2005), on- quente desconsideração de outros. Como salienta Joaquim de Souza Ribeiro, enquanto
de, tratando sobre a questão do valor "vida humana", normatizado por intermédio do instrumento de autodetemlinação, o negócio jurídico é um meio de exprimir preferên-
princípio constitucional de sua proteção, o julgador assim destacou: "A nossa Magna cias subjetivas em relação aos bens e às pessoas: e esta liberdade emocional e de sen-
Carta não diz q11a11do começa a vida lm111a11a. Não dispõe sobre nenhuma das for- timentos juridicamente insindicável por critérios de racionalidade (RIBEIRO, Joa-
mas de vida humana pré-natal. (. ..) E como se trata de uma Constituição que sobre o quim de Sousa. A Constitucionalização do Direito Civil. Boletim da Faculdade de
início da vida humana é de 11111 silêncio de morte (permito-me o trocadilho), a ques- Direito, Coimbra, v. LXXIV, 1998. p. 751-752) deve ser necessariamente quantifica-
tão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas da no âmbito da atividade interpretativa. Não cabe ao intérprete considerar critérios
em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo desconsiderados pelas partes (mutismo hermeneuticamente significante), pretendendo
Direito infraconstitucional e em que medida". razão pela qual o "mutismo hermeneu- a superação da disposição contratual. assim como descabe uma superação simulada
ticamente significante'' redunda no "transpasse de poder normativo para a legislação por meio da dissociação de uma hipótese não contida na hipótese objeto da contrata-
ordinária ou usual". ção. Por fim, cabe frisar que a autonomia aqui referenciada não é mais reflexo da sub-
63
GRAU, 2003, p. 119. Cabe referir que a expressão foi cunhada por Canotilho. Sobre o jetividade das partes (autonomia .da vomade). mas mna representação da conjunção
tema, destaca Hesse que a possibilidade de realização (criativa) das nonnas juridicas bilateral de vontades objetivada no instrumento contratual, estando os marcos defini-
dos exatamente pela situação objetiva complexa que constitui a relação obrigacional
sempre fica vinculada justamente a estas nom1as, razão pela qual os sentidos construí-
(GADAMER, 2004. p. 305). '
dos em contradição com elas não podem ser considerados uma realidade hennenêutica 67
legítima (norma realizada) (HESSE, 1998. p. 51 e 69-70). Eros Grau, por sua vez, re- O sentido literal possível do pacto deve ser entendido como sendo "tudo aquilo que
fere que '·a abertura dos textos do direito, embora s1ificiente para permitir que o di- nos termos do uso linguístico que seja de considerar como determinante em concreto
reito permaneça ao serviço da realidade, não é absoluta. Qualquer inté,prete estará, (. ..) pode ainda ser entendido com o que este termo se quer di:::er'' (LARENZ, 1989,
sempre, permanentemente por eles atado, retido. Do rompimento desta retenção (.. .) p. 387-388). , .·
68
resulta a subversão do texto" (GRAU. 2003, p. 52). LARENZ.1989,p.387-388.444.517-518.
42 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 43

Entretanto, o respeito ao primado do texto contratual não deve vos da situação objetiva complexa, a partir do qual o intérprete deve bus-
ser confundido com a pretensão metodológica da interpretação literal 69 , car a significação com suporte nas circunstâncias fáticas e nonnativas 73 •
pois os marcos do sentido literal linguisticamente possível são alcançados Referido que a atividade interpretativa está presente ein toda e
não somente pela análise isolada e matemática dos signos que compõem a qualquer fonna de compreensão, pois se constitui no próprio modo de ser
nonna contratual, mas também pela teleologia imputada ao instrumento do homem, passa-se à análise da delimitação do horizonte hermenêutico.
pelos próprios contraentes e, principalmente, pelo contexto em que se
insere o contrato a ser compreendido70 • Nesse sentido, deve o intérprete
cotejar o sentido literal da declaração com o curso da dinâmica contratual 71 • 1.2 A Delimitação do Horizonte Hermenêutico
O sujeito cognoscente não deve interpretar os elementos textuais apenas
Tradicionalmente a atividade hennenêutica se encontra segmen-
quantificando o seu valor literal, pois as palavras devem ser vistas e revis-
tada, havendo a divisão dos fenômenos da compreensão (subtilitas intel-
tas em seu valor relacional (universo contextual, intertextual e correlacio-
!igendi), da interpretação (subtilitas explicandi) e da aplicação (subtilitas
nal)72. O instrumento contratual é um marco dentre os elementos fonnati-
applicandi), os quais eram corretamente vistos mais como uma aptidão
69
do que como um método voltado à compreensão 74 • Contudo, na ótica
Cabe enfatizar que aqui não se está defendendo que a interpretação esteja limitada
pelo sentido literal da declaração ou pela superficialidade de análise da relação obri-
gadameriana a hennenêutica passa a ser considerada como sendo um
gacional, mas, sim, que o resultado da mesma deve se situar, ao menos, nos marcos de processo unitário envolvendo compreensão, interpretação e aplicação 75•
sentido (possíveis) postos pelos contratantes. Parece de todo evidente a necessidade
de superação da interpretação gramatical, em face de sua insuficiência (VIOLA,
ZACCARIA, 1999, p. 182). Nesse sentido: "apelação cível. Ação civil pública. Prá- trajeto e o domínio dos conceitos a que pertencem. A importância desta dimensão de
ticas lesivas ao meio ambiente. O jui= que interpreta a lei tão-só pela ótica /itero-- conexidade sociocultural dos tem10s linguísticos não se limita a uma influência unila-
gramatical sempre há de pecar pela insuficiência jurisdicional. Pela nature=a mesma teral, pois as palavras são artefatos sociais. São produtos. mas também são produtores
das coisas, os encarregados de aplicar a lei estão predestinados a superar o conhe- de sentido social, pois toda palavra é um verbo instituinte. Ademais, as palavras são
cimento que da matéria regulada possuía o legislador. O direito desborda da norma sin1bolos que aspiram uma e;<lstência compartida, pois os tenuos linguísticos utiliza-
formal que o contém - posto que vive agitado pelas circu11stâ11cias, sempre inquietas, dos em uma dimensão henuenêutica dialógica pertencem ao sujeito. aos seus interlo-
do quotidiano. Sob a "máscara da inte1pretação", se oculta se111pre a construção de cutores e ao objeto tratado (MARTINS-COSTA. Judith. Aulas ministradas na cadeira
uma nova norma, adequada à justa solução do caso concreto recla111ada a cada no- Fundamentos Culturais do Direito Privado (DIRPIO0), proferida em 2008/I, no
vo instante da realidade social, essencial111ente dinâmica. E este é desafio do jurista PPGDir/UFRGS, 2008).
73 Na hermenêutica jurídica o constante apelo ao texto é algo natural e justificado pela
co111pro111etido co111 o be111 social conseqüente à sua jurisdição, resultado do interesse
público subjacente. Assi111, não se pode co111eter o equívoco da inte1pretação 111era- questão da segurança (seguro adicional às relações orais), devendo a redação de leis e
111ente léxica.formal, ortodoxa, literal, gra111atical, pena de incorrermos na falácia da contratos ser extremamente rigorosa. Contudo. a fommlação escrita sempre prevê es-
forma lógica do inte,pretar. A necessidade de encontrar solução justa para os casos paço ao jogo linguístico e de interpretação, os quais sempre ganham relevância quan-
em debate exige repelir-se toda e qualquer pretensão formalística. Doutrina de Jere- do o intérprete deva aplicar e concretizar o texto (GADAMER. 2004. p. 398-399). O
miah Smith citado por Jeno111e Frank, ln 'Lml' and the fvlodern fvfind' ao afirmar que sentido literal não é inequívoco. não somente porque deixa margens para a interpreta-
'as regras de direito são si111ples111ente setas indicadoras do caminho justo, e não o ção. mas porque carece igualmente de interpretação (ALVARENGA. 1998, p. 93).
74 A própria expressão subtilitas (sutileza), retirada da tradição humanista, sugere que a
caminho mesmo'. Recurso improvido. (AC 70015742323, 1" Câmara Cível, TJRS,
Rei. Des. Carlos Roberto Lofego Canibal,j. em 20.12.2006)". interpretação não pode ser garantida apenas por regras ( GADAMER, 2004. p. 118).
75
70 LARENZ, 1989, p. 444, 517-518; DANZ, 1955, p. 52. GADAMER, 2005, p. 406-407: GADAMER, 2004. p. 131. Eros Roberto Grau aponta
71
Focado no plano constitucional, assim ponderou o ministro Marco Aurélio Melo: ·•o que a separação entre interpretação e aplicação em duas etapas distintas decon·e da
conteúdo político de 11111a constituição não é conducente ao despre=o do sentido ver- equivocada concepção da primeira (interpretação) como mera operação de subsunção:
nacular das palavras, 11111ito 111enos ao do técnico, considerados institutos consaarac texto (lei ou contrato) como premissa maior (produto de uma interpretação in abstrac-
dos pelo direito. (. ..) a flexibilidade dos conceitos, o câmbio de sentido destes, ;on- to) e pressupostos de fato (ação confonne ou não confqnne ao texto nonuativo) como
forme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da premissa menor (produto da aplicação ou de uma interpretação in concreto) (GRAU.
própria carta que, realmente, é 11111 c01po político, mas o é antes os parâmetros que 2003, p. 31. 87-88, 91 e 105). Porém, mesmo a chamada interpretação i11 abstracto
encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de envolve, necessariamente, a consideração de fatos, pois como refere Larenz, "toda a
contonzojurídico" (RE 166.772-9, Min. Marco Aurélio Melo, RTJ 156, p. 666). aplicação da lei já é uma interpretação e o achamento do direito não é nunca 11111 tra-
72 Deve-se abandonar a noção de que o sentido literal da linguagem independe dos balho de subsunção" (LARENZ, 1989, p. 163 e 333). Na verdade o mtérprete somen-
contextos (MARINO, 2003, p. 80). uma vez que os vocábulos nunca esquecem o seu te discerne o sentido a partir e em virtude de um detemúnado caso, consistindo a in-
44 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 45

A interpretação não é um ato posterior e complementar à com- cita o modo como a coisa fala à condição presente 81 e, no campo contra-
preensão, pois compreender é sempre interpretar, sendo a interpretação a tual, perante não somente as circunstâncias do momento gené,tico, mas
fonna explícita da compreensão 76 • Contudo, a consagrada fusão entre daquelas que se apresentam em todas as fases do desenvolvimento da
compreensão e interpretação não expulsa do contexto hermenêutico a relação obrigacional (momento funcional). Ademais, o intérprete também
aplicação, pois na compreensão "sempre ocorre algo como a aplicação se encontra inserido no conteúdo compreendido, em uma fusão de hori-
do texto a ser compreendido à situação atual do inté1prete", razão pela zontes que esmaece a supramencionada dicotomia sujeito-objeto 82 •
qual "a aplicação é um momento tão essencial e integrante do processo A importância da aplicação no processo interpretativo não se
hermenêutico como a compreensão e a inte1pretação"77 • Vislumbrando o resume ao auxílio da compreensão e da interpretação, pois como refere
plano normativo, Tullio Ascarelli menciona que a equivocidade do texto Gadamer, "a aplicação não é uma parte última, suplementar e ocasional
somente pode ser superada no momento da aplicação da norma 78 • do fenômeno da compreensão, mas o determina desde o princípio e no
A compreensão se dá em um ato de aplicação 79, que é sempre seu todo. (...) A compreensão implica sempre a aplicação do sentido
linguístico e se apresenta como sendo uma forma de mediação tanto entre compreendido"83 • Como adverte Eros Grau, "inte1pretação e aplicação
a historicidade do passado e a situação hermenêutica do presente, quanto do direito são uma só operação, de modo que inte1pretamos para aplicar
entre a alteridade existente na relação sujeito-objeto80 • Este aspecto expli- o direito e, ao fa::ê-lo, não nos limitamos a interpretar (= compreender)
os textos normativos, mas também compreendemos (= inte1pretamos) os
Jatos" 84 • No mesmo sentido, a lição de Judith Maitins-Costa:
terpretação exatamente na concreção da diretriz nonnativa (lei e contrato) em deter-
minada hipótese fática, isto é, na sua aplicação. A partir desta teoria da práxis da A tarefa hermenêutica não se restringe apenas a 11111 método de 'ex-
aplicação do direito (que será ainda enfrentada neste tópico) a atividade interpretativa
tração de sentido' ou 'determinação do alcance' de uma significação
pode ser entendida como componente de 11111a produção prática, pois associa, em um
amálgama hermenêutico, os planos dos elementos normativos (Direito) e dos elemen-
imanente a certo texto, mas se apresenta como o momento normativo-
tos reais ou empíricos (realidade) (ESSER, Josef. Precomprensione e Scelta dei Me- constitutivo da verdadeira realização do direito, produção - e não
todo nel Processo di lndividualizione de Diritto. Napoli: Edizione Scientifiche Ita- justificação - de 11111 texto normativo legal ou conh·atual. Houve uma
liane, 1983. p. l; HESSE, 1998, p. 62; LARENZ, 1989, p. 292; MIRANDA, 1989, reformulação da antiga cisão enh·e inte1pretação e aplicação do di-
p. 109 e 1 ll). Deriva destas considerações o genne que conduz ao florescimento da reito, hoje se entendendo serem inseparáveis o momento hermenêuti-
ideia de utilização de um raciocinio jurídico por concreção que será desenvolvida na co e o 1110111ento normativo85 •
segunda parte deste estudo.
76
"A interpretação distingue-se da compreensão apenas como o falar em vo= alta dis- A inserção e admissão da aplicação no iter hennenêutico é res-
tingue-se do falar interior" (GADAMER, 2004, p. 29). Eros Roberto Grau, por sua ponsável pela conexidade desse momento com o aspecto normativo, con-
vez, apresenta uma interessante distinção galgada no plano prático. Aduz este pensa- clusão que auxilia na resolução de uma questão crucial na construção de
dor que, lato sensu, interpretar é compreender, ou seja, buscar prontamente o enten-
dimento sobre algo, o que diz com a atribuição de significado a detemrinado signo
pensamento almejada por este estudo: é pela dimensão da aplicação que
linguístico, compreendendo a definição da conotação que o tem10 expressa em coe- uma teoria da compreensão de matriz ontológica (plano do ser) pode se
rência com as regras de sentido da linguagem. Já em um sentido estrito, interpretar inserir no universo nonnativo do Direito (situado no plano do dever-ser),
significa precisar os sentidos de detemrinado signo linguístico, donde se retira que é especialmente quando o ap01te teórico adotado deságua na imprescindibi-
este aspecto da interpretação que viabiliza a plenitude da compreensão. Dito de outra lidade de um raciocinar por concreção.
forma, o sujeito cognoscente interpreta em sentido estrito para compreender, que é o
interpretar em sentido amplo (GRAU, 2003, p. 69-70).
77 81 PALMER, 1997, p. 190.
GADAMER, 2005, p. 406-407; GADAMER, 2003. p. 95.
78 82
ASCARELLI, Tullio. Giurisprudenza Constituzionale e Teoria Dell'Interpretazione. GADAMER, 2005, p. 445; PALMER, 1997, p. 140. .
ln: Problemi Giuridici. t. I, Milano: Giu:frré. 1959, p. 145. 83
GADAMER, 2005, p. 426 e 437. Gadamer ainda refere que a aplicação "não é o
79
HOMMERDING, 2003, p. 25. Eros Roberto Grau sustenta que "a inte,pretação é a emprego posterior de algo universal, compreendido.primeiro em si mesmo, e depois
inte,pretação/ aplicação dos textos e dos fatos" (GRAU, Eros Roberto. Prefácio. ln: aplicado a 11111 caso concreto. É, antes, a verdadeira compreensão do próprio univer-
ÁVILA, Humberto Bergn1ann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos sal que todo texto representa para nós" (GADAMER, 2005, p. 446-447).
84
princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 18). GRAU, 2003, p. 22, 24 e 71. No mesmo sentido: AMARAL. 2006, p."94-95 e 101.
80 85
GADAMER, 2005, p. 437; ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 165-166. MARTINS-COSTA. 2005b. p. 128.
46 Felipe Kirclmer Interpretação Contrah1al 47

Retomando a questão proposta neste tópico, cabe destacar ções e transformações no desenvolvimento da vida social, ainda que seu
que o juízo de compreensão é dialeticamente condicionado pela apli- texto pennaneça inalterado 89 • Como refere Karl Larenz, no decurso da
cação, uma vez que o sentido desta dimensão já está de antemão em aplicação o preceito nonnativo recebe novos elementos que influenciam a
toda a forma de compreensão. A aplicação não se trata de uma meta detenninação de seu conteúdo90 •
desejável, mas de um momento constitutivo da atividade hennenêuti- Mister se faz salientar, também, que a inserção da aplicação no
ca, o qual se encontra intimamente relacionado com o caráter situado, iter hermenêutico implica resguardo e adequação da força normativa do
finito, histórico e linguístico da compreensão humana. É nesse contex- preceito interpretado à natureza singular do presente, o que esmaece a pos-
to que a unicidade da atividade hermenêutica surge como um dos sibilidade de frustração material das diretrizes nonnativas por conflitarem
principais aspectos teóricos que condiciona o uso do raciocínio por com a realidade contemporânea (ex.: disposição contratual superada por
concreção na interpretação do contrato. uma nova realidade de mercado ou pelo comportamento posterior dos con-
tratantes)91. No procedimento exegético sempre há uma atualização, e co-
Como visto, a centralidade da aplicação no âmbito da inter-
mo a força normativa dos preceitos jurídicos sempre está condicionada à
pretação não surge apenas da necessidade de conjugação do universal vontade atual de seus participantes92 , é tarefa do intérprete contratual quan-
com o particular no contexto da circularidade hennenêutica da com- tificar esta dimensão na análise da autonomia dos contratantes, pois a obri-
preensão jurídica, mas também do fato de que os preceitos jurídicos gação constituída pelo contrato é sempr~ polarizada pelo adimplemento93 •
sempre necessitam da interpretação para que sejam aplicados na práti-
A dimensão da aplicação traz consigo perspectivas institucionais
ca, o que significa que toda aplicação de elementos normativos depen- e funcionais, presentes no universo nonnativo, as quais não podem ser
de da atividade hermenêutica 86 • Assim, ainda que a interpretação não desconsideradas no curso do procedimento hermenêutico que tenha como
esteja condicionada à utilização prática de suas conclusões, pode-se objeto um contrato. Ao interpretar a disposição contratual, é tarefa do sujei-
afirmar que no âmbito jurídico a atividade hermenêutica só faz sentido to cognoscente conjugar a viabilidade de suas conclusões tanto com ques-
quando se vislumbra um problema concreto que requeira solução nor- tões de ordem institucional, que dizem com a verificação da exequibilidade
mativa e, portanto, prática. material dos efeitos do pacto perante os sttjeitos e instituições envolvidas
É de fundamental imp01tância ressaltar, ainda, que a aplicação ou afetadas pela contratação (pensamento jurídico do possível), quanto
importa, de ce1to modo, sempre em urna ação de natureza integrativa, com os elementos sistêmicos internos e externos ao contrato, os quais di-
pois dela resulta a inserção de uma nova perspectiva no horizonte do zem, respectivamente, com a análise intrínseca da totalidade das disposi-
objeto87 • Como elemento constitutivo da compreensão, a aplicação traba- ções contratuais e da relação destas com o ordenamento94 •
lha com as singularidades pessoais do intérprete e com as circunstâncias
objetivas passadas e contemporâneas, o que conduz o objeto ao contexto SQ Tal noção não escapou do acurado pensamento de Karl Engisch. que entende ser
tarefa da interpretação ah1alizar o conteúdo e o alcance dos conceitos jurídicos (EN-
da situação hennenêutica presente e aos questionamentos que nela estão GISCH, Karl. La Idea de Concreción en el Derecho y en la Ciencia Jurídica Ac-
postos (produtividade da distância temporal) 88 • tuales. Pamplona: Navarra. 1968. p. 42).
No plano normativo, a dimensão da aplicação encaminha a 90
LARENZ, 1989, p. 249. Embora a hermenêutica. enquanto teoria da compreensão.
atualização do Direito no próprio iter hennenêutico, pois o objeto passa a seja una. é relevante ressaltar que, diferentemente do que ocorre na interpretação da
lei, na exegese contratual o sujeito cognoscente trabalha com o caráter objetivo e situado
ser interpretado sob o prisma do contexto histórico e cultural presente, e de destinatários específicos e deve quantificar a inebriante dinamicidade da relação
não na conjuntura da sua criação (embora esta não possa ser desconside- contratual, a qual se encontra sempre polarizada pelo adimplemento. Dito isso, cabe
rada). Os enunciados normativos, principalmente os contratuais, não fi- indicar que as peculiaridades próprias da interpretação do contrato serão avaliadas no
cam estáticos e cristalizados no tempo, passando por significativas altera- tópico "As particularidades da hern1enêutica contratual".
Qf GRAU, 2003, p. 3. 54. 115-116 e 123-125.
gz HESSE. 1998. p. 49 e 54.
86 GADAMER, 2004, p. 380, 399 e 497. QJ SILVA. Clóvis Veríssimo do Couto e. A Obrigação como Processo. São Paulo:
87
SILVA, 2000b, p. 527-528. Bushatsky, 1976. p. 5.
88 Refere André Araítjo que aplicar ·'significa retirar a condição muda do texto, ouvir a 9-1 Estes aspectos serão abordados. respectivamente. nos tópicos "O procedimento. os

sua fala no enfrentamento produtivo da distância temporal entre o momento de pro- métodos e as regras de interpretação" e "A concreção norn1ativa'da interpretação
dução do texto e aquele em que o texto é lido no presente" (ARAÚJO, 2005. p. 211). contratual".
Interpretação Contratual 49
48 Felipe Kircrn:ier
dizem com as diferentes funções atribuídas à hermenêutica, o que ser-
Traçando um paralelo deste ap01te teórico com uma concepção ve de critério para a apresentação de uma classificação tripartida98
metodológica, cabe ressaltar que Emílio Betti possui uma visão instru- que contempla a chamada fimção normativa99 , a qual se constitui na
mental da função da aplicação no iter hennenêutico, não a elencando tarefa relevante da inte1pretação jurídica 100 •
como força motriz do compreender. Para o jurista italiano, a aplicação se
limita a cumprir a tarefa de transpor o resultado da interpretação para o que não alcança seu resultado se não for posto em prática em sua totalidade" (BET-
caso concreto e de auxiliar na qualificação jurídica do objeto interpretado TI, 2007, p. 219).
(v.g.: verificação da tipicidade legal dos contratos)95 • Sob este vi~s, a 98 A/unção cognosciva ou recognitiva se limita à reconstrução do significado do objeto
aplicação não integra a atividade exegética, subsistindo apenas um hame (movimento do sujeito em direção ao objeto), sendo o entendimento o próprio fim da
interpretação (ex.: interpretação histórica e filológica). Já na fimção reprodutiva ou
instrumental entre interpretação e aplicação 96 •
representativa a compreensão é transitiva. pois se destina a conferir detemtlnado en-
Como o posicionamento da dimensão da aplicação dentro ou fo- tendimento a um grupo de destinatários, figurando o intérprete como intennediário
ra da atividade hermenêutica toca diretamente a questão da sua unicidade, entre a manifestação de pensamento de um autor e um público interessado em enten-
cabe evidenciar outro aspecto que diferencia as teorias acima debatidas. dê-la (v.g.: tradução. interpretação dramática e musical). Por fim. nafimção normati-
va a compreensão visa fornecer uma máxima de decisão ou de ação (tomada de posi-
Embora admita que a hennenêutica é unitária no plano teórico, diferen- ção na vida social) (ex.: interpretação jurídica. teológica e psicológica) (BETTI,
temente da concepção gadameriana97 , o jurista italiano entende existirem 1990a, p. 347; BETTI, 2007, p. LXVI-UQC, LXXII-LXXV, XCVIII-XCIX, CXXVI,
divisões no plano prático, que 5-8; PESSOA, 2002, p. 92-93). Cabe frisar que em todas as funções há um momento
cognoscivo. diferenciando-se as espécies pela inexistência ou existência peculiar de
uma função posterior. Ademais, os tipos de interpretação se encontram escalonados: a
95 No paradigma aqui adotado não subsiste a dissociação hennenêutica realizada para a função cognosciva é bastante em si mesma; a função reprodutiva-representativa pres-
qualificação do ato nomiativo - somente após a análise da comum intenção dos c?~- supõe o momento cognoscivo-recognitivo: a função nonnativa contém em si tanto o
tratantes é que seria avaliado se o significado alcançado encontra eco na~ figuras t1p1- momento cognoscivo-recognitivo. quanto o momento reprodutivo-representativo
cas previstas em lei -, pois o cotejo do objeto com ~s nomia~ q~e o qualifi~am ~az_e~ (BETII. 2007. p. 7). Cabe salientar que Gadamer. embora não diferencie funções no
parte indissociável do procedimento exegético que e detemnnattvo dos efeitos JUnd1- processo hermenêutico, vislumbra o caráter nom1ativo relacionado com decisões prá-
cos. Como salienta Gadamer, a partição da atividade interpretativa não subsiste pela ticas e políticas (máximas de decisão ou de ação) (GADAMER, 1977a, p. 18).
simples análise do plano fático, onde o intérprete não dissocia as etapas de sua com- 99 Betti ressalta que a função nonnativa da interpretação não diz com a assl!llção, pelo intér-
preensão (GADAMER, 2005, p. 409). prete, de unia atividade nomiativa, pois este não institui normas (BETTI. 2007, p. 12-13).
96 BETII, 2007, p. CXII-CXIV, CXXID, 11, 15-16, 16L 175-176 e 180. No contexto 100 Betti apresenta diferentes concepções de como o fenômeno hermenêutico e o raciocí-
hem1ético do pensamento bettiano. a aplicação se confunde, em certa medida, com a nio juridico são construídos por meio da contraposição de elementos elencados em
própria função nonnativa do preceito enquanto regulador de condutas, po~s Emílio três grupos. No primeiro tem-se a interpretação psicológica. que é aquela voltada a in-
Betti entende ser somente na máxima de decisão (sentença) que se opera a smtese en- dagar o pensamento originário do autor do objeto; e a interpretação técnica, que com-
tre o resultado da interpretação e a disciplina substancial do instituto a ser aplicada. preende tal objetivação do espírito independentemente da consciência reflexa de seu
97 Gadamer efetivamente reconhece a existência de certas diferenças entre as interpreta- autor, enquadrando-a perante a totalidade do ambiente social. No segundo grupo apa-
ções filológica, histórica e juridica, as quais não se li~tam apena~ ao objet? ~ a sua rece a interpretação individual, que considera as declarações e os comportamentos em
forma de apreensão. No entanto, para a teoria gadamenana todo agrr!1erm~~e:1t1co es- sua concretude específica (atribuição de significado com o modo de ver particular ex-
tá adstrito aos mesmos pressupostos, o que denota uma compreensao umtana do fe- presso nesses elementos, levando em conta as circunstâncias individuais do caso): e a
nômeno hem1enêutico que abrange os planos fático e teórico (VIOLA, ZACCARIA, interpretação típica. que classifica as declarações e os comportamentos por tipos ou
1999, p. 108-110). É a dimensão ontológica presente na sua hermenêutica filosófica classes (levando em conta o gênero de circunstâncias em que se desenvolvem e a que
que pennitiu a unificação das hem1enêuticas que_ se encontravam separadas desde o correspondem) e atribui ao objeto• as significações constantes nessas tipificações sem
iluminismo (filológica. histórica, teológica, jurídica, etc.). O esquema proposto por considerar aqueles que podem ter se dado no caso concreto. Por fim, no terceiro grupo
Betti acerca dos tipos de interpretação foi motivo de expressa crítica por parte de G?- aparece a interpretação recognitiva. a qual se limíta à. reconstrução do significado do
damer (PESSOA, Leonel Cesarino. A Teoria da Interpretação Jurídica de ~mílto objeto (ex.: histórica e filológica). e a interpretação integrativa. que visa colmatar as
Betti. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 90). Contudo, deve ser saltentado lacunas do elemento normativo nos lintltes do ato (de autonomia) (BETTI. 2007.
que, embora Betti reconheça a diferenciação de aplicação, entende que ?s "tipos de p. 369 e 373-374: BETTI. 2003b. p. 198 e 202-203)." Enquanto a interpretação integra-
exegese" não podem ser separados uns dos outr?s, :1ão devendo ser cons1derad?~ ~o- tiva pressupõe un1 determinado conteúdo do negócio (explícito ou implícito) e visa
mo "meios" independentes a serem empregados 111d1ferentemente ou seg~do cnteno~ colmatar as lacunas do elemento nonnativo nos limites do própriô •ato. a integração
acidentais de preferência, devendo, antes, serem considerados como umdos entre s1 pressupõe a falta de um preceito (lacuna), suprindo tal deficiência por intennédio da
por uma ordem sequencial. como "momentos sucessivos de um processo inseparável,
50 Felipe Kirchner h1terpretação Contratual 51

Para além da crítica acerca do ideal reconstrutivo presente no Como "compreender é sempre também aplicar", e o "conheci-
pensamento de Emilio Betti 101 , Gadamer se ÍJ.Tesigna quanto à estrutura mento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico
interna da teoria construída pelo jurista italiano, entendendo que a mesma concreto não são dois atos separados, mas um processo zmitário" 1º6, a
não subsiste sequer à simples submissão dos fenômenos ao esquema de própria declaração de validade depende da atividade hennenêutica. Os atos
divisão proposto 102 • O filósofo alemão aponta existir um "objetivismo ingê- humanos só se qualificam como 'jurídicos", produzindo os efeitos que lhe
nuo" na pretensão bettiana de cindir a atividade hermenêutica pelos seus são cominados pela ordem nonnativa, após ter sido detemtlnada a sua exis-
aspectos científicos e criadores103, ao invés de reconhecer a indissolubili- tência e validade, o que inequivocamente depende da emissão de juízos que
dade entre entender e interpretar presente em toda atividade exegética, pois somente são alcançados por meio da atividade hennenêutica 107 •
as decisões complementares (na função reprodutivo-representativa) e prá- Nesses termos, cabe fixar, desde já, que é tarefa da interpreta-
ticas (na função nonnativa), nascem do próprio entendimento, e não de ção detenninar se há um negócio jurídico válido na análise das relações
etapas posteriores ao agir interpretativo 104 • intrínsecas e extrínsecas da pactuação privada. Entendimento contrário -
Embora aqui ainda se esteja analisando a teoria geral da ativi- no sentido de que a conformação de validade da relação contratual se
dade hennenêutica, cabe enquadrar as lições desenvolvidas na delimita- encontraria em um momento posterior à atividade interpretativa - impli-
ção temática do estudo para afirmar que a interpretação contratual envol- caria a adoção de uma visão reducionista de um fenômeno unitário, pro-
ve não apenas a compreensão do significado do contrato, mas também a curando a cisão de um momento construtivo verdadeiramente incindível.
aplicação do mesmo, o que expande a atividade exegética à análise da Adverte Humberto Ávila que o caráter produtivo da interpreta-
existência, validade e eficácia do instrumento 105 • Ocorre que os juízos ção denota ser inverossímil a ideia de que a aplicação do Direito envolve
acerca do conteúdo e forma do negócio jurídico, bem como dos requisitos uma atividade de subsunção de conceitos inteligíveis ao saber humano
necessários à sua existência, validade e eficácia (na fase formativa e de antes do processo de aplicação, pois é nesta dimensão que se constitui a
vigência), somente têm seu significado alcançado por meio do procedi- significação dos conceitos nonnativos compreendidos 108 • É a natureza
mento hermenêutico. criativa da atividade hennenêutica o objeto do tópico subsequente.

utilização de nomrns supletivas e dispositivas (BETTI, 2007, p. 184 e 376-377; BET-


TL 2003b, p. 204-205). 1.3 O Caráter Criativo, Construtivo e Produtivo da Atividade
101 Esta questão será desvelada no tópico subsequente, intitulado "O caráter criativo, Hermenêutica
construtivo e produtivo da atividade hermenêutica".
102
GADAMER, 2005, p. 409. A crítica de Gadamer adentra no plano prático, atingindo a A dimensão hermenêutica se encontra na base de toda experiên-
pretensão mais cara de Betti: sua objetividade e aspiração de correição. Enquanto na cia de mundo, sendo que a própria realidade se constitui no resultado de
função cognosciva-recognitiva o entendimento é condição suficiente de correção
por esgotar a atividade do intérprete, as funções reprodutiva-representativa e nor-
urna interpretação, pois é esta dimensão que oferece uma mediação (nun-
mativa demandam um segundo momento de adaptação do entendimento inicial à ca pronta e acabada) entre o homem e o mundo, em um processo onde "a
função da interpretação (reprodutiva-representativa ou nomrntiva), sendo que este única imediatez verdadeira e o único dado real é o fato de que compreen-
critério, que norteia a correção do segundo momento da interpretação, não existe
ou, ao menos, não nasce no entendimento, ficando tudo ao arbítrio do aplicador
w5 GADAMER. 2005, p. 408-409.
(PESSOA, 2002, p. 97). 107
103 GADAMER, 2004, p. 359; DANZ, 1955, p. 34-35, 70 e 179-180. Embora em certas
BETII, 2007, p. 15.
passagens Emilio Betti diferencie .âmbitos de ahiação do procedimento hennenêutico
ICJ.l GADAMER, Hans-Georg. Emílio Betti e a Herança Idealista. Cadernos de Filosofia
(BETTI, 2003a, 126), o jurista admite que a interpretação atinge a verificação de vali-
Alemã, n. 1, São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo,
dade do negócio quando afimrn que "até onde poderá se estender e até que ponto terá
1996, p. 86.
105
vigor o regulamento das partes, apenas a inte1pretação será capa= de determinar'·,
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 243. Os juízos acerca da existência do contrato afirmando ainda que, no can1po do Direito, a interpretação influi na detenninação do
tocam mais diretamente à questão da prova. Porém, a significância desta atividade alcance normativo dos preceitos e na configuração das espécies discutidas. não sendo
(probatória) também depende do agir hermenêutico, como será delineado no tópico
suficiente a mera subsunção, pois a interpretação demanda questões relativas a aplica-
"O procedimento, os métodos e as regras de interpretação". Dito isso, cabe salientar
ção (fimção útil do preceito) (BETTI, 2007, p. 173 e 231 e 377).
que a discussão acerca dos marcos da interpretação contrahial será travada no tópico I08 ,
AVILA. 2006, p. 32.
"A fixação do objeto e da dimensão fi.mcional da hennenêutica contratual".
52 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 53

demos algo como algo". Ao conhecimento humano a realidade "dada" é roas atribui à nonna um detenninado sentido que deriva de um sistema
inseparável da interpretação, premissa que se sustenta até mesmo perante intrincado de significados jurídicos 114 • Citando Jean Ullmo, refere Miguel
o âmbito objetivista das ciências naturais 109 . Reale que a ciência nutre-se de fatos observados, não havendo fatos brutos,
O acesso do ser humano ao mundo é sempre indireto, sendo pois mesmo a obse1;ação de. fenômenos naturais traz cons!go ~ma teoria,
mediado e condicionado pela sua finitude e pelas dimensões da lingua- mais ou menos ingenua, mais ou menos elaborada, mas Jamais ausente.
gem e da historicidade. O sujeito cognoscente chega à coisa apenas en- Resta impossível ao sujeito cognoscente sentir ou perceber sem a contri-
quanto algo, tendo acesso ao objeto apenas pela via do significado her- buição de algo seu, já que o pensamento não se deixa jainai~ eliminar. S_en-
menêutico, razão pela qual compreender plenamente algo não é pleno, do incindível a relação entre o pensar e o real, o homem e o protagomsta
porque lidamos com uma carga histórica que nos limita. que transforma a realidade segundo renovadas perspectivas e lhe infunde
um sentido ao inseri-la em um sistema de sinais e leis 115 •
Nessa perspectiva, a hennenêutica é um processo sempre criati-
vo, construtivo e produtivo, nunca reprodutivo, receptivo ou declarató- A complementaridade essencial entre sujeito e objeto deriva da
rio110. O texto não tem um significado independente do evento que é capacidade constitutiva nomotética do espírit? do sujeito cogno~cente,
que possui uma faculdade ?uto~gadora de sent~d_o ao real, correlac10nan-
compreendê-10 111 , nem a compreensão é independente das circunstâncias
do dinamicamente o que ha de imanente no sujeito que conhece e no ob-
concretas da vida, o que se comprova, essencialmente, por meio de três
jeto a ser conhecido 116 . Como observa Gadamer, "o ser próprio daquele
fundamentos, expressos a seguir 112 . , entra em ;ogo
.
que con hece tam ben! no ato ue conl1ecer ,,111. , ll11:1~ vez que
,J

Primeiro, o intérprete é partícipe direto do compreender, e estan- inexiste um distanciamento dos polos no contexto da histonc1dade do
do indissoluvehnente unido ao que se lhe abre e se mostra como dotado de compreender (intérprete e contrato estão mergulhados numa certa tradi-
sentidom, traz seu horizonte ao objeto interpretado. Na exegese de um ção)118, o que implica dimensionar tanto a forma como o sttjeito estrutura
texto nonnativo, o intérprete não revela um sentido objetivo preexistente,
114 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 128.
IOQ GADAMER, 2004, p. 138 e 391-392. 11s REALE, 1999,p. 95 e 193-194.
110
GADAMER, 1993a, p. 153; LARENZ, 1989, p. 296 e 444-445; GRAU, 2003, p. 22; 11õ REALE, 1999, p. IL 32-33, lll, l17. 181; REALE. 1968, p. 240-242. Tan1anha é a
HECK, Luís Afonso. Apresentação. ln: CACHAPUZ, Maria Claudia. Intimidade e iniportância deste aspecto que Miguel Reale chega a afirmar que '"a polaridade szyei-
Vida Privada no Novo Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fabris, 2006. p. 13; to-objeto constitui o pressuposto tra11sce11de11tal, a condição de possibilidade de toda
HESSE, 1998, p. 61; HÃBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade e qualquer experiência cognoscitiva 011 ética" (REALE. 1999, p. 99-100).
Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista 111 GADAMER. 2005. p. 631. Enfocando a atividade da investigação histórica. ainda
e "procedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997. p. 30; refere Gadamer. em lição que pode ser aproveitada na análise da investigação jurídica.
VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 126-128, 133, 138 e 190; ZACCARIA, 1996, p. 145- que '"o próprio historiador é parte do processo histórico que está pesquisando e (.. .)
147; GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo: Uni- só pode observar esse processo a partir do posto que ele próprio ocupa" (GADA-
sinos, 1999. p. 193; LAMEGO, José. Hermenêutica e Jurisprudência. Lisboa: Fra- MER. 2004, p. 461 ). No mesmo sentido, Engisch sustenta que o s1tjeito sempre coloca
gmentos, 1990. p. 195. Refere Miguel Reale que é esse "'elemento de criatividade que o seu "eu" na decisão concreta. razão pela qual a compreensão do elemento nom1ativo
aproxima a experiência científica da experiência artística", circunstância que levou depende de uma compreensão sobre si mesmo (ENGISCH. 1968. p. 36 e 44-45). Já
Albert Einstein a observar que as hipóteses que constituem as modernas teorias da fí- Miguel Reale. frisando a atividade filosófica, entende que a pessoa do filósofo é ele-
sica teórica são "livres criações da mente", cuja invenção e elaboração requerem do- mento integrante e inseparável de sua filosofia. assim como são indissociadas da
tes imaginativos análogos aos que pemútem a criação artística, como bem salienta Er- mesma as contingências histórico-culturais em que o pensador se encontra inserido, as
nest Nagel (REALE, 1999, p. 194 e 197-198). quais também condicionam seu trabalho, o· que demonstra com exatidão que ambas
111
LARENZ, 1989, p. 489-490. dimensões (participação do intérprete e importância do entorno social) redundam na
112
Francesco Ferrara desvela uma interessante questão, a qual se mostra extremamente necessidade de utilização de um raciocínio por concre1tão. conforme defendido neste
verdadeira quando analisada a forma retórica como muitas vezes se dá a construção da estudo (REALE. Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva. 2002.
decisão judicial: "(. ..) o método tradicional, à parte o não ser científico, também não p. 68-69). Latour parece concordar com a ideia aqui desenvolvida ao referir que os su-
é sincero, porque ojui= sempre/a= isto (cria direito), e nuncafe= outra coisa: satisfa= jeitos nunca estão longe das coisas (LATOUR, Brunó. Jamais Fomos Modernos: en-
as necessidades da vida, consoante o impulso dos seus sentimentos; e esconde o seu saio de antropologia sin1étrica. Editora 34. [s.d.]. p. 35).
agir com o véu da ratio legis e da analogia" (FERRARA, 1987, p. 169). 118 SIBIN, 2004, p. 45 e 109; BETTI, Enúlio. Diritto Metodo Erníe·neutica. Milão:
113 GADAMER, 2004, p. 507. Giuffré. 1991. p. 545.
h1terpretação Contratual 55
54 Felipe Kirchner

interpretação dos contratos, cabe salientar que o acordo negocial repre-


o objeto, quanto a medida em que o objeto acaba estruturando o sujeito e
senta a autonomia bilateralmente unificada dos contratantes 123 , a qual se
seu projeto de compreensão, já que a coisa interpretada não pennanece
constitui em objeto hennenêutico diverso da sorna das vontades individuais
independente dos conhecimentos que se adquire sobre ela 119 • Nesse con-
que a compõem, razão pela qual não pode ser desmembrada, especial-
texto, o intérprete não realiza uma reconstrução, não é um mero especta- mente tendo como parâmetro a vontade particular e subjetiva de qualquer
dor que se apresenta, pois sendo ouvinte e leitor está envolvido como um
dos contratantes.
elo de sentido participante 120 • No paradigma gadameriano o intérprete é
autor, e não apenas ator do Nomos Jurídico (o sujeito cognoscente não Terceiro, é impossível ao intérprete transferir-se para o horizon-
está mais subjectus) 121 • te do autor e repetir as suas vivências, até mesmo porque o objeto se
apresenta como irrepetível até mesmo para o seu produtor. Corno a com-
. A subjetividade não é obstáculo para a compreensão, mas urna
preensão se dá em um ato de aplicação que se encontra condicionado
condição indispensável de sua possibilidade, razão pela qual a participa-
pelas circunstâncias fáticas e normativas que cercam o intérprete, deve-se
ção do intérprete no procedimento compreensivo deve ser quantificada
reconhecer que a atividade hermenêutica se encontra imersa em condi-
como instância produtiva da atividade hermenêutica, respeitada a força
ções diversas daquelas que o autor estava inserido no momento de reali-
vinculante do objeto interpretado. Nesses tennos, é ingênua a pretensão
zação e construção do objeto.
de refutar a ausência de separação entre sujeito e objeto com a inserção
de um terceiro elemento que é o método, pois este se encontra imerso na Enfocando o aspecto criativo no plano prático, Gadamer refere
própria circularidade hermenêutica. que o comportamento construtivo ''fica claro no plano da hermenêutica
Segundo, o sentido de um objeto supera seu autor não ocasio- jurídicd 1.,, onde a busca da sentença justa não é a mera subsunção do
caso particular no caso geral (..). A busca das 'cláusulas' corretas re-
nalmente, mas sempre - não se esgotando na significância que o autor
pousa, antes, numa decisão própria criativa, complementária ou ape1fei-
"tem em mente" no momento genético -, além de suplantar, também, o
çoadora do direito" 125 • Como sustenta Juarez Freitas, a interpretação não
leitor a que se dirige 122 • Transpondo estas considerações para o campo da
do hermeneuta se centraria· na mera reconstrnção do ato originário que está sendo
119 GADAMER, 1977b, p. 286: STEIN, 2004, p. 26. O princípio de Heisenberg, expres- interpretado.
samente referido por Gadamer, demonstra que "não se pode eliminar o observador 123 RIBEIRO, Joaquinl de Souza. O Problema do Contrato: as cláusulas contraruais
dos resultados de suas medições e assim ele próprio deve aparecer nos enunciados da gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina. I 999. p. 51-61. 72.
mesma" (GADAMER, 2004, p. 510). 180, 250-257, 638. . .
120 GADAMER, 2007b, p. 182. A teoria bettiana, embora reconheça a imprescindibilida- 124 Em inter ssante decisão, que versava sobre a aplicação da garantia da tramitação
de da participação do intérprete na atividade henuenêutica, refuta a ausência de sepa-
7
preferencial do processo não requerida pelo réu idoso. mas. sim. pelo autor de ação
r~ção entre sujeito e objeto ao defender que na interpretação existe um processo triá- indenizató~a por ª?idente de trânsito, decidiu o TJSP no AR 1.191.941-1/2 (35ª Câ-
dico, envolvendo as formas representativas, o polo espirih1al do sujeito e o polo espi- mara de Drreito Pnvado, TJSP, Rei. Des. Mendes Gomes, j. em 08.09.2008) que "o
rirual do objeto, os quais não entram em contato direto entre si, sendo mediados pelas julgador não deve pautar-se por exegese literal e isolada. Em ve.: disso, partindo do
mencionadas formas representativas. Assim, para Betti a objetivação da espirirualida- texto da norma, deve orientar-se por uma inte1pretação não só construtiva, mas tam-
?e contida na fonua representativa se põe entre a espirirualidade do intérprete e do ob- bém sistemática e teleológica''. lição que se coaduna com o paradigma aqui defendi-
Jeto-autor (BETII, 2007, p. XCVII). do, abrangendo. inclusive. a dimensão da concreção nonnativa que será tratada na
121
P~r via ~ansversa, pode-se afinuar que, ao menos no plano do Direito, o intérprete parte final deste esrudo.
125
nao se liberta de seu "papel" enquanto operador jurídico, o que não invalida ou res- G~AMER, ~~04, p. 497. A concepção da doutrina tradicional. que nega o aspecto
tringe o espaço de criatividade que:é;inerente a todo agir hermenêutico. É nesse con- cnativ~ d~ atividade hennenêutica. concebe o papel do intérprete/juiz no processo
texto que deve ser entendida a força normativa genérica dos textos legislativos e o pa- comU11icativo em termos de mero receptor passivo, em que pesem as teorias sobre a
pel de unifonuização jurisprudencial que, em nosso sistema, é concedido aos Tribu- participação ativa da jurisprudência na produção do Direito. Essa concepção coloca
todos os ?peradores juridicos Uuízes, defensores. pron1otores e advogados) na incô-
nais Superiores, fatores que devem ser considerados como partes integrantes do sis-
moda posição de bus~ar, por intermédio de comparações aproximadas, a relação entre
tema de autoridade e hierarquia construído e mantido pelo Direito (onde as decisões
casos concretos refendos a padrões abstratos sempniincompletos e imperfeitos, quan-
dos tribU11ais superiores derrogam os julgados de instâncias inferiores independente- do comparados com as riquezas e peculiaridades dos casos em concreto. O modelo
mente de seu conteúdo ou da carga de verdade por elas revelada). linguís!ico vigente possui uma concepção abstrata do sistema jurídico e reducionista
122 GADAMER, 2004, p. 126. Baseado nestas considerações é que Gadamer problemati- da reahdade, o que se procura combater por meio do método concretista. superador da
za o conceito de congenialidade presente na tradição romântica, para o qual a tarefa
56 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 57

é simplesmente o tomar conhecimento do compreendido, mas também o enquanto este (o texto) é objeto da interpretação, aquela (a nonna legal ou
desenvolvimento das possibilidades projetadas no compreender 126 • Não contratual) é o resultado da atividade exegética. As nonnas não existem
obstante as relevantes diferenças de posicionamento, é interessante notar como entidades antes do momento da interpretação. O texto normativo
que as mais variadas correntes de pensamento jurídico convergem na constitui uma mera possibilidade de Direito, e a sua transfonnação em
conclusão de que o intérprete possui uma grande margem de liberalidade norma jurídica depende da construção de determinados conteúdos de
na conformação do sentido do conteúdo nonnativo 127 • Como deriva do sentido pelo intérprete. Assim, a interpretação é um ato de decisão que
pensamento de Tullio Ascarelli, a questão central do ato interpretativo é a constitui a significação de um texto 129. Nesse sentido, Eros Grau, para
composição harmônica entre a criatividade do intérprete e a declaratorieda- quem "o que em verdade se interpreta são os textos normativos; da in-
de do objeto, equidistância essencial ao resguardo da certeza jurídica128 • te1pretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identi-
O caráter construtivo da atividade hennenêutica denota, ainda, ficam. A norma é a inte1pretação do texto normativo. A inte1pretação é,
que nonna e texto nonnativo não indicam a mesma realidade jurídica: portanto, a atividade que se presta a transformar os textos - disposições,
preceitos e enunciados - em normas", as quais surgem quando se alcança
visão abstrata da dogmática jurídica e do seu autorreconhecimento como receptora a determinação de um conteúdo nonnativo, do que a interpretação é meio
passiva, e aplicadora da norma estatal ou contratual (REALE, 1968, p. 172-175; FER- de expressão 130 •
RAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Rea- O caráter criativo do proc.edimento hennenêutico permite a
le. ln: Textos Clássicos de Filosofia do Direito: publicação em homenagem ao Pro- transcendência da questão metodológica. Larenz salienta que "a inte1pre-
fessor Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981 ).
126
tação, e tudo o que ela em si coenvolve, não é uma actividade que possa
FREITAS, Juarez. Hermenêutica Jurídica: o juiz só aplica a lei injusta se quiser.
Revista da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS), realizar-se somente de acordo com regras estabelecidas; carece sempre
n. 40, 1987, p. 41. da fantasia criadora do inté,prete", complementando que a hennenêutica
127 Hans Kelsen assim se posiciona: "O Direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, não é "um exemplo de cálculo, mas uma actividade criadora do espíri-
uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é to"131. Assim como os contraentes, no uso de sua autonomia privada, não
conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura. (..).
A teoria usual da interpretação querfa::er crer que a lei, aplicada ao caso concreto,
criam nada sem interpretar quando instituem a nonna contratual, o sujeito
poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajusta- cognoscente cria enquanto interpreta esse mesmo contrato 132 • Dito isso,
da), e que a "juste=a" (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria
lei. Configura o processo desta inte,pretação como se se tratasse tão somente de 11111 129 MARTINS-COSTA. 2005b, p. 128-129; ÁVILA, 2006, p. 24, 27, 30-32. 68-70.
ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Di- 13o GRAU, 2003. p. 23. 26 e 79.
reito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (ra::ão), mas não a sua von- 131 LARENZ, 1989. p. 293 e 418.
tade, e como se, atrm,és de uma pura atividade de intelecção, pudesse reali=ar-se, en- 132 DWORKIN, Ronald. De que Maneira o Direito se Assemelha à Literatura. /11:
tre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito DWORKIN. Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. (. ..) a produção p. 235. Como será visto no tópico "A fixação do objeto e da dimensão funcional da
do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicada é livre, isto é, reali=a- hermenêutica contratual'', este estudo não endossa a tese de que a atividade hennenêu-
se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produ=ir o ato" (KELSEN, Hans. tica está circunscrita aos intérpretes autênticos, corporativos ou autorizados jurídica
Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390-391 e 393). Na ou funcionalmente pelo Estado, pois entende que todo aquele que vive no contexto
mesma linha, Karl Larenz destaca que "adentro dos quadros do sentido literal, tem o regulado por um contrato é um intérprete dessa nonna. Porém, esta realidade não ilide
jui= plena liberdade de prodzt=ir normas do caso" (LARENZ, 1989, p. 168). Median- a existência de graus variáveis no espaço de liberdade criativa do henneneuta, pois,
do estas considerações com o uso do raciocinio por concreção, Eros Grau, mencio- diferentemente dos contraentes. os intérpretes técnicos (iniz. advogados. pareceristas,
nando o pensamento de Friedrich Müller, entende que os textos nonnativos não pos- etc.) estão mais adstritos as categorias que estruh1ram o Direito (ex.: cânones henne-
suem significações prévias e inerentes, não passando de uma moldura limitadora das nêuticos definidos pelas leis estatais) - não apenas pela arbitrariedade que detennitta a
possibilidades de concretização do Direito, razão pela qual a construção do significa- eficácia das ações judiciais. mas também porque o sjstema jurídico faz parte de sua
do da norma se dá dentro dessa moldura, mas decorre da realidade, que dá sentido ao pré-compreensão -, o que inegavelmente reduz o espaço de criatividade da sua ação
texto interpretado (GRAU, 2003, p. 82). hennenêutica. Contudo, não há falar na existência de duas interpretações (construtiva
128 REALE, Miguel. A Teoria da Interpretação Segundo Tullio Ascarelli. /11: REALE, para os contraentes e reconstrutiva para os intérpretes técnicos), pois todo intérprete
Miguel. Questões de Direito. São Paulo: Saraiva, 1981a. p. 10. Nesse sentido a Sú- constrói quando compreende, cada qual ao seu modo e dentro dos limites pennitidos
mula 181 do STJ, a qual detemliua que "é admissível ação declaratória, visando a pelo seu ser-aí (os dados nom1ativos constituem fortemente o aí da situação hem1e-
obter certe=a quanto à exata inte,pretação de cláusula contratual." nêutica do intérprete técnico. diferentemente do que ocorre com os contraentes).
58 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 59

cabe frisar que Francisco Amaral desvela a conexão existente entre o . Dito isso,~ c~be desta~ar_ que, assim como a inserção da aplica-
caráter criativo da atividade interpretativa e a necessidade de utilização ção no 1t~r ~e~~neu_tico contnbm para a manutenção da força normativa
do método concretista, nos seguintes termos: do preceito Jund1co mterpretado, a defesa de uma interpretação criativa
auxilia. na man~tenção ~a~ e~etivid~de real e material das disposições
O objetivo da hermenêutica jurídica é demonsh·ar que a investigação nonnativas. Ass1111, a dmam1ca existente na interpretação construtiva
do direito não é uma subsunção, de acordo com regras lógico-formais
fixadas em lei, mas sim 11111 processo criativo, consh·utivo e concreti- constitui condição :fundamental da força nonnativa do contrato e por
zador da norma aplicável ao caso, que parte da compreensão de que conseguinte, de sua estabilidade 136 • '

a lei não é unívoca e completa, que sua aplicação não é mera repro- Entende Erich Danz que o resultado de toda interpretação con-
dução mecânica. (..) tr~h:al acaba por ~co~npletar ª. declaração negocial, razão pela qual toda
A interpretação jurídica deixa de ser uma simples hermenêutica do at1vi~de henneneuti_ca possm uma função em certa medida supletiva13 7•
texto legal para transformar-se numa atividade prático-criativa do di-
reito a cargo do jurista intérprete 133 •
Em diversas oportumdades os contraentes não formulam as nonnas con-
tratuais com tamanha clareza e suficiência que a aplicação das conse-
Porém, o reconhecimento do caráter construtivo da interpretação quências nonnativas para os casos sob o império do contrato independa
não conduz ao entendimento de que exista uma total liberdade ao intérpre- de um esforço hermenêutico. Ademais, beira as raias do impossível ditar
te, no sentido de que não exista significado algum antes do término do iter um~ ~~rma concreta para cada r~lação especial da vida que possa se per-
hermenêutico. O espaço de "fantasia" e/ou criatividade do intérprete con- fectibilizar no processo de cumprnnento dos ditames contratuais 138 .
tratual é limitado pela predetenninação dos contraentes (declaração negocial Vislumbrando o plano da nonna estatal, refere Humberto Ávila
enquanto objeto), pela situação concreta (fática e normativa) em que está que os ?ispositivo: normativos são resultados de generalizações feitas
inserida a relação e pelo universo histórico e linguístico do ato de compreen- pelo_ legislador, r?zao pela qua! mesmo a fonnulação mais precisa é po-
der, havendo, portanto, significados mínimos incorporados à coisa que tencialmente eqmvoca, na medida em que podem surgir situações de fato
preexistem ao processo interpretativo individual 134 • inicialmente não previstas, cttja solução hennenêutica demanda a análise
A contribuição produtiva do intérprete não legitima o caráter. da finalidade da nonna e à ponderação de todas as circunstâncias do caso
arbitrário das pressuposições subjetivas, pois o objeto da interpretação (concreção) 139. Esta observação, que se amolda perfeitamente aos contra-
continua sendo o norte da validação do ato de compreensão 135 • No âmbito tos de adesão e as condições gerais dos negócios por possuírem destinatá-
do contrato, a limitação da contribuição produtiva do sujeito cognoscente rios genéricos, com ceitas mitigações também se enquadra no contexto
vem, principalmente, com o respeito ao ato de autonomia, o que se dá por dos contratos paritários, pois estes, mesmo se constituindo em nonnas
meio do resguardo do sentido literal contido na declaração negocial (pri- mais concretas, não conseguem abarcar toda a realidade da situação de
mado do texto contratual) enquanto limite possível de significação, mes- sua conclusão e do curso de cumprimento, consubstanciando uma inarre-
mo em uma atividade hermenêutica matizada pela busca da concreção (o dável complexidade da relação contratual.
que importa na quantificação de elementos fáticos e normativos exterio- Assim, é missão do intérprete alcançar o horizonte do contrato
res ao texto da declaração negocial). desveland~o suas disposiçõe~ fundamentais e aquelas de fundo axiológic~
q~e lhe dao suporte (as 9uais se encontram no texto da declaração nego-
33
cial, na factuahda?e da situação fática ou no sistema jurídico), aplicando-
1 AMARAL, 2006, p. 49 e 52. -as aos casos da vida que o con~rato previu concretamente. O instrumento
134
Os inúmeros elementos limitadores da atividade interpretativa conduzem à limitação
do espaço de criatividade presente neste mesmo agir. Nesses termos, não pode ser en• 136
HESSE, 1991, p. 23.
tendida em sua literalidade a afinuação de Eros Grau de que "as disposições, os emm- 137
ciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os inté,pretes dizem que eles dizem" DANZ, 1955, p. 90-91 e 239.
138
(GRAU, 2003, p. 23). Representativa da ideia de que a norma é o produto da interpre- Analisando a formação da lei, Erich Danz refere que "a vida real ri 11111 dia e outro
tação, a afirmativa não ilide a teoria construída pelo pensador, a qual não ignora apre- da p,:evisão1º legis!a.d_or". No plano da interpretação dos negócios Jurídicos. deve-s~
sença dos elementos condicionantes da interpretação e a existência de significados con~1derar a ?13POss1b1ltdade de completude do instrumento contratual, com relação à
minimos incorporados à coisa e a própria linguagem. r:ahdade soc10econômica que este pretende regular (DANZ, 1955, p.-·130-131 ).
139
135
GADAMER, 2004, p. 132; ÁVILA, 2006, p. 32-35. AVILA, 2006, p. 57 e 61.
60 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 61

conh·atual é um marco significativo da situação objetiva complexa, embora intérprete. É exatamente sobre essa relação dialética antinômica que o
muitas vezes deficiente, dentro do qual o intérprete deve buscar a solução jusfilósofo ita!iano constrói a su,a !eoria geral da interpretação, centrada
necessária, com suporte nas circunstâncias fáticas e normativas 140 • na busca de mstrumentos metod1cos representados por seus cânones
Contrapondo à ótica conshutivista aqui adotada, tem-se que no hermenêuticos 144 •
marco teórico bettiano 141 a tarefa hermenêutica consiste em uma recons- Contudo, existe impo1tante peculiaridade do ideal reconstrutivo
trução, em voltar a conhecer o pensamento animador que se revela em bettiano que não pode deixar de ser observado. Embora o filósofo italiano
uma determinada fonna representativa 142 • Esta noção da atividade herme- defenda que a noção de reconstrução do significado seja perfeitamente
nêutica contempla uma verdadeira inversão do processo criativo, cabendo aplicável ao Direito 145 , admite a existência de níveis de apego do intérprete
ao intérprete (re)percorrer, em sentido retrospectivo, o iter genético e à necessidade de reconstrução. Cenh·ado no seu esquema de divisão prática
refletir a respeito das partes que compõem a atividade autoral que culmi- da atividade hermenêutica, refere que a ideia de "reviver o objeto a partir
nou na criação do objeto 143 • do próprio interior" é admissível em uma interpretação cognosciva e re-
produtiva, mas não totalmente na interpretação nonnativa, na qual subjaz
A proposta de Emílio Betti admite a antinomia havida entre a uma função prática dirigida à regulação de condutas humanas 146 •
exigência de objetividade (fidelidade ao valor expresso na forma repre-
sentativa) e o reconhecimento de que a subjetividade é inseparável da Não obstante a mitigação supramencionada, deve-se salientar
espontaneidade do entendimento, ou seja, de que a objetividade exigida que a noção reprodutiva pressupõe a existência de um significado intrín-
(alteridade) só pode ser realizada por intermédio da subjetividade do seco e imanente que apenas é desvelado pela interpretação, o que efeti-
vamente não subsiste, pois, como adverte Humberto Ávila, "o significado
não é algo inc01porado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende
140
A liberdade de ação não é irrestrita, pois o intérprete deve colmatar os vazios do precisamente de seu uso e inte1pretação" 147 •
contrato por meio da interpretação (aqui englobando também o viés da integração e da
interpretação integrativa), guiando-se pelos fins econômicos perseguidos pelos con- A grande objeção ao ideal reconstrutivo decorre de um sentido
trae~tes e p~las circunstâncias do caso, tarefa sempre mediada pelas suas concepções prático, pois como bem formula Gadamer, "cuando comprendemos un
de vida_ (honzonte e pré-compreensão) e pela tradição. Nessa atividade não pode pre- texto no nos colocamos en lugar de! outro, y 110 se trata de penehw· en la
tender impor, nas novas realidades da vida, conceitos construídos subjetivamente ou actividad espiritual de! autor", complementando, ainda, que "el sentido
apartados da autonomia das partes, os quais, nesses tennos, encontrariam bases in- de la investigación hermenéutica es desvelar e! mi/agro de la compren-
compatíveis com o horizonte do contrato interpretado.
141
É por meio da defesa de uma interpretação reprodutiva, plasmada no cânone sensus
144 BETTI, 1990a, p. 262; BETTI. 2007, p. XL-XLI e XCVIII. Os cânones henuenêuti-
11011 _est_i~zfere11dus, sed ejferendus (o sentido não deve ser imposto, mas extraído), que
Betti cntica Gadamer por, no seu entender, não levar em conta os direitos do objeto, im- cos apresentados por Emilio Betti serão objeto de análise no tópico "O procedimento,
pondo e atribuindo um significado ao invés de extrair o que nele está contido (REALE; os métodos e as regras de interpretação".
145 BETTI, 2007, p. 5.
ANTISER1, [s.d.], p. 265 e 284). Contudo, a censura do jurista italiano não quantifica
146 BETTI, 2007, p. CXXN. Para Betti, na interpretação nonnativa o intérprete deve dar
a importância da exigência gadameriana do intérprete deixar a coisa falar.
142
~ p~nsador i~a~~~ admit_e qu~ a transposição do intérprete se dá a UU1a subjetividade um passo além da reconstrução (movimento do sujeito em direção ao objeto, por in-
d1stmta da ongmana. Assim, diferentemente do que aponta parte significativa da dou- termédio dos cânones da autonomia e da totalidade-coerência), sintonizando a ideia
trina, a ideia reprodutiva bettiana, ao menos no contexto normativo, não tem em vista originária com a atualidade presente (movimento do objeto em direção ao sujeito. por
o pensamento originário do autor, não se aproximando do conceito de congenialidade. íntermédio dos cânones da atualidade e da adequação do entender). Na prática. a apli-
143
Leonel Cesarino aponta que "reconstruir o que foi construído, repensar o que foi cação dos cânones em sua totalidade implica na possibilidade de evolução hermenêu-
pensado; repercorrer, em sentido inverso, o processo criativo: é assim que Betti con- tica do Direito sem alteração de seu texto, -em razão de determinadas transformações
cebe o processo que condu= ao entendimento" (PESSOA, 2002, p. 95). Gadamer se socioculturais (manutenção da eficácia uonuativa do preceito), aspecto que Betti de-
contrapõe expressamente ao posicionamento de Emilio Betti (GADAMER 2004 nomina de interpretação histórico-evolutiva, a qual, 11º seu entender, não se trata de
p. 29), no que é acompanhado por Carlos Ferreira de Almeida, para quem falt~ à con~ UU1 método ou critério particular, mas, sim, de 11111 caráter lógico da interpretação jmi-
dica (BETTI. 2007, p. LVIIl-LIX, LXIII-LXVII. CII-CIII. 5 e 42: MEIRELES. Ana
cepção_ me_ramente, rec01~st~ut_iva da interpretação UU1a suficiente atenção ao processo
Cristína Pacheco Costa Nascimento. A Atualidade da Hermenêutica de Emilio Betti.
comumcatJvo (carater dialogi?o da compreensão) e à fünção autônoma do receptor,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da
restando por tratar o texto mais como sendo UU1 índice do espírito do que como UU1a
Bahia, n. 11,jan./dez. 2004, p. 131). +~ •

obra, e o contexto mais como um meio de prova do que como fator deterrnínante do 147
significado (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 167). ÁVILA, 2006, p. 31.
62 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 63

sión y no únicamente la comunicación misteriosa de almas. La co111pren- 11111 mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última
sió11 es una participación en la prete11sió11 comú11" 148 . Tendo em vista a palavra" 15º.
extensão do paradigma hennenêutico aqui adotado, é possível afirmar Como no universo dialógico gadameriano não existe uma pala-
que toda reprodução já é interpretação, compreensão e aplicação desde vra que ponha um ponto final na compreensão, assim como não há uma
seu início 149 • palavra primeira, entender-se a interpretação como definitiva seria uma
Do exposto neste tópico, cabe concluir que a fimção do intér- contradição, pois o ideal interpretativo é algo que está sempre a caminho,
prete não é a de reviver a intenção dos contratantes quando do momento que nunca se conclui 15 1, com o que concorda Emílio Betti, para quem
genético, mas a de construir o sentido do contrato a partir de seu hori- "nenhuma inte,pretação, por 111ais válida e convincente que seja, pode
zonte e da situação objetiva complexa em que se insere, se111pre respei- impor-se à humanidade como definitiva" 152 •
tando a autonomia das partes contratantes consubstanciada na declara- A incompletude da atividade hennenêutica está intimamente re-
ção negocial. lacionada com a finitude do ser humano 153 , pois é este o fator que fulmina
Não se pode mais ignorar o caráter produtivo da interpretação a perspectiva de um horizonte e de uma compreensão que consiga ir além
contratual, pois não há como dizer de antemão (sem a interpretação) o da temporalidade do Dasein (ser-ai). A finitude do homem o agrilhoa a
que é o contrato e quais são as relações do instrumento à detenninada uma determinada facticidade, ou seja, a uma condição (humana) que o
estrutura normativa (tipos legais). A relação obrigacional, em seu viés compromete com situações e instâncias por ele não escolhidas 154, razão
processual, é estruturante, não estando o contrato estruturado de ante- pela qual pode-se afinnar que nenhuma atividade do intérprete está livre
mão, o que remete ao caráter incompleto da atividade hermenêutica, obje- de sua condição concreta e situada, sendo que a compreensão por ele
to do tópico infra. produzida também faz parte do seu modo de ser-no-mundo, antecipando
qualquer tipo de explicação lógico-semântica. Nesses tennos, toda e
qualquer experiência humana é uma experiência de sua finitude, repre-
1.4 A Incompletude da Atividade Hermenêutica sentativa de um continuwn entre o objeto, a situação hennenêutica pre-
A hermenêutica filosófica nunca se assumiu como detentora 150 GADAMER. 2004. p. 384 e 544, 576: GADAMER. 2007b. p. 40: GADAMER. Hans-
ou produtora de resultados absolutos, mas como uma forma possível de Georg. EI Giro Hermenéutico. Madrid: Rogar, 1998a. p. 35.
experiência, admitindo que sempre haverá novos horizontes a serem 151 GADAME?-, 1998a, p. 76; GADAMER, 2004. p. 231; GADAMER.. Hans-Georg. A
desvelados, não havendo um esforço esgotável possível de compreensão Razão na Epoca da Ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 71.
interpretativa. Gadamer refere expressamente que seu esforço foi o de 152 BETTI, 2007. p. LXXXVIII.
153
"estabelecer o caráter inconcluso de toda a experiência", eis que "seria Não são apenas as limitações das possibilidades de conhecimento humano que condu-
zem à conclusão de que o processo exegético. apesar de almejar sempre a melhor in-
148
terpretação. nunca será definitivo. A esta circunstância soma-se a variedade infinita
GADAMER, 2003, p. 97-98. Essa pretensão em comum também é ressaltada por dos fatos concretos e a pennanente mutação das relações da vida - o que coloca o
Gadamer como sendo fünção primoridal do filósofo (GADAMER, Hans-Georg. Er- hem1eneuta constantemente perante novas posições -. bem como a verdadeira inesgo-
meneutica e Metodica Universale. Torino: Marietti, 1973. p. 9). tabilidade dos conteúdos de sentido a serem compreendidos (LARENZ. 1989. p. 378:
149
GADAMER, 2005, p. 18. O iter hennenêutico não depende de um retroceder ao BIAGIONl, João. A Ontologia Hermenêutica de H. G. Gadamer: reflexões e pet'S•
processo originário de produção, pois na concepção gadameriana o texto (contra- pectivas sobre a 3ª parte de "Verdade e Método". Uberlândia: Universidade Federal
to) é visto como um conceito hermenêutico, um produto intermediário e uma fase de Uberlândia, 1983. p. 16). Corno refere Latour, ·'a cada ve=, tanto o contexto quanto
na realização de um processo de entendimento (acontecer compreensivo), até a pessoa humana encontram-se redefinidos" (LATOUR, [s.d.]. p. 10).
mesmo porque no horizonte da hermenêutica filosófica o intérprete se encontra 154
livre de uma perspectiva da cientificidade gramática ou linguística (as quais pers- Esta facticidade (que também afeta o objeto) impõe que o sujeito cognoscente esteja
crutam a produção do texto enquanto produto final). A compreensão no paradig- jogado no mundo, permaneça sempre junto das coisas que procura compreender e se
ma gadameriano mantém sujeito e objeto em permanente tensão, gerando um re- constitua como possibilidade (füturo) (HOMMERDING. 2003, p. 20 e 38). Miguel
sultado que não é a reprodução da obra interpretada, mas a explicitação de uma Reale adverte que "os instrumentos de conquista do i·eal não existem a priori, mas são
possibilidade verdadeira à luz de uma detenninada situação hermenêutica (GA- constituídos e moldados à lu= das particularidades mesmas do setor que o espírito
DAMER, 2004, p. 29, 393-394, 398; ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, circunscreve ou delimita, visando a atingir, ainda que em caráter provisório, verda-
2000, p. 66). des objetivamente verificadas ou verificáveis" (REALE. 1999, p. 88).
64 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 65

sente e a história pessoal do sujeito cognoscente, sustentada por seus Como o alcance da verdade é o objetivo do procedimento her-
preconceitos. rnenêutico161, presidindo a vida do investigador de maneira incondicional
A finitude irrevogável do ser tem como derivativo a finitude ir- e inequívoca 162 , deve ser enfrentada a questão envolvendo a relação das
revogável da sua compreensão, o que se apresenta como condição para a conclusões hennenêuticas com a própria realidade.
determinação do sentido e para o estabelecimento de relações com outros Inicialmente, cabe frisar que existe uma realidade fática (objeto
seres e objetos igualmente finitos 155 • A inexorabilidade da incompletude de interpretação) e uma realidade hennenêutica (resultado da interpreta-
(não totalidade) da compreensão trazida pela finitude do sujeito cognos- ção)163, pois os contingenciamentos que atingem o intérprete e suas con-
cente é uma dimensão que o ser humano não consegue dar conta nem clusões interpretativas não ilidem a existência de um dado objetivo (rea-
como indivíduo nem como grupo 156 • O homem só compreende depois de lidade fática), que está para além de sua compreensão 164 • O fato do produ-
acontecido, ou seja, depois que ele e o objeto se tomam fatos concretos
detenninados pela história, pela cultura, pela linguagem e pelas circuns- ca de Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade
tâncias fáticas 157 , afirmação da qual resulta a imprescindibilidade de um de Filosofia de Braga, jul./dez. 2000, p. 520.
raciocinar por concreção. Contudo, a própria finitude toma esta atividade 161 A hermenêutica filosófica não se preocupa diretamente com a certeza de seus postula-
complexa, pois se o intérprete é sempre um ser-no-mundo, ao mesmo dos, mas sim com a carga de verdade que eles revelam (VILA-CHÃ, João J. Hans-
Georg Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, Braga: Faculdade
tempo em que o mundo (realidade) o constitui, ele constitui o mundo (por de Filosofia de Braga, jul./dez. 2000, p. 3U5).
intermédio da linguagem) 158 • 162 GADAMER, 2004, p. 57.
A consciência da sua condição finita de alcance da compreen- 163 Interessante o pensamento de Acílio Estanqueiro Rocha, para quem "verdade e reali-
são é o passo primordial para que o intérprete fique atento à alteridade do dade são dimensões interconexas, mas que muitas ve=es se apresentam em descone-
objeto ou a possibilidade do outro estar com a razão. Assim, a finitude xão" (ROCHA, 2000, p. 319). Quanto ao tema da verdade no âmbito da compreensão,
caso se entendesse que efetivamente inexiste uma verdade (fática ou hennenêutica),
não é um elemento restritivo ou uma deficiência do processo, pois é esta como propõe parte significativa da doutrina, como seria possível justificar a refonna
dimensão que permite ao sujeito cognoscente ultrapassar as marcas parti- de decisões judiciais. enquanto ato hennenêutico. senão recorrendo-se a argumentos
culares e estreitas de seus pontos de vista (subjetividade) 159 , acentuando a de autoridade? Ocorre que na constmção e atribuição de sentido, que é o tema desta
dimensão ontológica da atividade hennenêutica, que não se ajusta ao pesquisa, descabe ao sujeito cognoscente recorrer a argumentos de autoridade, pois
ideal cientificista do método ou a lógica da racionalidade instrnmental 16º. questões hierárquicas são despiciendas. No entanto, quando se enfoca a atribuição de
eficácia nomiativa se adentra no plano argumentativo, onde é totalmente cabível falar
em autoridade, pois o sistema jurídico efetivamente atribui eficácia às decisões judiciais
155
ARAÚJO, 2005, p. 56. por meio de conceitos como hierarquia (ex.: decisões dos tribtmais superiores que der-
156
ENGISCH, 1968, p. 34. rogam os julgados de instâncias inferiores, independentemente de seu conteúdo ou da
157
ARAÚJO, 2005, p. 160; S1EIN, 2004, p. 19-21, 49, 65-66 e 67-69. Nas mesmas passa- carga de verdade por elas revelada) (FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Aulas mi-
gens, Stein refere qne, em um viés heideggeriano, o ser hnmano jamais é senhor absoln- nistradas na cadeira Tópicos Avançados de Direito Civil Constitucional II, proferi-
to do acontecer hermenêntico, urna vez que é composto pela sua facticidade (passado), da em 2008/1, no PPG/PUCRS. 2008). Em sú1tese, pode-se conclnir que. enquanto a
por ser e estar jogado no mundo (enquanto facticidade está sempre junto das coisas) e questão da verdade possui enonne significância na descoberta e desvelamento do ob-
por constituir-se em possibilidade, que se apresenta como sendo um futuro que acaba jeto interpretado, toma-se secundária 110 plano da atribuição de eficácia do ato de
sendo un1 passado em face do seu ser-no-mundo que já começou sem necessariamente compreensão, como ocorre 110 caso específico da decisão judicial.
pem:ritir que se opte por ele. Nas três din1ensões de tempo (passado, presente e führro) o l6-I Miguel Reale desvela a impossibilidade de se aceitar a ideia como razão (ser) das
ser hnmano é sempre história e culhrra, ou seja, é constituído e lin:ritado significativa- coisas, como se o pensamento pudesse gerar o ser do qual é pensan1ento: "O fato de
mente por elementos que ele não domina. Por estes fatores é que, na matriz filosófica
heideggeriana, ao ser humano cabe viver unia vida que não escolheu (ao menos por nada poder-se di=er de 'algo' até e enquanto não percebido 011 pensado ou em pro-
completo), principalmente porque seu início e fim lhe escapam, como tan1bé111 defende cesso de percepção ou cognição, não nos autori=a a i,iferir que a zínica realidade
Miguel Reale (REALE, Miguel. A Filosofia em Machado de Assis. ln: O Estado de São concreta seja a do pensamento mesmo no ato de pen8;ar. Seria como di=er que, como
Paulo. São Paulo, 7.dez.1980. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/ nada é suscetível de ser visto sem a lu=, a lu= é, i11 co11creto, o ser de todas as coisas.
media/prosa44a. pdf>. Acesso em: 18 maio 2008. p. 24). O pensamento é sempre o pensamento de algo, o que quer di=er momento da capta-
158
GADAMER, 2005, p. 590; GADAMER, 2004, p. 376; HOMMERDING, 2003, p. 28. ção de algo como objeto que se põe, que se positiva no tempo. (. ..) também seria ab-
159
GADAMER, 2005, p. 590; ARAÚJO, 2005, p. 54 e 66. surdo pretender que somente seja real o que esteja ú1 acto, tra=ido à atualidade da
160 consciência'' (REALE, 1999, p. 61, 104, 107 e 249). Em síntese: ·tr objeto jamais se
ARAÚJO, 2005, p. 157-158. No mesmo sentido: HESSE, 1998, p. 62-63; DUQUE- reduz ao sujeito.
ESTRADA, Paulo César. Lin:rites da Herança Heideggeriana: a práxis na hem1enêuti-
66 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 67

to da atividade interpretativa (realidade hennenêutica) conseguir (ou não) real( ... ) a rigor, só existe sob o prisma gnoseológico, enquanto se con-
abarcar completamente essa realidade fática não é uma questão que diga verte em o bye · to "169 .
respeito à sua existência, já que ela existe independentemente da Questão de fundamental impo1tância é a de que, no plano dos
(in)compreensão pelo intérprete 165 • contratos, os direitos e obrigações que emergem do pacto não são criados
Na discussão que envolve a prevalência entre objetividade e pela interpretação, mas dependem dessa para que alcancem sentido. Se o
subjetividade, deve-se verificar que, se há uma realidade objetiva que contrato existe enquanto ente jurídico autônomo, não tem sentido algum
existe independentemente do intérprete - o qual depende destas circuns- fora da circularidade hennenêutica 170 •
tâncias para alcançar a compreensão (deixar a coisa falar) 166 - a ativida- A declaração negocial e as circunstâncias do caso são realidades
de hermenêutica somente faz sentido em relação ao intérprete (caráter fáticas que existem independentemente da atividade exegética, embora
produtivo da interpretação). A construção da realidade depende da sub- somente sejam apreensíveis ao saber humano por meio do procedimento
jetividade do agente (inexistência de separação entre sujeito e objeto), hennenêutico. Se a finitude do sujeito e o caráter histórico e linguístico
embora a compreensão jamais seja um comportamento completamente da compreensão já condicionam, de antemão, a (im)possibilidade do in-
subjetivo frente ao objeto (universalidade da exegese por meio das di- térprete alcançar a própria realidade fática, deve-se considerar, ainda, que
mensões linguística e histórica) 167 • Nesses termos, não obstante o objeto a mesma incompletude da atividade hennenêutica alcança também as
exista independentemente do sujeito, ele não tem sentido (hermenêuti- realidades que existem apenas no plano hermenêutico, como é o caso do
co) fora da relação com este sujeito 168 • Como refere Miguel Reale, "o resultado da interpretação do contrato.
O contrato, enquanto ente significativo, é uma realidade henne-
165 Gadamer se ocupa apenas do plano hermenêutico, mas isso não conduz à conclusão nêutica em si, produto de uma atividade interpretativa que pode ser con-
de que não aceite a existência de uma determinada realidade objetiva, uma vez que siderada correta ou incorreta perante detenninada situação hennenêutica.
admite a existência de um "verdadeiro sentido que há numa coisa" (verdade fática) e,
inclusive, de "uma inte,pretação correta" (verdade hermenêutica) (GADAMER, Em sua tentativa exegética, o intérprete se debruça sobre elementos con-
2005, p. 29 e 395; GADAMER, 2003, p. 116). Como refere Latour, "não são os ho- cretos (declaração, circunstâncias, e nonnas jurídicas), mas além da apreen-
mens que fa=em a nature=a, ela existe desde sempre e sempre esteve presente, tudo são destes dados somente ocorrer por meio da atividade interpretativa, a
que fa=emos é descobrir seus segredos" (LATOUR, [s.d.], p. 36). A desconfiança conclusão (compreensão do contrato) será uma realidade (hennenêutica)
acerca da existência de uma verdade passa apenas pela condição desta verdade em que também se encontra limitada pelos pressupostos condicionantes da
termos hem1enêuticos. Quando se fala da inexistência de uma verdade está se falando
da impossibilidade de se alcançar henueneuticamente esta verdade, mas não se está compreensão. Assim, não é apenas a realidade fática que se encontra
negando, necessariamente, a sua existência. subjugada aos elementos que condicionam a compreensão, mas também a
166
A esta conclusão resta subjacente a ótica objetivista de Emilio Betti, que não ignorou realidade hermenêutica.
o momento subjetivo da interpretação, nem negou a necessidade da mediação humana • A pretensão de alcançar um sentido absolutamente verdadeiro
no ato de compreender, mas ressaltou a validade existencial do objeto, a partir do qual
seria possível realizar uma interpretação objetivamente válida. No pensamento bettia-
no procedimento interpretativo é utópica 171 , pois como bem refere Gada-
no, a subjetividade do intérprete deve penetrar na estranheza e alteridade do objeto in-
terpretado. Sob esta perspectiva, o objeto "'fala" e pode ser avaliado de fom1a correta radicalização do entendimento de que é o intérprete que constrói o objeto, sem a me-
ou incorreta. Aspecto relevante nessa vertente teórica é a distinção entre "sentido" e diação ou nlitigação aqui exposta. levaria à conclusão de que a realidade só existe a
--significado", pois no entender de Emilio Betti o objetivo da hermenêutica é clarificar partir do "eu", e que o mundo inexiste independentemente de "num''. O entendimento
o sentido verbal de uma detemlinada passagem, que é fixo, e não encontrar o signifi- aqui defendido aceita a ausência de separação entre sujeito e objeto na interpretação.
cado desta. Nesta perspectiva, é possível alcançar semelhanças em pelo menos três mas ressalta que esse amálgama subsiste no iter hem1enêutico. e não no plano fático.
169
elementos abrangidos pela teoria gadameriana, embora a discordância sempre presen- REALE, 1999, p. 33.
170
te acerca da busca pela reconstrução do significado, conforme defendido pela teoria O caráter criativo da atividade henuenêutica possui unia função balanceadora da
bettiana: a força vinculante do objeto interpretado, a necessidade de verificação da interpretação ao indicar que. se de um lado esta não cria o objeto. de outro não se li-
particularidade com o todo (circularidade da interpretação) e a relevância do racioci- ~ta a reconstruí-lo. Assim. se a interpretação contratual não cria os direitos e obriga-
nar por concreção na atividade interpretativa (PALMER, 1997, p. 65-69). çoes que emergem do contrato (pois não é fonte de obrigações). também não se linlita
167
GADAMER, 2005, p. 18. a meramente reconhecê-los de fomia passiva.
171
168 PALMER, 1997, p. 34. O intérprete constrói hermeneuticamente o objeto interpreta- REALE, 1999, p. 111. Sendo a interpretação verdadeira aquela,que alcança com
do, mas a existência do objeto não depende desse agir hem1enêutico do intérprete. A absoluta perfeição a realidade (objetividade da situação complexa exanlinada). toma-
68 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 69

mer, "para una conscienciafinita e histórica, la identidad absoluta de la entre interpretações 175 • Se o produto da atividade hennenêutica tem sem-
conciencia y dei objeto es algo fi1era de alcance; se halla siempre swner- pre sua própria temporalidade e historicidade, deve-se considerar que a
gida en las influencias históricas" 172 • Porque a compreensão é alcançada pretensão de _verdade hennenê~tica também é construída coletivamente
da perspectiva de determinada situação hermenêutica (delineada pela no desenvolvunento do conhecunento humano, por meio do trabalho de
. t'erpretes 176. N a teona
diversos 111 . ga d amenana
. a compreensão não se
historicidade e preconceitos do sujeito), nunca poderá ser o reflexo exato
da realidade objetiva. Nesse sentido é a lição de Eros Roberto Grau: prende às margens da subjetividade, já que a partir da historicidade e da
linguagem o produto da interpretação alcança uma carga de validade que
(. ..) é certo que os fatos não são, fora de seu relato (isto é, fora do re- ultrapassa as marcas da existência finita 177 •
lato a que correspondem), o que são.
Ademais, a verdade hennenêutica não é estática pela simples
O que des(!jo afirmar é a fragilidade do compromisso entre o relato e
seu objeto, entre o relato e o relatado. razão de que a realidade fática não o é, sendo mutável pelo transcurso do
Esse compromisso é, antes de mais nada, comprometido em razão(])
de jamais descrevermos a realidade; o que descrevemos é o nosso Graduação da Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), 2005,
modo de ver a realidade. Além de não descrevermos a realidade, po- p. 5.
rém o nosso modo de ver a realidade, (2a) essa mesma realidade de- 115 Em face das condições peculiares de seu conceito de verdade. na hennenêutica
termina o nosso pensamento e, (2b) ao descrevermos a realidade, filosófica gadameriana não se tem um par~metro absolutamente seguro que permita
nossa descrição da realidade será determinada (i) pela nossa pré- distinguir urna contribuição autêntica de uma mera pretensão de verdade, até mes-
compreensão dela (= da realidade) e (ii) pelo lugar que ocupamos ao mo porque a questão parece estar fora da preocupação filosófica direta de Gadamer.
Como salienta o filósofo, "a reflexão hermenêutica limita-se a abrir possibilidades
descrever a realidade (= nosso lugar no mundo e lugar desde o qual
de conhecimento que sem ela 11ão seriam percebidas. Ela não oferece 11111 critério
pensamos). (. ..)
de verdade" (GADAMER. 2004. p. 307). Para a distinção entre o verdadeiro e o
Também no que tange aos fatos não existe, no direito, o verdadeiro. falso, as ciências do espírito dispõem "somente" de seus discursos. embora a ques-
Inútil buscarmos a verdade dos fatos, porque os fatos que importarão tão da verdade não possa ser colocada como simples demonstração discursiva. A
na e para a consh·ução da norma são aqueles recebidos/percebidos verdade hennenêutica não pode ser demonstrada objetivamente. senão com a expli-
pelo inté1prete - eles, como são percebidos pelo inté1prete, é que in- citação do acordo temático que liga o intérprete e seus pares ao objeto interpretado.
formarão/conformarão a produção/criação da norma 173 • A necessidade de abertura do íntérprete para a alteridade da coisa, deixando que es-
ta lhe fale algo contra suas próprias convicções, parece ser o grande critério gada-
Contudo, a aceitação do caráter produtivo da finitude e da pré- meriano de aferição da correção do produto da ínterpretação ( GADAMER, 2004, p.
compreensão, que corretamente fulmina a possibilidade de uma verdade 53. 56 e 490; GRAU. 2003, p. 109).
representacional absoluta 174, não impede o juízo de correição e de eleição 176
GADAMER 2004, p. 71 e 305. O próprio procedimento judicial (instância onde
ocorre grande parte das discussões envolvendo a interpretação dos contratos) é bastan-
se conceitualmente inatingível pelo intérprete finito e marcado pela radicalidade do te representativo desta instância de constmção da compreensão em âmbito coletivo.
Dasei11, embora em tese não deixe de ser possível a sua consubstanciação. O caráter tanto no que respeita ao aspecto interno do processo (onde diversos sujeitos elencam
linguístico da interpretação impõe a conclusão de que o texto "fala" por intem1édio de suas razões para que se culmine em uma detenninada interpretação ao final) quanto ao
uma línguagem que alcança o intérprete. Sob esta perspectiva, não há falar em uma seu aspecto recursai (onde agem diversos intérpretes institucionais, tantas quantas fo.
ínterpretação correta ·'em si", a qual seria um ideal desprovido de pensamento, pois remas ínstâncias judiciais existentes). Esta dimensão externa e jurispmdencial remete
em cada línguagem está em questão o próprio texto, também porque "toda i11te1preta- à teoria do romance em cadeia (chaim novel) de Ronald Dworkin. para a qual o julga-
ção deve acomodar-se à situação hermenêutica a que pertence" (GADAMER, 2005, dor, ao decidir, participa de uma narração que começou a ser escrita com a formação
p. 514). do primeiro precedente sobre o assw1to tratado. Nesses tenuos, está o intérprete vin-
172 GADAMER, 2003, p. 59. Como bem assevera Larenz, apesar de toda ínterpretação culado com as decisões precedentes na perspectiva do seu ato decisório, que também
pretender ser uma exegese correta, no sentido de conhecimento adequado, apoiado em possui uma natureza prospectiva (DWORKIN, 2000).
177
razões compreensíveis, "não existe, no entanto, uma inte,pretação absolutamente Steín refere que a filosofia sempre recorreu a um fundamento empírico ou a um fim-
correta, no sentido de que seja ta11to definitiva, como válida para todas as épocas" damento último de verdade. sendo a hennenêutica filosófica a incômoda verdade que
(LARENZ, 1989, p. 378). se assenta entre a verdade empírica e a verdade absofota, pois na teoria gadameriana a
173 verdade se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem. A
GRAU, 2003, p. 33.
174 S1EIN, 2004, p. 19-21, 66 e 68-69; PASQUALINl, Alexandre Correa da Câmara. henuenêutica filosófica estabelece a racionalidade de uma verdade 'qlie não pode ser
Hans Georg Gadamer. Texto oriundo de seminário ministrado no Programa de Pós- provada empiricamente ou por meio de um fundamento último (S1EIN. 2004, p. 48).
Interpretação Contratual 71
70 Felipe Kirchn~r

tempo e a ocorrência dos fatos 178 • No campo dos contratos isso é eviden- ticamente abandonando a tese da interpretação razoável 182 , com a conse-
te, uma vez que a conduta das partes posterior à celebração do pacto in- quente defesa da existência de uma interpretação correta (mesmo que
flui decisiva e diretamente no próprio conteúdo da relação contratual embasada em pressupostos argumentativos). O fortalecimento desta cor-
(v.g.: venire contrafactum proprium). A realidade (e a verdade nela con- rente privilegia o tratamento jurisdicional isonômico, principalmente em
tida) é amplamente permeável ao diálogo com o tempo e a sua história 179 • face da função uniformizadora dos tribunais superiores 183 •
O que verdadeiramente interessa à interpretação é a sua preten-
são de correição em relação à detenninada situação hennenêutica, a partir 182 A tese era suportada pelas Súmulas 343 e 400 do STF e Súmula 137 do extinto TFR.
da qual se pode avaliar um detenninado entendimento como sendo falso Talvez o principal motivo para a mitigação das disposições sumulares seja o surgí-
ou verdadeiro (c01Teto ou incorreto em termos de uma terminologia me- mento de 11111 Tribunal Superior (STJ) com a função precípua de unifonnizar a juris-
todológica )180. Se não se pode falar em uma verdade enquanto conceito prudência (o que remete ao sistema institucional do Direito).
estanque e objetificado (fora da história), é possível falar na existência de 183 Nesse sentido, cabe mencionar a decisão paradigmática do REsp 1.026.234, de relato-
ria do ministro Teori Albino Zavascki. no qual se desautorizou a legítimidade da teo-
uma verdade exegética quando o objeto é analisado sob a mesma situação ria da interpretação razoável no âmbito da ação rescisória. discutindo a validade das
··..
hermenêutica. Súmulas 343 e 400 do STF. Com vista ao plano argumentativo e da autoridade insti-
Este é um ponto fundamental: o resultado da interpretação po- t11cional do sistema jurídico, o STJ assim ponderou na Ementa da decisão menciona-
de se mostrar incorreto, não se podendo aceitar a correição de uma du- da: "Afesmo que sejam ra=oáveis as inte1pxetações divergentes atribuídas por outros
tribunais, cumpre ao STJ intervir no sentido de dirimir a divergência, f a=endo preva-
pla verdade sob a mesma situação hermenêutica, a qual não pode ser lecer a sua própria inte,pretação. Admitir inte1pretação ra=oável, mas contrária à
considerada apenas como sendo um paradigma individual, sob pena de sua própria, significaria, por parte do Tribunal, renzíncia à condição de inté,prete
falecer a pretensão de universalidade da atividade hermenêutica. O pró- institucional da lei federal e de guardião da sua obsen1ância. (. ..) A existência de in-
prio Gadamer afim1a expressamente que "a dupla possibilidade de com- te1pretações divergentes da norma federal, antes de inibir a intervenção do STJ (co-
mo recomenda a súmula), deve, na verdade, ser o móvel propulsor para o exercício
preensão é sempre um conjlito" 181 • do seu papel de uniformi=ação." Em seu voto, o ministro Teori Albino Zavascki assim
É por estas razões (que se sornam a argumentos de ordem insti- se posiciona: "Nas duas súmulas há a consagração da doutrina, fortemente assentada
tucional e de política judiciária) que os tribunais superiores vêm sistema- no STF antes da Constituição de 1988, da tolerância da inte,pretação ra=oável da
norma: deve-se aceitar uma inte,pretação da norma que, embora não seja a mais
correta, seja, todm 1ia, ra=oável. (. ..) em nome da segurança jurídica, toleram-se in-
178 Em interessante passagem, Gadamer refere que "'embora deva ser compreendido cada te,pretações equivocadas, desde que não se trate de equívoco aberrante. (.) O STF
ve= diferente, um texto continua sendo o mesmo texto que se apresenta cada ve= dife- vem opondo sistemática resistência, especialmente nos últimos tempos, à doutrina da
rente", sendo que "com isso não se relativi=a em nada a pretensão de verdade de i11te1pretação ra=oável, ainda que não a melhor. (...) tendo em conta afimção institu-
qualquer inte1pretação", especialmente devido ao seu caráter linguístico (GADA- cional do STJ a partir da Constituição de 1988, pode-se di:::er: contraria-se a lei fede-
MER, 2005, p. 408 e 515; GADAMER, 2004, p. 479; ALMEIDA; FLICHINGER; ral não apenas negando sua vigência, mas também dando a ela inte1pretação menos
RHODEN, 2000, p. 175). exata, assim considerada a que for contrária a orientação do STJ. Se não for admiti-
17 g Como diz Gadamer, "uma reflexão sobre o que é a verdade nas ciências do espírito do que o STJ exerça o controle da inte1pretação que as instâncias ordinárias deram à
não pode querer, pela reflexão, subtrair-se à tradição, cuja vinculabilidade desco- lei federal, afastando as inte1pretações diferentes da sua (embora ra=oáveis), deixará
briu" (GADAMER, 2005, p. 32), referindo também que "a historicidade não repre- o Superior Tribunal de Justiça de ser o i11té1prete institucional da lei e, consequente-
senta mais uma delimitação restritiva da ra=ão e de seu postulado de verdade, sendo, mente, o guardião da sua observância. Ao tolerar inte1pretação ra=oável, mas não
antes, uma condição positiva para o conhecimento da verdade" (GADAMER, 2004, exata (ou seja, ao admitir que, paralelamente à i11te1pretação que considera a ade-
p. 125-126), razão pela qual a exigência de um critério hermenêutico de verdade abso- quada, persista outra inte1pretação, ·ainda que ra=oável, da norma), o STJ acaba
luta se mostra como um ídolo metafisico abstrato. operando em sentido oposto ao de suas atribuições. Certamente não estará =elando
180 Aqui se está a propor uma comparação entre resultados interpretativos sob a mesma por dar à norma federal a necessária i11te1pretação uniforme e nem estará atuando
situação hermenêutica, algo realizado do ponto de vista teórico. Sob o filtro da situa- por sua aplicação uniforme para todos os destinatário,s. (. ..) Assim, independentemen-
ção hermenêutica está correto Gadamer quando afim1a que "quando se logra compreen- te de eventuais divergências inte1pretativas no âmbito de outros órgãos judiciários,
der, compreende-se de 11111 modo diferente" (GADAMER, 2005, p. 392). No sentido deve ser considerada como ofensiva a literal disposição de lei federal, para efeito de
gadameriano do processo hennenêutico, realmente não há falar em um compreender rescisória, qualquer inte1pretação contrária à que 'lhe atribui o STJ, seu inté,prete
melhor, sequer sob o ponto de vista de que alguém possui um maior conhecin1ento institucional. (. ..) a doutrina da tolerância da inte1pretação ra=oável está na contra-
sobre detenninada coisa, pois esta sempre sofre a mediação da presença do intérprete. mão do movzinento evoluh·vo do direito brasileiro, que caminha nó-sentido de presti-
181 GADAMER, 2004. p. 416. giar cada ve= mais a força vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores. (...)
72 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 73

A aceitação da coneição de uma dupla significação hennenêuti- Como a história do efeito 188 é a experiência por que passa a
ca do contrato, analisado sob a mesma situação objetiva complexa e co- existência humana finita em seu diálogo com a tradição 189, a questão
mum intenção representada pela declaração negocial, seria urna verdadei- abordada neste tópico remete à historicidade do fenômeno hennenêutico,
ra contradição com a existência do contrato enquanto objeto de represen- a qual surge como princípio básico e questão pennanente da atividade
tação da autonomia bilateralizada das partes. hennenêutica 190, não se tratando de um propósito periférico que assume
As diferentes opiniões sobre o contrato somente podem ser ana-
188 Miguel Reale e José Maria Aguirre Oraa referem que a expressão alemã wirkungsges-
lisadas corno pretensões de verdade em relação ao pacto, que, como ato
chichliche Bewusstsein apresenta dificuldades, tendo sido traduzida de diferentes for-
de previsão, detém existência autônoma perante a vontade individual das mas (REALE, 1999, p. 239; ORAA, José Maria Aguirre. Pensar con Gadamer y Ha-
partes contratantes. Não é pela existência de dissonâncias com relação à bermas. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56. fase. 3-4. Braga: Faculdade de Filo-
determinada disposição contratual que se há de falar na possibilidade de sofia de Braga, jul./dez. 2000, p. 498). No presente estudo se utilizará a expressão his-
mais de urna verdade hennenêutica 184 • tória do efeito, confonne tradução sugerida pelo Professor Doutor Luis Afonso Heck
(HECK, 2007a).
Corno visto, a inexistência de experiências científicas imediatas 1s9 Refere Gadamer que "a história é o que nós fomos antigamente e o que somos agora.
deriva do fato de que o sujeito cognoscente não tem acesso direto aos É o aspecto vinculador de nosso destino" (GADAMER, 2004, p. 49). Todos os seres
objetos via significado, mas apenas via significado em um mundo linguís- humanos são produtos de uma cadeia ininterrupta pela qual o passado se dirige até a
tico, histórico e cultural 185 detenninado (toda reflexão subjetiva implica situação presente, não havendo como anular o que se encontra atrás do factualidade
uma reflexão histórica construída linguisticamente) 186 • Nesse sentido, as do homem, razão pela qual o compreender implica a realização de uma mediação en-
dimensões linguísticas, históricas e culturais são elementos de produção tre presente e passado (GADAMER, 2003, p. 96: GADAMER, 2003, p. 115-116). No
mesmo sentido, salienta Miguel Reale que "a 'nature=a histórica' do ato de conheci-
de sentido que atuam sobre deteiminados suportes fáticos e nonnativos 187, mento não se prende, como poderia parecer, apenas ao fato circunstancial de achar-
sendo relevante realizar uma breve análise destes vetores produtivos (e se o homem 110 mundo, co11dicio11ado pelo que o cerca, mas se vincula antes à histori-
produtores) do fenômeno hermenêutico. cidade mesma do ser humano, czifo perceber já é 11111 atuar, czifo saber já é 11111 proje-
tar-se para algo" (REALE, 1999, p. 53 ). O filósofo segue afimrnndo que "onde não há
Por todas essas recões, justifica-se plenamente a mudança de orientação do STJ em re- finitude não há história" e, inencionando Ortega y Gasset, refere que "nenhum homem
lação à súmula 343/STF, para o efeito de considerar como ofe11Siva a literal disposição de começa a ser homem; nenhum homem conclui a humanidade, porquanto todo homem
lei federal, para efeito de rescisória, qualquer inte1pretação contrária à que lhe ah"ibui o continua o humano que já existia" (REALE, 1999, p. 249 e 251). No âmbito do aspec-
STJ, seu inté,prete institucionaI". Amparando a tese, o STF declarou, no AI-AgR 145.680, to subjetivo da atividade hermenêutica, a história do efeito deve levar o pesquisador a
de relatoria do ministro Celso de Mello, que ··em matéria constitucional não há que se co- colocar em primeiro plano de seu labor interpretativo não apenas a historicidade do
gitar de inte1pretação recoável. A exegese de preceito i11Scrito na Co11Stituição da Repú- objeto analisado, mas também a realização de sua própria historicidade (IBBETT.
blica, muito mais do que simplesmente recoável, há de ser juridicamente con·eta". No John. Gadamer: application and history of ideas. History of Political Thought,
mesmo sentido, o ministro Moreira Alves, no voto do RE 81.429, assim declinou: "Con- v. Vill. n. 3, Winter. 1987, p. 549). Como refere Gadamer, ··somente 11111 ser-aí que
traria-se [preceito normativo} não apenas negando vigência, mas também dando inte,pre- obedece às h·adições, que obedece as suas próprias tradições, isto é, aquelas que lhe
tação menos exata. Em se tratando de dispositivo constitucional, é cabível recurso ex- são próprias, sabe e pode tomar decisões que fa=em história'" (GADAMER, 2007b,
traordinário para examinar, se coffeta, ou não, a inte1pretação que as instâncias ordiná- p. 143).
rias lhe deram. Não fora assim, e delmria de ser o Supremo Tribunal Federal o sumo in- IQO Se a historicidade da compreensão implica a reabilitação da autmidade na atividade
té,prete da Constituição e, consequentemente, o guardião de sua observância". exegética, inexiste uma vertente arbitrária nesta dimensão. Parte da doutrina entende
184
Como refere Erich Danz, não cabe ao intérprete levar em conta as intenções não que a hermenêutica filosófica absolutiza o peso da tradição, defendendo um elemento
manifestadas ou acordos fictícios de vontades (ex.: vontade geral do comércio), mas de continuidade que desconsidera nipturas históricas (HABERMAS, Jurgen. Sobre
antes lhe compete mostrar o estado real das coisas, e não determinar como conteúdo "Verdade e Método'' de Gadamer·. ln: HABERMAS, Jurgen. Dialética e Hermenêu-
da declaração negocial o querido subjetivamente por qualquer dos litigantes (DANZ, tica. Porto Alegre: LP&M, 1987, p. 16; COSTA LIMA. Luiz. Hen11enêutica e Abor-
1955, p. 97-98). dagem Literária. ln: COSTA LIMA, Luiz (Org.). Teoria da Literatura em suas Fon-
185 A questão cultural é dimensionada por Miguel Reale e, no âmbito da interpretação tes. v. L Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002). Gadamer reconhece que a de-
contratual. por Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria (VIOLA, ZACCARIA, 1999, fesa que fommla desta dimensão acaba favorecendo a errônea opinião de que teria as-
p. 439 e 442). sumido uma assunção acrítica da autoridade, como se postulasse um conservadorismo
186 STEIN, 2004, p. 18-21, 65-66, 68-69, 74 e 76; MORATALLA, 2003, p. 35; ARAÚ- tradicionalista (GADAMER, 2004, p. 52). No entanto, embora o resgate da tradição
JO, 2005, p. 90 e 101. pressuponha a existência de elos maleáveis de continuidade, a hemíehêutica filosófica
187
GADAMER. 1993a, p. 144-145. não sustenta uma necessária continuidade de sentido, sendo a apropriação e a trans-
74 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 75

relevância apenas quando o henneneuta pretende resolver uma questão razão pela qual o ato interpretativo deve contemplar uma dimensão histó-
detenninada, como ocorre no uso metodológico da chamada interpretação rica que quantifique a sobrevivência das fonnas temporais passadas e a
histórica 191 . proje~ão d~s!as no futur?: em ut?a atualização prospectiva 192 ,_ à que tam-
A temporalidade do Direito não é sucessiva e linear, pois com- bém e ad1mtido por Eirul10 Bett1 193 . Nesse contexto, cabe salientar que o
porta tanto a interpenetração como a simultaneidade de formas e fases, contrato apresenta certos paradoxos com relação ao tempo 194, pois procu-
ra segurança com relação ao futuro, mas só tem sentido com as tratativas
passadas, ou seja, é moldado pelo passado e feito para o futuro, mas só
formação (descontinuidade) acepções potenciais do continuo. A teoria gadameriana tem sentido no presente que, mesmo sendo o tempo próprio, é havido
confere inteligibilidade ao descontínuo, admitindo a possibilidade de que o intérprete
rechace a tradição ou a assuma conscientemente na dissolução da tensão existente en- muitas vezes como se não existisse (o presente é uma consequência do
tre o objeto e a situação hem1enêutica presente. Em verdade, é apenas a própria cons- passado que visa o futuro) 195 .
ciência crítica que não pode desconhecer sua historicidade constitutiva (ORAA, 2000,
p. 494-495, 497-499 e 502; ARAÚJO, 2005, p. 52 e 82-83; SILVA, 2000b, p. 521-
·· ... 522). Ademais, entre tradição e razão não há nenhuma oposição incondicional (GA- 192 REALE. 1968. p. 224 e 232. Defende Gadamer que "o texto forma parte do todo da
DAMER, 2004, p. 48; MOLLER, 2006, p. 90; SILVA, Maria Luísa Portocarrero. Ra- tradição no qual cada época tem 11111 illferesse objetivo e onde também ela procura
zão e Memória em H. G. Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, compreender a si mesma", sendo que o verdadeiro sentido de um texto "'sempre é de-
Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, jul./dez. 2000a, p. 342). Em face destas afir- terminado também pela situação históricq do inté1prete e consequentemente por todo
mações, cabe delinear que a historicidade possui uma dimensão narrativa e crítica, curso objetivo da história" (GADAMER, 2005, p. 392). Como salienta Ascarelli. a in-
inexistindo história autárquica (sem narração) (MARTINS-COSTA, 2008), pois sendo terpretação jurídica se debruça sempre sobre um objeto (texto ou compo1tan1ento) que
o intérprete sempre um narrador, seleciona e refuta elementos insitos na condição pas- a rigor é passado e histórico, mas que por força da atividade hennenêutica se toma um
sada da qual ele se distingue, muito embora aquilo que foi "esquecido" invariavel- presente projetado ao futuro (ASCARELLL 1959, p. 140). Confonne sustenta Hesse.
mente apareça no discurso quando o sujeito cognoscente leva a sério a força vinculan- "o inté1prete não pode compreender o conteúdo da norma de 11111 ponto situado fora
te do objeto interpretado e a sua responsabilidade dentro do incessante torvelinho do da existência histórica, por assi111 di=er, arq11i111édico, senão somente da situação his-
círculo hermenêutico. Nesse sentido: DÉ CERTEAU, Michel. A Escrita da História. tórica concreta, na qual ele se encontra'' (HESSE. 1998, p. 61). No mesmo sentido:
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 11 e 21. Dessa avaliação hermenêutica GRAU, 2003. p. 38.
surge a inte1pretação histórico-evolutiva que, dizendo com a sintonia entre a ideia 193
Emilio Betti também entende que a exegese nom1ativa não pode prescindir do ele-
originária do objeto e a atualidade presente, não se trata de um método ou critério par- mento histórico, pois o encontro do intérprete com o texto nunca é um encontro dire-
ticular, mas de um caráter lógico da interpretação jurídica (BETTI, 2007, p. 42).
191
to, sendo realizado por meio da tradição (jurisprudência), pois a letra do instrumento
ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 61. A pertença à tradição não se trata normativo deve ser reanimada no contato com a vida social na luz da tradição. A teo-
de uma qualidade restritiva, mas de uma das tantas categorias que tomam possível o
ria bettiana concede enorme relevo à chamada inte1pretação histórico-evolutiva, pois
conhecimento (GADAMER, 2005, p. 430-432 e 471) e o qualificam (as concepções
do momento histórico do sujeito são diversas e acrescentam ao do objeto), sendo exa- na dimensão nommtiva desta vertente teórica o intérprete deve dar um passo além da
tamente essa a dímensão que diferencia a disciplina hennenêutica de uma mera técni- reconstrução do significado do objeto, sintonizando a ideia originária com a atualida-
ca metodológica (GADAMER, 2004, p. 308 e 317). Enquanto a tradição iluminista de presente (movimento do objeto em direção ao sujeito). o que diz com a evolução
visa libertar o sujeito das dependências históricas (autoridade da tradição) por meio da do Direito tendo em vista as transfommções socioculturais (manutenção da eficácia
utilização do método, a hermenêutica filosófica toma produtivo o enredamento histó- normativa do preceito) (BETTL 2007, p. LVIII-LIX, LXIII-LXVII. CII-CV, 5: PES-
rico do homem no mundo, desvelando o paradoxo produtivo da história do efeito: SOA, 2002, p. 36-37 e 99: PESSOA. 2001. p. 60-63: MEIRELES, 2004, p. 131. No
quanto maior a distância da época em que o objeto foi criado, maior a proxÍn1Ídade mesmo sentido: GRAU, 2003. p. 55.
que o intérprete terá dele e maior será a sua compreensão, pois aumentam os dados de l<J.I Francesco Viola e Giuseppe Zaccaria ressaltam a importância da dimensão temporal

consciência acerca das condições de descarte de interpretações errôneas (GADAMER, no âmbito da hermenêutica filosófica (VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 439).
195
2005, ,P· 393 e 395; GADAMER, 2004, p. 79-80; GADAMER, 2003, p. 41 e 110-111; No Direito o resguardo da tradição está intimamente relacionado com a questão da
ARAUJO, 2005, p. 89). A distância temporal não é um abismo devorador que deve ser justiça e da garantia da segurança jurídica na interpretação, o que implica a quantifi-
transposto porque separa e distância, mas, sin1, um fundan1ento sustentador do aconte- cação hem1enêutica das regras, princípios e critério& .de decisões que se mantêm 110
cer, razão pela qual a tensão entre presente e passado não deve ser dissimulada ou supe- transcurso da atividade jurídica (especialmente jurisprudencial) (CAMARGO, Marga-
rada, mas desenvolvida conscientemente, destacando e fundindo o horizonte que se dis- rida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo
tingue do presente (GADAMER, 2005, p. 405). Por fim, cabe salientar que Miguel Rea- do Direito. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2001. p. 60). Refere Gadamer que "escutar a
le concorda com as premissas da teoria gadameriana (REALE, 1999, p. 31 e 145), mas tradição e situar-se nela é o caminho para a verdade que se deve encontrar nas ciên-
entende que Gadamer teria reduzido o processo cultural a um processo hem1enêutico, o cias do espírito" (GADAMER, 2004, p. 53 e 485), muito emborá õ pertencimento a
que conduziria a uma visão parcial da história (REALE. 1999, p. 240 e 266). uma tradição independe da consciência acerca deste fato.
76 Felipe Kirchper Interpretação Contratual 77

Abordada a dimensão histórica, cabe mencionar que todos os teoria bettiana)2°0, mostrando-se decisiva na pretensão de universalidade
fenômenos objetos da hennenêutica apresentam e representam um ele- da compreensão201
mento de linguagem 196, que confonna não apenas o processo do entendi-
mento entre os seres humanos, mas também a própria atividade voltada à um caráter mediador, eis_que o sujeito tem acesso ao objeto apenas pela via do signi-
compreensão. É a dimensão linguística 197 que determina tanto o objeto ficado estruturado pela lmguagem (elemento de produção de sentido) (GADAMER,
hermenêutico quanto a ação hennenêutica, não existindo nenhum signifi- 2005, p. 523). Nesses termos, a linguagem não pode ser tratada de forma instnmiental,
cado fora da experiência de mundo que se dá na linguagem ( a coisa só se na condição de objeto, como sendo um sistema de signos estudado pela linguística ou
o campo de problemas discutido pela filosofia da linguagem. Primeiro, porque, em
torna algo para o intérprete dentro da linguagem) 198 • Na hermenêutica termos hermenêuticos, ela não é um objeto redutível à dissecação cientificista, qual-
filosófica a linguagem assume uma natureza ontológica, transcedendo .. quer que seja a conjuntura natural ou científica, dizendo mais com a realização do ser-aí
uma influência meramente instrumental 199 (apreensão concedida pela· humano. Assim, aqui não se pretende falar da linguagem dentro do mundo, mas da
linguagem enquanto constitutiva do tmmdo hennenêutico sobre o qual se fala. Como
sustenta Gadamer, todo pensar sobre a linguagem já foi sempre alcançado pela lin-
196
GADAMER, 2004, p. 216 e 566-567. ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, guagem, pois só se pode pensar dentro de uma linguagem. Contudo, deve ser ressalta-
p. 211. Gadamer entende que '"o ser que pode ser compree11dido é linguagem" (GA- do que este entendin1ento - de que inexiste possibilidade de realizar-se uma reflexão
DAMER, 2005, p. 612), ressaltando, air!da, que "a linguagem ocupa a estrutura in- hermenêutica sobre a linguagem por não haver distanciamento (o sujeito só pode pen-
terna da compree11são, ocupando, porta11to, o centro da filosofia" (GADAMER, sar dentro de uma linguagem)- é objeto.de crítica fundada na inexistência de distin-
2005, p. 406). Estas conclusões são representativas da chamada virada (viragem) lin- ção entre os níveis possíveis de linguagem e na falta de uma expressa concepção de
guística, possibilitadora de um pensar além da dicotomia sujeito-objeto. Sobre a pas- linguagem na teoria gadameriana (ALMEIDA: FLICHlNGER; RHODEN, 2000,
sagem mencionada, remete-se o leitor para a interessante obra de Jean Grondin: The p. 178-179 e 202). Segundo, porque o tema transcende as estreitas margens deste tra-
Philosophy ofGadamer. Montreal: McGill-Queen's University Press, 2003. balho, razão pela qual aqui a discussão se linrita ao destaque da estrutura da senriótica,
197
Embora a linguagem não se reduza ao diálogo, no iter hermenêutico a dimensão que distingue três planos de investigação: (1) a análise sintática observa a relação
linguística possui uma estrutura dialógica, na dinâmica da pergunta e resposta. Falar formal do signo linguístico com os demais que integram o sistema onde se encontra
(oral ou textualmente) significa sempre falar a alguém, pois a palavra sempre vai ao situado (desmembrando os elementos componentes de uma frase e examinando sua
encontro do outro, razão pela qual a linguagem também indica um pertencimento do estrutura), enfatizando as regras de sintaxe representadas, sobretudo. pela gramática
intérprete, já que ele não pode se afastar completamente das convenções da lingua- (correta justaposição de vocábulos na constmção sintática): (2) a análise semântica se
gem. A lingua não depende de quem usa, jamais podendo ser reduzida a uma opinião c?ntra no vínculo do sign~ com a realidade que exprime, procurando destacar seu sig-
subjetiva e individual, pois são todos em geral ( e ninguém em particular) que falam de nificado correto sob o pnsma da conotação e denotação: (3) a análise prag111ática se
cada vez (GADAMER, 2004, p. 171,179,207,231,243 e 507; GADAMER, 2007a, ocupa da relação entre o signo e as pessoas que dele se utilizam ( emissor e destinatá-
p. 41; GADAMER, 2007c, p. 49-50, 80 e 85-86; GADAMER, 1998a, p. 203-204). rio), enfocando os efeitos interacionais do uso da linguagem em uma deternrinada
198
GADAMER, 2004, p. 234-235 e 298-299; GADAMER, Hans-Georg. La Dialéctica comunidade linguística (relações sociais que se instauram por meio do uso concreto
de Hegel: cinco ensayos hermenéuticos. Madrid: Ediciones Cátedra, 1994. p. 9. No da linguagem) (FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 144).
200
universo da hem1enêutica filosófica a linguagem assume diversos uiveis de influência: Enrilio Betti adnrite a existência de uma dimensão linguística quando afinna que a
o objeto hemienêutico é detemrinado pela linguagem e constituído linguisticamente; o tarefa do intérprete de reconstmção do significado presente nas fom1as representativas
processo de compreensão é detenninado pela linguagem; a linguagem fonna o hori- é mediada pela linguagem. Porém, embora sustente que o entendimento se realiza por
zonte de uma ontologia hennenêutica (STEIN, 2004, p. 79 e 81). A linguagem é o lo- meio da linguagem, sua análise se linrita ao caráter i:nstnunental deste aspecto do
cal em que o sujeito e o mundo (realidade) se encontram em sua unidade originária, campo hermenêutico, confonne posto no segundo capítulo da obra Teoria Generale
sendo que "aji1são de hori=o11tes que se dá 11a compree11são é o ge11uíno desempe11ho della lnte,preta=ione. A visão bettiana enfoca exatamente aquilo que foi objeto de cri-
e produção da li11guage111" (GADAMER, 2005, p. 492). tica por Gadamer: a visão instrun1ental de que esta é ll111 sistema de signos designati-
199
A linguagem não é um instrumento da compreensão (simples instrumento de conexão vos ~e- um mund~ ~~elinguisticamen_te conhecido. O filósofo italiano refere que as
entre sujeito-objeto) ou um dos dotes atribuídos ao homem que está no mundo (pois o cond1çoes de poss1b1hdade do entendunento demandam duas condições. A primeira é
homem não domina completamente o seu uso a ponto de desfazer-se da linguagem uma figura, forma ou _est:Uhlfa (Gestalt), que diz com as regras sintáticas de agrupa-
após sua utilização), mas, sim, o elemento condicionante e fundamental para que o ser mento dos tennos (o s1gn1ficado dependente da sintática). A segunda é a intencionali-
humano tenha un1 mtmdo, pois é nela que este ganha representação e significado dade, característica da expressão (conjunto de signos sihmdos em um contexto discur-
(GADAMER, 2005, p. 571 e 612; LOPES, Ana Maria D'Ávila. A Hermenêutica Jurí- si_vo ), e não do signo (palavra isolada abstratamente). Esta condição indica que o sig-
dica de Gadamer. Revista de Informação Legislativa, n. 145, jan./mar., 2000, nificad~ não se limi_ta à relação de sinalização dos signos com a coisa representada, se
p. 108). Assim, a linguagem não se apresenta como um objeto próprio de análise, mas e~pandmdo por me10 de uma comunidade de fala (speech co1111111111ity) que diz com 0
abrange tudo o que possa chegar a ser objeto de interpretação (GADAMER, 2005, ~1gno e com um contexto (universo de discurso) referente à coisa significada. É o con-
p. 523; GADAMER, 2004, p. 176; STEIN, 2004, p. 12 e 15), muito embora possua Junto desses componentes secundários do significado linguístico (c01mmidade linguís-
78 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 79

Contudo, na prática jurídica deve-se aceitar o caráter essencial- Pretendendo regular os existenciais da vida humana (v.g.: nas-
mente narrativo da atividade hermenêutica, transcendendo o mero reco- cimento, morte, relações afetivas, etc.), o Direito se apropria da riqueza
nhecimento da sua dimensão linguística. O universo do Direito é estrutu- dos fatos sociais (por serem constituídos e moldados pelos sonhos, espe-
rado narrativamente pelo intérprete por intermédio de determinados pro- ranças, dramas, tragédias, culpas e esforços feitos e desfeitos na experiên-
cessos de produção discursiva que permitem (e limitam) a seleção e a cia sociocultural dos seres humanos), procurando (re)construir a realidade
refutação de elementos ínsitos na condição objetiva interpretada. O ope- por intermédio de uma linguagem ( discurso jurídico) pobre por ser me-
rador jurídico constitui a realidade normativa a pattir de suas ficções ramente normativa e dedutivista, limitando as possibilidades da condição
privilegiando e descartando determinados dados, o que acaba "hipoteti~ social confonne certos padrões (descompasso entre o campo jurídico e o
zando" a realidade. Ignora-se, na maioria das vezes, que as nan-ações, social), o que alija da atividade hennenêutica detenninadas circunstâncias
mitos e metáforas são o substrato do Direito e do contrato 2º2 . fáticas que são imprescindíveis à correta análise da questão 203 , o que se
procura combater neste estudo com a defesa da imprescindibilidade do
raciocinar por concreção.
tica e universo de discurso) que representa o caráter intencional da linguagem e garan-
te sua objetividade. Essa construção teórica apresenta grande semelhança com o que
Na atividade de interpretação dos contratos, o intérprete não de-
seja objeto de interpretação para Betti (formas representativas), além de possuir, in- ve se ater ao sentido literal da expressão, não tomando as palavras pelo
trinsecamente, uma noção de reconstrução, o que atende a natureza da sua teoria sentido da linguagem comum, mas, ~im, em relação a todas as circuns-
(BETI1, 2007, p. XXXIX e XCVI. BETII, 1990a, p. 158 e 207-209; PESSOA, 2002, tâncias do caso. As palavras nunca têm um sentido fixo, pois seu signifi-
p. 59-60, 75, 77-82, 84-87: PESSOA, 2001, p. 66-67). Analisando a estrutura interna cado depende sempre das circunstâncias fáticas, se alterando quando
da construção dogmática linguística supramencionada, o conceito de fom1as represen-
tativas criado por Betti passa a ser significante da própria linguagem presente na ati- estas se modificam204 , o que imp01ta significativamente para que se al-
vidade hermenêutica (MEIRELES, 2004, p. 125 e 137). cance o juízo de que o raciocinar por concreção se faz absolutamente
201
Embora também esteja voltada ao plano externo da estruturação da compreensão, a preten- necessário no âmbito da atividade hennenêutica contratual.
são de universalidade da atividade hermenêutica se concretiza por meio da linguagem, pois Fixado o caráter criativo e sempre incompleto da atividade
é ela que possibilita a articulação do pensamento em toda experiência interhumana, urna
hermenêutica, cabe adenfrar na análise do aspecto crítico do procedimen-
vez que compartilhar a linguagem significa participar de uma tradição que transmite uma
determinada visão e pré-compreensão de mundo (GADAMER, 2004, p. 268). to exegético.
202
DWORKIN, 2000, p. 228; OST, François. Contar a Lei: as fontes do imaginário
jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 58; MARTINS-COSTA, 2008; ZACCA-
RIA, 1996, p. 80-85, 164 e 220-222. Nesse sentido, não parece existir uma diferença 1.5 O Caráter Crítico da Atividade Hermenêutica
ontológica entre a narração contida na sentença judicial e aquela oriunda de uma de-
tenninada obra literária. Tanto o operador jurídico quanto o escritor acabam fonnu- Como visto nos tópicos precedentes, a interpretação depende de
lando uma narrativa a partir de concepções singulares acerca dos mesmos existenciais um ato de decisão que constitui e constrói a significação de um objeto.
da vida humana (v.g.: nascimento, morte, relações afetivas etc.), procurando Devido à inexorabilidade desta patticipação do sujeito na atividade inter-
(re)construir a realidade por intennédio de uma detemlinada linguagem (técnica e es-
tética, respectivamente). Nesse sentido, o "era uma ve=" literário não se encontra tão
203
longe do "trata-se de ação... " com que comumente iniciam os relatórios das decisões Nesse sentido a lição de Ben-Hur Rava: "Na verdade os co11jlitos que se produ=em
judiciais. Contudo, é evidente que a intersecção entre Direito e Literatura não é consti- estão na cena social, porta11to fora do espectro linguístico, mas que são tra=idos para
ttúda apenas por aproximações, mas também por importantes idiossincrasias, inclusi- o interior da ciência e da dogmática jurídica, como forma de relativi=ar este mesmo
ve em tennos de expectativas. Ao Direito, situado no plano deontológico, é requerido conflito, dissimulando a tensão e amalgamando os comportamentos através de um
os linntes da ordem, da segurança e da medida, enquanto com a literatura, que reside 'discurso jurídico oficial', que 'aparentemente ' não apresenta co11tradições e, muito
na dimensão axiológica, se procura a expansão lúdica da beleza, do sonho e da trans- menos,fissuras. (. ..) A linguagem e, mais especificamente, a linguagem jurídica está a
gressão. Ademais, embora trabalhem sobre os mesmos elementos da vida humana, a serviço do status quo do Estado e do poder, que 11sm11 o direito como uma espécie de
literatura expande o conflito de tais existenciais, enquanto o Direito se apropria dos adaptador social da realidade às suas fi11alidades ideologi=adas que se apresentam
mesmos de forma restritiva e superficial, dissimulando a tensão e amalgamando com- escondidas ou reprimidas" (RAVA, Ben-Hur. A Crise do Direito e do Estado como Cdse
Hem1enêutica. Revista da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul
portamentos por meio de um "discurso jurídico" que não deixa de se constituir em um
(AJURIS), n. 101, mar. 2006. p. 31-32).
adaptador social da realidade a detemlinadas finalidades que estão a serviço de pro- 2
0-i LARENZ, 1989, p. 236-239, 375-376: DANZ. 1955, p. 52-53; ROPPO, Enzo. O
postas ideológicas que, na maioria das vezes, estão reprimidas no "discurso jurídico
Contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 169-170.
oficial".
80 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 81

pretativa, é c01Teta a síntese alcançada por José Maria Aguirre Oraa: "se Embora o sucesso da interpretação dependa da apropriação sele-
não há crítica sem hermenêutica, tampouco há hermenêutica sem críti- tiva dos próprios preconceitos, a hennenêutica filosófica não pressupõe
ca"2º5. Ainda quando não possa ser total, esta instância é sempre possível nenhuma neutralidade quanto à coisa ou um anulamento de si li1esmo. A
e necessária206 • compreensão sempre vem precedida de uma autocrítica, inclusive com
A presença da reflexão crítica emancipatória no pensamento relação às verdades que o intérprete entenda possuir2 16 •
gadameriano se evidencia quando o filósofo observa que "o pensar reme- Sequer a reabilitação do preconceito e da autoridade promovida
te para além de si mesmo"2º7, e que "pertence à possibilidade originária por Gadamer pode ser entendida como uma instância acritica217, uma vez
da experiência humana colocar tão radicalmente em dúvida a verda- que o próprio filósofo defende que "nem a autoridade do magistério pa-
de"2º8, sendo "justamente aqui que se encontra a fimção da teoria her- pal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade herme-
menêutica, a saber, inaugurar uma disposição geral capaz de bloquear a nêutica, czga tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda e
disposição especial de hábitos e preconceitos arraigados"2º9• Desta feita, qualquer imposição"218 .
a instância critica não trata da criação de oposições, mas sim da busca A discussão acerca da dimensão critica da atividade hermenêu-
incessante pelo descobrimento da verdade210• Como a interpretação não é tica encampa a análise da pretensão caitesiana de neutralidade do sujeito
uma dominação do mundo objetivo, a compreensão não diz com o estar na interpretação jurídica, inclusive no que respeita ao plano político. No
de acordo com o que ou quem se compreende, mas com o se abrir para a plano do Direito não há como compreender sem se comprometer critica-
alteridade da coisa, pensar e ponderar o que o outro pensa211 • mente com a prática jurídica interpretada. Como adverte Eros Grau, "a
Nesses termos, há produção de reflexão critica na própria fonna neutralidade política do inté1prete só existe nos livros. Na práxis do di-
dialógica da compreensão212 , a qual pressupõe um processo crítico de reito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurfdicas,
acordo, pois implica reflexão e julgamento daquilo que está sendo posto porque jurídicas, são políticas"219 .
em diálogo 213 • Como refere Miguel Reale, "o ato de conhecer é, em si A partir desta concepção, o indigitado autor adota as lições de
mesmo, também um ato de querer" 214 • O entendimento sobre o objeto não Wróblewski para desvelar duas concepções ideológicas da interpretação
implica que o sujeito cognoscente possua opinião idêntica sobre a questão jurídica contemporânea. A ideologia estática, majoritariainente aceita e
inerente à significação, até porque onde há concordância não se precisa centrada em valores como certeza, estabilidade e previsibilidade, exige
mais de nenhum entendimento. Está sempre subentendido na atividade uma função meramente declaratória da interpretação (preceitos nonnati-
hennenêutica que o sujeito compreende o significado do objeto sem ne- vos com conteúdo imutável à atividade do intérprete), limitando o contex-
cessariamente comprometer suas opiniões pessoais215 • to funcional analisado, na prática, apenas à conjuntura histórica do autor

º ORAA, 2000, p. 493 e 503.


2 5
216
GADAMER, 2004, p. 76-141: GADAMER. 2005. p. 355-385-386; GADAMER.
206
ORAA, 2000, p. 493 e 503. Refere Francisco Amaral que a perspectiva critica do 2003, p. 104.
Direito pemtlte compreender .. 'o jogo concreto dos mecanismos jurídicos' no interior 217
GRAU, 2003, p. 110.
dos sistemas, e a sua relação com as exigências sociais'· (AMARAL, 2006, p. 37). 218
GADAMER, 2005. p. 369: GADAMER, 2004. p. 465.
º GADAMER, 2004, p. 573.
2 7
m GRAU. 2003, p. 51 e 204-205. Enzo Roppo adverte que o contrato, enquanto veste
º GADAMER, 2007a, p. 46.
2 8
jurídica das operações econômicas que confom1a, não é encarado, no plano prático,
2 og GADAMER, 2004, p. 214.

210
apenas na sua acepção estrita de instrumento técnico-jurídico, mas sim como símbolo
BIAGIONI, 1983, p. 58. de uma detemtlnada ordem social -e econôntlca, o que alcança uma dimensão ideoló-
211
ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 23. gica deste instituto jurídico (ROPPO, 1988. p. 28-29). É evidente que a concepção
212
ROHDEN, Luiz. "Ser que pode ser compreendido é linguagem": a ontologia herme- hermenêutica acerca do contrato acompanhou sua exP,loração histórica ideologizada,
nêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 56, fase. 3-4, operando um parcial ocultamento ou disfarce da realidade (no caso, do aspecto criati-
Braga: Faculdade de Filosofia de Braga,jul./dez. 2000, p. 556. vo da interpretação), a fim de tutelar deterntlnados interesses de uma classe política e
213
GADAMER, 2004, p. 296-297; STEIN, 2004, p. 82-83, 110 e 113; ORAA, 2000, econontlcamente dontlnante. Para uma maior digressão acerca da influência da ideo-
p. 494-495. logia na conformação do instituto do contrato, inclusive no plano dos aspectos prínci-
214 piológicos que lhe dão suporte, cabe remeter o leitor para a seguinte.passagem da obra
REALE, 1999, p. 70.
215
GADAMER, 2004. p. 25: GADAMER. 2007b. p. 99-122; GADAMER, 2003, p. 103. acima mencionada: ROPPO, 1988. p. 28-40.
82 Felipe Kirchner h1terpretação Contratual 83

do texto normativo. Já a ideologia dinâmica, onde se pode inserir a efer- Como salienta Larenz, a justiça da resolução do caso é uma meta desejá-
vescência da hennenêutica filosófica, adota como contexto funcional as vel e, embora não seja um critério próprio de interpretação, encampa o
relações sociais (históricas), sistêmicas e linguísticas, sendo permeável à universo hermenêutico, pois é da aspiração de uma solução equitativa que
atividade criadora do intérprete e à adaptação do Direito às necessidades parte o impulso para repensar a interpretação de um determinado preceito
presentes e futuras da vida social (quantificação das alterações de contex- normativo e achar novos pontos de vista. Nesses termos, a aspiração de
tos em que o preceito jurídico opera)22º. uma justiça do caso é um fator legítimo no processo hennenêutico quan-
Ademais, a dimensão critica da atividade hermenêutica abrange do não conduz à desconsideração da coisa interpretada, dos demais ele-
a responsabilidade moral e científica do intérprete, tanto no sentido de mentos condicionantes da atividade interpretativa e do resguardo da cer-
que o mesmo, ao buscar a compreensão, não pode se deixar levar por teza e segurança jurídica (que alcançam o plano hennenêutico), ou seja,
arbitrariedades, autoridades espúrias, preconceitos ilegítimos ou interes- quando a busca pela realização da justiça não induz o intérprete a mani-
ses escusos, quanto pelo comprometimento que o sujeito cognoscente pular a coisa de acordo com convicções arbitrárias 223 • Em termos da es-
deve possuir com a busca pela "verdade" hennenêutica. trutura interna da hennenêutica filosófica, poder-se-ia enquadrar a ques-
Dito isso, cabe destacar que a concretização do valor justiça na tão da justiça e da equidade como sendo um dos elementos propulsores
práxis jurídica221 encontra eco na dimensão crítica da hermenêutica222 • do eterno girar do círculo hennenêutico 224 •

220
GRAU, 2003, p. 118-120 e 125-126. Eros Grau exemplifica as mencionadas concep- Professor Dr. Humberto Bergmann Ávila. pode-se demonstrar que o sistema judicial.
ções ideológicas da interpretação jurídica por meio da análise de momentos históricos no âmbito privado. privilegia a realização da justiça particular. em detrimento do res-
da Suprema Corte Norte-Americana. Como exemplo marcante da ideologia estática guardo da segurança jurídica. No âmbito da pesquisa foram analisados os nove casos en-
da interpretação colaciona o caso Dred Scott vs Sa,iford, de 1857, onde a Suprema contrados na jurisprudência do STJ em que o principio da boa-fé objetiva foi utilizado
Corte decidiu que quando a Constituição estadunidense entrou em vigor, os negros como critério de decisão: REsp 554.622: REsp 591.917: REsp 436.853: REsp 464.426:
eram considerados pessoas de condição social inferior (nã -cidadãos), razão pela qual REsp 562.729; AGRG no AG 608.324: REsp 712.591; REsp 401.247: REsp 650.793.
o diploma legal não os teria incluído na referência que faz aos cidadãos. Já a ideologia Dos julgados examinados. em apenas dois (REsp 436.853 e AgRg no Ag 608.324) hou-
dinâmica é exemplificada por intermédio do caso McCulloch vs Ma1J 1land, de 1819, ve menção ao resguardo da segurança na aplicação da cláusula geral. que comumente foi
onde o juiz Marshall afirmou que a Constituição Norte-Americana "se destinm,a a du- utilizada para a realização da justiça particular. inclusive contrariando, em alguns julga-
rar muitos anos, devendo consequentemente adaptar-se as várias crises dos negócios dos. a jurisprudência até então dominante daquela corte. Ademais, oito das nove deci-
humanos" (GRAU, 2003, p. 122-123). Devendo-se enquadrar a hermenêutica filosófi- sões analisadas utilizaram um viés tópico, pois apenas o julgamento do AgRg no Ag
ca gadameriana no espectro da ideologia dinâmica, em face de suas peculiaridades 608.324 partiu do ordenamento na busca da construção da decisão judicial. Nesses ter-
próprias, a concepção de Emilio Betti, por sua vez. deve ser situada em um meio ter- mos. a análise dos julgados demonstrou que os operadores trabalharam com a concepção
mo entre as concepções ideológicas polarizadas. pendendo para a dinamicidade. Em- de que é exatamente a efetivação da justiça particular que garante o resguardo da segu-
bora pregue um ideal reprodutivo, não se fecha ao entorno social e defende a atualiza- rança juridica. encarando este preceito como elemento de legitimação do ordenamento,
ção constante dos conteúdos normativos interpretados. no sentido de que a realização de mna injustiça individual acarretaria uma deslegitima-
221 ção do sistema perante a sociedade. gerando pretensa insegurança social. Contudo, do
Embora a importância do tema mereça uma breve consideração, cabe salientar que a
discussão acerca da aplicação e concretização do valor justiça na prática jurídica ex- teor dos votos analisados não se vislumbrou uma efetiva preocupação com a explicitação
trapola o objeto deste estudo. de critérios que pemritiriam a sistematização dos critérios de decisão. fator importante
222
Interessante mencionar a dicotomia existente entre a busca por uma justiça concreta e para a maximizar o grau de visibilidade e calculabilidade dos julgados. Dito isso. cabe
individual com a preocupação mais do que legítima de resguardo da segurança juridi- referir. por fim. que a atividade de concretização do Direito deve quantificar questões de
ca, pois há situações em que ajustiça vem colada na segurança (sendo o resguardo da ~rdem sistemática (manutenção de uma ordem nonuativa coerente e unitária) e pragmá-
segurança a própria concretização do valor justiça), mas há diversos casos em que há tica (busca de soluções ideologicamente aceitáveis e socialmente justas), como bem salien-
uma verdadeira dissociação destes vetores jurídicos (ÁVILA, Humberto Bergu1ann. ta Francisco Amaral (AMARAL. 2006. p. 93).
223
Aulas ministradas na cadeira Segurança Jurídica e Direitos Fundamentais LARENZ. 1989, p. 420-421.
224
(DIRP145), proferida em 2007II, no PPGDir/UFRGS, 2007). A discussão envolvendo Como referiu o TJRS no julgamento da AC 70024048456, a "'inte,pretação [deve ser]
justiça e subjetividade Gustiça no caso concreto) é perene, pois diz com a própria con- condi=ente com os ideais de eqüidade, moderação e proporcionalidade, pois o Jui=
cretização do justo, para o que ainda não existe conforn1ação definitiva. No artigo A não é sen10 da let' (AC 70024048456, 14ª Câmara Cível. TJRS. Reiª. Desª. Isabel de
(In)Segurança Jurídica na Aplicação das Cláusulas Gerais Privatistas: uma análise Borba Lucas. j. em 12.06.2008). Cabe salientar. ainda. o seguinte precedente tratando
da boa-fé objetiva em perspectivajurisprudencial, apresentado na cadeira Segurança sobre questão contratual: AC 70022499909, 9ª Câmara Cível, TJRS:·Rel. Des. Odone
Juridica e Direitos Fundamentais. ministrada em 2007/I no PPGDIR/UFRGS pelo Sanguiné,j. em 14.05.2008. ·
84 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 85

Feitas estas considerações, cabe salientar que o próprio Gadamer pretação dos contratos. Dentro do universo de possibilidades que poderiam
aponta que a principal objeção a sua te01ia foi a de que o significado henne- ser exploradas, a pesquisa se dirige às particularidades da hennenêutica
nêutico adviria da vinculação que a linguagem tem com toda compreensão e contratual e do conteúdo dos negócios jurídicos, à relevância hennenêuti-
acordo, o que legitimaria um preconceito social em favor das relações vigen- ca da autonomia privada, ao papel das regras e métodos no procedimento
tes225. Essa censura, também fonnulada pela crítica da ideologia habermasia- interp:etativo (e_specia_lrnente. no viés gadameriano) e, por fim, à fixação
na226, perde força quando observado que Gadamer, embora não tenha indica- do objeto e da dunensao func10nal da hennenêutica contratual.
do com clareza os critérios de um proceder crítico227 , defende uma dimensão Porém, antes de entrar no exame dos temas supramencionados,
crítica do compreender em diversos níveis, corno visto neste tópico. cabe destacar que a inserção do estudo no âmbito das categorias presentes
Fazendo o contraponto entre paradigmas, mister se faz delinear no plano do Direito não contradiz a correição da matriz ontológica da
que o exercício crítico presente no âmbito da hermenêutica filosófica não hermenêutica filosófica visto na parte inicial deste estudo. O fenômeno
se coaduna com o ideal reprodutivo bettiano, ou seja, com a ideia de que hermenêutico é amplo e, em sua complexidade, depende da inclusão e
a compreensão deriva da descrição de uma significação a ser meramente assimilação das peculiaridades da área do conhecimento humano em que
captada do objeto228 • atua.
Por fim, em tennos estruturais, cabe salientar que a instância Gadamer construiu um paradigma de compreensão unitário, não
crítica do pensamento hermenêutico contempla juízos de significação e tendo se preocupado especificamente com as peculiaridades do projeto de
validade, no sentido de que, mesmo reflexivamente, o intérprete pode e dever-ser que constitui o universo normativo do Direito. Nesses tennos, o
deve possuir uma atitude de discernimento capaz de aceitar ou rechaçar exame das categorias presentes no Nomos Jurídico não visa desconstruir
as significações compreendidas. Assim, as proposições de sentido estão a matriz gadameriana que se centra no existencial do ser, mas inserir esta
submetidas a um processo crítico que pode legitimar sua validade ou dimensão em um mundo (jurídico) que é construído sob a promessa cons-
refutá-la229, tanto no que respeita ao processo de concreção fática e nor- tante do dever-ser. Dito de outra forma, ao se trabalhar com as categorias
mativa indissoluvelmente presente na atividade hennenêutica, quanto no do Direito, não se está negando a natureza essencialmente ontológica da
plano da aplicação prática do Direito. atividade hennenêutica. ·

2 A HERMENÊUTICA CONTRATUAL 2.1 As Particularidades da Hermenêutica Contratual

Nesta parcela do estudo, que se mantém dirigido a discussões Estando ciente de que a dimensão hem1enêutica encontra-se na
de ordem teórica, serão enfrentadas as peculiaridades próprias da inter- base de toda experiência de mundo, constituindo-se em um processo uni-
tário envolvendo compreensão, interpretação e aplicação, cabe enfatizar
225
GADAMER, 2005, p. 528; ORAA, 2000, p. 493. Stein observa que em muitas situa- as particularidades da hennenêutica contratual. A tarefa será executada
ções o pensamento hermenêutico é colocado de forma dicotômica com a ideia de pen- traçando-~e uma compar~ção com as diferenças existentes com a exegese
samento crítico, fazendo parecer que aquele seria uma forma de raciocinio menor por legal, mmto embora saiba-se que estas duas atividades (interpretação
não contar com instrumentos de investigação adequados (STEIN, 2004, p. 49-50). legal e contratual) não guardam profundas dissociações entre si.
226
Embora Gadamer tenha concordado com parte das críticas trazidas por Habem1as -
especialmente no que respeita à capacidade emancipadora e crítica da reflexão, o que Os pontos de contato entre a teoria da interpretação das leis e
o levou a explicitar mais detidamente alguns conteúdos por ele propostos no primeiro dos negócios jurídicos são mais numerosos do que as diferenças que as
voltuue de Verdade e Método -, sempre defendeu que a crítica da ideologia peca/ separam230, tanto porque a hermenêutica é um tema unitário 231 , quanto
quando não admite a finitude e a limitação de toda a reflexão, supervalorizando a · porque a exegese das leis e dos negócios jurídicos radicam em conceitos
paralelos232 . Esta consideração deve acompanhar o leitor no desenvol-
competência da reflexão e da crítica. Nesse sentido, a hem1enêutica filosófica, com
sua apreensão dialógica e de confrontação de perspectivas, surge como um c01Tetivo à
pretensão de absolutização da reflexão emancipatória (ORAA, 2000, p. 496).
227 230 GRASSETII, 1983, p. 61-63.
ORAA, 2000, p. 502. 231
228 GADAMER, 2005; FERRARA. 1987, p. 131.
STEIN, 2004, p. 102; ORAA, 2000, p. 492. 232
22Q MIRANDA. 1989, p. 133-134.
ORAA, 2000, p. 500-501.
86 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 87

vimento das questões que serão apresentadas neste e nos capítulos sub- se defronta com o momento em que as regras derivadas de uma ordem de
sequentes. autonomia entram em contato com a ordem de heteronomia, urna e outra
Não obstante esse paralelismo, subsistem algumas relevantes es- compondo o ordenamento jurídico regulatório da relação privada238 • As-
pecificidades próprias da interpretação do instituto do contrato, especial- sim, a hennenêutica contratual trabalha com urna multiplicidade de fon-
mente por esta atividade ser matizada pelo preceito da autonomia privada. tes, principalmente no que respeita a complexa coexistência de regras
Talvez o principal elemento de diferenciação seja o fundamento jurídicas e sociais239 •
subjacente ao objeto inte,pretado. Como refere Manuel Domingues de Segundo, focando o procedimento formativo, a complexidade
Andrade, "não se pode contestar que, de facto, a lei procede, como qual- se apresenta pelo fato das normas legais serem sempre constituídas por
quer acto jurídico, duma vontade humana rejlectida e consciente; que é palavras, enquanto os negócios jurídicos podem aparecer na forma de
portanto uma declaração de vontade"233 • Porém, enquanto no contrato a atos da vida e de silêncio240, dificultando a atividade interpretativa que
expressão da vontade é translúcida com relação ao texto da declaração ou jamais pode se dar em abstrato. Desta circunstância deriva a necessidade
ao compmtamento das partes, no caso das leis a formulação da vontade se de uma abordagem necessariamente concreta da relação contratual241 e
encontra opaca, não pennitindo que o operador a entenda e lhe alcance dos contratantes enquanto indivíduos situados, aspecto que também deve
eficácia segundo o querer das pessoas que a emitiram (ex.: membros do ser observado na interpretação da lei, embora com suas paiiicularidades
' • ?4?
corpo legislativo). Desta feita, enquanto a interpretação contratual é pola- propnas- -. .
rizada de forma quase absoluta pelo ato de autonomia 234 , este aspecto não A consequência que deriva desta complexidade material da in-
possui a mesma dimensão, importância e significação no plano da herme- terpretação dos contratos é a de que, como salienta Betti, "a questão in-
nêutica legal235 • te1pretativa não se apresenta em termos uniformes para todas as catego-
Desta polarização da declaração negocial pelos anseios particu-
lares comunicados e objetivados, resulta que a hermenêutica contratual é p. 259), que passa a ganhar autoridade nonnativa quando se relaciona com o ordena-
mais complexa que a atividade inte,pretativa lega/2 36 , o que pode ser mento juridico. Assim sendo . .lei e contrato são metáforas da heteronomia e autonomia
vislumbrado, ao menos, sob três prismas, descritos a seguir. situadas dentro do universo narrativo do Direito, sendo horizontalidade e verticalidade
Primeiro, enfatizando o âmbito da vontade fonnativa, enquanto que se tocam, ou como quer Judith Martins-Costa. que correm paradoxalmente parale-
las (MARTINS-COSTA, Judith. O Pacto no "Sertão" Roseano: os pactos. os contra-
a lei opera apenas com o plano da heteronomia, a interpretação contratual tos, o julgamento e a lei. 2007, no prelo. p. 1). É a partir desta ideia que se irá desen-
está cifrada no entrecruzar (complexo, dialético e escalonado) da auto- volver a dimensão de uma concreção nonnativa no item "A concreção nonnativa da
nomia com a heteronomia237 • Na interpretação dos contratos, o operador interpretação contratual".
238 MARTINS-COSTA. 2005b. p. 132.
239 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992. p. 179-180.
233
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação
das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 42. É de todo evidente que o au-
24 º DANZ, 1955, p. 6-7.
241
tor trabalha com um conceito abrangente de vontade/autonomia. Para uma diferencia- Cabe enfatizar a distinção existente entre contrato e relação contratual. Em seu as-
ção conceitua!, remete-se o leitor para a seguinte obra: FERREIRA DE ALMEIDA, pecto técnico, enquanto essa diz com as nomrns derivadas do poder negocial concer-
1992, p. 245-246. nente às partes contratantes, dizendo com os deveres de prestação. o contrato deve ser
234 Este assunto será objeto do tópico subsequente. intitulado "A autonomia privada e sua reconhecido como fato social que atinge não somente os contraentes, mas também
relevância hermenêutica". terceiros, detemtlnados ou não, impondo deveres laterais ou de proteção (MARTINS-
235
Como refere Jorge Lopez Santa Maria, o que diferencia uma interpretação da outra é o COSTA, 2005a, p. 79 e 81). Contudo. neste estudo a expressão relação contratual se-
fato de que na lei o elemento reitor da atividade hermenêutica é a literalidade da disposi- rá utilizada para designar a dinamicidade do cumprimento do contrato, ou seja, deverá
ção normativa, enquanto nos contratos é a autonomia. (SANTA MARIA, 1966, p. 12). ser entendida como representativa também da fase de cumprimento do contrato.
242
236
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 130. A abstração dos preceitos legais e a concreção dos negócios ou preceitos da autono-
237
Afirma Gerson Branco qne a norma é ato de heterocomposição revestido de autorida- mia privada também é ressaltada por Betti, para quem se deve quantificar as diferen-
de, enquanto o contrato é ato de autocomposição revestido de autonomia (BRANCO, ças entre heteronomia e autonomia (autonormativos);°a partir da qual os contratos são
Gerson Luiz Carlos. As Origens Doutrinárias e a Interpretação da Função Social tidos como regras ditadas nos interesses dos próprios agentes que os põem em prática,
dos Contratos no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) - Fa- devendo ser compreendidos, portanto, no contexto com a órbita social em que se de-
culdade de Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2006, senvolvem (BETTI. 2007, p. 173 e 342).
88 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 89

rias de negócios"243 • Como menciona Francisco Marino, citando Vito contrato é particular e limitado temporalmente, já que visa o adimplemen-
Rizzo, inexiste uma interpretação do contrato, mas, sim, interpretações to248. A lei é impessoal porque se dirige ao cidadão, não ao indivíduo,
dos diferentes contratos 24 4, enquanto na hennenêutica legal há uma maior enquanto o contrato, embora absorva o plano da impessoalidade do orde-
unifonnidade de construção do raciocínio, tendo em vista a padronização namento jurídico, está sempre focado na vontade bilateralizada e situada
do processo legislativo e da forma comunicativa da lei estatal. dos contraentes. Mais importante ainda é a verificação de que enquanto
Terceiro, no plano da hennenêutica contratual é muito mais in- na interpretação das leis o sujeito cognoscente trabalha com destinatários
tenso o entrelaçamento de relações entre os sujeitos de direitos colocados genéricos, na exegese contratual o intérprete deve quantificar o caráter
no plano de uma igualdade recíproca, o que toma ainda mais imperiosa a absolutamente situado de determinados destinatários específicos.
exigência de critérios para a c01Teta composição dos interesses em confli- No que tange à relação com o ordenamento, tem-se que, como es-
to245. Como salienta Joaquim de Souza Ribeiro, enquanto instrumento de tabelece Pontes de Miranda, "deve-se ter presente que as regras de inte,pre-
autodetenninação, o negócio jurídico é um meio de exprimir preferências tação das leis não são adequadas à inte1pretação dos atos jurídicos nem
subjetivas em relação aos bens e às pessoas, e esta liberdade emocional e de vice-versa"249 , ou seja, as regras de inte1pretação voltadas à inteipretação dos
sentimentos jurídicamente insindicável por critérios de racionalidade246 deve negócios jurídicos (arts. 112-114, do CC/2002) não se aplicam à atividade
ser necessariamente quantificada no âmbito da atividade inte1pretativa. hermenêutica que tem como objeto a nonna estatal. Porém, Custódio Ubal-
Dos aspectos abordados nos parágrafos supra deriva a questão dino Miranda adverte que esta última ooservação de Pontes de Miranda deve
atinente à extensão do círculo formado pelos meios inte1pretativos passí- ser entendida com ressalvas, pois se poderia pensar em construir a aplicabili-
veis de serem empregados pelo inté,prete na exegese contratual. Exata- dade das regras de interpretação das leis aos negócios jurídicos25 º.
mente por estar fundada no ato de autonomia bilateralizada, dependente Enfrentadas as particularidades da hennenêutica contratual ca-
da análise dos elementos fáticos e dos vetores axiológicos do sistema be delinear algumas das questões atinentes ao conteúdo do negócio jurí-
jurídico, na interpretação dos contratos há uma expansão das circunstân- dico que interessam à atividade exegética.
cias passíveis de serem consideradas no processo hem1enêutico 247 . Esta
ampliação do material interpretativo deriva tanto da necessária análise da 2.2 O Negócio Jurídico e seu Conteúdo
motivação subjetiva dos contraentes - embora na atividade interpretativa
não haja espaço para a análise da vontade interna dos contraentes-, quan- Sendo o Direito uma ordem nonnativa de regulação da convi-
to da natureza linguística volátil do elemento textual da declaração nego- vência humana sob a exigência da justiça, desempenha tanto a fimção
cial, dimensão que se modifica em face da variedade contextual em que é estática_ de conservar a distribuição dos bens já existentes, mediante a
construída e desenvolvida a relação contratual. categor~z~~ão e atribuição de direitos subjetivos, quanto afunção dinâmi-
Além disso, a principiologia e a teleologia aplicadas e presentes ca poss1b1htadora da renovação deste estado de coisas, por meio da facili-
na interpretação dos contratos são diferentes da atividade hennenêutica tação da circulação de bens, o que se efetiva por intennédio do instituto
desenvolvida tendo como objeto a lei, embora os métodos eventualmente do negócio jurídico ( e principalmente do contrato )251 enquanto instnunen-
to do exercício da autonomia privada252 .
utilizados possam ser os mesmos. A lei é geral e duradoura, enquanto o
248
FERREIRA DA SILVA, Luís Renato. Aulas ministradas na cadeira Interpretação
2 43 dos Contratos (DIRP136), proferida em 2006/I, no PPGDir/UFRGS. 2006.
· BETTI, 2003b, p. 190; BETII, 2007, p. 361.
2 249
-1-1 MARINO, 2003, p. 115. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. 3, Rio de Janeiro: Borsói,
245
BETII, 2007, p. XLII-XLIIl. 1954, p. 324.
250
246
RIBEIRO, 1998, p. 751-752. MIRANDA, 1989, p. 174.
247 251
Confonne será enfatizado no tópico "O ponto de relevância hermenêutica dos tipos Não obstante tenha papel de absoluto destaque. o c01Úrato não é o único instrumento
contratuais e a extensão dos meios interpretativos", a mencionada extensão do círculo jurídico de promoção da circulação de riqueza (ex.: mecanismo da sucessão mortis
formado pelos meios inte1pretativos passíveis de serem empregados pelo i11té1prete se causa).
252
altera (limitação e expansão) confonne a categorial negocial em que inserida a relação ~ A , 1989, p. 13: BRANCO, 2006, p. 28-29. A noção de atividade é essencial
contratual objeto da interpretação, com base no horizonte daquele que detém o que ao ms,tituto do conÍ;ato e à hennenêutica, pois sendo gerado pela ação humana, o con-
aqui será denominado de autoridade da situação hermenêutica relevante. trato e sempre passivei de evolução (MARTINS-COSTA, 2008).
90 Felipe Kirclmer hlterpretação Contratual 91

O liberalismo oitocentista formulou a teoria do negócio jurídico Pietro_ Pe~lingfer!, o Estado moderno não mais se caracteriza pela subor-
sob um modelo que pressupunha a identificação individual dos pa1tici- dinaçao d1cotom1ca entre Estado e cidadão, mas pelo compromisso cons-
pantes e a sobrevalorização do ato de vontade subjetiva. A reconstrução titucionalmente garantido de realização dos interesses de cada indivíduo
crítica operada na segunda metade do século XX, por juristas como Emi- (fm:ci~nalizados em cei:1a ~e_dida pelo interesse social), razão pela qual
lio Betti e Karl Larenz, substituiu a primazia da autonomia da vontade os hmttes ao poder de 11npeno estatal são alcançados com o reconheci-
pela ideia de uma auto1Tegulamentação de interesses, conferindo ao ne- mento e proteção de um espaço inedutível de autonomia privada258 • Por
gócio jurídico uma dimensão social que desvela a realidade socioeconô- esta razão, e também por haver lastro da autonomia na nonnatividade
mica complexa a que os negócios jurídicos estão submetidos253 • constitucional, uma oposição absoluta entre efeitos derivados da lei e
De maneira genérica, o negócio jurídico, no âmbito do Direito efeitos derivados do negóci~ jurídico não se justifica, pois a norma jurídi-
Civil paritário, pode ser conceituado como sendo o ato (ou pluralidade de ca estatal reconhece genencamente o poder criativo da autonomia se
atos entre si relacionados) representativo da autonomia privada e consti- limitando a definir seu âmbito e detenninar requisitos de validade e ~ar-
mas de integração dos efeitos259 •
·•....
tuído de um ou mais comportamentos ou declarações negociais que ex-
•,•

primem um imperativo juridicamente relevante, o qual visa à regulação É profunda a discussão acerca do reconhecimento jurídico da
dos interesses dos particulares nas suas relações privadas (modificação, autonomia e do negócio jurídico que a objetiva no Nomos Jurídico. Em
extinção ou manutenção de determinada relação jurídica) por meio de um viés positivista, que privilegia a ~orma geral do ordenamento estatal
determinados efeitos nonnativos atribuídos pelo Direito segundo a função há um~ pri~azia da ordem jurídica, que concede espaço à criação da au~
econômico-social do ato negocial254 • Nesses termos, o negócio jurídico tonomrn privada. Este estudo abandona a ponderação eminentemente
surge como sendo tanto um instrumento de padronização das relações téc~ca que se !it1;1t_a a reconhecer a abertura do ordenamento para uma
patrimoniais de mercado (ex.: tipos contratuais), quanto um veículo de realidade extraJundica, alcançando a já mencionada natureza social do
individualização e concretização prescritiva de interesses particulares255 • c~n~ato e ? fato de que o me~mo é mais antigo e mais amplo do que o
É no limite destas funções que deve se dar o raciocínio por concreção. Drrei!o, pois mesn1:o antes da sistematização de uma ordenação estatal, as
Da conceituação apresentada retira-se uma importante conclusão: relaçoes contratuais foram suportadas por outros sistemas nonnativos
(normas costumeiras, religiosas, etc.) 26 º.
ao disciplinar a figura do negócio jurídico, o Direito o reconhece como
uma situação de fato capaz de gerar consequências jurídicas256 • Como refe- O negócio jurídico não é uma construção teórica, artificial e
re Carlos Ferreira de Almeida, o negócio jurídico não perde a sua natureza doutrinária, obtida por intermédio de progressivas abstrações, constituin-
negocial e social por ser parcialmente regulado pela lei estatal257 • ~o:se, antes, em um fato social anterior às várias espécies legalmente
No mesmo contexto situa-se o reconhecimento da autonomia tipificadas. O ordenamento constrói os tipos porque já possui o conceito,
privada pelo ordenamento jurídico, o qual possui uma relevante dimensão
política que reflete na concepção acerca do negócio jurídico. Como refere 258
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitu-
ci?nal._3. ed. ~o de Janeiro: R~novar, 1997. p. 54. Lucio Franzese entende que o Di-
253
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. VII-VIII. reito nao possm ~penas a finalidade de controle social, pois cumpre a função de fo-
254
MIRANDA, 1989, p. 60 e 222. O conceito de negócio jurídico é mais amplo do que o mento da comumca?ão intersubjetiva, auxiliando o cidadão (FRANZESE, Lucio. II
conceito de contrato. Formalmente porque sen espectro abrange também os atos unila- Contratto oltre Pnvato e Pubblico. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani
terais (ex.: testamento). Nesses tem1os, o contrato se constituiria em uma espécie do (CEDAM), 1998. p. 35-37, 198 e 218).
259
gênero negócio jurídico, conceito que fatican1ente engloba aspectos fáticos não jurídi- FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 51.
260
cos. Contudo, salienta Gerson Branco que os conceitos foram construídos em momen- Embora a pra'tiºca demonstre_ a correçao
~ da assertiva,
· não parece de todo precisa a ideia
tos históricos distintos, sendo que a dicotomia existente perdeu grande parte de sua re- de que haJa um espaço de liberdade concedido pelo ordenamento, pois em verdade 0
levância com o desaparecin1ento do superconceito de negócio jurídico e o floresci- status libe,tatis do indivíduo, enquanto situação de fato, é anterior ao reconhecimento
mento das discussões acerca do contrato, não havendo efeitos negativos na utilização pelo ordenamento jurídico. Não obstante esta observação, o que aqui se deve frisar é
de uma ou outra locução (BRANCO, 2006, p. 32). ~ue o ordenamento, dentro dos linútes de suas tipificações, concede maiores possibi-
255
RIBEIRO, 1999, p. 472. !td~d~s de autorregul_amentaç~o, (possibilidad_e de conformar livremente suas relações
256
MIRANDA, 1989, p. 72. Ju!1d_1cas) em d~~emnnadas lupoteses (ex.: Drreito Contratual) do qlie em outras (ex.:
257
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 52 e 1.099. D1reito de Fannha) (ROPPO, 1988, p. 135).
92 Felipe Kirchner h1terpretação Coutratrial 93

que é forjado na facticidade das relações sociais e negociais 261 • Os negó- responsabilidade contratual (relação que embasa a coerção estatal) encontra
cios jurídicos nascem espontaneamente a partir das necessidades da socie- uma justificação ontológica apenas no plano da factualidade do negócio, e
dade e dos indivíduos (ex.: circulação de bens), sem ingerência da ordem não no ordenamento que reconhece o agir dos particulares 266 •
jurídica, que os reconhece posterionnente (acrescentando-lhes uma san- A concepção social do negócio jurídico é acolhida pela teoria
ção), após certo grau de desenvolvimento, em virtude da sua relevância preceptiva de Emílio Betti, para a qual a vontade do contraente não é
social (ex.: originalmente os negócios jurídicos são praticados pelo co- propriame~te o conte~d? do ato de autonomia, mas apenas sua fonte ge-
mércio sob a tutela do costume e da boa-fé)262 • radora, pois a nonnatividade do negócio jurídico advém de uma nonna
Os efeitos do ato negocial devem ser buscados no plano social (da (força preceptiva). Nesse contexto, o contrato passa a ser visto corno um
factualidade das circunstâncias do caso), onde o Direito não cria, mas apenas ato representativo da autonomia privada a que a ordem estatal liga O nas-
adapta os efeitos jurídicos criados pelas paites devido as suas próprias neces- cimento, modificação e extinção de detenninadas relações jurídicas. Há
sidades e anseios. Como refere Karl Larenz, as declarações jurídico- um fenômeno de recepção, pois o regulamento privado entra na esfera do
negociais não são apenas situações de fato a que a lei liga detenninadas con- Direito e é elevado, com eventuais modificações que devem ser quantifi-
sequências jurídicas, pois indicam, segundo seu próprio conteúdo (poder cadas hermeneuticamente, a preceito jurídico267•
nomogenético ), as situações que devem surgir, ser mantidas ou extintas263 • O pressuposto bettiano é o de que o Direito é uma disciplina in-
Nesse contexto, autonomia e negócio jurídico se impõem, res- timamen_te ,r~lacionada com a existência hurnana268 , razão pela qual as
pectivamente, como poder pré-jurídico e como instituição pré-legal e normas Jtmdicas (estatais e/ou contratuais) devem ser valoradas na sua
extralegal264 • Se a recepção do negócio é uma questão jurídica, não se típica estrutura social, pois não se separam desta dimensão, mantendo um
perde a natureza social e comunicativa do ato de autonomia, pois o jurídi- liame material com a vida social. Nesses tennos, o Direito é composto
co e o social não se justapõem como sistemas estanques. O ato de autono- pela correlação do universo nonnativo com a realidade social e a auto-
mia se constitui em uma atividade que se reflete na esfera jurídica, embora nomia privada, embora continue sendo recepcionada pelo ordenamento
a quantifique quando de sua produção265 , tanto que o nexo entre liberdade e (qu~ c?n~e?e u~ espaço d~ conformação variável segundo o tipo de ne-
gocio JUndico), e reconhecida como expressão de uma iniciativa nonnati-
261
va ~ré-jurídica (a autonomia já possui um caráter preceptivo no plano
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico e Declaração Negocial: noções
gerais e formação da declaração negocial. Tese para o Concurso de Professor Titular
social). Gerson Branco observa que "a visão de Betti é dúplice: valoriza
de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). São ª. a~ttonomia r·ivada como um dado pré-jurídico e ao mesmo tempo
Paulo, 1986. p. 3-26. lz~nt~ a eficacza des~a autonomia no plano jurídico" pela correspon-
262
MARINO, 2003, p. 17. dencia entre o ato pnvado e as funções socialmente relevantes reconhe-
263
LARENZ, 1989, p. 358; LARENZ, Karl. Derecho Civil: parte general. Madrid: Re- cidas pelo ordenamento269 •
vista de Derecho Privado, 1978. p. 421-422 e 427-428. Esta tornada de posição acerca do negócio jurídico e da auto-
2
6-1 Esta afinnação não conduz ao entendimento de que a autonomia seja urna entidade nomia privada é relevante do ponto de vista hermenêutico, principalmente
não conformada pela intervenção pública, não considerando o Direito Privado corno
entidade preestatal ou extraestatal (FRANZESE, 1998, p. 12).
neste estudo _que se destina à análise da concreção da relação contratual. O
265
Porém, sendo privada, a autonomia não está imune ao olhar público de vigilância, foco não mais_ s~ encontra no siste~na jurídico enquanto organismo produ-
verificação e controle. Nesse aspecto, a liberdade dos contraentes se encontra subor- tor de nonnatlvidade, mas na realidade social que produz, ela mesma a
dinada a ordem de heteronornia em diversos níveis (podendo o ato privado derrogar sua própria normatividade no espaço comunicativo das relações hurnan~s,
algumas normas e devendo respeito incondicional às regras cogentes e imperativas).
Porém, esta subordinação jamais será completa, pois sempre existe unm margem de ::; FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 239-240 e 245; ROPPO. 1988, p. 128-129.
livre conformação da normatividade do contrato (KELSEN, 1998, p. 388; RIBEIRO, MIRANDA. 1989. p. 33-37.
1999, p. 225). Exemplo claro desse espaço de liberdade e conformação se dá com o 268
reconhecimento e validação jurídica a estipulações contrárias a certos parâmetros Pa~lo Grossi chega a afirmar que o negócio jurídico de Betti é um fato completamente
nom1ativos, como usualmente ocorre no reconhecimento de contratos trabalhistas que soctal. (GROSSI, Paolo. Scienza Giuridica Italiana: un profilo storico 1860-1950
formalmente são contrários a nomrns estatais, em razão das peculiaridades concretas. . Milano: Giuffré, 2000. p. 304). ·
269
Ademais, mesmo em face de normas imperativas sempre há a liberdade de não se con- B~TTI, I?90a, p. 1-2; IRTI, Natalino. Letture Bettiane Sul Neg.ozio Giuridico.
tratar (em se excetuando os casos estritos de contratações essenciais). Milano: Giuffré. 1991. p. 9-17: BRANCO, 2006. p. 106-108.
94 Felipe Kirclmer Interpretação Contratual 95

levando em consideração os requisitos e procedimentos previstos no or- verdade que o contrato e o Direito dos contratos272 , enquanto elementos
denamento estatal. jurídicos e normativos, não são exclusivamente redutíveis à operação
Contudo, o negócio jurídico deve ser encarado não apenas como econômica, detendo uma certa autonomia, henneneuticamente :rião podem
um fato cujos efeitos são atribuídos pelo ordenamento, mas, sim, como ::J ser pensados de fonna apartada desta realidade social 273 •
sendo um instrumento c01Telacionado ao ordenamento que visa disciplinar j,1· Embora no sistema brasileiro não haja disposições análogas às
fatos futuros, preenchendo o espaço deixado pelas nonnas dispositivas, o :¾ · regras dos arts. 1.174274 e 1.321 275 do Código Civil Italiano, deve-se con-
que permite a ~doç?º. de critéri~s ?bjetiv~~ de interpretação (desvinculados :'! : siderar que o vetor econômico está subjacente às regras estatais de regu-
?ª vontade ps1cologica). O J?ir~1~0 pos1t1vo surge tanto como ele~e~to JI lamentação do contrato276 , do que é exemplo o mt. 715, do CC/2002, o
mtemo e estrutural do poder Jund1co da vontade, quanto como seu lumte . ;{I qual, regulando o contrato de agência e distribuição, estabelece que "o
e~te~no, se~do queª. autono11?a privada não se a~resenta_c~mo~negação do ·. .· ~.i.~ agente ou distribuidor tem direito à indenização se o proponente, sem
Direito legislado, pois o contem dentro de detenmnados hmites- 70 • ;~ justa causa, cessar o atendimento das propostas ou redu=i-lo tanto que se
··.... Retomando a noção do contrato enquanto fato social, cabe des- )yl torna a11tieco11ômica a co11tiuuação do contrato".
tacar as lições de Enzo Roppo, para quem o contrato, mesmo como con- ~~ Em um estudo voltado à interpretação, cabe destacar alguns as-
ceito jurídico (abstrato!, r~flete uma :ealidade exteri~r a s~ própri?, a qu~l {f{ pectos teóricos envolvendo os negócios jurídicos, especialmente no que
remete para uma rede mtrmcada de mteresses e de s1tuaçoes soc10econo- Jt respeita ao conteúdo deste instituto, que é constituído por preceitos con-
micas. E a partir deste liame dialético com o contexto fático que o meneio- J1i1 cretos - no sentido de que dizem com interesses e sujeitos detem1inados -
nado pensador afirma que "falar de contrato significa sempre remeter -
explicita ou implicitamente, directa ou mediatamente - para a ideia de ·~~
·•~1
soluto relevo. principalmente no plano hennenêutico. Ademais. ao se entender o con-
operação econômica", noção que, na sua materialidade, surge como subs- l trato como sendo a veste jurídica de uma detemúnada operação econômica, não se es-
trato real necessário e imprescindível do conceito de contrato (principal- tá concluindo pela submissão do jurídico à dimensão econômica. Parece correta a as-
mente dos contratos paritários), que não deixa de ser nunca a "veste jurí- sertiva de que o conceito de contrato está indissoluvelmente ligado ao de operação
dico-formal" de uma detenninada operação econômica, ou seja, o instru~ econômica (ainda que conserve uma relevância autônoma. essencialmente no plano
teórico). enquanto o inverso não é necessariamente verdadeiro. Porém. é a nonnatiza-
mento legal para o exercício de iniciativas econômicas271 • Assim, se é ção do instituto do contrato (e das demais nomias estatais) que resta por confonnar a
atividade econômica, e não o inverso, embora haja uma inequívoca simbiose entre es-
270
tes dois sistemas (ROPPO, 1988, p. 12-13 e 19).
BRANCO, 2006, p. 53-57; PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia 272
Aqui o Direito dos Contratos é entendido como sendo o conjunto de nonuas legais e
Privada. Coimbra: Almedina, 1982. p. 18. ··
jurisprudenciais que definem a disciplina dos contratos e, portanto, as suas modalida-
271
Na teoria de Enzo Roppo a noção de operação econômica é ampla, atendendo ao \1· des de funcionamento (ROPPO, 1988, p. 30).
critério objetivo da circulação de rique=a atual ou potencial. A caracterização de mna \ .. 273
ROPPO, 1988, p. 7-8. 10-11 e 127.
operação econômica não se linúta à procura do lucro e do proveito pessoal, assin1 co-
mo o vocábulo riqueza não diz apenas com o dinheiro e outros bens materiais, mas
com todas as utilidades passíveis de avaliação econômica, ainda que não sejam coisas
'i
'
274
"Arl. 1174. Carattere patrimoniale della presta=ione. La presta=ione che forma
oggetto dell'obbliga=ione deve essere suscettibile di valuta=ione economica e deve
em sentido estrito. Nesses termos, a promessa de fazer ou não fazer qualquer coisa .·••· . corrispondere a 1111 interesse, anche 11011 patrimoniale, dei creditore. Tradução livre:
a prestação que forma objeto da obrigação deve ser susceptível de avaliação econô-
gratuitamente em beneficio de alguém - hipótese que de pronto seria qualificada co- .·.·.:.·.·.•I
mica e deve corresponder a 11111 interesse, ainda que não patrimonial, do credor".
mo altruísta e, consequentemente, não econômica - passa a ser representativa de uma . 275
operação econômica, pois é significativa, para o promissário, de uma riqueza verda- _. "Arl. 1321. No=ione. II contralto el'accordo di due o piit parti per costituire, regolare
<leira. O conceito utilizado pelo pensador abrange contratos que diretamente possuem · ·1 o estinguere tra !oro un rapporto giuridico patrimoniale. Tradução livre: O contrato
objetivos de natureza ideal, moral e cultural (e até mesmo existencial), pois a noção '': é o acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir uma relação
que caracteriza a operação econônúca está centrada em critérios rigorosamente objeti- jurídica patrimonial".
276
vos, não sendo ilidida pelo fato do contraente ser movido, subjetivamente, por impul- Enzo Roppo menciona un1 interessante exemplo: se· dois sujeitos se comprometem
sos e finalidades de ordem pessoal. Dito de outra forma, a existência de motivações e reciprocamente - mesmo por ato formal. escrito e assinado - a conservar para sempre
interesses individuais "não econômicos" ou a inexistência de intentos especulativos sua crença política comum ou difundir o sen credo estético. ainda que nas partes exis-


por parte dos contraentes não obstaculiza a caracterização objetiva de uma operação
econônúca. Contudo, cabe salientar que a remissão à operação econômica não des-
oonsid,ra o asp,oto existend,t d, m<rit,s oontr,tações, o qu, """' oomo futo, a, ,b- ~
:1
_ ta a vontade e a convição de se obrigarem legalmente. não há que se falar na existên-
cia de um contrato, exatamente pela falta da patrimonialidade iequerida (ROPPO.
1988, p. 14).

h
!•
Interpretação Contratual 97
96 Felipe Kirchne!"
Vislumbrando a configuração de elementos de existência (no
os quais, sendo sempre relativos às relações fáticas dos contraentes, são
campo do Direito), validade (exigências legais) e eficácia (fatores extrín-
socialmente reconhecíveis e dotados de idoneidade para se el~var a fato
secos que contribuem para a obtenção do resultado visado), Antônio Jun-
juridicamente relevante em viitude _de uma v~loração e ~-ece~ção, posterior,
queira de Azevedo propõe outra classificação tripartida, galgada no grau
por parte do Direito277 . Como salienta Bett1, o conteudo e aquilo que o
de abstração analítica acerca do negócio jurídico. Em um primeiro plano
negócio jurídico é, o que engloba "fórmula e ideia", "palavra e significa-
estariam os elementos gerais, que são comuns e indispensáveis a todos os
do", aspectos que devem ser conectados por intermédio da atividade her-
negócios jurídicos, tais como a fonna da declaração ( v.g.: escrita, oral e
menêutica278. silêncio), seu objeto e conteúdo (disposições contratuais contidas no ins-
Em tennos expositivos, cabe mencionar a tradicional classific~- trumento) e as circunstâncias negociais (os fatos que fazem com que a
ção tripartida entre elementos essenciais (essentialia negotii), naturais manifestação de vontade seja vista socialmente como destinada à produ-
(naturalia negotii) e acidentais (accidentalia negotii). ção de efeitos jurídicos). Já os elementos categoriais possuem duas espé-
Os elementos essenciais, de ordem volitiva, são aqueles neces- cies: os essenciais ou inderrogáveis servem para definir a categoria do
sários à existência do negócio jurídico em relação a sua tipificação_ legal negócio jurídico, enquanto os naturais ou derrogáveis são os que defluem
(sem os quais o suporte fático seria insuficiente), sendo, portanto, msu? da natureza do negócio, podendo ser afastados sem que o negócio jurídi-
cetíveis de serem afastados pela vontade das partes. Estes fatores sao co mude de tipo (ex.: no depósito, o consenso sobre a entrega e guarda do
utilizados na atividade de qualificação dos negócios jurídicos, sendo sig- objeto móvel é elemento categorial essencial, enquanto a gratuidade é
nificativos tanto dos traços característicos dos mais diversos modelos elemento categorial natural). Por fim, os elementos paiticulares são todos
jurídico-negociais (essentialia negotii in abstracto), quanto dos elemen- aqueles opostos em concreto pelos contraentes sem serem próprios de
tos fáticos que justificam a subsunção do instrumento contratual a um tipos de negócios (ex.: condição, tenno e encargo )281 .
determinado modelo jurídico-negocial (essentialia negotii in cqncre_to). Divisando as fontes do negócio jurídico282 , pode-se falar na
Já os elementos naturais, de ordem não volitiva (elementos não quendos existência de um conteúdo bipartido. Em um primeiro plano há um con-
ou ao menos superfluamente queridos), são os que, embora não sendo teúdo expresso ou declarado, que se constitui nas regras ínsitas no ins-
necessários à existência do negócio jurídico ou a sua recondução a deter- trumento contratual e derivadas diretamente do ato de autonomia dos
minado tipo legal, defluem da natureza do negócio, podendo ou não ser contraentes283 , as quais podem ser necessárias (devem ser fixadas para
afastados pelas partes, caso sejam previstos, respectivamente, em normas
dispositivas ou cogentes279 . Por fim, os elementos_ acidentats,_ d~ º;~em 281 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência. validade e eficácia.
volitiva, são aqueles que se apresentam na concreçao do n~goc10 JUn~1co, 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2000. p. 30-39 e 41. Como refere Francisco Marino. '·coin-
cidiriam, portanto, os elementos categoriais inderrogáveis (ou essencias), os elemen-
sem derivarem de sua natureza ou serem exigidos pelo tipo legal (mte- tos categoriais derrogáveis (ou naturais) e os elementos particulares, com aquilo que
gram o suporte fático excedendo~ que a ele é ?s~e1:ci~l~. Diferentemente a doutrina tradicional chama, respectivamente, de essentialia negotii. naturalia ne-
dos elementos essenciais que qualificam o negoc10 Jund1co, os elementos gotii e accidentalia negotii", com a diferença que, para Antônio Jtmqueira de Azeve-
naturais e acidentais dizem com as consequências jurídicas dos negócios do, os elementos (categoriais) naturais são sempre derrogáveis. enqurulto para a pri-
280 meira classificação adotada estes podem ser iuderrogáveis, caso advenham de nonna
jurídicos (constituição, extinção e modificação das relaçõesjuridicas) . cogente (MARINO. 2003, p. 27-29).
282 A classificação a seguir proposta visa uma simplificação das dicotonúas existentes no
conteúdo do negócio jurídico. tema que não se apresenta de fonna unívoca na doutri-
277 BETII, 2003a, p. 160-161. na. Geralmente a matéria é rurnlisada não sob o ângulo aqui proposto (ato de autono•
278 BETII, 2003a, p. 125. mia), mas, sim. sob o prisma da dissecação da relação contratual. enqurutto produto do
219 Saliente-se que parte significativa da doutrina entende que o~ elementos naturais se limitam ato de autonomia. Sob este prisma, Antônio Junqueira de Azevedo, por exemplo, clas-
ao regramento legal que complementa o regramento negocial (enquanto os elementos e~- sifica o conteúdo do negócio jurídico como contendo elementos expressos (o que está
senciais e acidentais seriam obra da autonomia privada), e também que os fatores naturrus contido no instfUlllento ). incompletamente e.,pressos (elementos não contidos no ins-
truntento devido a uma referência incompleta. tais como os direitos e obrigações de
são em verdade efeitos do negócio juridico, siturutdo-se no plruto da eficácia (e não da exi7 tipo contratual escolhido, da qualidade das partes, étc.) e implícitos (fonnados pelos
tência como os elementos essenciais e acidentais). Entende F=cisco Marino que, por ~- elementos naturais) (AZEVEDO. 2000).
zeren; com os efeitos do negócio juridico, os elementos naturais não englobam seu conten- 283
Antônio Jtmqueira de Azevedo propõe uma apreensão ampla do qué seja a declaração,
do, fazendo parte apenas do conteúdo da regulação objetiva (MARINO, 2003, p. 253).
entendendo-a não apenas como sendo o texto do negócio. mas também h1do aquilo
280 MARINO, 2003, p. 25-26, 29 e 253-254; PONTES DE MIRANDA. 1954. p. 65-66.
Interpretação Contratual 99
98 Felipe Kirchner

que o contrato seja jw-idicamente válido) ou eventuais (poderiam não ser da contratação, uma vez que as regras derivadas da autonomia se fimdem
incluídas no negócio )284 • Conjuntamente e de fonna incindível, há uin sistematicamente com as regras e eficácias oriundas das normas legais
conteúdo implícito ou não declarado (não dito do contrato), que é a parte (cogentes ou não), em um amálgama incindível. ·
não contida expressamente na declaração negocial (muitas vezes devido a Sendo inegável que as eficácias das nonnais legais (principal-
uma referência incompleta por paite dos contraentes), composta pelas mente as normas cogentes) compõem a normatividade reguladora da rela-
normas legais (v.g.: direitos e obrigações de tipo contratual escolhido, da ção dos contraentes, não podem ser excluídas da interpretação que se
qualidade das partes, etc.) - as quais se encontram divididas em elemen- debruça sobre a relação contratual. Em uma visão panorâmica da ponde-
tos injuntivos (que podem ser afastados pelas partes) e supletivos (desti- ração global da regulação promovida pelo negócio288 , cabe defender a
nados a suprir deficiências dos atos de autonomia) 285 - e pelas circunstân- relevância do conteúdo da regulação objetiva, composta pelo conjunto de
cias do caso, cuja significância e eficácia são reveladas pelo ato herme- todos os elementos do negócio jurídico, incluídos os dec01Tentes da de-
nêutico após uma operação probatória. A reunião destes conteúdos forma claração negocial e do ordenamento jurídico, inclusive no que respeita às
um conjunto maior, que diz com o conteúdo total ou global do negócio normas de integração (supletivas, cogentes ou dispositivas) 289 •
28 Tais definições se inserem diretamente na problemática da her-
jurídico, ou simplesmente conteúdo do negócio jurídico 6, que sendo
agregado ao paradigma teórico aqui delineado culminará no conceito de menêutica contratual, especialmente porque o conteúdo do negócio jurí-
situação objetiva complexa2 87 • dico é o resultado de sua interpretação, ou seja, é a interpretação que visa
Nesses tennos, ainda que se entenda que o conteúdo do negócio determinar o conteúdo do negócio jurídico290 • O conteúdo da regulação
jurídico é composto exclusivamente pelas regras estabelecidas pelas par- objetiva frequentemente excede o conteúdo do negócio jurídico como
tes, excluindo aquilo que é referido ao ordenamento, do ponto de vista considerado classicamente (pois aportam a este conteúdo outros elemen-
hermenêutico não se pode ignorar que o objeto da atividade exegética tos de ordem objetiva constantes no sistema jurídico e nas circunstâncias
engloba em seu conteúdo as nonnas ínsitas na declaração negocial e do caso), conclusão que somente se toma possível com a utilização de um
aquelas situadas no sistema jw-ídico que tenham pe1tinência com o objeto paradigma hennenêutico amplo o suficiente para abarcar todo o conteúdo
da regulação objetiva, sem depender de uma cisão, deveras artificial,
entre interpretação e integração do negócio jurídico. Aceito que o conteú-
que pelas circunstâncias (contexto) surge como sendo declaração, o que engloba, in- do do negócio é composto pelos elementos objetivos supramencionados,
clusive, a incidência da boa-fé e dos usos (AZEVEDO, 2000, p. 99). Em outra passa- não há razão para dissociações que não se verificam na prática jurídica,
gem, aponta que mesmo no comportamento concludente há uma declaração (tácita), senão quando embasadas por artificialismos de ordem doutrinária.
que a diferencia por ser interpretada por meio de fatos que a revelam (AZEVEDO,
1986, p. 17-18). Francisco Marino acertadamente aponta que o negócio jurídico, en- Apresentadas as peculiaridades do conteúdo do negócio jurídico
quanto ato, não se limita ao seu texto (MARINO, 2003, p. 76). que interessam à interpretação, cabe desvelar a relevância hennenêutica
284 Nesse conteúdo expresso ou declarado se encontra um conteúdo substancial ou pre- da autonomia privada.
ceptivo, fomrndo pelas declarações dispositivas ou preceptivas que regulam o negócio
e disciplinam a relação dos contraentes, e um conteúdo não-preceptivo, que abrange
outros tipos de manifestação e narrativas (demonstratio e consideranda) que auxiliam 2.3 A Autonomia Privada e sua Relevância Hermenêutica
a esclarecer os antecedentes do negócio jurídico e qne, nesta condição, se constituem
em meios valiosos para a interpretação da declaração negocial. Francisco Marino ob-
serva que embora os considerandos do contrato venhan1 separados das disposições
Este tópico pretende situar o negócio jurídico como instrumento
substanciais do negócio jurídico, podem conter declarações preceptivas, tal como do exercício da autonomia privada, posicionando o preceito tanto como
ocorre com a enunciação do motivo detenninante do negócio, aspecto de grande re- elemento estrutural da dimensão ética da pessoa humana (fundamentação
levância, conforme demonstram as regras do arts. 137, 140 e 166, III, do CC/2002. unidimensional), quanto como elemento estrutural da ordem jurídico-
MARINO, 2003, p. 84-85. -econômica no contexto da ação comunicativa que culmina no contrato
285 MENEZES CORDEIRO. Tratado de Direito Civil Português. t. I, 2 ed. Coimbra:

Almedina, 2000, p. 480-481. 288


MENEZES CORDEIRO, 2000, p. 479.
286 MARINO, 2003, p. 33-37 e 253-254. 289
MARINO, 2003, p. 34-35.
287 O conceito de situação objetiva complexa será apresentado no tópico "A fixação do 290
MARINO, 2003, p. 36.
objeto e da dimensão funcional da hennenêutica contratual".
Interpretação Contratual 101
100 Felipe Kirchner
legislação infraconstitucional (auxiliando na transposição de valores ao
(fundamentação bidimensional). Assim, a narrativa irá situar a autonomia
Direito) 295 . Em sua segunda função, está intimamente relacionada com a
privada no atual estágio da ciência jurídica e contexto socioeconômico,
declaração negocial, que se constitui tanto na regulamentação da auto-
para depois demonstrar sua relevância enquanto vetor necessário à ativi-
nomia privada, quanto na corporificação de sua natureza como ato de
dade hennenêutica, pois, como salienta Miguel Reale, a liberdade se
comunicação 296 .
apresenta, no plano da experiência, não apenas como categoria ética ou
deontológica, mas também gnoseológica291 . ~ Na intersecção dos plan~s de autonomia e heteronomia que
compoem a complexa rede nonnat1va do contrato, é papel da atividade
Se em um primeiro momento a autonomia será analisada em
confronto com os demais vetores regentes do Direito Contratual - o que hermenêutica avaliar o espaço de autonomia e liberdade contratual em
implicará a fixação de certos limites, ou ao menos a mitigação da ideia razão de uma evidente funcionalização dos direitos (arts. 5º, XXIII e 170,
liberal oitocentista-, posterionnente será apresentada a importância (ain- III, da C~Bf1988; art~. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC/2002), ca-
da) determinante da autonomia no plano da interpretação dos contratos, bendo ao mterprete verificar, perante as circunstâncias do caso concreto
mesmo quando utilizados vetores de ordem objetiva na consecução desta onde a autonomia é liberdade (maior amplitude de ação ao indivíduo) ~
atividade. A relevância do liame existente entre autonomia e interpreta- onde a autonomia é função (restrição à atividade individual)297 . Este desi-
d~rato ~ome~te é alcançado m_ediante a ponderação de preceitos antagô-
ção dos contratos é bem ressaltada por Emílio Betti: nicos, mclus1ve no que respeita aos _critérios subjetivos e objetivos de
Desde tempos remotos, no campo do direito, o território mais fértil de interpretação (arts. 112 e 113, do CC/2002).
questões inte,pretativas é o direito civil. O que não deixa de ter uma
profunda razão. Na verdade, em nenhum outro setor é tão intenso o ~008). Gerson Branco sustenta que a análise da autonomia privada, e da consectária
enh·elaçamento de relações enh·e sujeitos de direitos, colocados no hb_erd?de de contratar, a partir do texto constitucional, deve contemplar dois planos.
plano de igualdade recíproca. Em nenhum outro se percebe uma exi- Pnmerro, deve-se entender a autonomia privada como faculdade jurídica e atributo
gência tão imperiosa de enconh·ar os critérios para a justa composi- que emana diretamente da personalidade (art. 1°, ill, da CRFB/1988), mas sendo efei-
ção dos interesses em conflito, tanto por meio da correta compreen- to jurídic~ da ?apacidade do i~diví~uo ser sujeito de direitos (art. 2°, do CC/2002), o
são do preceito de lei ou de costume, cujo critério serve de base para que pemnte vislumbrar as mmtas limitações ao exercício dessa liberdade dentro dos
compor o conflito, quanto por meio do correto entendimento das tão espaços (esferas) de convivência pública dos indivíduos. Segundo. a liberdade de con-
variadas manifestações da autonomia individual292 • tratar como_ !~herdade de exercício de atividade econômica (art. 170, da CRFB/1988),
e de U111a sene de comandos constitucionais que tratam da liberdade em geral (art. 5º.
Adentrando no plano da estruturação da autonomia privada, I, Xill XVII, XXIII e XXXVI, da CRFB/1988), por ser ela uma das fom1as essenciais
d: liberdade (e_mbora n?~ se confunda com o direito fundamental à liberdade), o que
tem-se que a mesma atua tanto como princípio (e critério interpretati- nao pode ser visto restritivamente (pois a autonomia privada não se encontra associa-
vo )293, quanto como fonte de normatividade (potência nomogenética). No da apenas ao setor privado e à atividade econônúca. bem como a liberdade econômica
primeiro caso, apresenta-se como elemento tradutor de valores, em uma não se resume à liberdade contratual) (BRANCO, 2006, p. 287-295 e 302-307).
294 295 SANTA MARIA, 1966, p. 60.
apreensão deontológica do axiológico presente na Constituição e na
296 MARTINS-COSTA, 2008: BETTI, 2007, p. 390. A natureza comunicativa está con-
sagrada no art. 112, do CC/2002, com o uso do tenno "consubstanciada".
291 REALE, 1999, p. 274-275. 297
F~RRE:IRA DA SILVA, 2008. No julgamento do RE 201.819/RJ (Rei. para Acórdão
292 BETII, 2007, p. XLII-XLIII. Min. Gdmar M~nd~s, 2ª T., ~TF, j. 11.10.2005) - onde o STF entendeu que os direi-
2Q3 Refere Francisco Amaral que a autonomia atua tanto como principio quanto como tos fun~amentats vmculam d1retamente não apenas os poderes públicos, mas também
critério interpretativo (AMARAL, 2006, p. 346), o que denota llllla função aplicativa o~ pa~1culares em face dos poderes privados -, foi referido que os princípios constitu-
enormemente relevante para este estudo. Na AC 70002449262, o TJRS decidiu que c10nais atuam como limites objetivos à autononúa privada, a qual "encontra claras
"não mais pode ser admitida a autonomia da vontade como dogma e sim como prin- limitações de ordem jurídica, não pode(ndo) ser exercida em deh·imento ou com des-
cípio inserido 110 ordenamento jurídico, que deve ser avaliado juntamente com ouh·os respeito aos direitos e garantias de terceiros, especi;lmente aqueles positivados em
princípios que também regem os contratos" (AC 70002449262, Décima Sexta Câma- sede constit11cio11al, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares no
ra Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rei". Helena Ruppenthal Cunha, j. em: d~mínio de sua inci1ê11cia e atuação, o poder de transgredir OI/ de ignorar as re~tri-
13.06.2001). çoes 1;ostas_ e d:fimdas pela própria Constituição, czya eficácia e força normativa
294 Não é somente no plano infraconstitucional que a autonomia encontra lastro. Como tam~em se zmpoem, aos particulares, no âmbito de suas relações pi'ivadas, em tema
refere Judith Martins-Costa, no plano constitucional a autonomia diz, sobretudo, com de hberdadesfimdamentais".
os princípios da autodetenninação e da liberdade de iniciativa (MARTINS-COSTA,
102 Felipe Kirchner hlterpretação Contrahial 103

Embora possua independência non11ativa, a autonomia sempre 112, do CC/2002, evita que se recaia em uma "orientação capciosa, for-
deve ser considerada em conexidade com a autonomia do outro e, princi- malista e atomista (. ..) e impõe que o intérprete vá além do 'sentido lite-
palmente, com os parâmetros valorativos legalmente estabelecidos, pois ral das palavras' e do texto do contrato para estender o exame ao 'com-
quando a liberdade individual se encontra desconectada do Direito, recai portamento total', mesmo posterior à conclusão", como bem salienta
no vazio axiológico, no abuso e na desumanização do mercado. Questão E~lio _Betti, p~~a quem a b~s?a pela comum intenção das partes, pos-
interessante se observa com a regra do rut. 112, do CC/2002. Quando o sumdo mdole mtldamente objetiva, não permite que o sujeito cognoscen-
ato de comunicação (que serve à autonomia) atinge o outro se dá uma te se afaste da facticidade da relação contratual na tentativa de reconstruir
simbiose entre autonomias e confiança legítima despertada. Com a inser- uma vontade presumível, ou seja, o que poderia ter sido a comum inten-
ção do elemento fidúcia, os contraentes adquirem o direito subjetivo de ção das partes relativamente à avaliação dos interesses subjetivos300 •
confiar, o que implica a diferenciação das consequências da confiança Nesses termos, a intenção comum do art. 112, do CC/2002, não
jurídica e pré-jurídica. é o sentido que deriva da vontade interna de uma das pmtes que se pre-
A teoria da confiança, subjacente ao art. 112, do CC/2002, en- sume conhecida ou reconhecível na outra, nem o sentido da declaração
contra-se lastreada no trinômio autonomia-liberdade-responsabilidade. em correspondência ao tipo contratual, mas, sim, o sentido que o destina-
Se a confiança fortalece o vetor autonomia, este potencializa e materializa tário tinha o dever de conhecer, tendo em vista as circunstâncias do caso
o elemento fiduciário (fazendo surgir uma confiança forte), tanto que o e o tipo contratual em questão. Assin1, a regra em exame conduz à trans-
ato comunicativo, mesmo quando desconectado de uma declaração, passa cendência do apego ao sentido literal, pois mesmo ·que este elemento
a assumir um determinado papel no plano principiológico. Nesse contex- surja como fator inicial da atividade interpretativa e marco de seu desen-
to, a autonomia surge como um microcosmo normativo do Direito, pois volvimento, há a necessidade do sujeito cognoscente perquirir a inten-
encampa duas de suas principais funções: o resguardo de expectativas ção que se oculta sob a fonna que a declaração exprime, muito embora
legítimas (proteção de condutas comunicativas) e o direcionamento de o art. 112, do CC/2002, não autorize que se prefira a vontade à declara-
condutas (coordenando e modulando a atividade humana), no que a auto- ção, pois esta, enquanto ponto de partida, não pode ser desprezada sob o
nomia é acompanhada pelo princípio da boa-fé objetiva previsto no art. pretexto de que sejam aclaradas intenções interiores dos agentes. Em
113, do CC/2002298 • suma, não é possível ao intérprete buscar a intenção subjetiva para en-
Tendo sido enfocada a influência da regra do art. 112, do tender algo diferente do que foi dito, pois nessa circunstância estaria
CC/2002, no plano da autonomia, cumpre consignar que a intenção ali ignorando a força vinculante do objeto interpretado (primado do texto
mencionada não é o escopo individual, mas, sim, o desígnio comum, ou da declaração negocial). Como antes mencionado, a comum intenção do
seja, o intento concorde formado bilateralmente pelas partes confonne art. 112, do CC/2002, diz com os desígnios objetivados na declaração e
parâmetros de reconhecimento objetivos (na declaração e/ou em compor- na situação objetiva complexa constitutiva do contrato, e não com os
tamentos concludentes), o que abrange não apenas uma determinação escopos subjetivos que não encontram correspondência alguma no ato
causal concorde (intento prático desejado pelas partes), mas também a comunicacional que se objetivou3º1•
divergência e o conflito entre os respectivos motivos e interesses indivi- Cabe ainda salientar um aspecto da estrutura do ato de autono-
duais (que se subordinam ao acordo comum)299 • Essa concepção do art. mia. que interessa de~isivrunente à hermenêutica contratual: o paradoxo
da liberdade que denva da apreensão de uma autonomia bilateralizada.
298 MARTINS-COSTA, 2008; BETTI, 2007, p. 390. Se a análise oitocentista do ato negocial o identifica como sendo o exer-
299 Pode o intérprete recorrer a elementos extrinsecos para aferir a comum intenção con-
substanciada no ato commtlcacional da declaração. Contudo, essa prentlssa traz con-
la declaração. Entendimento diverso (pem1issivo da busca da vontade real) acabaria
sigo a questão referente aos lintltes nos quais o intérprete pode indagar acerca da co- frustrando as expectativas legítimas das partes contratantes (protegendo desproporcio-
mum intenção das partes, especialmente quando o sentido atribtúdo pelo declarante a nalmente os interesses do declarante), além de criar o absurdo de se entender que as
sua linguagem não está reconhecido na linguagem utilizada no instrumento contratual, re~as dos arts. 112 e 1.899. do CC/2002, não possuiriam efeitos diversos no campo
sendo, desta forma, desconhecida e irreconhecível pelo destinatário. A regra do art.
·Óo da mterpretação dos atos e negócios jurídicos (MIRANDA. 1989, p. 184-185).
112. do CC/2002, impõe uma atuação de combinação e restrição recíprocas entre a
º BETTI, 2007, p. 188. 359. 380 e 392; BETTL 2003b, p. 209-211. , .·
declaração e a vontade bilateralizada dos contratantes, razão pela qual não cabe ao in- 301
térprete se valer de todos os meios imagináveis, pois sua análise está condicionada pe- Jvf!RANDA.1989.p.150-151. 173-l74e225.
104 Felipe Kirclmer - Interpretação Contratual 105

cício pleno da liberdade individual 3º2, um exame mais acurado demonstra simult~neamente, declarante e declaratário. Mesmo quando a dinâmica
que a autonomia que culmina no contrato implica uma verdadeira limita- ÍOfl!lªtI:'a do contrato obedece ao procedimento linear da proposta-
ção do espaço de vontade dos indivíduos envolvidos, pois cada um dos acet!ª?ªº - sendo _aquela o ponto de referência demarcador do alcance do
contraentes abre mão de parte de suas pretensões a fim de afirmar um ~eg~c~o e e~t~ a s1mpl:s rea7ão afinnativa à proposta -, o declarante não
projeto conjunto com o outro, visando atingir a um determinado objetivo e o ~mco sujeito da açao, .P?ts o declaratário jamais possui apenas O papel
comum, nonnatizado pela figura do adirnplemento. passivo de puro recept?r, Jª que se constitui, ontologicamente, como sen-
A autonomia, no campo do Direito Contratual paritário, não do ? declarante ~a aceitação que contém e absorve, no universo comuni-
possui um âmbito de domínio unilateral, pois se caracteriza como uma cac10nal da relaçao contratual, o horizonte de sentido da proposta.
esfera de conformação bilateral e interativa no espaço de comunicação ~ . Se do po?to_ de vista _exegétic? cabe a atribuição de um ponto de
que conduz à formação do pacto. Os dois poderes privados, interdepen- relevancia henneneu!tca ~os ~iversos tipos contratuais3º5, sob O prisma da
dentes no plano teórico, só são exercitáveis cooperativamente (liberdade tutela da autodet~nmnaçao nao há razão para se privilegiar a posição do
por intennédio do outro), pois o sujeito contratual é apenas parte de urna declarante, especia~m~n~e quando percebido que a autonomia é exercida
relação que pressupõe a intervenção constitutiva do parceiro contratual, o s~m~re ~~ forma dialog1ca em :1m detenninado e situado contexto comu-
que determina a liberdade positiva de ambos contraentes, cuja bilaterali- mcativo . Se um_contrato supoe duas declarações de vontade (cada uma
dade não se estmtura em um modelo de limites (acasalamento do poder d~la~ c?m, 1:m emitente ~ u1:11 destinatário), estas somente assumem rele-
de um com a não ingerência de outro), mas antes em um modelo de parti- vancta Jundica e hem1eneutica quando se consubstanciam numa totalida-
cipação e de necessária interpenetração de duas esferas de liberdade. Co- de dotada de sentido, conforme se infere da expressiva afinnação de Karl
mo refere Joaquim Ribeiro, "a subjectividade é aqui sempre intersubjec- Larenz3°7•
tividade; a autonomia conjuga-se necessariamente no plura/"303 , até . E~ síntese, a autodet~rminação de cada contraente não pode ser
mesmo porque, corno quer Gadamer, a convenção não diz com a subjeti- vista exegeticamente de forma isolada da autodetenninação do outro, pois
vidade humana ou com a exterioridade de um sistema de regras impostas ambas, enquanto _elementos formadores do consenso, somente podem ser
de fora, mas, sim, com a identidade individual e as crenças representadas pensadas em c~nJunto, uma vez que se condicionam e se limitam mutua-
na/pela consciência dos outros304 • mente, harmomzando-se apenas no acordo que aperfeiçoa O contrato 0
A visão clássica, que apregoa a constmção ideográfica do que res~alta a vertente comunicacional e objetivista apregoada neste estu-
cio jurídico feita no singular e centrada no declarante, não se :::,~:r::t:::::::::1 do. Assnn, o poder nomogenético do sujeito está condicionado não ape-
za com a realidade estmtural do contrato, na qual há necessariamente dois ~as pel~s limites do ~rdenamento que o reconhece, mas confonnado e
sujeitos que participam da formação do negócio, sendo cada um deles, influenciado pe!a mediaçã~ horizontal de igual poder da contraparte, em
uma real e efetiva harmomzação dos interesses privados reguladas elo
contrato. p
302
Na concepção liberal há uma irrelevância da contextualização do ato de exercício da
liberdade, pois o sujeito é visto como investido de um poder individual de autorregu-
Em _conf?m:1idade com a figura gadameriana da fusão de hori-
lação. Contudo, este recorte não permite captar a especificidade distintiva da liberdade zontes, Joaqm~ Ribeiro entende que faz sentido, nessa perspectiva, falar-
contratual, que reside exatamente na relação desta capacidade com os outros poderes -se ,em u11;1a fu~a~ ?e vo~tades que, dando origem a !ex contractus, já não
sin1étricos dos sujeitos com quem o contraente se relaciona (conteúdo do exercício da esta na d1spombihdade mdividual de cada um dos contratantes3os_ Essa
liberdade em situações de poder subjetivo bilateral. como ocorre no contrato). Nesses
termos, a concepção oitocentista contraria a irredutivel sociabilidade do fenômeno 3oscom , ºt , . "O .
contratual e o conteúdo axiológico presente na liberdade enquanto princípio reitor da o sera_ vis o no top1co ponto de relevância hermenêutica dos tipos contratuais
ordenação juridica. Assim, esta apreensão falha decisivamente quando promove uma e a extensao dos meios inte1pretativos".
306
operação conceituai de duplo isolan1ento da relação contratual, ignorando tanto o RIBEIRO, 1999. p. 250-257.
307
meio onde esta se insere (circunstâncias do caso e funções socioeconômicas desempe- LARENZ, 1978. p. 423-424.
308
nhadas pelo contrato), quanto à pessoa do outro contraente (prerrogativas e interesses RJ?l~IRO. 1999. ~- 72 e 638. Carlos Ferreira de Ahneida. por sua vez. entende que
contrapostos do qual ele é portador) (RIBEIRO, 1999, p. 51-53 e 56-58). ª ide~,ª de que !laJ_ª um~ fusão de vontades das partes no contrato se constitui em
303
RIBEIRO, 1999, p. 55 e 58-59. u'.11ª ~o~struç~o 1rreahs~a e inconsistellfe, designadamente quandtf haja uma con-
3 h apos1çao de mteresses' (FERREIRA DE ALMEIDA . 1992. p . 83) . S a1·1ent e-se
0-t GADAMER, 2004, p. 377.
Interpretação Contratual 107
106 Felipe Kirchner.
intensidade escalonadas segundo a situação fático-nonnativa311 , especial-
conclusão percone a diferenciação etimológica e conceituai do que seja mente na análise própria e intrínseca da declaração negocial.
309
autonomia privada e autonomia da vontade . Dito isso, mister se faz retomar o exame do papel da vontade no
A paitir da noção de autonomia bilater~ali~ada se alc~nça uma plano da interpre;aç_ão do co~tra!º· _E1:nbora este eleme~to i~1fl~1encie a
interessantíssima consequência no plano henneneutlco, qual sep, ª. pos- atividade hermeneutica, esta nao e a umca (e sequer a mais propna) fonte
sibilidade da verificação de uma intensidade vinculat_iva de gr~u vanavel, de interpretação, pois sempre acaba se desprendendo do contrato. Esta
proporcional à medida de autodetenninação e à amplitude da liberdade de afirmação é comprovada pela inserção da pactuação em uma cadeia de
decisão disponível perante as circunstâncias do caso, o. que _surge ~~mo circulação de riquezas (autônoma em relação à intenção subjetiva das
uma tese estranha ao regime geral dos contratos, que Jamais adm1tm a partes)312 , pela recepção jurídica das relações contratuais de fato (ou pa-
modulação da intensidade vinculativa. Havendo gradações no nexo de racontratuais) e pela secundarização do aspecto volitivo nos fenômenos
imputação da declaração ao declar~nte, deve hav~r uma cone~p_ondente de massificação econômica e de adesividade contratual. Ademais, certas
diferenciação de eficácia vinculativa310 . Em razao dos_ c?nd1c1ona~t~s teorias de apreensão do fenômeno contratual dão pouca relevância ao
históricos, culturais e psíquicos que acabam por s~r constitu~tes do suJ_e1- papel da vontade, enfocando mais propriamente a questão do tráfego
········ ·- to a liberdade contratual é sempre liberdade situada ~ circuns~anctal, negocial (ex.: análise econômica do Direito Contratual)3 13 .
ra~ão pela qual também o princípio (da liberdade) atuara em medidas de Havendo uma inequívoca tendência para a progressiva redução
do papel da vontade enquanto momento psicológico da iniciativa contra-
que a prática forense demonstra que a contraposição de interesses geralmente ~~sce tual314, o certo é que contemporaneamente o consenso (proposta e aceita-
na fase de execução do contrato, mas mesmo quando surge no m.°m~nto genehco, ção) jamais é formado apenas pela vontade ou pelo ato de autonomia315 ,
há sempre um denominador comum na vontade das partes, o que Justrfi,ca a con~a- os quais se constituem em parâmetros fracos para explicar a complexida-
tação, até mesmo quando a união das vontades dos contratantes se da por razoes
meramente utilitaristas. . .
Jog Enquanto na expressão autonomia da vontade à ~nfase se dá n_o ter:n~ ~ontade,_md~-
311 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 139-140.
cando a mais conspícua manifestação do voluntansmo voltado a s~bJetJv1d?de e a psi- 31 2 Carlos Ferreira de Almeida ·entende que a noção de perfomrntividade - indicativa de
cologia do consenso, no conceito autonomia privada _o P:,so est~ n~ ~ocabulo auto- que os enunciados contraruais ao dizerem algo estão fazendo algo (to s~.v something is
nomia dizendo com O poder jurídico de autodetennrnaçao do md1v1duo na ordem to do something), realizando por si certos atos (quando observados detemlÍllados re-
econô~ca e na concessão de força nom1ativa às decisões individuais (o que não se quisitos) - acrescenta importante contribuição para a fundan1entação do negócio jurí-
restringe à atividade negocial) (MARTINS-COSTA, J~di_th. Novas refle~ões_ sobre o dico descentrada do critério único da vontade humana (FERREIRA DE ALMEIDA.
principio da função social dos contratos. Estudos de Direito do Consumidor. separa- 1992, p. 119 e 122).
ta n. 7. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra, 2005a. p. 59-60; MARTINS- 3 13 FERREIRA DA SILVA, 2006; FERREIRA DA SILVA, 2008.
COSTA, 2005b, p. 131; AMARAL, 2006, p. 345-347; ~~RRE~ DA SILVA, Jorge 314 No entender de Enzo Roppo. a objetivação da atividade exegética satisfaz as exigên-
Cesa. Princípios de Direito das Obrig~~ões no Nov~ C?~igo C!Vll. ln: S~ET, _Ingo cias da sociedade de mercado, que estando organizada economicamente pelas relações
Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constitmçao. Porto Alegre. L1~rana do de consumo, produção e distribuição, exige a garantia da celeridade, segurança e esta-
Advogado, 2003. p. 110-111; AMARAL NETO, Franci~co dos _S~tos. A L1b_erdade bilidade das relações contratuais. Para servir ao sistema de produção capitalista, o
de Iniciati~a Econômica: fundamento, narureza e garantia consttruc1011al. Revista de contrato se desvincula da esfera psicológica, tomando-se um instrunlento essencial-
Direito Civil, n. 37, 1999, p. 26). . , . mente objetivo. O modelo subjetivo atendia a uma economia individualista, fechada e
310 RIBEIRO, 1999, p. 301 e 304-305. A questão é c~mJ.:>l:xa e merecena ana!ise em pouco dinâmica, enquanto o modelo objetivo atende as exigências de tuna economia ca-
estudo próprio. Neste espaço, cabe destacar que o 111d1g1tado autor portugue~ men- pitalista altamente desenvolvida. Por fim, cabe salientar que as transfonnações do con-
ciona a doutrina de Karl Llewellyn, que introduz a distinção entre "'consentunento trato não contrariam, mas antes secundain, o principio da autononúa privada, que não
em branco" e "consentimento específico", sustentando que _apenas neste, ?nde o mais se identifica com o dogma da vontade (ROPPO, 1988, p. 297-298 e 309-311).
consentimento atua diretamente sobre o tipo e os traços gerais da contrataçao (te!- 315 No entender de Enzo Roppo, é possível que um contrato se fonne validamente e
mos negociados), se verifica uma eficácia plena da vinculatividade do :ontrat.°, pois vincule os sujeitos interessados, mesmo que no momeúto de sua conclusão falte com-
no caso do "consentimento em branco", havido nos contratos de ade~ao, ª, v1~1cula- pletamente a vontade de uma das partes ou que esta possua tuna vontade contrária à
tividade alcança apenas as cláusulas qt~e- não se)a~1. desarraz?adas: 1mpropnas o~ pacruação, o que ocorre, por exemplo, na subsistência da eficácia da oferta após a
abusivas. Mesmo que não se queira adl11ltlf a vanab1hdade da mte~s1dade_ vmculati morte do proponente e na prevalência do negócio jurídico aparente quando da confi-
va, no plano hermenêutico deve-se aceitar a existência de uma hier~rqma entre as guração da simulação (ROPPO, 1988, p. 299-300). No mesmo sentj<lo: MIRANDA,
cláusulas negociadas e aquelas previstas contrarualmente por adesao (RIBEIRO, 1989, p. 84.
1999,p.305 e315).
108 Felipe Kirchner Interpretação Contrah1al 109

de da vinculação contratual e sua manutenção, mesmo quando transcen- texto socioeconômico (circunstâncias do caso e sistema jurídico), a partir
dido o aspecto subjetivo daquelas estrnturas316 • do que se extraem impo1iantes vetores exegéticos e juízos atinentes à
busca pela manutenção do equilíbrio contratual (noções de sinalagmatici-
Assim, faz-se necessário agregar à quantificação hennenêutica
dade e comutatividade do contrato )322 •
do ato de autonomia outros elementos que, ao lado da autodetenninação
(pressuposto indispensável ao nascimento da obrigação), justifiquem a A partir destas observações, torna-se evidente que a vontade
produção do efeito obrigatório do contrato e sua perduração317 • De manei- deve ser sempre valorada em conjunto com outras fontes, dentre as quais
ra geral, devem ser identificados e valorados, exegeticamente, a presença se destacam aquelas de ordem objetiva, pois mesmo quando inexiste o
de pelo menos quatro fatores: ( 1) a confiança (que protege as expectati- consentimento (e a vontade em sentido estrito), podem nascer relações de
vas)318 e a boa-fé (que surge como dever específico de direcionamento de tipo contratual323 • No plano hennenêutico, a consequência desta conclu-
condutas)319 ; (2) o interesse comum (art. 112, do CC/2002) que está sem- são é a produtiva aplicação dialética e complementar das regras do art.
pre polarizado pelo adimplemento e indica urna necessária externalidade 112, do CC/2002324 • Como refere Carlos Ferreira de Almeida, se é ce1io
da manifestação da vontade e a consequente "bilateralização" da autono- que a vontade somente se completa com a declaração, não há lugar para a
mia privada32º; (3) a possibilidade (esperada) de alteração da vontade autonomização daquela, sendo imperioso reconhecer que todo fenômeno
originária no curso do cumprimento da relação contratual (principalmente negocial consiste em um processo de comunicação no qual a vontade não
nos contratos de longa duração), em um desprendimento do ato de con- tem relevância positiva325 • •
sentimento na vida do contrato321 ; (4) a valorização hermenêutica do con- Porém, a erosão do papel da vontade psicológica no contexto de
uma apreensão objetiva do fenômeno contratual não atinge o núcleo es-
316 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 92. A comprovação de que o negócio não é um
ato de pura manifestação de vontade parece consubstanciada na análise dos contratos sencial das prerrogativas e da centralidade da autonomia privada no âm-
de adesão e nos fatores de invalidade do negócio jurídico. bito hennenêutico326 • Sendo a declaração negocial o ato representativo da
317 RIBEIRO, 1999, p. 63-68. autonomia dos contraentes, cabe questionar: qual o peso da declaração
318 Carlos Ferreira de Ahneida refere que a confiança nem sempre se constitui em fun- negocial na situação objetiva complexa?
damento essencial e decisivo do negócio jurídico, pois embora sirva de base explicati- Não obstante as mitigações que foram anterionnente apresenta-
va de muitos aspectos dos regimes jurídicos (dizendo com a tutela negocial), não ser-
ve de fundamento unitário específico para a vinculação negocial (FERREIRA DE
das, deve-se considerar que a autonomia privada sempre se constitui no
ALMEIDA, 1992, p. 61-62). De outra ordem, interessante a observação de Enzo Rop-
po, para quem a objetivação da hem1enêutica contratual atende a tutela da confiança, a ção e a posterior relação contratual que se desenvolve mereçam especial atenção, o
qual se alcança dando proeminência aos elementos exteriores da relação contratual, ao que ignora tanto as indissociáveis conexões externas do contrato e da autonomia pri-
significado típico dos comportamentos e a sua cognoscibilidade social (ROPPO, vada (e a inserção destes elementos no 111undo da vida), quanto a dinâmica e os efeitos
1988, p. 301). vinculativos situados no plano interno que comporta aspectos relacionais não subsu-
31 g Como se sabe, a boa-fé atua como critério de interpretação e íntegração do contrato
míveis às declarações de vontade dos contraentes (RIBEIRO, 1999, p. 13-14).
(art. 113, do CC/2002), nonna criadora de deveres anexos, laterais ou instrumentais 322 MARTINS-COSTA, Judith. O Novo Código Civil Brasileiro: em busca da 'Ética da
(art. 422, do CC/2002) e nonna limitadora de direitos subjetivos (art. 187, do Situação'. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 20, 2001,
CC/2002), além de atuar, potencialmente, como elemento mitigador da intensidade de p. 240; MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um 'Sistema em Cons-
posições jurídicas (v.g.: supressio, surrectio, venire contrafact11111 proprium e tu quo- trução': as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista da Facul-
que) e como elemento de validade do contrato (ampliação do artigo 104, do CC/02). dade de Direito da UFRGS, Porto Al~gre, v. 15, 1998, p. 148-149: FERREIRA DA
Conforme sustenta o ministro Ari Pargendler, "nenhum regra111ento genérico pode ser SILVA, Luis Renato. Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código do Consu-
aplicado em concreto se contrariar o princípio da boa-fé objetiva" (REsp 554.622, 3ª 111Ídor. Rio de Janeiro: Forense, 2001b: SILVA, 1976, p. 32: DANZ, 1955, p. 197:
Turma, STJ, Min. Ari Pargendler, DJ 01.02.2006 p. 527, RB vol. 508 p. 28, RDDP RIBEIRO, 1999, p. 51-61, 72, 180, 250-257. 638.
vol. 37 p. 151). 323
FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A Noção de Sinalagma nas Relações Contra-
32º RIBEIRO, 1999, p. 51-61, 72, 180, 250-257, 638.
tuais e Paracontratuais: uma análise à luz da teoria da causa. Tese apresentada na
321 A vontade somente pode ser vislun1brada de forma estática quando o foco de análise
Uníversidade de São Paulo, Faculdade de Direito,jun, 2001a, p. 72.
se li111Íta ao ato contratual (declaração negocial),jamais quando se vislumbra a relação 324
MIRANDA, 1989, p. 198.
contratual formada a partir dele. O corte epistemológico feito neste estudo o afasta da 325
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 93. -· ·
construção do contrato segundo o modelo do consenso, cuja análise se centra essencial- 326
ROPPO, 1988, p. 311.
mente no ato de conclusão da pactuação, sem que o conteúdo, as funções da contrata-
110 Felipe Kirchner hlterpretação Contratual 111

norte da interpretação, e a declaração contratual surge como limite à mu- .. Sequer a r~lação da normatividade contratual com o sistema ju-
tação nonnativa que deriva da alteração das relações fáticas 327 • rídico 1hde a centralidade da autonomia privada na atividade hennenêuti-
ca. Embora haja uma estreita relação entre os planos da autonomia e da
Esta consideração ganha vulto no plano dos critérios objetivos
heteronomia no contexto do universo nonnativo do contrato a análise
de interpretação. Embora a utilização destes vetores (v.g.: boa-fé objetiva
hermenêutica deste remete a uma discussão sempre focada n~ liberdade
função social, postulado da proporcionalidade, etc.) implique o uso d;
individual330, na autodetenninação331 , na autonomia privada e na liberda-
uma fonte de regulação diversa da livre e voluntária detenninação dos
de contratual332 •
interesses privados, não se antagonizam com a vontade das partes - como
se pretendessem a tutela dos interesses públicos em confronto com os Retomando o exame do peso da declaração negocial na situação
interesses privados -, pois visam suprir as deficiências de seu exercício objetiva complexa, cabe destacar que é a livre disposição unificada dos
respeitando a lógica e o espírito de suas escolhas. Nesses termos, nã~ cont_ratan!es que d~limita o horizonte do contrato. Assim, enquanto 0
cabe ao intérprete modificar o sentido do conteúdo do contrato com o fun- senti?º l;t~ral po~s1vel da declaração negocial delimita a interpretação
termmolog1ca do mstrumento contratual, é a conjunção das vontades dos
?e
d?-1nento que detennina,das acepções seriam mais desejáveis do ponto de
contratantes (que não pode ser cingida em duas vontades autônomas) que
vista do rnteresse geral. E de fundamental importância o pensamento de
baliza a compreensão da situação objetiva complexa que fonna e condi-
Enzo Roppo, para quem "inte1pretar UJJl contrato é coisa diferente de mo-
ciona o negócio jurídico. Embora de\.:'ª o intérprete deixar que esse con-
dificá-lo. Modificar UJJl contrato, JJ1es1110 contra a vontade das partes, é em
texto objetivo do contrato fale por si, cabe suscitar dois exemplos eluci-
JJ1uitos casos possível: JJ1as não fingindo i11te1pretá-lo"328 •
dativos sobre a importância da autonomia como elemento delimitador da
Em respeito à autonomia privada, na interpretação dos contra- atividade interpretativa.
tos não se pode abstrair de fonna absoluta a intenção dos contratantes,
No que se refere à tenninologia utilizada pelos contratantes sa-
embora o paradigma hermenêutico adotado não possua um caráter sub-
lienta Erich Danz que se as partes estão de acordo quanto ao sentido' dos
jetivista. O reconhecimento de vetores como o interesse e a utilidade da
pactuação é imprescindível, pois alijar esta dimensão do processo her- 330 A lib~rda~e ~ m~1 ~o~ceito· político-filosófico enquanto a autonomia privada é um
menêutico coloca o cumprimento contratual a um passo do inadimple- conceito _te~co-Jund1_co; co_rrespondendo ~ um espaço de liberdade jurígena e, por-
mento. Embora as relações contratuais sejam polarizadas pelo adim- tanto. atribmda pelo Dire1to a pessoas, relativa a uma pennissão genérica de produção
plemento (pois é esta dimensão que perfectibiliza a comum intenção dos de efeitos jurídicos (MENEZES CORDEIRO, 2000. p. 217).
331
contraentes) e, consequentemente, pelos interesses do credor, a imersão Autonomia privada e autodeterminação não se confi.mdem. pois enquanto aquela diz
subjetiva da atividade interpretativa deve ser controlada, pois podendo c~m ? ~r~cesso de or~~ação que faculta a livre constituição e modelação das rela-
çoes Jun~1cas pelos suJe1:os que nelas participam, a autodeterminação situa-se em um
atingir a esfera de interesse de terceiros, o contrato deve ser interpretado plano mais abrangente, dizendo com a orientação de vida e gestão de interesses refe-
quantificando o elemento objetivo externo (ex.: função social). No cur- rentes à individualidade do cidadão, implicando juízos de valor que normativamente
so do processo orgânico de cumprimento do contrato os motivos passam se encontram associados aos princípios da dignidade e do livre desenvolvimento da
a ser bilaterais, se inserindo, substancialmente, na base do negócio jurí- personalidade humana. Nesses tennos. a autonomia privada constitui-se em princípio
~perativo d~ at'.t~determinação do ser humano (RIBEIRO. 1999. p. 22-23 e 30). Em
dico (art. 166, III, do CC/2002). Em síntese, pode-se afirmar que: (1) a linha de rac1oc11110 comI'.lem_entar. a autodet~mtlnação diz com a capacidade de que-
autonomia privada e a intenção das pa1tes são elementos fundamentais rer, enquanto a autono1111a diz ccom a capacidade de escoiller com base nas circuns-
ao agir hennenêutico; (2) a intenção das partes deve ser analisada con- tâncias (v.g.:criança tem autodetemtlnação, mas não autonomia).
332
fonne as circunstâncias do caso; (3) o contrato gera legítimas expectati- Enquant~ Jo~quim Ribeiro entende que a liberdade contratual é U111 componente da
vas nas partes e em terceiros (princípio da confiança), aspectos que auto?o1111~ pnva?a (RIBEIRO, 1999. p. 21), Judith Martins-Costa sustenta que a auto-
no1111a pnvada mtegra um campo de função no domínio da liberdade contratual
devem ser valorados e respeitados mediante a utilização de parâmetros ~TINS-COSTA. 2005a, p. 75). No campo dos contratos, esse quadro de garantias é
objetivos de interpretação 329 • mstrumental do direito à livre iniciativa econôntlca. apresentando-se como sendo o
meio necessário ao exercício desta garantia constitucional. Adverte Judith Martins-
327
HESSE, 1991, p. 23. Costa q~~, como todo meio, a liberdade de contratar não existe em si, mas para algo,
328
ROPPO, 1988, p. 173-174. estando permanentemente polari=ada e coriformada para os fins··« que se destina"
329 (MARTINS-COSTA. 2005a, p. 64-65).
FERREIRA DA SILVA, 2006.
112 Felipe Kirchner Interpretação Contratual 113

vocábulos empregados, o intérprete deve entendê-los nesse sentido; não quer Betti, porque a interpretação autêntica integra o âmbito dessa auto-
podendo, mediante interpretação, atribuir significado contrário àquele nomia336. Porém, cabe destacar que a interpretação autêntica, no âmbito
acordo, ressalvados os casos onde presentes o dolo das pattes ou o fim de contratual, também deve ser bilateral, pois descabe ao intérprete levar em
alcançar determinado objetivo ilícito ou consequência antijurídica (prejuízo conta apenas as considerações de uma das partes contratantes, mesmo que
a terceiros). Em razão do poder nomogenético da autonomia privada, as esta provenha do declarante que redigiu por completo as cláusulas de um
partes são livres para dar aos seus negócios o conteúdo que queiram (ob- instrumento de adesão.
servando os limites legais), e sendo este determinado pelo sentido das Ademais, deve-se salientar que, se por um lado a interpretação
palavras empregadas, ao atribuir um significado diferente o intérprete autêntica não se encontra tão vinculada à situação jurídica preexistente
modifica o teor do negócio jurídico, para o que não está autorizado333 . como está a atividade hennenêutica, detendo uma maior discricionarieda-
Já no que respeita aos efeitos da declaração negocial, em maté- de na escolha da apreciação interpretativa (exatamente por estar correla-
ria de interpretação vige a regra dafalsa demonstratio 11011 nocet (a de- cionada ao poder nomogenético da autonomia) 337; por outro parece de
monstração errada ou imprópria não deve prejudicar o Direito alegado), todo evidente que a mesma não possui um valor absoluto. Embora goze
indicando que quando das declarações emitidas resulta uma concorde de posição privilegiada338 , deve ser quantificada, no plano hermenêutico,
manifestação de vontade, mas as partes estão de acordo que há de se pro- em conjunto com os demais elementos norteadores da interpretação.
duzir um resultado diferente do que derivaria do sentido usual (ex.: equí- Cabe frisar, ainda, que as observações dispostas nos parágrafos
voco ao pronunciar as palavras), se produz o outro resultado334, caso essa antecedentes devem ser vistas com ressalvas, pois poderiam conduzir ao
vontade unificada posterior não vise fraudai· a lei ou direito de terceiros. errôneo entendimento de que não há interpretação quando as partes estão
Ainda, se a declaração é passível de ser entendida com diversos de acordo com determinada significação contida na declaração negocial,
significados, mas declarante e declaratário a quiserem no mesmo sentido, pois como visto anterionnente339, a dimensão hermenêutica se encontra
deve-se deixar valer com esta significância, em respeito à autonomia, já na base de toda experiência de mundo. A interpretação autêntica sobre o
que não há razão para a imposição de uma acepção que nenhum dos con- acordo de vontades originário é dependente de questões referentes a pro-
traentes deseja, quando não se avilta a esfera de interesses de terceiros 335 . va, devendo ser avaliada henneneuticamente no contexto das circunstân-
Porém, deve ser esclarecido que estas conclusões derivam da cias fáticas e normativas presentes na situação objetiva complexa.
autoridade determinante da autonomia, a qual se impõe, inclusive, peran- Por fim, deve ser enfrentada, neste tópico, a aplicação das teorias
te os resultados da atividade hermenêutica propriamente dita. Nos casos da vontade e da declaração, discussão que remete à contraposição entre
mencionados se rompem os limites da atividade hennenêutica, pois o intenção e sentido literal da linguagem, aspecto de enonne relevância na
intérprete é levado a simplesmente aceitar uma conclusão derivada da doutrina da interpretação clássica. Enquanto a teoria da vontade se desti-
autonomia dos contraentes, mesmo que a atividade interpretativa, centra- na a dar prevalência à vontade "real" e subjetiva do declarante (na inter-
da na necessidade de se deixar a coisa falar, culmine no alcance de um pretação e no consequente juízo de validade do pacto) quando esta for
significado contrastante com a disposição das partes que indica o signifi- contraposta à declaração negocial 340, a teoria da declaração concede pre-
cado desejado (considerado então como autêntico).
336 BETII, 2007, p. 119, 136 e 156.
Estas considerações remetem à chamada interpretação autênti- 337
BETII, 2007. p. 158.
ca, que provém do mesmo autor do preceito ou da declaração que se pro- 338
Não é a toa que parte da doutrina qualifica a interpretação autêntica como sendo a
cura compreender (ex.: poder legislativo ou contraentes). O poder vincu- "rainha de todas as i11te1pretações." (SANTA MARJA. 1966. p. 48).
lante da interpretação autêntica, no plano dos contratos, opera devido a 339
Especialmente no tópico "O objeto e os limites da atividade hermenêutica''.
3
sua correlação natural com a autonomia formadora do preceito nonnativo -1o A teoria da vontade trouxe como elemento inovador p reconhecimento da atribuição
originário (competência normativa ligada à identidade do autor) ou, como de ?IT1 poder criativo de efeitos jurídicos (nomogenético) à vontade humana. o que é
aceito por este estudo, como antes mencionado. Porém. inúmeras são as criticas a esta
333
concepção, dentre as quais se destacam: a perspectiva individualista; o sentido equí-
DANZ, 1955, p. 78 e 168. voco que a vontade assU111e na formulação da teoria ( encarada ora como poder psíqui-
33
-1 DANZ, 1955, p. 78 e 225. co gerador de efeitos, ora como conteúdo ou objeto da declaração); Íf dualismo vonta-
335
LARENZ, 1989, p. 360. de-declaração que decompõe artificialmente um fato que é ontologicamente uno; o re-
h1terpretação Contratual 115
114 Felipe Kirchner
alheia. Disso deriva a necessidade de uma avaliação hennenêutica que
valência à declaração abstratamente considerada (tal como esta s~ apre- transcenda a literalidade da linguagem empregada, alcançando também o
sentava ao destinatário no ambiente socioeconômico) enquanto mstru- contexto verbal e todas as circunstâncias relevantes 346 . Assim, o disposi-
341
mento tradutor da vontade d as paites . tivo em comento não toma partido de nenhum radicalismo, tornando im-
A primeira questão que merece ser dest_acada é q~e ~s. duas teo- perativa a análise da totalidade do material interpretativo disponível no
rias extremadas devem ser consideradas voluntanstas e subJetlv1stas, uma caso concreto347.
vez que têm como parâmetro fmalístico a vontade das pa_rt~s. As di~eren- O processo de objetivação da atividade interpretativa remete à
ças de concepção residem apenas no objeto pelo qual rra se anah~ar a busca por um sentido que é polarizado não mais pela vontade subjetiva
vontade interna das partes e naquilo que se pretende ~roteg~r: a t~o~a_da dos contraentes, mas pela comum intenção dos mesmos, a qual deve ser
vontade resguarda o declarante e a teoria da declaraçao o trafego JUnd1co alcançada no âmbito da cognoscibilidade do comércio jurídico, ou seja,
e o destinatário 342 . sob o prisma de como o meio social e os usos do tráfico atribuem senti-
A partir desta premissa, deve-se rec?~ecer que a~ te<:_rias da do àquele detenninado gênero de declaração, o que é matizado pela
vontade e da declaração, enquanto modelos teoncos puros, nao sao sufi- boa-fé objetiva, a qual possui o condão de situar a análise no plano da
cientes ao paradigma hermenêutico aqui adotado. Além d~ ~er~m unila!e- concretude da relação contratual (ex.: indicando que a linguagem utili-
ralistas343, estas vertentes teóricas esquecem o aspecto dmam1co do vm- zada não foi a usual). Nesses tenno_s, mesmo sob um viés objetivo o
culo obrigacional, uma vez que cristalizam a vontade no momento da contrato não se identifica com a letra contida na declaração, pois esta se
formação do contrato, sem cuidar de sua evolução. Sendo evjde~te que as constitui, em verdade, em um meio de comunicação portador de um
mais variadas teorias da interpretação acabam por dar relevancia a deter- determinado pensamento que somente se objetiva no contexto da situa-
344 ção objetiva complexa.
minados preceitos das conentes ora em exame , deve-se abando~a: os
radicalismos e buscai· uma posição que represente os pontos positivos Tendo sido salientada a natureza comunicacional da declaração
destes dois grupos de teorias exti·emadas - o que parece consubstanciado negocial, cabe frisar que o aspecto subjetivo desta relação (vontade indi-
na redação do art. 112, do CC/2002 -, até mesmo porque seria absurdo vidual) não pode deixar de ser projetada em uma relação que é por natu-
conceber em um determinado sistema normativo, um subjetivismo ou um reza intersubjetiva (exteriorização e necessidade de cognoscibilidade
objetivis~o puro. Como sustenta Karl Larenz, "a cada uma destas teorias social), pois a declaração deve ser acessível a todos, quer se considere, ou
subjaz uma parte da verdade"345 , razão pela qual as mesmas podem ser não, a cognoscibilidade da declaração como sendo algo autônomo com
relação à vontade efetiva que a originou348 . Nestes termos, cabe adentrar
aceitas com detenninadas limitações.
Como visto a vontade consubstanciada na declaração negocial
346 A concepção objetivista está consignada na teoria da proteção da confiança subjacente
é nos tennos do art. 112, do CC/2002, a vontade relevante e, assim, qua-
à redação do art. 112. do CC/2002. conclusão para a qual a segunda parte do art. 110.
lÍficada pela exteriorização e pela percepção social, ou sej~, é aquela q~e do CC/2002 ("a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja/eito a
ultrapassou a esfera psicológica de seu autor e fez apelo a compreensao reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha co-
nhecimento"). em um viés sistemático. também serve de apoio.
347
curso usual a ficções e presunções quando os efeitos do negócio jurídico nã~ se dão ~ O . 2003. p. 108-109. 214-215 e 255-256. Francisco Marino ainda entende que
?e
em conformidade com o ponto de vista subjetivo; a impossibilidade se e~pl~car o artigo 112, do CC/2002, ao mencionar tanto a intenção quanto o sentido literal da
linguagem, acaba contrapondo um critério de inte,pretação (intenção) indicativo da
tos efeitos jurídicos que se produzem sem ou contra a vontade (ex.: rrrelevancia da re-
necessidade de se examinar sistematicamente a totalidade do material interpretativo,
serva mental) (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992. p. 70, 80-81 e 83).
com um meio de inte1pretação (sentido literal da linguagem), que deve servir como pon-
341 BETTI, 2003a, p. 188. A doutrina indica que o sistema francês adotou a teoria da
to de partida da atividade exegética e contraponto necessário ao exame da situação obje-
vontade, enquanto o sistema alemão optou pela teoria da declaração ( ~ O , 20?3,
p. 142-143; MIRANDA, 1989, p. 224), o que não significa que o tenhan1 feito segum- tiva complexa formada e formadora da relação contratual (MARINO, 2003. p. 209).
348
Como salienta Carlos Ferreira de Almeida, a declaração é um sinal, fato e/ou ato
do os modelos teóricos de fom1a pura e acrítica.
linguístico dirigido ao outro. Embora possa ser expressa ou tácita. escrita ou verbal.
342 FERREIRA DA SILVA, 2006; MIRANDA, 1989, p. 32.
gestual ou produzida por outras fonnas. com ou sem destinatá1io definido. é sempr~
m MIRANDA, 1989, p. 18. ~mitida, dirigida. expedida. transmitida, recebida ou simplesmente conhecida. ou seja.
344 MIRANDA, 1989, p. 132. e sempre referida como comunicação ordenada segundo a estrutura que especifica-
345 LARENZ, 1989, p. 381.
116 Felipe Kirclmer h1terpretação Contratual 117

na análise do procedimento, métodos e regras presentes na interpretação trato que sejam notórios para as partes (circunstâncias do caso), mediante
contratual. prova ou confissão~ p~ra após ~terpretar a declaração negocial 354 , quantifi-
cando os fins econom1cos ahneJados pelos contraentes e os usos sociais355 •
Nesses termos, a atividade exegética não deve se cingir aos li-
2.4 O Procedimento, os Métodos e as Regras de Interpretação
mites da construção jurídica que dê mais tarde ao instrumento (classifica-
Conforme estabelece Pontes de Miranda, a atividade de inter- ção do caso concreto em uma das figuras contratuais típicas). Em matéria
de negócios jurídicos não se pode aplicar uma construção jurídica qual-
pretação do negócio jurídico se desenvolve, em termos instrumentais,
quer para_ após interpretar se atendo a ela. O conceito técnico que se po-
mediante um complexo de operações349. Porém, a complexidade da ativi-
dade não deriva apenas do labor do sujeito, mas também da natureza rnul- nha de etiqueta
. em um contrato ou em uma relação jurídica não influi , a
tifacetária do objeto. priori, na mterpretação. O juízo de que a declaração negocial se trata de
um determinado tipo contratual só pode ser alcançado após a interpreta-
Corno a interpretação dos contratos tem como objeto os elemen- ção do negócio jurídico concreto356 •
•.: .. ·· tos de fato constitutivos do negócio jurídico, os quais compõem uma
situação objetiva complexa na qual se insere o instrumento contratual350, Cabe destacar, também, que o procedimento hennenêutico de-
a atividade interpretativa deve ter em conta todas as circunstâncias do terminativo do significado e dos efeitos jurídicos nada tem a ver com uma
caso351 , as quais devem ser fixadas pelo intérprete antes de proceder à operação de prova ou com a fixação -de oc01Tência ( ou não) de fatos. A
interpretação352 • interpretação dos contratos é posterior à fixação das provas, as quais,
contudo, influirão decisivamente na atividade hennenêutica357 • Coisas
Embora não haja um procedimento fixo, devido a circularidade distintas são os fatos (o que se prova) e o significado dos fatos (o que se
da atividade hermenêutica, um aspecto procedimental merece ser consi- alcança com a atividade exegética). Emílio Betti diferencia com proprie-
derado: a inte,pretação do negócio jurídico depende da .fixação das cir- dade os planos de atuação quando afirma que "na prova trata-se de for-
cunstâncias do caso e, por isso, é salütar que preceda a construção jurí- mar a convicção do juiz sobre o ponto de que o fato a ser provado tenha
dica353. O intérprete deve determinar todos os fatos constitutivos do con- realmente ocorrido: na ilite,pretação, ao contrário, trata-se de entender
o significado e de fixar o alcance da norma jurídica ou de outros precei-
mente corresponda ao ripo contratual em questão (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992,
p. 268-270 e 298).
tos ou espécies jurídicas"358 .
349 PONTES DE MIRANDA. 1954, p. 323. Deve-se afastar, desde já, a concepção de Embora haja semelhanças entre o agir hennenêutico e o proba-
parte da doutrina de que as normas estatais sobre interpretação contratual in1poriam tório, a natureza359 , fmalidade e resultado destas atividades são diferentes:
um determinado procedimento compreensivo. Embora sejam nomrns cogentes (como
será delineado ainda neste tópico), sua apreensão sistemática não impõe um determi-
3
nado procedimento fechado que guie o intérprete rumo à compreensão. 5-1 Gadamer refere que se deve elogiar a compreensão de alguém quando este. julgando,
350
DANZ, 1955, p. 6, 51 e 137. consegue deslocar-se completamente para a plena concreção da situação em que o ou-
351
DANZ, 1955, p. 35 e 93; ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, TI1eodor; WOLFF, Martin. tro atuou, o que não se trata de um saber técnico ou geral, mas de uma compreensão
Tratado de Derecho Civil: parte general. Barcelona: Bosch, 1954. t. I, v. 2, p. 6. de caráter ontológico e situado (GADAMER, 2005, p. 424-425).
355
352
DANZ, 1955, p. 245. Com relação ao sentido usual, cabem duas ressalvas. A primeira, não é necessário que
353 DANZ, 1955, p. 183-184 e 192; BETII, 2007, p. 182-184; BETII, 2003a, p. 126. As a parte conheça os usos sociais para que estes sejam válidos e aplicáveis ao negócio
normas sobre a interpretação não se confundem com as normas supletivas e dispositi- juridico. A segunda, não há lugar para interpretar a declaração de vontade no sentido
vas. Enquanto aquelas servem para desvelar o sentido e configurar a própria espécie usual quando uma das partes tenh[! conhecimento do sentido especial que a outra parte
do negócio jurídico, estas (normas supletivas e dispositivas) servem para delinear os atribuiu (DANZ, 1955, p. 246 e 263-266).
356
efeitos do mesmo negócio juridico. Acerca da aplicação das espécies, tem-se que as DANZ, 1955, p. 29, 49, 86, 183-184, 192,246 e 263-266.
357
normas sobre a interpretação tem precedência lógica sobre as normas supletivas e dis- DANZ, 1955, p. 3, 6 e 7; GADAMER, 2005, p. 444. '
358
positivas, e entre as normas que disciplinam os efeitos da relação contratual e as nor- BETII, 2007, p. 172.
359
mas supletivas, estas tem a preferência. Onde há uma declaração das partes ou um A interpretação não é suscetível de ser objeto de prova, não sendo uma questão de
desenvolvimento integrativo que dela faça parte, em tese não cabe a aplicação das · fato, mas sempre (filosoficamente) de Direito, atinente às tarefas de descoberta do
nomrns que tratem de disciplinar diretamente os efeitos do negócio. (BETII, 2007, sentido, de qualificação dos fatos e de detem1inação dos efeitos juridicos. A aceitação
p. 181-182 e 184). de que a atividade hermenêutica está muito vinculada aos fatos não é suficiente para
Interpretação Contratual 119
118 Felipe Kirchner

proposto por Emilio Betti 363 . A questão é de fundamental importância


a interpretação não busca demonstrar que algo existe e/ou ocorreu, mas
para a hennenêutica filosófica, tanto que a elaboração de uma concepção
visa "aclarar" o sentido e significação daquilo que existe e/ou ocorreu. A
de verdade que ultrapassa os limites rígidos do ideal metódico constitui
prova dos fatos que constituem o caso concreto jamais determina um
um dos impulsos fundamentais da obra gadameriana364 .
efeito jurídico, embora o juízo sobre a existência ou inexistência de de-
terminados fatos concretos constitutivos do negócio altere significativa- De forma sintética, pode-se afamar que o ideal científico con-
mente os efeitos jurídicos, pois se altera a situação em que será construída quanto seja responsável pela libertação de muitos preconceitos e di;solu-
ção de muitas ilusões, não é a única nem a última instância portadora da
a resolução hermenêutica360 .
verdade, razão pela qual a hennenêutica filosófica, embora não questione
Contudo, deve ser frisado que a acepção acerca da significação a metodologia utilizada pela ciência, destrói a sua pretensão de autossufi-
do substrato probatório depende, também, de uma detenninada atividade ciência365. Ademais, a hermenêutica filosófica critica a adoção, pelas
exegética, pois como antes visto, a dimensão hermenêutica se encontra na ciências humanas (do espírito), de um paradigma objetivo nos moldes das
base de toda experiência de mundo. Também na questão da prova o sujei-
ciências naturais 366 •
to cognoscente não trabalha diretamente com a realidade, mas, sim, com
a realidade construída pela mediação de seu discurso e universo henne-
nêutico. Desta feita, além de selecionar a pertinência dos fatos no curso se seus postulados, mas, sim, com a carga de verdade por eles revelada (GADAMER.
da sua própria cognição, é o sujeito cognoscente que (re)constrói todas as 2004, p. 61-62; GADAMER, 1998a. p. 15; QADAMER, 1977a, p. 3; SILVA. Maria
Lnísa Portocarrero. Razão e Memória em H./G. Gadamer. Revista Portuguesa de Fi-
circunstâncias em jogo361 . losofia. v. 56. fase. 3-4. Braga: Faculdade de Filosofia de Braga. jul./dez. 2000a.
Não obstante o que acima foi destacado, cabe mencionar, desde p. 337; MORATALLA, 2003. p. 30-31; VILA-CHÃ. 2000, p. 305). A ciência cartesia-
já, que o enfrentamento de questões de ordem procedimental não deve ser na "só admite como condição satisfatória de verdade aquilo que satisfa= o ideal de cer-
confundido com a adoção de um paradigma metodológico362 , tal como te=a". restringindo o saber ao que é verificável (GADAMER. 2004. p. 61-62; GADA-
MER. 2007b, p. 14; GADAMER. 1998a. p. 167). Juarez Freitas corretan1ente sustenta
que "Gadamer está menos preocupado em compreender corretamente do que com o fa-
se concluir que a própria interpretação deva ser considerada uma questão de fato to de compreender de modo mais profundo e verdadeiro" (FREITAS, 1987, p. 39).
(SANTA MARIA, 1966, p. 117-122). Larenz suscita que só os acontecimentos fáticos 363 '!
SIL A, 2?05, p. ~78. Este é~ P?nto de 1~aior t~1são entre o paradigma gadameriano e a
(questão de fato) carecem de prova, não sendo objeto desta a apreciação juridica dos t~ona b_ett1ana, po1s_a hem1ene~tica filosofica vai de encontro à pretensão de Emilio Bet-
fatos (questão de Direito), que depende essencialmente da interpretação e da conse- ti de,ci:ar 11;111a teon~ geral~ ~terpret~çã? galgada_n? i~eal metódico e de alçar a her-
quente qualificação juridica. Exemplificando a diferença entre estas din1ensões, em meneutica a categona de c1encrn, ao mves de pos1c1011a-la mais ao lado da filosofia
um acidente de trânsito causado por derrapagem em uma curva, as questões de fato O':"ffiIRELES, 20?4! p. 123)._ Sempre preocupado com o controle de correição do proce-
são a verificação do estado do pavimento e da velocidade do automóvel, sendo ques- d1111<:1to_ herm~e!-1t_1co, Be~1- entend~ que "somente na verdadeira inte1pretação a ob-
tão de Direito a qualificação da eventual negligência do motorista. Porém, há inúme- servancza de cnterzos metodzcos, unida a constante consciência da dependência em re-
ros casos em que questões de fato e de Direito estão tão próximas que é dificil, senão
lação a uma perspectiva condicionadora, garante a possibilidade de controle e, nesse
sentido, 1111!ª relativa obj~fi_vidade d? entendimento" (BETTI. 2007. p. XLII e XCV). É
impossível, efetivar uma separação. como ocorre com a verificação da ocorrência de de todo evidente que a cnttca ao metodo não obsta que se considere a existência de al-
um "ruído perturbador do repouso", o qual contém em si a descrição do acontecimen- gumas convergências entre os cânones e métodos de interpretação e os múltiplos aspec-
to e sua apreciação jurídica (LARENZ, 1989, p. 370). tos atendíveis na hermenêutica filosófica (FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 201).
360 DANZ, 1955, p. 44 e 245. No mesmo sentido: SANTA MARIA, 1966, p. 16-17. Erich 36-l Nas três_P~rt.es de V~rdade e Método. que enfocam a experiência da arte, o conheci-
Danz ainda observa que as regras estatais de interpretação dos negócios juridicos não me~to h1stonco, e a ltn%~agem, '!~damer_ demonstr~ a _existência de verdades não pro-
são preceitos probatórios e nada têm a ver com presunções (DANZ, 1955, p. 143). dUZ1das pelo meto.~o l?g1co-anahtico, p01s nesses 111ve1s (arte. história e linguagem) se
361 ÁVILA, 2006, p. 100. configuram expenenc1as produtoras de verdade fora do caráter lógico. Para a teoria
362 Independente da complexidade científica hoje existente, o método se apresenta como gadameriana, tais experiências são vias de aproximação da verdade tão ou mais efica-
2:es do que aquelas conduzidas pela experiência científica. Ernildo Stein refere que o
um conceito uuitário, dizendo com o ideal de conhecimento pautado na ideia de trilhar
~tulo da grande obra de ~adamer é uma provocação des.te. pois pode ser lido no sen-
um deterruinado caminho cognitivo de maneira tão consciente que se toma possível tido de 1:111~ Verdade e ·Metada. Verdade ou .Método e Verdade conh·a o Método. sen-
sempre refazer o mesmo caminhar. Gadamer vê uma profunda restrição daquilo que do esta ult1111a a expressão que capta com maior exatidão o sentido geral do pensa-
pode resultar desta pretensão de verdade do proceder da ciência, pois se a verdade só mento do autor (STEIN. 2004. p. 47 e 82).
se dá pela possibilidade de verificação (seja como for), o parâmetro que mede o co- 365
STEIN, 2004. p. 86.
nhecimento deixa de ser sua verdade, mas a sua certeza. O caminho da autocertifica- l66 A contrap~s1çao . - existente
. ., . humanas e ciências da natureza não é apenas
_entre c1encias
ção impõe o primado da certeza ante a verdade (v.g.: descrição e análise matemática metodologica. mas uma diferença que alcança os objetivos do conhecimento de cada
dos fenômenos), enquanto a hem1enêutica não se preocupa primariamente com a certeza
120 Felipe Kirclmer - foterpretação Contratual 121

Assim, ao embasar a hennenêutica filosófica em critérios diver- v~ ao método cien!ífico, p_oi~, muito embora traga uma compreensão ue
sos do fundamento de certeza defendido pela cientificidade metodológica, nao se reduz ao umverso logico-semântico, não O dispensa369_ q
Gadamer não empreendeu uma cruzada anticientificista 367 e jamais negou A henne~êut!ca ~losófica jamais se apresentou como substituto
a imprescindibilidade do trabalho metodológico nas ciências do espírito, d~ 1;1111ª _met~dologia cientifica. Nesses tennos, a questão central é saber
tendo se iITesignado apenas com relação as suas pretensões monopolis- d1stmgmr ate ?nde a he~1nenêutica, dando conta da racionalidade que
tas368. Mesmo no âmbito interno, a hennenêutica filosófica concede rele- p~~te?de possuir e produz1r, pode se utilizar do método científico, e onde a
c1encrn
•d d pode
370 0 se valer da hennenêutica para dar conta de sua propna ' · cienti-· ·
ramo do conhecimento, razão pela qual aquelas não podem cumprir com o mesmo :fic1 a e . corre que o ~onhecimento fundado na metodologia científica
ideal de disciplina metodológica e de objetividade destas, até mesmo porque as ciên- ~roduz result~dos verdadeiros, mas o método só se torna reahnente produ-
cias naturais deixam de considerar o conhecin1ento histórico (GADAMER, 2004, t1_vo quando vrnc~l~do a questões que não se produzem por meio do conhe-
p. 63; GADAMER, 1998a, p. 153-154; GADAMER, 2007b, p. 185; VILA-CHÃ, ct.mento metodologico, mas da experiência do ser-no-mundo.
2000, p. 305). Mesmo quem considera que todas as ciências estão sujeitas aos mes-
'•• .. •: .. ·· mos critérios de racionalidade, não pode ignorar que os interesses e procedimentos . Embora_ a abord~g~m dos diversos métodos interpretativos não
das ciências do espírito são substancialmente diversos daqueles que animam as ciên- esteja com~r~end!do nos h~mt~s do presente estudo, 0 mesmo não recha-
cias naturais (GADAMER, 2004. p. 368; GADAMER. 1977a, p. 17-18; GADAMER, ça a sua utihzaçao
e. l para atrngir o sentido da relação contr·atual , nao ~ en-
1977b, p. 281; REALE, 1999, p. 203). Gadamer refere que as ciências do espírito, ao trando, de J.Onna a guma, em choque com tal possibilidade A e
lidar com a rica escala do humano, de tudo o que é demasiadamente humano (Nietzs- ~ • t 'f d • , . . . s uemat·i-
q
che), gozam de privilégios que não possui nem a ciência mais exata. Seu objeto não
zaçao sm e •ica o rac10ciruo
h aqm defendido que aceita a relaça~o d.ial e't·ica
entre expenencia
A • A • ,

está submetido a uma ciência explicativa, pois se encontra referenciado a ordens cria- ~ d enneneutica e experiência metódica e'
, o segum · te.. a
das e constantemente modificadas pela intervenção humana, o que impede a formula- cone,1d" usao ·e que o
·fi • alcance da verdade se dá para ale'rn d d"
o proce nnento
ção e perpetuação de garantias teóricas e científicas (GADAMER, 2004, p. 372; GA- meto·1· ico, cientl icista não significa entender que a pra'ti·ca cien · t'fi
1 ica nao
~
DAMER, 2007b, p. 208; GADAMER, 1998a, p. 170). A proposta atual de junção e uti ize metadas que podem ser de grande valia no catninh d
diálogo entre os grupos científicos não se deve ao fato das ciências humanas terem ~ h A 311
• o a compreen-
sao enneneutica
l . . No que diz com o cornbate ao sub.~et·lVISlllO, · por
aumentada sua precisão, mas, sim, ao fato das ciências naturais terem se transforma-
do, admitindo que seu saber está adstrito a uma dimensão temporal e que também se e~emp o, as regras mteipretati'-:as agem como pautas de padronização que
valem de explicações narrativas essencialmente históricas (GADAMER. 1998a, visam a controlar ou gmar a pre-compreensão do intérprete.
p. 153-154; GADAMER. 2007b, p. 185). Ademais, as próprias ciências (humanas ou . Ao _definir o compreender não como um comportamento disci-
naturais) são mais do que o método nelas utilizado. pois como adverte Latour "a ciên- pl!nado e g_inado por regras (procedimento científico) mas como uma
cia não é produ=ida cientificamente, assim como a técnica não o é tecnicamente"
(LATOUR, (s.d.], p. 114). atitude enraizada~~ existência humana (Dasein), a hen~enêutica filosófi-
367
Antes de combater o ideal científico, Gadamer pretendeu acabar com a autoridade da ca transcende a c~~ica_ ao método, :ompendo com a tradição cientificista e
ciência, colocando-a em seu devido lugar ao desmistificar suas pretensões objetivistas converten~o a ':'._tsao 111s,tr:1menta_hsta presente na interpretação clássica
e monopolizadoras. Seu projeto de uma hermenêutica filosófica jamais se apresentou e~ uma_ d1111ensao on!ologi_ca, evitando a "cientifização" da práxis social
corno substituto de uma metodologia científica. O que Gadamer questiona é o método e lillpedrndo que o existencial humano que é o compreender seja reduzido
enquanto garantia de verdade ao reconhecer sua parcialidade no conjunto da existên-
cia humana e de sua racionalidade. Assim sendo, cai por terra a pretensão de objetivi- c~nceito moderno de ciência metódica possa persistir com todo O riaor de s •
dade com o uso de uma determinada metodologia. pois parece ser inegável qúe o mé- aencias que 11 ' , • o uas exz-
º , os, Pº'.·~m, precisemos reconhecer os seus limites e aprender a retomar
todo (seja ele qual for) jamais é neutro ou imparcial (GADAMER, 2004, p. 565). 0
noss~ poder ~ogmhvo, de 11111 saber refletido, que se nutre da h·adição cultural da
368
GADAMER, 2005, p. 15; GADAMER, 2004, p. 50, 297, 368, 508-509 e 535; huma~~zd~de. Nos deverzamos manter isso constantemente em vista junto ao fomento
GADAMER, 2007b, p. 193; GADAMER, 1998a, p. 159 e 167; GADAMER, 1977b, das czenczas pelo homem" (GADAMER, 2007c, p. 25).
369
p. 279; GADAMER, Hans-Georg. Gadamer ln Conversation. New Haven: Yale SIBIN, 2004. p. 31-33.
University Press, 2001. p. 41. Nesse contexto, não se pode dizer, sequer, que a teoria 370
GADAMER., 2003. p. 47-48 SIBIN 2004 10 ·
gadameriana se encontra em tensão com o ethos científico. Refere Gadamer que o ca- t 'li · · · P· · Ap01ando-se no pensamento aristo-
ráter dialógico da compreensão por ele defendido ·•em nada prejudica a extraordiná- :. co_. n~ mesn!~ pass~~en~ Gadamer refere que um método unitário. que abarcasse
ria metodologia da ciência moderna. Quem quiser aprender uma ciência precisa do- ~ienc:s o 7spmto e _c1enc1as da n?~reza. é uma falsa abstração. pois é O objeto que
minar sua metodologia. Sabemos também que a metodologia em si não garante a e:v~. etennm~ o _metodo a ser utilizado. Sendo díspares os objetos das ciências do
produtividade de sua aplicação'" (GADAMER, 2004. p. 263-264). Em outra passa- 371 ARApmt~ e das c1enc1as da natureza. diferentes devem ser suas práticas de abordagem
UJO, 2005. p. 214. . .
gem, o autor assim se posiciona: "parece-me válido para a ciência do homem que o
Interpretação Contratual 123
122 Felipe Kirchner·

próprio meio de intennediação e de comprovação da verdade, razão pela


a um método científico. Evitar que a ciência reduza a riqueza da realidade
qual as ciências só chegam até o limite pennitido por seus métodos. A
e das relações humanas por meio de um discurso simplificador e restritivo
absolutização do ideal científico exerce tanto fascínio que não permite ao
é questão de fundamental importância no campo da interpretação dos
intérprete perceber o estreitamento de perspectiva que o pensamento me-
contratos atividade na qual importa a quantificação de diversas questões
existenci;is verdadeiramente desconsideradas quando o sujeito cognos- todológico traz consigo: a busca da justeza metodológica inibe uma refle-
xão consciente376 •
cente se limita a efetuar processos de subsunção e a aplicar regras e câno-
nes exegéticos372 • Diferentemente do que defende o ideal metódico, o método ja-
mais se constitui em uma estrutura situada fora da historicidade e da cir-
Deve ser considerado que o conhecimento hermenêutico se cons- cularidade hermenêutica, pois o processo metodológico se desenvolve no
titui em uma experiência de verdade que ultrapassa o campo do controle contexto de um determinado processo de interpretação. O método é sem-
da metodoloaia cientifica, pois a certeza proporcionada pelo uso dos mé- pre limitado e dependente da hennenêutica, pois o discurso lógico pres-
todos científicos não é szificiente para garantir a verdade hermenêuticci373 • supõe o universo da compreensão (sendo que o inverso não se mostra
........... A hermenêutica é antes filosofia, não se limitando a prestar contas aos pro- como um premissa sempre verdadeira)377 •
cedimentos que a ciência aplica374 • Embora nas ciências do espírito o mé-
A utilização do método científico ignora os condicionamentos
todo desempenhe papel fundamental, suas significações dificilmente alcan-
que envolvem a compreensão, principalmente o de que toda experiência
çam o ideal de verificabilidade das ciências da natureza375 • acontece no interior de uma tradição, que é linguagem. Sendo itTealizável
O método limita as possibilidades de compreensão ao admitir o ideal de superação absoluta dos condicionamentos históricos do sujeito
como condição satisfatória de verdade somente aquilo que satisfaz o seu cognoscente, é ingênua a pretensão da utilização de uma metodologia
ideal de certeza, restringindo o saber ao que é verificável e impondo co- cientificista nas ciências do espírito que converta a tradição e a linguagem
mo parâmetro de aferição do conhecimento a certeza, e não mais a verda- em meros objetos378 •
de; enquanto a hermenêutica não se preocupa primariamente com a certe-
za se seus postulados, mas, sim, com a carga de verdade por eles revela- Contudo, deve ser ressaltado que o reconhecimento de que a
da. O procedimento metodológico impede a análise de questões cruciais e certeza proporcionada pelá uso dos métodos científicos não é suficiente
decisivas da vida ao abandonar certas abordagens que não satisfazem seu para garantir a verdade nas ciências do espírito em nada diminui a sua
científicidade, significando apenas a reivindicação da legitimação de uma
abordagem diferenciada, que deriva do reconhecimento das peculiarida-
372
Gadamer rotula como sendo uma perspectiva míope a tentativa de interpretação só des próprias dos seus objetivos do conhecimento379 •
com critérios da metodologia científica, pois a tarefa do intérprete jamais se limita a
uma mediação lógico-técnica do sentido do objeto, como se prescindisse da verdade
do significado (GADAMER, 2004, p. 125, 142 e 331). 376
GADAMER. 2004. p. 58-59 e 512; GADAMER. 2007b, p. 203; BIAGIONI, 1983,
373
GADAMER, 2005, p. 29-31, 349-350 e 631. p. 34. Uma metáfora parece interessante. Assim como ocorre com as crianças, que no
374 GADAMER, 2004, p. 369. processo de fonnação se encontran1 mais afeitas à observação ingênua e imparcial da
3 5
1 Nas ciências do espírito floresce uma relação entre o conhecimento da ver~ade e a realidade, a hermenêutica filosófica não refuta de antemão qualquer hipótese, con-
possibilidade de ser dito de fonna própria, o que nem sempre pode ser m~d1do pela frontando todas aquelas que se apresentam no caso concreto com a coisa mesma (ob-
verificabilidade do enunciado. Esta assertiva se toma clara quando percebido que as jeto da interpretação). Já o pensamento cientificista. assim como os adultos, sempre
mais fecundas produções das ciências do espírito (Direito, História, Sociologia, Filo- suficientes de sua maturidade, acaba ignorando possibilidades que, embora possam se
sofia, Antropologia, Psicologia, etc.) estão muito distantes do ideal de verificabilidade constituir em possíveis instâncias portadoras de verdade, de antemão não se enqua-
mediado pelo dogma da certeza ou da certificação pelo método (GADAMER, 2~04, dram em sua lente metodológica. O método impede que o sujeito cognoscente des-
p. 64-65). Essa limitação trazida pela metodologia científica co":eça a, s~r percebida, construa suas concepções e com isso adquira uma nova e singular perspectiva sobre a
também, no âmbito das ciências naturais, como ocorre com a fis1ca teonca moderna, coisa interpretada. O "se condicional" (v.g.: "se tu fosse mn bandido"), sempre pre-
onde as grandes teorias são mais fruto da capacidade criativa do sujeito do que da sente no pensamento infantil, indica a importância do desaprender para que se enxer-
aplicação de teorias científicas, assemelhando-se mais à criação artística do que cien- gue a realidade (coisa mesma) com outras perspectivas.
377
tífica. Como antes salientado, o próprio Albert Einstein sustentou que as hipóteses que SIBIN, 2004, p. 20. No mesmo sentido: REALE, 1999, p. 91.
378
constituem as modernas teorias da fisica são "livres criações da mente", cuja invenção ALMEIDA; FLICHINGER; RHODEN, 2000, p. 112. ·• ·
379
e elaboração requerem dotes imaginativos análogos aos que pennitem a criação artís- GADAMER, 2005, p. 14-15, 29-31 e 631. .
tica (REALE, 1999, p. 194 e 197-198).
Interpretação Contratual 125
124 Felipe Kirchn~r
base de expectativas de sentido que extrai de sua própria relação prece-
Tendo-se abandonado a apreensão metodológica da atividade dente com o assunto383 , razão pela qual pode-se afinnar que compreender
hennenêutica, deve-se referir, inicialmente, que, excetuando a necessida~ significa ser versado na coisa em questão, e somente secundariamente
de de fixação inicial das circunstâncias do caso - as quais passarão a fa- destacar o significado da alteridade da coisa como tal 384 • Interpretação
zer parte, até mesmo, da pré-compreensão do sujeito cognoscente -, não que não contém pré-compreensão é mera adaptação, sendo esta instância
existe um procedimento fixo, no sentido de que a inserção da declaração um dos elementos produtivos da compreensão385 , surgindo apenas a ques-
negocial em dete1minadas categorias jurídicas precederia a avaliação do tão fundamental da separação dos preconceitos legitimos dos ilegitimos386 •
caso e de suas circunstâncias, ou vice-versa. Embora seja imprescindível
a quantificação de elementos fáticos e nonnativos na hermenêutica que nela tenha penetrado, tanto mais rica será a sua pré-compreensão, tanto mais cedo se
volta à concreção da relação contratual, desimporta o momento de sua formará nele uma adequada co1yect11ra de sentido e tanto mais rapidamente se con-
relevância consciente no iter exegético. cluirá o processo do compreender'' (LARENZ, 1989, p. 244).
Ademais, a atividade exegética não se realiza de forma linear - 383 São os preconceitos que fonnam a situação hennenêutíca a partir da qual o intérprete.
dentre as várias possibilidades de conhecimento presentes em sua visão de mundo (hori-
pois a avaliação dos critérios relevantes à interpretação não se dá com a zonte), formula a compreensão (GADAMER, 2004, p. 261; STEIN, 2004. p. 106).
esgotabilidade de etapas precedentes -, mas circular, com constantes idas 38-1 GADAMER, 2005, p. 389-390. O tema demonstra a determinação de Gadamer em
e vindas do projeto prévio de compreensão à coisa mesma, quando se dá reconhecer as insuperáveis barreiras da finitude e da historicidade na compreensão
a incorporação de novos dados ao objeto (aquilo que já foi avaliado não (UNGE, David. E. Introduction to Gaaamer' s Philosophical Hem1eneutics. 111:
se exaure, passando a ser constantemente reavaliado no caminhar ontoló- GADAMER, Hans-Georg. Philosophical Hermeneutics. Berkeley: University of Ca-
gico à coisa mesma). Em termos procedimentais, a teoria gadameriana lifomia Press, 1977. p. XV).
385 Embora os preconceitos estejam vinculados às ideias de autoridade e tradição. não
adota a noção de circularidade hermenêutica, a qual merece ser devida- devem ser vistos de fonna negativa. pois são eles que possibilitam a compreensão,
mente delineada. havendo apenas a necessidade do sujeito separar os preconceitos legítimos dos ilegí-
Primeiramente, cabe referir que não existe interpretação livre de timos (SILVA, 2000, p. 343). Salienta Karl Larenz que "o pré-juí=o, neste sentido ne-
preconceitos380, pois o intérprete nunca se debruça sobre o objeto com a gativo, como uma barreira (10 conhecimento que se transpõe com a precaução pela
questão, não deve, todavia, ser conjimdido com a 'pré-compreensão' 110 sentido da
mente como uma tábula rasa, mas com um conjunto de expectativas e hermenêutica, como uma condição (positiva) da possibilidade de compreender a
preconceitos fundamentais e sustentadores que constituem sua pré- questão de que se trata" (LARENZ. 1989. p. 249). O preconceito dos preconceitos é o
compreensão, valendo-se de detenninados conteúdos e diretrizes subjeti- ideal cartesiano-cientificista, o qual apregoa uma fom1a de raciocínio lógico-
vas e abstratas (que se alteram com o transcurso do tempo )381 para desen- semântico que ignora todos os pressupostos condicionantes da compreensão ( GA-
volver novas proposições382 • O sujeito cognoscente interpreta sobre a DAMER, 2004, p. 215; SILVA, 2000. p. 525-526; REALE; ANTISERL [s.d.], p. 356-
357). Ademais, a detemlinação de sentido mediada pelos preconceitos não depende da
380
vontade humana consciente e não abala sua pretensão de co1Teição (pois o produto da
GADAMER, 2005, p. 367-368 e 631. compreensão deve se lastrear em preconceitos legítimos). assim como a aceitação da
381
REALE; ANTISERI, [s.d.], p. 249 e 251-253. sua produtividade na atividade hennenêutica não transfonna a interpretação em um
382
VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 107-108, 187-188 e 232. Mesmo no campo da meto- fenômeno subjetivo. uma vez que os valores ínsitos na pré-compreensão do sujeito
dologia não há formação de juízos lógicos sem pré-juízos (ENGISCH, 1968, p. 66). cognoscente, sendo balizados pela tradição, não são experienciados com exclusivida-
Assim, se é verdade que o sentido literal possível traça os limites da atividade inter- de pelo mesmo (GADAMER, 2005, p. 358 e 385; BITTAR, Eduardo C. 8. Hans
pretativa, deve-se reconhecer qne "o processo de interpretação dos textos normativos Georg-Gadamer: a experiência hennenêutica e a experiência jurídica. ln: BOU-
encontra na pré-compreensão o seu momento inicial" (GRAU, 2003, p. 37). No CAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Hermenêutica Plural.
mesmo sentido a lição de Karl Larenz: "No início do processo de compreender existe, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 184~185; SILVA, 2005, p. 286).
por regra, uma coryectura de sentido, mesmo que por ve=es ainda vaga, que acorre a 386 Os preconceitos que induzem ao erro derivam da estima ou autoridade pelos outros
inserir-se numa primeira perspectiva, aindajitgidia. O intérprete está munido de uma (impedindo o uso da razão) ou da precipitação do sujeito (in1pedindo o sujeito de in-
'pré-compreensão', com que penetra no texto. Esta pré-compreensão refere-se à coi- gressar no círculo hermenêutico e ocasionando erros no uso da razão) (GADAMER,
sa de que o texto trata e à linguagem em que se fala dela. Sem uma tal pré- 2005. p. 361-362 e 368). A separação dos preconceitos legitimos dos ilegítin1os se dá
compreensão, tanto num como noutro aspecto, seria difícil, 011 de todo impossível, por meio da tradição. da estmh1ra dialógica da pergunta orientada (usa-se tal adjetiva-
formar-se uma '"coryectura de sentido". O inté,prete necessita da sua para se entra- ção porque a pergunta é construída pelo intérprete com base na sua pré-compreensão
nhar no processo do compreender. Pode surgir como insuficiente 110 decurso deste em conjunto com o horizonte do objeto interpretado) e da quantificação da coisa
processo e então terá de ser retificada por ele de modo adequado. Quanto mais longa mesma (legítimos são os preconceitos que estão de acordo com o objeto interpretado.
e pormenori=adamente alguém se ocupa de uma coisa, quanto mais profimdamente
Interpretação Contratual 127
126 Felipe Kirclmer

A hennenêutica contratual é uma tarefa que requer que o sujeito a compreensão depende da pré-compreensão do intérprete "que, por sua ve=, carece
cognoscente detenha diversas competências em seu horizonte 387 , dentre dafimdamentação teórico-constitucional. A Teoria da Constituição converte-se, com
isso, em condição tanto da compreensão da norma como do problema" (HESSE.
os quais se destacam as aptidões de ordem técnica (v.g.: conhecimento 1998. p. 63). Sobre o tema em exame, a pergunta que se impõe é a seguinte: qual o
sobre o sistema jurídico, a dogmática e a jurisprudência), filológica ( ex.: papel e o poder da doutrina hoje? A importância da pesquisa cientifica na prá.r:is fo-
domínio da língua estrangeira em contratos bilíngues) e fática-material rense é decisiva. principahnente em face da pretensão de resguardar a intersubjetivi-
(v.g.: domínio das condições mercantis do negócio jurídico, bem como dade da atividade hermenêutica. A questão é proposta não de maneira emnlativa, pois
dos usos e costumes que envolvem a contratação), abrangendo preconcei- existe uma forte corrente pregando o poder de nma autoridade arbitrária, que vem de
encontro à pretensão de conceder segurança jurídica à aplicação do Direito. Exemplo
tos trazidos pela doutrina388 e, especialmente, pela lei estatal (ex.: inter- emblemático desta situação se encontra na fala do ministro Humberto Gomes de Bar-
ros no voto do AgRg nos Embargos de Divergência em REsp 319.997-SC, do qual foi
auxiliando na sua compreensão), o que desvela uma estrutura dialógica da compreen- relator para o acórdão: "Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto
são (GADAMER, 2004, p. 68 e 247; GADAMER, 2005, p. 396 e 474-476; GADA- for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdi-
MER, 2007b, p. 39). Destacar um preconceito implica suspender a sua validade, o que ção. O pensamento daqueles que não são AJinish·os deste Tribunal importa como orien-
..... : . ·· se realiza fundamentalmente por meio da estrutura da já mencionada pergunta orien- tação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa A1o-
tada, pois no horizonte gadameriano tudo o que é compreendido é compreendido co- reira 011 Athos Carneiro. Decido, porém, c01iforme minha consciência. Precisamos
mo U111a resposta a uma pergunta, e o sujeito só compreende quando compreende a estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É
pergunta para o qual o objeto é resposta (compreender a coisa significa compreendê-la preciso consolidar o entendimento de que Õs Srs. Ministros Francisco Peçanha Mar-
como resposta a U111a pergunta) (GADAMER, 2005, p. 482, 487-489, 492-493, 507 e tins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ de-
510). Por fim, cabe destacar que mesmo os preconceitos ilegítimos (ex.: derivado de cide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses A1inistros. Esse é
Ullla autoridade autoritária) podem se mostrar verdadeiros no curso da atividade her- o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a douh·ina que se amolde a ele. É
menêutica, pois não há U111a relação direta entre ilegitimidade e incorreição. fimdamental e::o.pressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendi-
387 GADAMER, 2004, p. 358-359. É somente com a posse de U111 horizonte e pré- =es de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corqjosamente assumimos a de-
-compreensão legítimos que o intérprete está habilitado a falar de determinado tema claração de que temos notável saberjurídico - uma imposição da Constituição Fede-
de forma objetiva, com propriedade e rigor científicos (HECK, 2007a). ral. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos
388 O problen1a da pré-compreensão assun1e grande importância na atividade prática do constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja". Em rápida
jurista, especiahnente no sistema de civil law, que é tributário de U111 campo dogmáti- análise histórica da importância da doutrina no curso de fonnação do Direito Privado.
co de conhecimento. Devido aos estreitos limites do presente estudo, não se irá anali- tem-se que no período do Direito Romano a autoridade dos jurisconsultos era outor-
sar diretamente a influência da doutrina na criação, interpretação e aplicação do Direi- gada pelo imperador. tendo a doutrina passado a exercer papel mais relevante a partir
to. Porém, deve-se mencionar a autoridade decisiva desta fonte no plano hennenêuti- do Direito Medieval (Idade Média), onde as fontes jurídicas tomaram-se dispersas de-
co, não apenas pelo fato da mesma estruturar e conformar o Direito, mas porque faz vido a fragmentação do poder centralizador do Estado Romano (período do feudalis-
parte integrante da pré-compreensão de qualquer operador jurídico que pratique a sua mo). Superada a fase de nova centralização de poder em estados nacionais, fruto do
atividade com a minima seriedade. Sustenta Maria Cláudia Cachapuz que "'inexiste período compreendido pelo Direito Moderno, o Direito Contemporâneo iniciou com a
separação estanque entre dogmática e inte,pretação, não apenas pelo fato de os lei como sendo uma fonte nonnativa estática (visão fruto do pensamento positivista).
enunciados dogmáticos tornarem-se relevantes para a inte,pretação jurídica, como o que fez recuar a importância dos doutrinadores. Contudo. a erosão da centralidade
pela ideia de o enunciado dogmático existir em fimção de uma inte,pretação, deter- da nomia (superação do positivismo a paiiir da metade do Século XX) deu novo rele-
minando esta e sendo por ela também determinado. (..) A relação entre dogmática e vo a doutrina, em especial no que respeita a necessidade de adaptação do Direito a re-
inte,pretação, por consequência, não deve ser vista como simples complementarieda- alidades sociais cada vez mais complexas. velozes. fragmentadas e líquidas (Zyg111w1t
de entre dois mundos. Evidencia, antes, o esforço conjunto do inté,prete e da própria Bauman). Porém, o que hoje se percebe é uma crise de identidade da doutrina, que
linguagem para permitir que se chegue e uma solução adequada a cada novo caso deixou de enfocar o Direito e a realidade social regulada. passando a se preocupar
concreto, ao mesmo tempo em que se mantenha aberta a estrutura da norma às expe- apenas com a veracidade dos seus próprios argwnentos, tomando-se seletora dos pro-
riências fi1t11ras" (CACHAPUZ, Maria Claudia. Intimidade e Vida Privada no Novo blemas jurídicos relevantes. Assim. hoje identifica-se um enfraquecimento da doutrina
Código Civil Brasileiro. Porto Alegre: Fab1is, 2006. p. 180-182). Em Gadamer há como ciiadora de modelos hermenêuticos. que é a sua função precípua, conforme des-
uma relação essencial entre hermenêutica e dogn1ática (jurídica), embora aquela ocu- tacado por Reale. Como menciona Judith Martins-Costa. os modelos prescritivos são
pe papel dominante, por não ser sustentável a ideia de U111a dogn1ática totalizante e dados pelos legisladores e julgadores, uma vez que suas decisões são impostas e co-
compreendida fora do ato de interpretação, não havendo falar, portanto, em uma dou- gentes, podendo-se falar desse tipo de modelo na doutrina na medida em que deveria
trina perfeita a ser aplicada por meio de simples ato de subsunção (GADAMER, 2005, fornecer modelos hermenêuticos a serem quantificados (e respeitados, ao menos nos
p. 433; MUSEITI, Rodrigo Andreotti. A Hermenêutica Juridica de Hans-George Ga- planos cientifico. argumentativo e/ou politico) pelos legisladores e j1,1lgadores. O evi-
damer e o Pensamento de São Tomás de Aquino. Revista do Centro de Estudos Ju- dente desbalanceamento de ftmções acarreta na doutrina pretendendo constituir mode-
diciários, v. 7, 1999, p. 153). Já Hesse, visando a doutrina constitucional, sustenta que
Interpretação Contratual 129
128 Felipe Kircbner.
horizontes significativa de uma sintonia linguística entre o sujeito e obje-
pretação favorável ao aderente, prevista no art. 423, do CC/2OO2)389 . Se 0 to na qual se realiza a composição da compreensão da interpretação e da
intérprete não vê claramente o sentido da situação objetiva complexa ', ~ 393 '
aphcaçao .
porque lhe são estranhas as relações da vida de que se trata, deve se in-
fonnar com os conhecedores destas relações (v.g.: peritos e técnicos) para A interpretação se dá como um processo de fusão de horizontes,
alcançar os conhecimentos objetivos necessários390 . pois compreender significa descolar e deslocar o horizonte de compreen-
são ao outro sem suprimir o próprio, sendo a fusão representativa da inte-
O já mencionado horizonte é o âmbito de visão que abarca e en-
ração daquilo que se conhece com o que se propõe a conhecer, alcançan-
cerra tudo o que pode ser visto a partir de uma determinada situação her- do a universalidade da compreensão394 .
menêutica391, sendo composto, essencialmente, pela profundidade da pré-
compreensão histórica, cultural e linguística392 do sujeito cognoscente. Cabe ressaltar que, no âmbito da situação objetiva complexa, a
Também por este prisma se percebe que a operação hennenêutica não declaração negocial encerra uma verdadeira fusão dos horizontes dos
realiza o conhecimento exaustivo do objeto, mas promove uma fusão de contratantes acerca do negócio jurídico regulado pelo instrumento. 395
Este, sendo o produto final do acordo de vontades, não encampa nenhuma
... : . ··
vontade singularizada, mas, sim, a vontade unificada dos contratantes
los prescritivos e na jurisprudência tentando fommlar modelos hermenêuticos. Sendo que, sendo algo bastante diverso da mera soma das vontades, não pode
certo que doutrinar não se resume ao estabelecimento de critérios para garantir segu-
rança, a omissão nesse desiderato pelos doutrinadores acaba relegando a tarefa exclu- ser desmembrada, especialmente tend0 como parâmetro a vontade parti-
sivamente para os julgadores, os quais formam uma jurisprudência completamente as- cular de qualquer das partes. O contrato implica a participação em um
sistemática, a qual deve ser sistematizada pela análise doutrinária. No que respeita aõ significado comum no acontecer da comunhão de autonomias, sendo
objeto específico deste estudo, Tércio Sampaio Ferraz Júnior menciona que a doutrina exatamente sobre essa vontade unificada que o intérprete se debruça em
está atrelada à razão (ratio), a qual, no jogo de poder da interpretação, se situa na for- sua tentativa hennenêutica, e é sobre este horizonte que procura fundir o
ça vinculante do objeto, razão pela qual também a doutrina pode e deve estabelecer
seu.
vinculações ao hermeneuta.
38Q Os métodos e cânones de interpretação estão situados na pré-compreensão e na No processo de compreensão, a unidade de sentido a ser alcan-
autoridade da tradição (jurisprudência), auxiliando no controle do subjetivismo çada na atividade hermenêutica se amplia em círculos concêntricos396 ,
(MARTINS-COSTA, 2005b, p. 136). Embora não se constituam em condição ne-
cessária ao compreender, as regras legais e doutrinárias sobre interpretação contra-
3Q3 ROCHA 2000, p. 325.
tual agem como pautas de padronização que visam controlar ou guiar a pré-
-compreensão do intérprete, contribuindo na tarefa de separar os preconceitos legi- J9-I ALMEIDA: FLICHINGER: RHODEN. 2000. p. 176. O deslocamento à alteridade do
timos dos ilegítimos. . objeto pennite que o sujeito cognoscente tome consciência da individualidade irredu-
390 tível do outro._ascer~dendo su~ c?mpreensão a uma universalidade mais elevada, supe-
DANZ, 1955, p. 100. O encontro do intérprete com o objeto não se dá en1 utn contex-
radora da particulandade do mterprete e do objeto. fazendo surgir algo que antes não
to exterior ao tempo e ao espaço que constituem seu horizonte, mas, sim, em um tem-
havia (GACKI. 2006, p. 20).
po e lugar detenuinados (PALMER, 1997, p. 140). No campo da interpretação dos 395
Refere Gadamer que "o inté1prete e o texto possuem cada qual seu próprio 'hori=011•
contratos, o intérprete, de uma forma ou de outra, sempre possuirá um certo horizonte,
te' e todo compreender representa umaji1são desses hori=ontes" que. mesmo separa-
porém o que a atividade hem1enêutica exige é a existência de um horizonte legítimo,
dos como pontos de vista diferentes. fundem-se em um único (GADAMER, 2004.
que abarque as competências técnicas e a realidade socioeconômica em que imersa a
p. 132-405). Guardadas as devidas particularidades teóricas, Betti não apenas aceita a
relação contratual.
391 existência de um horizonte hem1enêutico e histórico (embora utilize a expressão hori-
GADAMER, 2005, p. 399. O horizonte jaiuais se apresenta verdadeiran1ente fechado,
=onte ~spiri~ua~ ~o sujeito pensante) (MEGALE. 2005. p. 147). como alcança a ideia
não detendo limites rígidos, pois ele é "algo no qual trilhamos o nosso caminho e que
do cara!er_drnlogico da compreensão e da fusão de horizontes quando afirma que "só
conosco /a= o caminho", se deslocando ao passo de quem se move, mesmo no que pelo tra1111te de formas representativas (. ..) os homens podem chegar a entender-se
tange ao aspecto histórico, que tan1bém forma e conforma o horizonte do sujeito cog- entre eles e constituir, nas relações recíprocas, comunhões de espiritualidade'º
noscente (GADAMER, 2005, p. 400). (BETTI. 2007, p. XXXIV: BETTt 2003a. p. 79). '
392
Gadamer adverte que "o pensamento central das discussões que se seguem [em Ver- 396
Gadamer entende que o círculo hennenêutico não detém natureza fom1al, não sendo
dade e .Método} é o de que aji1são de hori=ontes que se deu na compreensão é o ge- metodológico, objetivo ou subjetivo, pois descreve um momento estruh1ral ontológico
nuíno desempenho e produção da linguagem" (GADAMER, 2005, p. 492). Assim, o da compreensão (GADAMER, 2005, p. 388-389), servindo para mediar a interação
intérprete e a linguagem (que estrutura sua compreensão) se movem em um único ho- ~ntológíc~~dialética en~e a consciência histórica do intérprete e a abertura interpreta-
rizonte, que é onde o intérprete trilha seu caminho e com ele constitui e estrutura tal ca-
tiva penmtida pelo obJeto. Contudo, embora o ideal mediado pela noção do círculo
minho (GADAMER, 2005, p. 402: GADAMER, 1998a, p. 120: STEIN, 2004, p. 23).
Interpretação Contrahial 131
130 Felipe Kirchner
A inte1pretação não é "o ato", mas "a atividade" ou processo de cor-
pois o movimento da compreensão vai constantemente do todo para a relação .entre palm ras, frases, a tradição, o contexto do caso, e as
1

parte e desta de volta ao todo, que deve ser compreendido a partir do fimções da norma ou do instituto jurídico em causa, bem co1110 a cor-
relação entre aqueles e os valores jurídicos implicados. Como ativi-
individual e o individual a partir do todo, de tal sorte que a concordância dade que é supõe, portanto, 11111 'ir e vir' entre o texto, os fatos e o va-
de cada particularidade com o todo é o correspondente critério para a lor que a ordem jurídica atribui, normativamente, aos fatos regulados
397
justeza da compreensão (movimento parte-todo-parte) , gerando por textos 399 •
concepção prévia de pe1feição (antecipação da coerência pe1feita), que
constitui em uma pressuposição que guia o compreender, indicando que A antecipação de sentido acerca de detenninada disposição con-
só é compreensível aquilo que realmente apresenta uma unidade de senti- tratual400 deve ser confinnada na situação objetiva complexa e esta na
do completa398 • redação do instrumento representativo da autonomia das partes. Havendo
Merece destaque a lição de Judith Martins-Costa, que aponta a um choque entre a antecipação de sentido e o texto e/ou contexto contra-
circularidade hennenêutica entre texto, fatos e valores atribuídos pela tual, o intérprete deve propor um esboço posterior de sentido, uma outra
ordem jurídica em conexão com a necessidade de um raciocinar concre- interpretação a ser também submetida ao texto e/ou contexto contratual.
Se esta se mostrar novamente inadequada, cabe ao intérprete a fonnula-
tamente por meio de critérios de ponderação capazes de conjugar a reali~
ção de quantas forem necessárias até alcançar a compreensão a partir da
dade do negócio com as escalas normativas dadas pelo sistema jurídico:
coisa mesma, pois a circularidade hermenêutica401 consiste no retomo
Vista ao modo processual, a atividade hermenêutica inicia com a qua- reflexivo e contínuo do projeto prévio à coisa interpretada.
lificação dos fatos (em si mesma já resultante de uma prévia inte1pre- No campo da interpretação dos contratos, o movimento da
tação) - isto é, com a sua inserção em determinadas categorias jurí-
compreensão parte-todo-parte alcança a verificação da sistematicidade
dicas ou institutos - prossegue com a confrontação entre os dados
normativos (resultantes daquela qualificação) e o caso; continua com interna e externa da situação objetiva complexa402 , o que remete às dire-
a m,afiação do caso e de suas circunstâncias à luz de elementos axio-
lógico normativos; e finaliza com a ponderação (que inclui a organi- 390 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 130.
zação de todos esses dados) segundo escalas dadas pelo sistema, só 400 A antecipação de sentido que guia a interpretação não ocorre como um ato de subjeti-
então se podendo afirmar - e em vista do caso concreto - qual é o vidade, pois se trata de um acontecer que se dá a partir de uma comunhão com a tradi-
sentido da regulação jurídica proposta por um texto abstratamente ção (MOLLER, 2006, p. 87). Contudo, não se pode olvidar que a mesma se trata de
vazado. (. ..) um golpe de audácia do sujeito que espera ser confim1ado no objeto (GADAMER,
2003, p. 101). O conhecimento circular é diferente do linear pregado por concepções
hem1enêutico se afaste da metodologia científica, não se pode negar qne as conse- positivistas, pois depende de constantes idas e vindas e de atos de desprendimento por
quências pragmáticas do conceito são qualificadoras de um detem1Ínado método de parte do intérprete (HECK, 2007a).
abordagem do objeto interpretado. Nesse sentido a observação de Emildo Stein, para 401 Talvez o mais correto fosse dizer que para Gadamer a compreensão não apresenta
quem "no método hermenêutico a relação entre sujeito e objeto se dá numa relação uma estrutura tipicamente circular (o que indicaria um movimento contínuo de retomo
de circularidade" (STEIN, 2004, p. 26). ~o ponto de partida), mas espiral (LARENZ. 1989, p. 243; ROCHA, 2000. p. 324).
397 GADAMER, 2005, p. 261 e 385-386; HESSE, 1998, p. 62. Não é possível ao intér- Insito a esta noção está a ideia de que o processo de desenvolvimento hermenêutico.
prete se desvencilhar da circularidade da compreensão, razão pela qual a questão não sendo essencialn1ente dialético, nunca retroage ao início, uma vez que cada exegese
é como sair ou evitar o círculo, mas, sim, como estar nele de um modo adequado, ad- conduz a um novo patamar, mais alto e abrangente. Esse fenômeno é bem representa-
quirindo consciência dos prejuízos ilegítimos desconhecidos (LAMEGO, 1990, do pictoricamente pela metáfora geométrica do círculo espiralifonue, referido por
p. 135; RAMOS, Ana López. H. G. Gadamer. Revista Eletrônica A Parte Rei, n. 22. Alexandre Pasqualini, o qual possui círculos que jamais se fecham, sendo uma es-
Disponível em: <http://www.aparterei.com>. Acesso em: 25.09.2007). Enfocando o pécie de "redemoinho que está eternamente subindo e alargando a harmónica 'tri-
plano da constituíção do ser humano, corrobora com o movimento da compreensão formidade' (. ..) entre o sistema, a comunidade dos juristas e o hori=onte da tradi-
parte-todo-parte a observação do ministro Carlos Britto, em voto proferido no proces- ção" (PASQUALINI, Alexandre Correa da Câmara.' O Papel Sistemático Trans-
so de extradição 986: "todo indivíduo é 11111 microcosmo: se faz parte de 11111 todo social, formador da Hermenêutica Jurídica Especialmente no Direito Público. Disserta-
é também 11111 todo à parte; se faz parte de algo, é também algo à parte" (Ext ção (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito. Pontificia Universidade Católica do
986/Bolívia, Rei. Min. Eros Roberto Grau, Tribunal Pleno STF,j. em 15.08.2007). Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 1999. p. 68).
402
398 GADAMER, 2004, p. 72, 74 e 77. GADAMER, 2003, p. 99-100 e 107-108. Essa O círculo hem1enêutico abarca questões internas do fenô1neno interpretativo~ dizendo
pressuposição diz com a coerência da interpretação em seu sentido formal (expressão com aspectos intrínsecos do objeto (parte-todo-parte). mas também externas. da rela-
adequada de pensamento) e material (verdade).
h1terpretação Contratual 133
132 Felipe Kirchner
alcançada, analisando-se tanto o prisma fonnal, do qual se infere que tais
trizes do pensamento sistemático, es~ecial_m:nte_ n~ que respei~a à i,~sepa- nonnas também são leis em sentido estrito (o fato de darem instrnções ao
rab ilidade da normatividade das dzspos zçoes 1urzd1cas cont, atuais. No intérprete para proceder de determinado modo não priva sua natureza de
processo exegético, o intérprete parte da ideia do todo c<:_ntido n~ situa- nonna estatal), quanto o material, pois, em face do princípio democrático
ção objetiva complexa para chegar ao :fra~nento que sao as c~aus~las e da constituição do Estado de Direito brasileiro, seria um contrassenso
contidas no instrumento, de onde deve partir, novai:1~nte, em dtreçao a supor que o legislador, no exercício do poder legislativo, estivesse a emi-
uma compreensão mais clara e completa do todo ongmal, alcan~ando a tir meros conselhos quando da edição destas regras406 • Ao encontro destas
objetividade do conhecimento mediante avanços e re~uos no ~amu:uio da considerações é o pensamento de Carlos Ferreira de Almeida:
compreensão. O significado dos termo~ da declaraçao _negocial s? po~e
ser compreendido na conexão de sentido com a totah?ade ~a situ?~ªº Todas estas regras constantes de fontes formais de direito são verda-
objetiva complexa, sendo que a significânci_a desta tambem esta condicio- deiras normas jurídicas. Podem corresponder 011 não a máximas de
experiência, podem ter natureza ir/juntiva ou dispositiva, podem cons-
nada pelos tennos utilizados na redação do mstrumento. tituir uma rede 111ais ou 111enos apertada de cânones hermenêuticos,
Em se tratando da discussão acerca do procedimento interpreta- mas essa flexibilidade não lhes retira natureza jurídica, como não
tivo mister se faz enfrentar algumas questões atinentes às regras estatais. perdem natureza jurídica quaisquer normas que inspirem na prática
que 'influenciam a atividade interpretativa, ?s quai~, embora n_ão consti1';1a?1 social (. ..) ou que exijam na aplicação 11111 elevado grau de liberdade
0 conteúdo do contrato, integram o conteudo da mterpretaçao do negocio de apreciação407• •

jurídico. As nonnas estatais sobre hermenêutica contratual são de fim-


O primeiro grande debate diz com a natureza dessas regras. damental importância não apenas na constituição do significado do obje-
Embora sejam normas metódicas ou de segundo grau (normas sobre nor- to, mas na própria confonnação deste. Exemplificativamente, refere
404
mas)4º3 e detenham um elevado grau de liberd~de de apre:iação , ~e~e- Francisco Marino que o art. 112, do CC/2002, ao prever que a declaração
-se abandonar a concepção de que as regras de mterpr~taç~o dos ,n~goc10s necrocial não é aquilo que .resulta do sentido literal da linguagem, mas o
o
jurídicos contidas na lei esta!ª! tratam-se, d~ mer~s ~:hretnzes ~ogicas ou resultante da intenção consubstanciada na declaração, passa a integrar a
práticas que se encontram ~UJ~ttas ao ar~it.:10 ~o ~n!erprete, po_1s em ver- própria definição de negócio jurídico408 •
dade constituem-se de autenticas prescnçoes JUnd1camente vmculantes, .
As questões tratadas nos parágrafos antecedentes detêm enonne
com as quais o intéprete é obrigado a se conformar405 • Esta conclusão é
relevância no plano processual409 e na própria confonnação da atividade
ção sujeito-objeto, mediando essa relação (projeto prévio a ser confirmado na coisa) j~ 406 ROPPO. 1988. p. 170: DANZ, 1955. p. 135-136: MIRANDA. 1989, p. 170-172: SAN-
(ESSER, 1983, p. 131-133). Nesses tennos, interpretar é uma tarefa ond_e se cons- 15 TA MARIA, 1966. p. 36-37 e 42: REALE, 1997b. p. 5: ZANCHIM. Kleber Luís:
troem sujeito e objeto, sendo a ~erdade _revelad: na ~tegr_aç~o desses d?ts mund?s, {';; ARAÚJO, Paulo Dóron Rehder de. Interpretação Contratual: o problema do processo.
que se movem no nexo entre realtdade e mtegraçao, ~01s o mterprete modifica a c01sa · ln: FERNANDES, Wanderley. Contratos Empresariais: fündamentos e princípios dos
e esta modifica o sujeito, que a compreende e a expenmenta como verdad~. _ ,. contratos empresariais. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 176 e 185-186: MARINO, 2003. p.
403 Emílio Betti menciona que não se pode confundir as ~o_rmas sobre a mterpretaçao 71; IR.TI. Natalino. Principi e Problemi di lnterpretazione contrattuale. ln: IR.TI. Nata-
com as nonnas interpretativas. Enquanto estas, na ~ondiçao de no~a~ que pret~dem lino (Org.). L 'lnterpretazione dei Contratto nella Dottrina Italiana. Padova: Casa
enunciar interpretações autênticas, tomam-se parte mte~ante da p!opna norma mter- Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 2000. p. 610: BISINGHlNI. Alessandra:
pretada, as normas sobre a interpretação emanadas da let estatal ~ª? se en~on~~ no D'ALESSANDRO. Luigi. L'Interpretazione dei Contratto nella Scuola Sistemática. ln:
mesmo nível da norma interpretada, e somente o resultado da atividade d1sc1plinada IR.TI, Natalino (Org.). L'Interpreta.zione dei Contratto nella Dottrina Italiana. Pado-
por ela "passa a fazer parte" da nonna interpretada (~ETII, 20~7, p. 178-179?. va: Casa Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM), 2000. p. 59: D'ALESSANDRO.
404 Sobre O espaço de conformação das norma~ s_obre m~erpretaç~o, adverte Ench Danz Cario. Violazione delle Nom1e di Interpretazione dei Contratto e Ricorso per Cassazio-
que O legislador não pode forumlar os princ1p10s gerais das leis em suas normas com ne. ln: IR.TI, Natalino (Org.). L 'lnterpretazione dei Contratto nella Dottrina Italia-
tamanha claridade que destas se possam derivar2 mediant~ sin!~les dedução, ª? c?~se- ••. na. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani (CEDAM). 2000. p. 143-144 e 153.
quências para todos os casos especiais que estao sob o 1mpeno daqueles pm1c!p10s. './ 407
Tampouco é incumbência do legislador ditar uma nom1a concr~ta para_ c~da relaçao es- FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 176.
408
pecial da vida. Não há ordem j~dica cap~ ?e ~ol?~ar nas maos do JUIZ tantas regras MARINO, 2003, p. 72.
409
concretas como são os casos traztdos pela praticaJundtca. DANZ, 1955.' p. 130-1?~·.. A questão tratada tem enom1e relevância no campo processual pôrque importa na
405 Cesare Grassetti menciona a vinculatividade das regras interpretativas subs1d1anas recepção (ou não) dos recursos pelos tribtmais superiores quando questionada a ofensa
(GRASSETTI. 1983. p. 55-56).
hlterpretação Contratual 135

134 Felipe Kirchner-


códigos, dois grandes gmpos de preceitos. O primeiro, com precedência
jurisdicional (embora a atividade hen~1er~êutica não esteja li~nit~da a/por lógica, diz com as regras sobre a interpretação direta da comum intenção
estas dimensões). Não obstante a maiona das regras estatais nao seJam das partes, as quais prescindem, para sua aplicação, da existência de lacu-
nonnas imperativas (deixando de se1:ern aplicada: em r~zã? ?ºs. us~s nas, obscuridades ou ambiguidades na declaração. Já o segundo grupo
sociais ou de ato expresso da autonomia das partes) 10, sua rnc1dencia nao pressupõe um contrato que não seja absolutamente unívoco em termos de
depende do livre arbítrio do juiz/intérp~ete. ?1~ ~e tratando d~ 1:egr~s de regulação da situação fática41 4, remetendo a outros critérios (fontes de regu-
Direito material determinativas dos efeitos Jund1cos dos negoc10s mter- lação diversa da livre e voluntária detenninação dos interesses privados)415 •
pretados, a negativa de vigência. ou ~ má aplicação ~as regras. estat~s Contudo, como critério de classificação pode-se acolher as fun-
sobre interpretação dos contratos 1mphca a configuraçao de uma rnfraçao ções desempenhadas pelas normas estatais no âmbito da interpretação do
411
passível de ser corrigida pelos Tribunais superiores • contrato, o que assenta os elementos nonnativos nos seguintes grupos416 :
Enfrentada a questão da natureza, cabe discorrer sobre quem (1) regras próprias sobre a interpretação dos contratos (ex.:
são os destinatários das regras de interpretação estatais. Mesmo havendo arts. I 12, 113, 114, 423, 424, 819 e 2.035, parágrafo único,
..... : .. ·· dissenso doutrinário, deve-se entender que as regras, .em sendo leis de do CC/2002417 ; art. 47, do CDC;418 e arts. 130 e 13 I, do re-
caráter geral, se dirigem a todos, tanto àqueles sujeitos que se encon~am vogado Código Comercia1419 ) 42 º;
submetidos a ônus, como ocorre com os interessados que necessitam
perceber com exatidão a extensão dos víncu!os assumi_dos 5partes e t~r- normas contidas nos arts. 112 e 113, do CC/2002 (MARINO, 2003, p. 6 e 207). Cesa-
ceiros), quanto àqueles submetidos a detenmnadas obngaçoes profissio- re Grassetti aponta a existência de um princípio de hierarquia nas nonnas interpretati-
nais que envolvem diretamente a atividade henne?ê~tica, o que ocorre vas estatais no sistema italiano (GRASSETII, 1983, p. 225-235).
com profissionais do Direito chamados a fixa~· o s1g111ficado ~ o alc:mce 414 Esta circunstância nada tem a ver com a clareza da declaração negocial, pois, como
dos preceitos jurídicos contratuais a serem aplicados a detenmnada situa- visto ante1iormente - no tópico "O objeto e os limites da atividade hem1enêutica" -. a
qualificação de clara concedida à detem1Í!1ada diretriz nonnativa somente pode ser
ção de fato412 • um resultado do processo interpretativo, e 11ll11Ca um dado preexistente e pressuposto,
Outro aspecto que merece destaque é o de que as normas esta- o que ignoraria o caráter construtivo da exegese.
tais sobre a interpretação dos contratos não estão todas si~a~as e_m um 415 BETIL 2007, p. 366-367 e 386-387.
416 Neste momento, onde mencionadas as nomias estatais que se encontram dispostas,
mesmo plano413 • Em uma primeira diferenciação, deve-se d1stmgurr, nos
principalmente, no âmbito do Código Civil de 2002, cabe tecer uma breve considera-
ção. Ainda que se possa sustentar que o novo diploma legal se mantém arraigado a
a lei federal (ex.: não utilização ou afronta às regras dos arts. 112, 113 ou 423, do uma matriz de ordem positivista (FORGIONL Paula. hlterpretação dos Negócios Em-
CC/2002). Sobre o tema na doutrina italiana: D'ALESSANDRO, 2000, p. 156-159. . presariais. ln: FERNANDES. Wanderley. Contratos Empresariais: fundamentos e
41 º DANZ, 1955, p. 140 e 182. princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 124), tendo regu-
-111 DANZ, 1955, p. 1 e 135-136. Nestas passagens o autor afinua que as regras in!e~re- lado timidamente as nonuas próprias sobre a interpretação dos contratos - de forma
tativas dos negócios jurídicos contidas nas leis do Estad? ~ão s~o ?P~n?s autenticas geral (sem atentar para as especificidades de detenninados ramos da ciência jurídica.
regras jurídicas, mas as nom1as mais importantes para a atividade Junsd1c1onal. como ocorre com o Direito Empresarial) (FORGIONI, 2007, p. 147) e em menor nú-
412 BETII, 2007, p. 176-177; AMARAL, 2006, p. 63 e 90; SANTA~, 19~6,
mero, quando comparado com ordenamentos estrangeiros (v.g.: italiano e francês)-.
p. 44. No que tange aos sujeitos submetidos a ob~ga~ões concernentes a atividade_ m- deve-se considerar que a edição de novas disposições (ex.: arts. 113, 156. 157, 421,
422 e 423) e o novo pano de fundo axiológico da codificação (sistematicidade, opera-
terpretativa, que são aqueles chamados a ~ar o s1~~fi~~do e o ~lcance dos prece~t~s
bilidade, socialidade, e eticidade) (REALE, Miguel. O projeto do novo Código Ci-
jurídicos a serem aplicados, Betti e a doutnna maJontana menc1onan1 apenas o~ JUI·
vil. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 1999: MARTINS-COSTA. Judith. A Boa-Fé no Direi-
zes. Porém não há razão para que deixem de ser elencados nesta mesma categona os
to Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 247) alteraram significativa-
mediadore~ (cuja atividade vêm ganhando enorme importância nos últimos tempos),
mente a sistemática e a aplicação das regras estatais sobre a hermenêutica contrahtal.
os advogados públicos e privados, os defensores públicos e os promotores, t~to 417
quando estes agentes assumem detemúnado caso para ? ingresso _d~ ~ª, ~emanda JU· Para facilitar a consulta, cabe transcrever as disposições legais mencionadas: "Art.
dicial, como quando enútem um parecer sobre detenmnado negocio Jund1co ou rela- 112. Nas declarações de vo11tade se ate11derá mais à i11te11ção nelas consubstanciada
ção comercial. Não é o grau de vinculabilid~de das _co~siderações de cada um dos pro- do que ao sentido literal da linguagem"; "Art. lJJj· Os negócios jurídicos devem ser
fissionais o critério decisivo para qualquer d1ferenciaçao. inte,pretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração"; "Art. 114. Os
-11 3 A doutrina suscita que o sistema brasileiro, a exemplo do alemão e difere~ten:ente de
negócios jurídicos benéficos e a renzíncia i11te1pretam-se esh"itam(!nte"; "Art. 423.
outros ordenamentos, como o francês e o italiano, traz poucas normas legislativas ge- Quando houver 110 contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-
rais sobre a interpretação do negócio jurídico, contando diretamente apenas com as
Interpretação Contratual 137
136 Felipe Kirchne~

(3) normas imperativas positivas ou preceptivas: são as regras


(2) normas imperativas negativas ou proibitivas: são as regras
estatais que incidem na relação contratual independente-
que vedam a previsão de determinadas disposições, limi-
mente da vontade das partes impondo detenninadas nonna-
tando o espaço de autonomia das partes (ex.: arts. 286, 318,
tizações (ex.: arts. 265,313,314,317,319,413,421,422,
426 e 289, do CC/2002421 ); 491, 572 e 597, do CC/2002422 );
(4) normas permissivas: regras que admitem a previsão de de-
se-á adotar a inte,pretação mais favorável ao aderente"; "'Art. 424. Nos contratos de terminadas matérias pelas pattes, mas que para sua real
adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente adi- efetivação dependem da expressa manifestação de vontade
reito resultante da nature:::a do negócio"; "Art 819. Afiança dar-se-á por escrito, e não
admite inte,pretação extensiva"; "Art 2.035. (. ..) Parágrafo único. Nenhuma co,n,en-
dos contraentes (ex.: arts. 316, 329, 483 e 486, do
ção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos CC/2002423 );
por este Código para assegurar a/unção social da propriedade e dos contratos". (5) normas supletivas (default rufes): regras que incidem na
418
"Art. 47. As cláusulas contratuais serão inte,pretadas de maneira mais favorável ao relação contratual em caso de omissão (intencional ou não)
........ consumidor". Embora não se restrinja ao aspecto contratual, cabe mencionar a regra
por parte dos contraentes424 (ex.: a1ts. 170, 233, 287, 325,
hem1enêutica presente no art. 4°, III, do diploma consumerista.
419
"Art 130. As palavras dos contratos e convenções mercantis devem inteiramente
entender-se segundo o costume e uso recebido no comércio, e pelo mesmo modo e ser objeto de contrato a herança de pessoa viva"; "Art. 289. Nulo é o collfrato de
sentido por que os negociantes se costumam explicar, posto que entendidas de outra compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes afixação
sorte possam significar coisa diversa"; ··Art. 131. Sendo necessário inte,pretar as do preço''.
cláusulas do contrato, a inte,pretação, além das regras sobreditas, será regulada so- 422
"Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei 011 da vontade das partes";
bre as seguintes bases: 1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme "Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida,
à boa/é, e ao verdadeiro espírito e nature:::a do contrato, deverá sempre prevalecer à ainda que mais valiosa"; "'Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto presta-
rigorosa e restrita significação das palavras; 2 - as cláusulas duvidosas serão enten- ção divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por
didas pelas que o não forem, e que as partes tiverem admitido; e as antecedentes e partes, se assim não se ajustou"; "Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, so-
subsequentes, que estiverem em harmonia, explicarão as ambíguas; 3 - o fato dos brevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de
contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a sua execução, poderá o jui::: con·igi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure,
melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo quanto possível, o valor real da prestação"; ''Art. 319. O devedor que paga tem direi-
contrato; 4 o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da_ mesma to a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada"; "Art
nature:::a, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, pre- 413. A penalidade deve ser redu:::ida equitativamente pelo jui::: se a obrigação princi-
valecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palm,,-as; 5 - pal tiver sido cumprida em parte, 011 se o montante da penalidade for manifestamente
nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, de- excessivo, tendo-se em vista a nature:::a e a finalidade do negócio"; "Art. 421. A li-
cidir-se-á em favor do devedor". Cabe mencionar que, não obstante a revogação ex- berdade de contratar será exercida em ra:::ão e nos limites da função social do con-
pressa do dispositivo, parte significativa da doutrina entende, com acerto, que a regra do trato"; ''Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
mencionado art. 131 continua exercendo influência como pauta de interpretação das contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé"; "Art. 491.
avenças empresariais. A perda de sua cogência não ilide a importância de seu trato no Não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa antes de
âulbito do Direito Empresarial. Nesse sentido: FORGIONI, Paula. Contrato de Distri- receber o preço"; "Art 572. Se a obrigação de pagar o aluguel pelo tempo que falta,·
buição. São Paulo: Revista dos Tribllllais, 2005. p. 524; FORGIONI, 2007, p. 118. constituir indeni:::ação excessiva, será facultado ao jui::: fixá-la em bases ra:::oáveis'';
420
Assim como no ordenamento italiano, o Direito brasileiro convive com a existência de "Art. 597. A retribuição pagar-se-á depois de prestado o serviço, se, por convenção,
cânones subjetivos (art. 112, do CC/2002) e objetivos (art. 113, do CC/2002) - caben- ou costume, não houver de ser adiantada, 011 paga em prestações'".
423
do aqui mencionar a crítica realizada acerca da nahrreza objetiva também da regra do ''Art 316. É lícito convencionar o a111izento progressivo de prestações sucessivas'';
art. 112 -, o que remete a mesma problemática apresentada no Código Civil Alemão ''Art. 329. Ocon-endo motivo grm1e para que se não efetue o pagamento no lugar de-
(§§ 133 e 157). A doutrina majoritária entende não haver llllla relação de contrarieda- terminado, poderá o devedor fa:::ê-lo em outro, sem prejuí:::o para o credor"; "Art.
de entre as disposições, mas sim de plena complementaridade. 483. A compra e venda pode ter por objeto coisa atual 011 fi1tura. Neste caso, ficará
421
"Arl 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a nature:::a da sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de
obrigação, a lei, 011 a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não concluir contrato aleatório"; "Art. 486. Também se poderá deixar afixação do preço
poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obriga- à taxa de mercado 011 de bolsa, em certo e determinado dia e lugar".
424
ção"; "Art 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro 011 em moeda es- Entende Cesare Grassetti que as nonnas supletivas de interpretação dizem com a
trangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda detemlinação dos efeitosjmidicos (GRASSETTI. 1983. p. 59).
nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial"; "Art. 426. Não pode
Interpretação Contratual 139
138 Felipe Kirclmei:
Visto a conformação das regras estatais no sistema jw-ídico na-
326, 327, 331, 393, 406, 484, 488, 490, 591, 596 e 610, §§ cional, cabe abordar os métodos de interpretação trazidos pela doutrina,
1º e 2º, do CC/2002425 ); embora este estudo não esteja voltado ao exame e construção de uma
(6) normas conceituais ou qualificadoras: regras que se limi- vertente metodológica da atividade hennenêutica.
tam a nominar determinadas particularidades e definir a Sobre o tema, cabe delinear inicialmente que os meios, métodos
apreciação de determinadas condutas e previsões contra- e cânones de interpretação não possuem uma subordinação ou hierarquia
tuais (ex.: arts. 111, 121, 264, 369, 392, 481, 565 e 579, rígidas, pois seus elementos constitutivos se combinam reciprocamente
do CC/2002426 ). 427
00 iter exegético que opta por utilizá-los de forma consciente • A cone-
xidade é tão profunda que Emilio Betti chega a questionar a existência de
42 5"Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsisti- uma diferenciação ontológica entre os distintos meios inte1pretativos:
rá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se
houvessem previsto a nulidade"; ·'Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange Infelizmente, ainda é amplamente difundido entre os juristas um modo
os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título de ver mecânico e atomista, que desintegra as sucessivas fases do
011 das circunstâncias do caso"; "'Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão
de 11111 crédito abrangem-se todos os seus acessórios"; "Art. 325. Presumem-se a car-
processo inte,pretativo e as trata igualmente como "meios" a serem
go do devedor as despesas com o pagamento e a quitação; se ocorrer aumento por fa- empregados indiferentemente ou segundo a oportunidade contingente.
to do credor, suportará este a despesa acrescida"; "Art. 326. Se o pagamento se hou- Dessa maneira, ainda se costuma distinguir uma inte,pretação literal
ver de fa::er por medida, ou peso, entender-se-á, no silêncio das partes, que aceitaram ou gramatical de uma inte,pretação lógica e, depois, uma inte,preta-
os do lugar da execução"; "Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do deve- ção histórica, sistemática, etc., como se nada tivessem em comum uma
dor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da com a outra; (..) Em particular, é 11111 absurdo estabelecer ou supor
lei, da nature::;a da obrigação 011 das circunstâncias"; "Art. 331. Salvo disposição le- uma espécie de concorrência e de "desacordo" entre os vários crité-
gal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor rios inte1pretativos, como se estes devessem ser igualmente represen-
exigi-lo imediatamente"; "'Art. 393. O devedor não responde pelos prejuí::os resultan- tados como pretendentes em luta e11h·e si, aspirando a uma aplicação
tes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles respon- exclusiva. (...) Na verdade, não são tendências distintas e divergentes
sabili::;ado"; "'Art. 406. Quando os juros moratórias não forem convencionados, ou o
que se encontram em desacordo entre si, mas sim sucessivos momen-
forem sem tcrw estipulada, 011 quando provierem de determinação da lei, serão fixa-
dos segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos de- tos que conspiram para um único fim e são chamados a cooperar pa-
vidos à Fa::enda Nacional"; ·'Art. 484. Se a venda se reali::;ar à vista de amostras, ra chegar a um resultado comuntn 8•
protótipos 011 modelos, entender-se-á que o vendedor assegura ter a coisa as qualida-
des que a elas correspondem"; "Art. 488. Convencionada a venda sem fixação de contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato
preço ou de critérios para a sua determinação, se não houver tabelamento oficial, en- aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde
tende-se que as partes se s1/jeitaram ao preço corrente nas vendas habituais do ven- cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei .. ; "A11. 481. Pelo
dedor"; "Art. 490. Salvo cláusula em contrário,ficarão as despesas de escritura e re- contrato de compra e venda, 11111 dos contratantes se obriga a transferir o domínio de
gistro a cargo do comprador, e a cargo do vendedor as da tradição"; "Art. 591. Des- certa coisa, e o ouh·o, a pagar-lhe certo preço em dinheiro"; "A11. 565. Na locação
tinando-se o mútuo afins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado 011 não, o
de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capi- uso e go::;o de coisa não fimgível, mediante certa retribuição .. ,. "Art. 579. O comodato
tali::;ação anuaf'; ·'Art. 596. Não se tendo estipulado, nem chegado a acordo as par- é o empréstimo gratuito de coisas não fimgíveis. Pe,fa::-se com a tradição do objeto".
tes, fixar-se-á por arbitramento a retribuição, segundo o costume do lugar, o tempo 427
FERRARA, 1987, p. 138: ANDRADE, 1987, p. 30-31: GADAMER. 2004, p. 24.
de serviço e sua qualidade" "Art. 610. (.. .) § 1° A obrigação de fornecer os materiais Embora não haja uma hierarquia fixa, a doutrina indica que a interpretação literal de-
não se presume; resulta da lei 011 da vontade das partes. § 2º O contrato para elabo- ve iniciar e conformar. de certa maneira. a atividade hermenêutica, o que importa de-
ração de 11111 projeto não implica a obrigação de executá-lo, 011 de fiscali::;ar-lhe a cisivamente à exegese contratual, onde ganha importância a declaração firmada pelas
execução". partes. Além de destacar essa complementação e restrição recíprocas entre os métodos
426 '"Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias 011 os usos o auto- de interpretação. Karl Larenz indica sua utilização rio contexto de um processo de
ri::;arem, e não for necessária a declaração de vontade expressa"; "Art. 121. Conside- concretização (LARENZ. 1989. p. 395 e 417). Cabe destacar, ainda. que o uso conscien-
ra-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, su- te dos cânones e métodos de interpretação pode se realizar no âmbito da circularidade
bordina o efeito do negócio jurídico a evento ji1fllro e incerto"; "Art. 264. Há solida- hermenêutica gadameriana que, embora critique a visão monopolista da metodologia,
riedade, quando na mesma obrigação concorre mais de 11111 credor, 011 mais de 11111 não a rechaça por completo. , .
428
devedor, cada 11111 com direito, 011 obrigado, à dívida toda"; "Art. 369. A compensa- BETII, 2007. p. 219-220.
ção efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fimgíveis"; "Art. 392. Nos
Interpretação Contratual 141
140 Felipe Kirchner ·
Feitas estas importantes ressalvas, cabe mencionar que, no uso
No contexto da celeuma doutrinária, o que parece claro, não ape- dos cânones hermenêuticos doutrinários, o intérprete possui um maior
nas para a he1menêutica filosófica, é a insuficiência dos ditos métodos espectro de liberdade para trabalhar com as máximas comuns da experiên-
interpretativos. Corno salienta Konrad Hesse, "os métodos de inte1pretação cia ou da hennenêutica, pois não se encontra vinculado por uma regra
individuais, considerados em si, não são diretri=es szificientes. (...) f! ouco legal435 • Os cânones interpretativos não assumem a condição de normas
claro é (...) a relação dos métodos individuais um para o outro. E uma jurídicas, embora comunguem com estas na pretensão de auxiliar o de-
questão aberta qual deles, cada vez, deve ser seguido ou dada a preferên- senvolvimento da atividade hennenêutica436 •
cia, de todo, quando eles conduzem a resultados diferentes',4 29 • Como refe- Sendo imperiosa a realização de urna escolha dentre as inúme-
re Karl Larenz, a defesa pelo uso de determinados métodos na atividade ras opções encontradas na doutrina, aqui serão apresentados os cânones
cognitiva deve-se à tentativa de controlar essa mesma atividade, com a de Emilio Betti437 e as clássicas regras de interpretação de Pothier, não
pretensão de que a mesma ocorra "de modo seguro e comprováve/"430 , o apenas pela importância teórica dos autores e, consequentemente, de suas
que posiciona a questão no campo da argumentação, e não propriamente da considerações, mas também porque estas teorias são paradigmáticas e
atividade hermenêutica, onde as condicionantes já visitadas impedem por bastante representativas do pensamento doutrinário em geral, tendo
completo a concretização dos ideais de certeza das ciências naturais. influenciado decisivamente as obras que lhes sucederam. Enquanto os
Mesmo em se entendendo que os métodos de interpretação se tra- cânones de Emilio Betti se aproximam_ de nonnas principiológicas acerca
tam de meros ''pontos de vista metódicos que devem ser (...) tomados em da atividade hennenêutica, as regras de interpretação de Pothier são ver-
consideração para que o resultado da inte,pretação deva poder impor a dadeiras instruções práticas para a consecução da tarefa exegética.
pretensão de correcção"431 , deve-se admitir que, diferente do que indicam Como já foram apresentadas algumas das principais premissas
seus objetivos - conceder segurança e previsibilidade à atividade interpre- da teoria de Emílio Betti438 , cabe iniciar esta exposição dos tipos de me-
tativa-, o seu uso conduz à arbitrariedade432 , em razão da inexistência de todologias delineando os cânones hermenêuticos propostos pelo jusfilóso-
urna rnetanorma que indique a prevalência de qualquer deles perante o caso fo italiano439, os quais servem de contraponto para a crítica do método
concreto. As regras metodológicas de interpretação somente teriam real fonnulada por Gadamer440 •
significação se definissem em que situações o intérprete deve utilizar os
determinados cânones, ou seja, porque em um dado contexto um determi- é imposto ao sujeito cognoscente o ônus de levar em conta os diferentes critérios de
nado método deve ser o escolhido433 • Nesse contexto, os métodos e câno- interpretação e fimdamentar as razões porque. em um caso específico. considera al-
nes dão apenas urna explicação limitada de corno o sujeito compreende, ou gum como determinante. o que passa a ser um problema atinente à argumentação
melhor, de como este fundamenta a sua compreensão434 • (LARENZ, 1989, p. 418).
-1 35 BETTI. 2007. p. 172.
436 LARENZ, 1989. p. 295.
429 HESSE, 1998, p. 58. 437 A atualidade do pensamento bettiano e sua importância para a interpretação contrac-

-1 3o LARENZ, 1989, p. 384. tual é de todo evidente, como destacam Francesco Gambino (GAMBlNO. Franceso.
431 LARENZ, 1989, p. 384. L'Interpretazione dei Contratto in Emilio Betti. /11: IRTI, Natalino (Org.).
432 Mesmo se do ponto de vista teórico se entendesse que os cânones e métodos de inter- L'Interpretazione dei Contratto nella Dottrina Italiana. Padova: Casa Editrice
pretação sejam formulados com todo rigor e plenih1de, eles nunca poderiam atuar me- Dott. Antonio Milani (CEDAM), 2000. p. 232) e Giuseppe Zaccaria (ZACCARIA.
canicamente, já que em sua aplicação sempre subsiste um coeficiente imponderável e 1996. p. 162).
438
inapreensível de intuição e destreza pessoal (ANDRADE, 1987, p. 10-11), o que se As principais questões dizem com seu conceito das formas representativas (que se
pode relacionar com a vinculabilidade da pré-compreensão e a ausência de separação constituem no seu objeto da interpretação), visto no tópico "O objeto e os limites da
entre sujeito-objeto presentes no paradigma gadameriano. Como a interpretação se dá atividade hermenêutica"; sua visão fragmentária (não-unitária) do fenômeno henne-
no horizonte do intérprete, não se pode conceber que esta corresponda à aplicação de nêutico embasada em critérios de funcionalidade. visto no tópico "A delimitação do
um método exterior ao mesmo. embora se possa entender que os cânones interpretati- horizonte hem1enêutico'': e sua noção de que a interpretação se constitui em um pro-
vos componham o horizonte do sujeito cognoscente (SILVA, 2005, p. 278-279). cesso essencialmente reprodutivo. visto no tópico "O caráter criativo. construtivo e
433 GRAU, 2003, p. 39 e 104-105. Este problema é reconhecido até mesmo por autores de produtivo da atividade hem1enêutica".
matriz positivista, como se infere da obra de Hans Kelsen (KELSEN, 1998, p. 391-392). m O reducionismo da hennenêutica ao método. promovido por Enúliô.·Betti. é expres-
-1 3-1 O caráter de arbitrariedade deste proceder metódico somente não é mais combatido na samente criticado por Gadamer, embora este tenha reconhecido a importância da teo-
prática jurídica porque, além de aceitar uma margem de livre apreciação do intérprete,
Interpretação Contratual 143
142 Felipe Kirchner_
a apresentação individual de cada postulado, o que atende a critérios di-
Visando uma solução que leve em consideração os ideais de se- dáticos, deve-se precisar que há urna relação de complementação e restri-
gurança jurídica e c01Teção, sem recair nos equívocos de pensamentos ção recíproca entre os cânones hennenêuticos, cttja utilização só pode se
extremados441 , Emilio Betti entende garantir o êxito epistemológico da dar de fonna conjunta. ·
interpretação não apenas com a organização e sistematização da atividade O primeiro cânone hennenêutico proposto é o da autonomia do
hennenêutica nos vários campos do saber442 , mas também com o condicio- objeto ou da imanência do critério hermenêutico, sobre o qual refere
namento da interpretação mediante a utilização necessária de um ferra- Betti que "em verdade, se as formas representativas, que constituem o
mental de ordem metodológica443 , composto por quatro cânones henne- objeto da interpretação, são essencialmente objetivações de uma espiri-
nêuticos. Como o jusfilósofo italiano trabalha com a existência de uma tualidade que nelas está posta, é claro que devem ser entendidas segundo
separação entre sujeito e objeto, os dois primeiros cânones (autonomia e aquele espírito que nelas está objetivado"445 • O postulado induz a neces-
totalidade-coerência) se referem a este pólo da relação hermenêutica sária subordinação do intérprete à coisa ao apontar que o sentido deve
(formas representativas), enquanto os outros dois (atualidade e adequa- corresponder ao que se encontra no dado e dele se extrai, e não ao que
........ ção) dizem com o sujeito cognoscente444 • Embora a exposição contemple para ele se transfere a partir de fora446 •
Nesses termos, Emilio Betti defende a submissão do henneneu-
ria do jusfilósofo italiano no desenvolvimento de um sistema de regras que descreves-.
sem o procedimento metodológico em uma teoria geral da interpretação (GADAMER, ta à coisa interpretada, no sentido de que "a forma representativa deve
2005, p. 18; GADAMER, 2004. p. 369). As observações do filósofo alemão acerca da ser entendida na sua autonomia, segundo a sua própria lei de formação,
teoria bettiana derivam das já mencionadas diferenças dos pontos de partida e chegada sua necessidade, sua coerência e sua racionalidade interiores", e não
de cada um dos pensamentos. Enquanto Gadamer busca o caráter ontológico da com- conforme um sentido extrínseco que ao intérprete pareça mais próximo
preensão e o encontro com o ser no processo hermenêutico, Betti procura o que é prá- ou adequado447 • Esta consideração reflete, ao seu modo, a formulação
tico e útil ao intérprete, visando delinear normas que estabeleçam a diferença entre
uma interpretação certa e errada (ALVARENGA, 1998, p. 80). gadameriana da força vinculante do objeto interpretado, pois ambos os
44 ° Cabe salientar que existem inúmeros pontos de contato entre as correntes de pensa- conceitos demandam uma abertura do intérprete projetada para o desco-
mento. Os cânones interpretaticos. mesmo com as especificidades próprias de estarem nhecido e para à alteridade da coisa, o que implica que aquele deixe valer
inseridos em um pensamento henuético como o de Emilio Betti, realçam e resguar- algo contra suas próprias convicções. O que realmente diferencia as con-
dam importantes aspectos defendidos pela hermenêutica filosófica, embora por cami-
nhos diversos. A possibilidade de aproximação das teorias por meio dos cânones her-
cepções não é o teor do postulado, mas sua consequência dentro de cada
menêuticos foi ressaltada por Juarez Freitas (FREITAS, Juarez. A Melhor Interpreta- vertente teórica. No paradigma bettiano a autonomia do objeto é radicali-
ção Constitucional "Versus" a Única Resposta Correta. 111: SILVA, Virgílio Afonso zada, pois a mesma é conduzida à noção de reconstrução e ao abandono
da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 320). do caráter criativo do procedimento hennenêutico, o que resta sintetizado
441 A correta apreensão da teoria metodológica de Emilio Betti passa, inicialmente, pela por Betti com a menção ao brocardo sensus 11011 est inferendus, sed effe-
análise de sen principal objetivo dogmático, que é o de refutar as posições extremadas rendus (o sentido não deve ser imposto, mas extraído).
das teorias positivistas e da escola do direito livre. Para o doutrinador italiano o positi-
vismo, ao privilegiar a segurança juridica e a certeza do Direito, acabou adotando uma
equivocada concepção estática e anti-histórica do ordenan1ento que colocou em risco o ocupando-se do sujeito cognoscente, visam assegurar a correição da decisão herme-
ideal de correção das decisões, enquanto a escola do direito livre, ao se afastar do aspec- nêutica, o que nos limites internos da teoria bettiana cumpre com seu desiderato de
to negativo da influência da teoria positivista, acabou falhando no sentido oposto, dei- permitir o relacionamento dos fatos aos elementos nonnativos sem que qualquer dos
xando muita liberdade ao operador em sua tarefa de correção da lei, o que acabou por ideais supramencionados seja comprometido (PESSOA. 2001. p. 75-76 e 112-113).
ignorar a necessária subordinação do intérprete à nonna e, consequentemente, resultou -1-1 5 BETII, 1990a, p. 305.
446
no aniquilamento das garantias da segurança jurídica e da certeza do Direito (PESSOA, REALE; ANTISERI, [s.d.], p. 265: Essa fonnulação atende ao conceito das formas
2002, p. 18-19, 22-25, 36-37 e 99; PESSOA, 2001, p. 53, 56, 60-63 e 75). representativas, uma vez que a abertura do sujeito à alteridade se dá perante a "sllJ)e•
+1 2 BETII, 1990a, p. 59, 157 e 304. rioridade do pensamento imanente à declaração em relação ao docu111e11to abstrata•
443
A teoria bettiana é ressaltada por Gadamer como sendo um "importante trabalho" e mente considerado". ou seja, a atividade interpretativa se debruça sobre o espírito que
uma "grande obra" (GADAMER, 2004, p. 455 e 496), o que efetivan1ente demonstra se manifesta ao sujeito cognoscente por meio da fonna, e não com o conceito que
o reconhecimento da importância das considerações de ordem procedimental aqui possa ser atribuído à forma ao se fazer abstração da função representativa da qual é
analisadas. instrumento (BETII, 2007. p. XLIII-XLIV). , .-
+1 4 BETII, 1990a. p. 304. Enquanto os dois primeiros cânones, ao se dirigirem ao objeto, -1-17 BETII. 2007. p. XLIV.
preocupam-se com as garantias da segurança e da certeza do Direito, os dois últimos,
144 Interpretação Contratual 145
Felipe Kirchne_r
(...} desde o início do processo inte1pretativo tem-se um progresso
O segundo cânone, denominado de totalidade e coerência dâ · gradual em direção à compreensão, dos elementos individuais aos
consideração hermenêutica, paite "da premissa de que o todo do discur,: núcleos em que se organi=am, até o todo que neles se articula. A com-
so, como de toda manifestação do pensamento, é gerado por um único preensão, inicialmente provisória, vai-se ape1feiçoando, corrigindo e
espírito e a um único espírito e sentido tende a retornar e limitar-se" dÕ integrando com a crescente extensão do discurso, do qual o inté,prete
que se extrai "uma ilação fimdada na correspondência entre iter genético toma posse, de modo que somente ao final os elementos individuais,
e iter hermenêutico: o critério de extrair dos elementos singulares o sen- todos entrelaçados, resultam quase imediatamente revelados e repre-
tido do todo e de entender o elemento singular em fimção do todo do qual sentados em contornos precisos e perspícuos455 .
é parte integrante"448 • Este postulado identifica a correlação dinâmica de Ademais, em nível normativo parece haver uma profunda rela-
coerência (concatenação produtiva em movimento) que existente (e deve cão do cânone da totalidade e coerência com os postulados do pensamen-
necessariamente existir) entre as partes constitutivas de toda manifestação to sistemático, como expressamente refere Betti com a ideia de sistema
de pensamento e a sua referência comum ao todo a que pertencem, o quê· coerente456 , o que resta consubstanciado na redação do artigo 1.363, do
indica o esclarecimento da significância hermenêutica tanto no entendi~ Código Civil Italiano457 • Este aspecto embasa a noção de concreção nor-
menta da unidade do todo por meio de cada parte, quanto no entendi.meu-. mativa exposta no presente estudo - que extrapola a sistematicidade in-
to do valor de cada elemento em viitude da unidade do todo, ou seja, na terna com a defesa da existência de uma sistematicidade externa e bilate-
relação bilateral449 entre o todo e os seus elementos constitutivos450 • ral-, até porque o filósofo italiano refere que o resguardo da totalidade e
Este postulado possui grande relevância na fonnação do objeto coerência abrange toda manifestação do pensamento, o que encampa
hermenêutico contratual enquanto situação objetiva complexa451 e na tanto as normas jurídicas estatais quanto as declarações individuais458 •
necessidade de concreção, pois prega que "o significado, a intensidade · O terceiro cânone, voltado ao resguardo do papel da subjetivi-
a nuança de uma palavra só podem ser entendidos no contexto em que dade na atividade hermenêutica, é o da atualidade do entender,
palavra foi dita ou se encontra, o significado e o valor de uma proposi-<,~:
ção e daquelas que se associam a ela só podem ser compreendidos pelo· ·· pelo qual o inté,prete é chamado a repercorrer em si mesmo o pro-
nexo recíproco e pelo coryunto orgânico do discurso a que pertencem''451• ,·, cesso criativo e, assim, reviver a partir de seu interior e sempre resol-
No caso da interpretação contratual, defende Betti que o objeto da ativi- i ver na própria atualidade um pensamento, uma experiência de vida
dade hermenêutica não se resume à totalidade individual dos contraentes, ·_ que pertence ao passado, ou s<ifa, a introduzi-lo como fato de experiên-
cia própria, por meio de uma espécie de transposição, no círculo da
mas se expande até a totalidade do ambiente social em que se encontra própria vida espiritual, em virtude da mesma síntese com que o reco-
inserida a relação obrigacional453 • nhece e o reconsh·ói4 j 9 •
Por partir de uma origem comum, que é o pensamento de Sch-
leiennacher, o presente preceito se aproxiina do movimento da compreen- Entende Betti que "aquilo de que nossa mente toma posse en-
são gadameriano parte-todo-parte que compõe a noção de uma circulari- tra, por essa mesma razão, na totalidade orgânica do mundo de repre-
dade hermenêutica que inicia por um projeto prévio fonnado a paitir da sentações e de conceitos que carregamos em nós e dela se toma, por uma
pré-compreensão do sujeito cognoscente454 • Ao encontro dessa conclusão, espécie de assimilação, uma parte viva, szifeita ao seu próprio desenvol-
o entendimento de Betti:
455 BETI1, 2007, p. XLVII.
456
448
BETI1, 1990a, p. 309. BEITI, 2007, p. XLIX-L.
449 457 "Art. 1363. Inte,preta=ione complessiva delle clausole. Le clausole dei contralto si
A relação é bilateral, pois se as partes do texto são iluminadas pelo sentido do texto
inteiro, o texto em seu conjunto é compreendido no confronto continuo com suas par- inte1pretano le une per me==o delle altre, attribuendo a ciascuna il senso che risulta
tes e no continuo exame delas (REALE; ANTISERI, [s.d.]. p. 267). dai complesso dell'atto (1419)." ·
458
450
BEITI, 2007, p. XLVI-XLVII e 37. BETII.2007.p. 189.
459
451
BEITI, 2007, p. XLVII e 37. BETI1, 2007, p. LII: BEITI, 1990a, p. 314. A inversão do processo criativo é um dos
452
BEITI, 2007, p. XLVII. traços mais marcantes da teoria bettiana, influenciando decisivamente o caráter repro-
453
BETII, 2003b, p. 198. dutivo e declaratório desta corrente de pensamento hem1enêutico (GAMBINO, 2000,
454 p. 228).
PESSOA, 2002, p. 108.
I11terpretação Contratual 147
146 Felipe Kirchner ·
cânone em exame se aproximam tanto da historicidade da compreensão
460
vimento e às suas vicissitudes" • O sentido constante na forma represen- defendida por Gadamer 469, quanto da concepção de que a aplicação surge
tativa não chega ao intérprete pronto e acabado, de fonna passiva e me- como elemento integrante do procedimento hennenêutico.
cânica, cabendo ao sujeito reconstruir e reproduzir o sentido com sua Por fim, o quarto postulado, chamado de cânone da adequação
sensibilidade própria461 • Deste aspecto dois pontos merecem destaque. do entender ou da correspondência e consonância hermenêutica, é aque-
Em primeiro lugar, quando Betti afirma que o sujeito se apro- le ''pelo qual o inté1prete deve esforçar-se para colocar a atualidade que
pria do sentido contido na forma representativa com as "categorias de está vivendo em íntima adesão e harmonia com o incitamento que (..) lhe
sua mente"462 em uma "atitude, ao mesmo tempo, ética e rejlexiva"463 , provém do objeto, de modo que um e outro vibrem em pe1feito unísso-
acaba remetendo ao mundo de representações e conceitos que o intérprete no"470. Além do interesse vivo e presente, o entendimento do objeto de-
possui dentro de si464 , o que importa em um reconhecimento da importân- manda uma abe1tura espiritual do sujeito que lhe permita colocar-se na
cia dos preconceitos. Contudo, existe uma inegável dissociação com a perspectiva mais favorável à descoberta da compreensão, o que se carac-
teoria gadameriana, já que Betti critica expressamente a concepção do teriza por uma posh1ra de humildade, afinidade e abnegação das preten-
filósofo alemão acerca dos preconceitos465 , refutando o caráter produtivo sões pessoais com relação ao objeto471 • A utilização do postulado depende
.· '•
dos mesmos e defendendo a necessidade do intérprete prescindir de tais de uma transferência a uma outra espiritualidade a partir da atualidade
elementos466 • presente (conceito próximo ao de situação hennenêutica), o que demanda
O segundo aspecto é o fato de que o cânone em exame determi- uma abertura mental, teórica, congenial e fraterna ao objeto472 •
na ao intérprete a realização de uma tarefa profundamente importante na Este cânone promove uma limitação à liberdade garantida pelo
teoria bettiana: adequar o elemento normativo à realidade social do mo- cânone da atualidade do entender473 , prescrevendo a forma como o intér-
mento de sua aplicação467 • Em tennos teóricos, o postulado assegura a prete deve repercorrer o sentido criativo, qual seja, livrando-se de seus
especialidade da função nonnativa da interpretação, na qual o sujeito preconceitos474 (aspecto negativo) e ampliando seu horizonte para seco-
deve ir além da reconstrução de sentido, sintonizando a ideia originária locar em íntima harmonia com a mensagem que é enviada pela forma
com a atualidade presente. Dito figurativamente, para além do necessário representativa (aspecto positivo), fato que remete ao cânone da autono-
movimento reconstrutivo do sujeito em direção ao objeto (promovido mia do objeto.
pelos cânones da autonomia e da totalidade-coerência), o postulado da Da análise conjunta dos dois cânones voltados ao sujeito se in-
adequação (conjuntamente com o cânone da atualidade do entender, que fere que nunca há uma anulação do henneneuta e de sua atualidade -
será visto a seguir) gera um movimento do objeto em direção ao sujeito, sequer nos processos interpretativos voltados à tradução (de contratos em
aca1Tetando a evolução do Direito e a manutenção de sua eficácia nonna- língua estrangeira, por ex.:), que são sempre muito restritos e limitados475
tiva por meio da quantificação das transfonnações socioculturais, aspecto -, pois se a atualidade do sujeito vai em direção ao objeto, a historicidade
que Betti denomina de inte1pretação histórico-evolutiva468 • Nesse contex- deste também vem em direção à atualidade do henneneuta. Como refere
to, guardando suas especificidades próprias, os elementos trazidos pelo Gadamer, Betti reconhece que "a vinculação do inté,prete com sua pró-

460 BE'ITI, 2007, p. LIII. 469 A relação entre as correntes de pensamento é expressamente reconhecida por Gada-
461 BETII. 2007, p. LIII. mer (GADAMER, 2004. p. 128) e por Betti, que utiliza o tenno historicidade e refere
462 BETII, 2007, p. LIII. a necessidade de resguardo deste aspecto com relação ao sujeito e ao objeto (BETII.
463 BETII, 1990a, p. 318: BETII, 2007, p. LV. 2007, p. LN).
470
464 MEIRELES, 2004, p. 128. BETII, 1990a, p. 319-320.
471 REALE: ANTISERI, [s.d.], p. 268.
465 BETII, Emilio. L'Ermeneutica come Metodica Generale delle Scienze dello Spi-
472
rito. Roma: Cittá Nuova, 1990. p. 88-89. BETII, 2007, p. LV
473 PESSOA, 2002, p. 111; PESSOA, 2001, p. 72. .
466 BETII, 1990a, p. 318; BETTI, 2007, p. LV. 474 É nessa vertente teórica que Betti não assume o caráter produtivo dos preconceitos, se
4 67 PESSOA, 2002, p. 90.
posicionando de maneira oposta a Gadamer, como já frisado.
468 BETII, 2007, p. LVIII-LIX, LXIII-LXVII, CII-CIII, 5 e 42. Este aspecto é tão caro ao 475
BETII, 1990a, p. 324.
filósofo italiano que, em sua teoria, se constitui em um caráter lógico da interpretação
jurídica.
hlterpretação Contratual 149
148 Felipe Kirclmer.
Quarta Regra: aquilo que pode parecer ambíguo em 11111 contrato se
pria posição representa um momento integrante da verdade hermenêuti- inte1preta pelo que é de costume do país482 •
ca"476. Na teoria bettiana não há qualquer pretensão de anulação da subje- Quinta Regra: o uso tem uma autoridade tão grande como ponto para a
tividade do sujeito, mas apenas uma aspiração de que este faça calar seus inte1pretação das convenções que, em todo contrato, as clá11s11las que
desejos pessoais com relação aos resultados da interpretação477 • lhe são usuais são subentendidas mesmo que não venham expressas 483 •
Apresentado este paradigma, cabe mencionar as regras de Sexta Regra: deve-se inte,pretar uma cláusula pelas outras cláusulas
contidas no documento, precedentes ou subsequentes a tal cláusula484 •
Pothier, as quais tratam de presciições de ordem prática. Como adverte
Sétima Regra: em caso de dúvida em uma das cláusulas, a inte1preta-
Judith Maitins-Costa, desde que atualizadas em sua forma expressiva e ção deve ser dada contra aquele que estipulou a coisa, em desonera-
deslocadas de seu fundo ideológico voluntarista, estas regras clássicas de ção daquele que contraiu a obrigação485 •
interpretação auxiliam a concreção478 • Assim sendo, cabe, a seguir, men-
cionar pontualmente as nonnas propostas:
doação fanilliar obedece a uma racionalidade distinta de um contrato de financiamen-
Primeira Regra: o inté1prete deve buscar nas convenções qual foi a to interempresarial) (MARTINS-COSTA. 2005b. p. 148).
intenção comum das partes contratantes, antes de buscar o sentido 482 Feito contrato com um viticultor para cultivo de terra sem declinar os valores do
gramatical dos termos 479 • pagamento, considera-se que estes são os de uso e costume na região (POTHIER,
Segunda Regra: quando uma cláusula é suscetível de duplo sentido, 2001, p. 98). Judith Martins-Costa sustenta que a ahialização da quarta regra de
deve-se melhor entendê-la conforme o sentido que possa ser lógico, e Pothier (usos do país) indica que a boa-fé.nos contratos deve ser interpretada confor-
não conforme o sentido do qual resulte não ser possível estipulação me os usos habituais do local da contratação ou do tráfico jurídico (§ 242, do Código
alguma4 80 • Civil Alemão) (MARTINS-COSTA, 2005b. p. 146).
483 No contrato de compra e venda o vendedor deve garantir e defender o comprador de
Terceira Regra: quando em um conh·ato os termos são suscetíveis de evicções. ainda que não haja cláusula nesse sentido (POTHIER. 2001, p. 98-99). Ju-
duplo sentido, deve-se entendê-los segundo o sentido que melhor con- dith Martíns-Costa salienta que a quinta regra volta-se à integração de lacunas. situando
venha à natureza do contrato481 • como critério também os nsos que devem ser considerados subentendidos, como ver-
dadeiramente deve ser subentendido o contexto em cada texto. e em cada trecho de
476 qualquer linguagem (MARTINS-COSTA, 2005b. p. 146).
GADAMER, 2004, p. 456.
477 m Em llll1 contrato de compra e venda as partes convencionan1 na lª cláusula que "a
REALE; ANTISERI, [s.d.], p. 268.
478
propriedade está sendo vendida livre de todos os ônus reais". e na 2ª cláusula que "o
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 146. Nesse sentido, remete-se o leitor para as vendedor só entende garantir por seus atos". A 2ª cláusula serve para interpretação da
interessantes observações de Paula Forgioni sobre as regras de Pothier: FORGIONI, priuleira, restringe sua generalidade, denotando que o vendedor garantiu apenas que
2007,p.113-117. ele não impôs nenhum ônus ao seu imóvel, estando desobrigado de todos aqueles que
479
As partes convencionaram o aluguel de uma pequena acomodação em uma casa, cuja pudessem ter sido in1postos por outros e não fossem do seu conhecimento (POTHIER,
parte restante é ocupada pelo locador. A locação é renovada nos seguintes termos: 2001, p. 99). Como refere Judith Martins-Costa, a sexta regra é determinativa da in-
"dou minha casa em aluguel a fulano por tantos anos. pelo preço do aluguel anterior". terpretação sistemática, não de um "sistema imanente'', mas 110 sentido de que "uma
Embora "minha casa" em sentido gramatical signifique a casa inteira, é visível que a cláusula se interpreta pelas outras", sendo que a ratio desta nonna pode ser transposta
intenção das partes foi a de renovar o aluguel do quarto já alugado, devendo essa in- para os grupos de contratos e para as cadeias contratuais. indicando que nesses casos
tenção prevalecer sobre os tennos do contrato (POTHIER, Robert Joseph. Tratado "llll1 contrato se interpreta pelo outro" (MARTINS-COSTA, 2005b. p. 148).
das Obrigações. Campinas: Servanda, 2001. p. 96). A regra mencionada foi acollúda 485 Em um contrato de arrendamento se estipula o pagamento com a entrega de certa
na redação do art. 112, do CC/2002. quantidade de trigo, sem especificação do local. A cláusula deve ser interpretada no
480 No fim de llll1a partilha se acorda: "fica acertado entre Pedro e Paulo que Paulo pode- sentido de que a entrega deve se dar 110 donúcílio do arrendatário (POTHIER, 200 L
ria passar por suas propriedades". Mesmo que pelo sentido gramatical de "suas pro- p. 99-100). A norma foi incorporada no sistema brasileiro pelo art. 423. do CC/2002,
priedades" se possa entender tanto as propriedades de Pedro quanto as propriedades aplicável aos contratos de adesão. Ademais. este entendin1ento ampara a teoria dos
de Paulo, a regra diz apenas com as propriedades de Pedro, pois em outro sentido a pontos de relevância hennenêutica dos negócios jurí4icos inter vivos, confonne será
cláusula não contém lógica alguma, pois Paulo não precisa estipular que poderá passar delienado no tópico "O ponto de relevâ11cia her111e11êutica dos tipos contratuais e a
por suas próprias propriedades (POTHIER, 2001, p. 96-97). extensão dos meios i11te1pretativos". Aduz Judith Martins-Costa que na sétima regra
481
Contratado o arrendamento de uma propriedade por nove anos pelo valor de 300 (observar a natureza do contrato pelo viés da assimetria de poderes contratuais) trans-
libras, esta deve ser entendida como a quantia anual, porque é da natureza desses con- parece o postulado da igualdade. dizendo com a função econônúco-social concreta. já
tratos que o preço seja considerado por anuidades (POTHIER, 2001, p. 97). Judith que relativa a imposição no momento da fonnação do contrato (l'vfARTINS-COSTA,
Martins-Costa adverte que a terceira regra de Potlúer (atribuição de sentido conforme 2005b. p. 148).
"à natureza do contrato") deve ser lida confonne a fimção econônúca concreta (ex.:
Interpretação Contrahml 151
150 Felipe Kirclmer .
2.5 A Fixação do Objeto e da Dimensão Funcional da
Oitm1a Regra: por mais generalizados que sejam os termos com os
quais foi concebida wna convenção, compreendem apenas as coisas Hermenêutica Contratual
que a partes contratantes entenderam contratar, e não aquelas nas
quais nem pensaram,. 86 • Gadamer entende que a hermenêutica constitui-se em uma
Nona Regra: quando o objeto da convenção é uma universalidade de "doutrina" sobre as condições de possibilidade e os modos específicos do
coisas, compreende, nesse caso, todas as coisas que particularmente compreender e, enquanto teoria da compreensão prática, consiste em
compõem essa universalidade, mesmo aquelas das quais as partes não tomar consciência do que realmente ocorre quando algo se oferece a
tinham conhecimento,.87 • compreensão de alguém e esse alguém compreende491 • Neste paradigma
Décima Regra: quando em um contrato se expressa alguma situação, teórico, a atividade interpretativa toma-se a pedra angular do conheci-
em consequência da dúvida que alguém possa ter sobre se o compro- mento jurídico, que somente se reconhece como exegese, pois compreen-
misso resultante do contrato se estende a uma tal coisa, esse alguém
não é reputado, por isso, ter desejado restringir a extensão que tal
der é interpretar, estando a ação hennenêutica no núcleo essencial do
compromisso tem de Direito para não alcançar todas as ouh·as coisas saber humano 492 •
,: . •
que não foram expressas,. 88 • Levando em conta estas considerações, a hennenêutica contra-
Undécima Regra: nos conh·atos, assim como nos testamentos, uma tual pode ser conceituada como sendo a atividade voltada à fixação do
cláusula concebida no plural se desdobra, frequentemente, em várias significado493 e da validade das mani_festações de vontade objetivadas e
cláusulas particulares 489 • bilateralizadas dos particulares, detenninando o efeito jurídico produzido
Duodécima Regra: às vezes, o que se encontra ao final de uma frase e o alcance com que vigora o conteúdo negocial 494, mediante a quantifi-
refere-se ao que é comum a toda a frase, e não somente ao que apre-
cede imediatamente, contanto, porém, que este final de frase concor-
cação dos compromissos jurídicos e dos termos da operação econômica
de, em gênero e número, com toda ela490 • perseguida por meio do contrato495 • Embora existam diferenças ontológi-
cas entre a detenninação do sentido e das consequências jurídicas 496, há
Feitas estas considerações sobre o procedimento, os métodos e uma relação muito próxima entre significado e efeito.
as regras de interpretação, cabe enfrentar as questões atinentes à fixação
491 GADAMER. 1993a. p. 144; GADAMER. 2007a. p. 94-95; LARENZ, 1989. p. 292.
do objeto e da dimensão funcional da hermenêutica contratual.
492 PASQUALlNl, 1999. p. 23.
493
486
Como destaca Carlos Ferreira de Almeida, "significado é o que se compreende de 11111
A transação das pretensões das partes não abrange os direitos não conhecidos quando acto de comunicação. Por usa ve=, a inte,pretação é o acto 011 actividade que consiste
da sua assinatura, o que diz, mesmo que indiretamente. com o já mencionado silêncio
eloquente do contrato (POTlllER, 2001, p. 100). na determinação daquilo que terá sido compreendido de 11111 acto de co111u11icação.
487 O contrato de renúncia de herança abarca todas as coisas que fazem parte desta heran- O significado é portanto o objecto imediato da compreensão e o objecto mediato
ça, conhecidas ou não (POTlllER, 2001, p. 101-102). (objectivo) da inte,pretação. Essa incide directamente sobre a compreensão e só
488 No contrato de casamento se acorda que "os fuhrros esposos viverão em comunhão de pela sua mediação, no hori=onte dos limites do destinatário, procura o significa-
bens, que incluirá o mobiliário das sucessões futuras". Esta cláusula não impede que do''. (FERREIRA DE ALMEIDA. 2005. p. 177-178).
494
todas as outras coisas que por direito comum fazem parte da sociedade conjugal este- É sempre a interpretação que detennina o efeito jurídico que nasce (DANZ. 1955,
jam incluídas na comunhão de bens, tendo apenas esclarecido que "o mobiliário das p. 70; MIRANDA, 1989, p. 15, 128-129 e 223), o que remete à abrangência do hori-
sucessões futuras" entra na comunhão (POTlllER 2001, p. 102). zonte interpretativo fixado por Gadan1er, contemplando os fenômenos da compreen-
489 O contrato de doação de uma propriedade a Pedro e Paulo dispõe: "doação da proprie- são, interpretação e aplicação.
dade 'X' a Pedro e Paulo sob a condição de que, caso morram sem deixar filhos, ares- 495
ROPPO, 1988, p. 126-127.
tituirão ao doador ou à sua família". Esta cláusula, concebida no plural, distribui-se 496
em duas cláusulas particulares: "para a obrigação de Pedro que, se morrer sem deixar FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 135-136. Embora haja uma estreita ligação
filhos, depois de sua morte o quinhão da propriedade que lhe pertencia deverá ser res- entre significado e efeito do negócio jurídico (simetria tendencial mediada por um
tituído ao doador ou à sua família" e "para a obrigação de Paulo que, se morrer sem princípio de conformidade), não há uma coincidência conceituai ou de referência. pois
deixar filhos, depois de sua morte o quínhão da propriedade que lhe pertencia deverá aquilo que se compreende não é o mesmo que a atribuição jurídica que consequente-
ser restituído ao doador ou à sua família") (POTlllER 2001, p. 102-103 ). mente se produz. ou seja. não há identificação ontológica entre os conceitos (ex.: da
490 No contrato de compra e venda de uma casa se expressou: "vendo o imóvel com tudo frase "porfavor, pode dar-me 11111 café" podem ser extraídos diversos significados, se-
aquilo que nele continha: trigo, grãos moídos, frutas e vinhos colhidos este ano". A gundo cada um dos contextos situacionais em que for proferida. mas seus efeitos jurí-
expressão "colhidos este ano" se refere à frase toda, e não apenas aos vinhos, já que dicos [A fica obrigado a servir um café para B. que fica obrigado a págar o preço] não
não usado "e o vinho colhido este ano", pois estando no singular não concordaria em estão contidos diretamente no texto da frase e no seu contexto). Embora o significado
número com os demais termos (POTlllER, 2001, p. 103).
Interpretação Contratual 153
152 Felipe Kirchner
qual depende de conexões de sentido que não estão prontas antes do pro-
É incontroverso que a interpretação contratual visa detenninar 0 cesso de interpretação que as desvela 502 • Como visto no tópico anteceden-
significado do negócio jurídico497 , havendo dissenso apenas na fonna te, embora a interpretação seja a responsável pela classificação da relação
como essa tarefa deva ser executada. Os paradigmas trabalhados neste contratual em uma das figuras típicas, a ação exegética não deve ser de-
estudo divergem neste aspecto, pois, enquanto a teoria bettiana entende terminada desde seu início pelos limites da construção jurídica que dê
que o intérprete identifica o significado (caráter reconstrutivo), a henne- roais tarde ao instrumento. A qualificação jurídica é alcançada no âmbito
nêutica filosófica gadameriana entende que o sujeito cognoscente o de- da circularidade hermenêutica, mediante constantes idas e vindas do pro-
tennina (caráter criativo e constitutivo). Assim, o viés interpretativo ado- jeto prévio da compreensão aos elementos que confonnam a relação con-
tado neste ensaio transcende o entendimento de que a hennenêutica se tratual (declaração negocial, circunstâncias do caso e nonnas estatais),
limita à mera fixação do significado, alcançando a noção de que essa sendo equivocada a apreensão de que o sujeito cognoscente pode aplicar
atividade é um ato de decisão que constitui e constrói a significação de uma construção jurídica qualquer (rotulando o contrato) para após inter-
um objeto498 • Nesse sentido, Peter Hãberle afinna que "não existe norma pretar se atendo a ela, pois o conceito técnico que se ponha de etiqueta
... ;.;· jurídica, senão norma jurídica interpretada"499 , o que vem ao encontro em uma relação jurídica não confonna decisivamente a interpretação. O
dos postulados gadamerianos. Como refere Carlos Ferreira de Almeida juízo de que a declaração negocial se trata de um detenninado tipo con-
"a interpretação é um momento formativo da própria essência do negó-' tratual só pode ser alcançado após o percurso no cfrculo hennenêutico 503 •
cio, e não uma simples atividade posterior e até mesmo eventua/"5ºº. Tendo em vista a natureza abrangente do horizonte hennenêuti-
Em face da abrangência da atividade hennenêutica, esta tam- co - que abrange compreensão, interpretação e aplicação -, deve-se reco-
bém se responsabiliza pela tarefa de qualificação jurídica do contrato5º1, a nhecer que a interpretação sempre implica, em certa medida, o desenvol-

preceda logicamente o efeito e entre os mesmos haja a já mencionada simetria tenden- razão pela qual a doutrina indica que a interpretação precede a qualificação jurídica
cial mediada por um princípio de conformidade, existem situações de existência de (SANTA MARIA, 1966, p. 17-18, 25, 27 e 119). Contudo, em se tratando aqui de
significado sem os correspondentes efeitos (ex.: nulidades) e de efeitos independentes uma interpretação contrah1àl sih1ada no contexto da hem1enêutica filosófica. deve-se
(e para além) do significado (ex.: integração) (FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, entender que a qualificação jurídica faz parte da atividade exegética que se sihia no
p. 204-207 e 217). incessante ir e vir do círculo hermenêutico (após a análise das circtmstâncias do caso e
497
GRAU, 2003, p. 21. da qualificação, o sttjeito cognoscente se volta novamente ao objeto na busca de con-
498
Dito isso, vale recordar a lição de que norma e texto nommtivo não indicam a mesma firmação ao seu projeto prévio de interpretação). Nesses tenuos, se ao adentrar no cír-
realidade jurídica, pois enquanto este é objeto da interpretação, a norma contratual é o culo o sujeito deve realizar a atividade interpretativa segundo o entender dos profanos,
seu resultado, sendo que o conteúdo contratual não existe como entidade verdadeira- prescindindo de toda possível constmção jurídica (classificação do caso concreto em
mente nom1~tiva antes do momento da interpretação (MARTINS-COSTA, 2005b, uma das figuras contratuais típicas) (DANZ. 1955, p. 29. 49, 86. 246, 263-266). após
p. 128-129; AVILA, 2006, p. 24, 27, 30-32, 68-70). Contudo, o presente estudo não um primeiro enfrentamento do objeto há o necessário cotejo com os tipos regulados
limita a hennenêutica à atividade que se presta a transfommr textos (disposições, pre- na lei, a partir do que deve o intérprete se voltar novamente ao objeto, percorrendo o
ceitos e enunciados) em normas, pois este é apenas um dos aspectos da interpretação todo da circularidade hennenêutica exigida para a compreensão.
502
em um ambiente já delimitado, que é o jurídico (limitação dentro de uma limitação ÁVILA. 2006, p. 24. 27, 30-32. 68-70. O autor segue afinnando que as nonnas não
antecedente). Como visto, a concepção da hermenêutica gadameriana é expansiva e, são textos nem o conjunto deles. mas os sentidos construídos a partir da interpretação
assim, alcança a própria relação do sttjeito cognoscente com a realidade. sistemática de textos nonnativos, não havendo uma correspondência tmívoca entre
499
HABERLE. 1997, p. 9. dispositivo e nonna. Há casos em que há nonnas sem dispositivos (ex.: princípios da
50
° FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 135. segurança jurídica e da certeza do_ Direito e. no contrato. deveres oriundos da boa-fé).
501
SCALFI, Gianguido. La Qualificazione dei Contratti Nell'lnterpretazione. Mila- dispositivos sem nonnas (v.g.: proteção de Deus no preâmbulo da Constituição e con-
no: Instituto Editoriale Cisalpino, 1962. p. 61 e 153-154. Interessante a apreensão siderandos do contrato), dispositivo a partir do qual se constroem mais de uma nonna
econômica de Enzo Roppo, para quem a qualificação é a operação por meio da qnal o (ex.: legalidade tributária) e conjunto de dispositivos que redtmdam em uma nom1a
intérprete, perante um contrato concreto e situado, individualiza o tipo a que ele per- (v.g.: legalidade. irretroatividade e anterioridade garantem a segurança jurídica)
tence, o qual corresponde a um gênero de operação econômica historicamente deter- (ÁVILA, 2006, p. 31-32). Seguindo essas considerações. pode-se afirmar que, no âm-
minada, que leva em consideração a realidade social em que inserido o contrato. bito da hermenêutica contratual, as disposições contidas no instmmento contratual se
(ROPPO, 1988, p. 133 e 310). Embora sejam operações distintas, existe uma estreita constituem no objeto da interpretação, e o contrato no seu resultado:.·
503
conexão entre interpretação e qualificação dos contratos. Porém, se do ponto de vista DANZ. 1955. p. 29. 49. 86. 183-184. 192. 246 e 263-266.
teórico é possível interpretar sem qualificar, não é possível qualificar sem interpretar,
hlterpretação Contratual 155
154 Felipe Kirchner •
da declaração, e apenas de fonna complementar se debruçaria sobre o
vimento do conteúdo do objeto analisado 504 , tanto porque é constitutiva conteúdo implícito ou não declarado do negócio jurídico510 , o que é de
do sentido, quanto porque a ausência de separação entre sujeito e objeto todo falso, uma vez que é a própria interpretação que fixa o conteúdo
provoca um aporte necessário de novos elementos ao objeto, o que re- (expresso e/ou implícito) do contrato, que inexiste enquanto entidade
505
dunda na inevitável evolução do conteúdo normativo • autônoma.
Nesse contexto de expansão dos limites do agir hermenêutico, o Nesses tennos, a conclusão anterionnente fixada de que o signi-
intérprete passa a ser qualquer pessoa interessada na contratação ou que ficado e a extensão do negócio jw-ídico são resultados de sua interpreta-
entre em contato com a relação contratual (paites, terceiros, destinatários, ção - pois é esta atividade que detennina construtivamente o conteúdo do
juízes, advogados, etc.). Como adverte Carlos Feneira de Almeida, a tese contrato511 , o qual pode ser confonnado hem1eneuticamente por meio de
de que só ao juiz cabe a interpretação do negócio jurídico está ligada ao normas integrativas -, vem de encontro à posição dominante ora comba-
preconceito de que a tarefa hermenêutica somente é exercida em caso de tida. No âmbito da hermenêutica filosófica surge uma concepção da ati-
litígio, o que evidentemente não prospera506 • Nesses termos, este estudo vidade hermenêutica ampla o suficiente para abarcar todo o conteúdo da
abandona a tese (institucionalista)5º7 do intérprete autêntico e encampa, regulação objetiva, sem depender de uma cisão aitificial entre interpreta-
com a devida adequação, a dimensão contida na teoria da sociedade aber- ção e integração do negócio jurídico. Nesse sentido, o entendimento de
ta de intérpretes formulada por Peter Hãberle, para quem Francisco Amaral:

todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive A inte,pretação e a integração jurídicas (..) correspondem à concep-
com este contexto [mesmo aquele que não é diretamente afetado] é, ção h·adicional e ainda dominante no direito brasileiro, isto é, a in-
indireta ou, até mesmo diretamente, um inté,prete dessa norma. O des- te1pretação como processo ou resultado da pesquisa do sentido e al-
tinatário da norma [também] é participante ativo, muito, mais_ ativo do cance das proposições normativas, e a integração como técnica de
. ,os
que se pode supor tradicionalmente, d o processo henneneutzco . preenchimento de lacunas da lei. (. .. )
Estando este normativismo em vias de superação, (. ..} perde sentido a
Limitar a atividade de interpretação contratual aos intérpretes h·adicional difere11ça enh·e inte,pretação e a integração. Admite-se
corporativos ou autorizados jw-ídica ou funcionalmente pelo Estado signi- hoje uma inte,pretação ampla que, absorvendo a aplicação e compre-
509
ficaria um empobrecimento injustificado da atividade exegética • endendo a integração, se constitua em processo contínuo de realiza-
Em face da adoção do paradigma gadameriano e da tese de que ção do direito 512 •
existe uma relação dialética entre contrato e sistema normativo estatal no
A dissociação é falha por estar embasada em duas premissas
âmbito da interpretação do contrato, deve-se considerar como inadequada
falsas. Primeiro, funda-se na vetusta concepção liberal oitocentista, cen-
e artificiosa a posição doutrinária que divide esta atividade em dois mo- trada no dogma da vontade, no sentido de que toda atividade que não
mentos: recognitivo e complementar. dissesse direta e completamente com a vontade das pat1es não seria mais
A decomposição da interpretação se funda na ideia de que esta interpretação, mas sim ato de integração do ato de autonomia (onde a
atividade diria com um aspecto recognitivo atinente ao conteúdo expresso vontade real não fosse mais discutida começaria a integração) 513 • Segun-

50-I 5w Nesse sentido, a posição majoritária: MARINO, 2003. p. 108 e 165: MIRANDA.
FERRARA, 1987, p. 128 e 153.
5o5 HABERLE, 1997, p. 13-14. 1989, p. 121. Carlos Ferreira de Almeida parece aceitar a posição dominante. mas re•
506 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 185. fere que não lhe parece adequada a autonomização do que seria uma interpretação
507 A tese se encontra arraigada na doutrina, do que é exemplo a obra de Erich Danz complementar, pois é "a partir da inte,pretação, embora para além dela, que se pro-
(DANZ, 1955, p. 5, 28, 75, 97, 113, 124-125, 127. 135-136, 183-184, 192, 200-201 e cede a integração" (FERREIRA DE ALMEIDA. 1992; p. 221-224).
511
254). Eros Grau menciona a tese do intérprete autêntico e desvela a existência de uma MARINO. 2003. p. 36.
512
diferenciação qualitativa do momento de aplicação no caso do intérprete-juiz, enfati- AMARAL, 2006, p. 100-101.
zando a questão do ato decisório na produção do discurso do Direito ( GRAU, 2003, 51_3 A doutrina tradicional não estabelece uma clara distinção entre interpretação integra-
p. 62-63, 85 e 87). tiva e integração (MIRANDA. 1989. p. 206). Se ambas tomam por_.base a causa da
5os HABERLE, 1997, p. 14 e 32. ordem de interesses no tipo abstrato do contrato em exame e aplicam em confomlida-
50g HABERLE, 1997, p. 34.
Interpretação Contratual 157
156 Felipe Kirchner ·

Mesmo que se considere correta a cisão da interpretação em


do, por trabalhar com o paradigma reconstrutivo (contrariando o viés
momentos recognitivo e complementar, deve-se considerar que, após a
criativo e crítico desvelado pela hermenêutica filosófica), no sentido de
integração do contrato (quantificação de todas as consequências que deri-
que a interpretação e a interpretação integrativa visam o ideal de recons- vam do pacto segundo a lei, os usos e/ou a equidade), é por meio da in-
trução do significado, enquanto a integração objetiva uma ceita constru- terpretação propriamente dita que se alcançará o significado e o alcance
ção em cima da reconstrução anterionnente realizada. Alforriado destes do conteúdo a que os contraentes estão obrigados.
grilhões pelo paradigma gadameriano, não há como sustentar a cisão.
Exemplificativamente, sendo celebrado um contrato de compra
Sequer a divisão galgada na premissa de que a integração diz e venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua detenninação,
com os efeitos do negócio jurídico é capaz de embasar a partição do fe- incide na espécie a nonna supletiva do art. 488 do CC/2002 515, o que
nômeno hennenêutico, exatamente porque é a interpretação que detenni- depende da atividade interpretativa, uma vez que o tópico integrará a
na o efeito jurídico produzido pelo ato de autonomia objetivado e bilate- obrigatória circularidade do processo hermenêutico, influindo na interpre-
ralizado, detenninando o alcance com que deve vigorar o conteúdo nego- tação global e situada da relação contratual. A facticidade do agir henne-
cial. Retirar esta função do âmbito da interpretação seria absolutamente nêutico indica uma atividade unitária em sua totalidade complexa, sendo
contraditório com a visão abrangente dada pela hermenêutica filosófica à as questões de auto e heterointegração resolvidas no âmbito das idas e
atividade interpretativa contratual. Ademais, a cisão limitaria injustifica- vindas da interpretação para a integraç?o e desta para aquela.
damente o agir hermenêutico, uma vez que a significação alcançada pelo
uso de normas integrativas certamente faz parte do procedimento de Em síntese, o que aqui se propõe é que a interpretação também
compreensão, interpretação e aplicação do contrato. se estenda a pontos do negócio jurídico que não forem objeto de reflexão
consciente, ampliando o alcance do que a doutrina chama de interpreta-
A segmentação da atividade contraria, também, a noção de cir- ção integrativa 516 • Também a integração stricto sensu deve respeitar o ato
cularidade hennenêutica, ou seja, da ida e vinda do procedimento inter- de autonomia e a lógica de suas escolhas. Sobre o tema, mister se faz
pretativo até o alcance do significado. A utilização das normas cogentes declinar que diante de uma deficiência do marco regulatório fixado pelas
ou dispositivas faz parte de um ato de aplicação que, por sua vez, faz partes - lacuna, ambiguidade ou obscuridade derivada da falta de previ-
parte indissociável da atividade hermenêutica. A incidência da norma são negocial, da evolução do contexto social, da deficiência da linguagem
supletiva não se dá após findo o procedimento de busca de significação ou da ausência de correspondência desta dimensão com as circunstâncias
(se é que ele finda!), pois sua incidência certamente influirá na significa- relevantes do caso -, não cabe ao sujeito cognoscente recorrer de imedia-
ção da relação contratual, em face da sistematicidade interna e externa da to a outras fontes de regulamento negocial (ex.: nonnas dispositivas), 517
declaração 514 • pois antes deve aprofundar a interpretação, buscando exaurir as potencia-
lidades do conteúdo (expresso e/ou implícito) do negócio jurídico, expio-
de com ela critérios derivados de outras fontes, a tênue dissociação entre interpretação
integrativa e integração reside no fato de que enquanto aquela pressupõe um determi-
nado conteúdo do negócio jurídico ( explícito ou implícito), a integração supõe exata- 515
"Art. 488. Convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua
mente a falta de um preceito que possa ser extraído da fórmula da declaração (uma la- determinação, se não houver tabelamento oficial, entende-se que as partes se sujeita-
cuna), dizendo especificamente com os efeitos do negócio (BETTI, 2007, p. 184 e ram ao preço corrente nas vendas habituais do vendedor"".
376-377; BETTI, 2003b, p. 204-205: MIRANDA, 1989, p. 130). Dito de outra forma: 516
O conceito de interpretação integrativa não se identifica com a noção de interpretação
enquanto a interpretação integrativa é uma fonna de autointegração, a integração pro- objetiva, a qual se contrapõe à interpretação subjetiva (MIRANDA, 1989, p. 134-135;
priamente dita é uma forma de heterointegração que vai além da força expansiva ou BETTI, 2007, p. 374). Francisco Marino apresenta interessante estudo sobre os con-
lógica da declaração (MIRANDA, 1989, p. 207 e 229). Estas considerações não são ceitos de interpretação integrativa nos sistemas italiano, alemão, francês e português:
fortes o suficiente para embasar a dissociação. Até mesmo a pretensão de correção do MARINO, 2003, p. 175-178.
negócio, que parte da doutrina posiciona no campo da integração (BETTI, 2007, 517
Como o presente estudo encampa a ideia de que o màrco regulatório estatal fonna o
p. 184-378), parece compor o âmbito próprio da atividade hem1enêutica (ex.: caráter substrato objeto da atividade hem1enêutica contratual, há que se dizer que dificilmente
criativo e crítico), como já salientado. uma lacuna do contrato irá se transformar em uma ·1acuna nonnativa ou do Direito,
514
A redação do art. 1.374, do Código Civil Italiano, vem ao encontro do posicionamento pois a partir do sistema o intérprete sempre poderá alcançar uma conclusão nom1ativa,
aqui defendido: "Integração do contrato - O contrato obriga as partes não só ao que ainda mais quando possível recorrer aos preceitos axiológicos que' sustentam e con-
está expresso 110 mesmo, mas também a todas as consequências que dele derivam se- fonnam o ordenamento.
gundo a lei ou, em sua ausência, segundo os usos e a equidade."
Interpretação Contratual 159
158 Kirchner ·
Não se trata, na inte,pretação do negócio jurídico, de saber quem tem
rando as referências comunicacionais fixadas de fonna indetenninada e quem não tem razão, não se trata de decidir sobre pretensões, mas
pelas partes 518 • de escolher, entre os sentidos possíveis, aquele que se harmoniza com
A posição unitária aqui defendida está em consonância com a o conj11nto de fac/ores relevantes. A inte,pretação negocial não é 11111
relevância hermenêutica atribuída à autonomia privada por este estudo, problema j11risdicional e process11al, nem 11111 problema de prova, a
no qual se demonstrou que o consenso (proposta e aceitação) jamais é não ser na mesma e justa medida em que todos os problemas sobre o
formado apenas pela vontade dos contraentes. Em incidindo naturalmente negócio jurídico podem constituir objeto de litígio judicial. (...) A fi-
nalidade da inte,pretação do negócio jurídico é a determinação de
na interpretação outros elementos em conjunto com a vontade dos contraen- 11111 sentido jurídico apenas enquanto sentido "que há-se valer se va-
tes - donde se conclui que o ato de autonomia deve ser sempre valorado ler puder".(...) '
em conjunto com outras fontes, inclusive de ordem integrativa -, não é A fi?1fão da inte,pretação não é (...) proteger a confiança dos desti-
técnica e materialmente adequado cindir a atividade interpretativa em naianos (...) ou obter a solução juridicamente maisjusta 52º.
razão da integração.
No exemplo anterior, que ressaltou a incidência do art. 488 do Em face destas acertadas considerações, não é possível posicio-
CC/2002, mesmo quando ausente a fixação de preço ou critérios para a nar a atividade jurídica de sentenciar ou de peticionar em juízo como
sua determinação na declaração, não será utilizado o "preço corrente nas comportamentos de interpretação, embora estes dependam previamente
vendas habituais do vendedor" se as circunstâncias do caso ( que podem da atividade hennenêutica. Se a prática forense do advogado é compro-
não ter sido objeto de reflexão consciente) indicarem o contrário. E mes- metida com os interesses defendidos pelo profissional, a atividade juris-
mo que as circunstâncias fáticas não ilidam a aplicação do critério do dicional, teoricamente isenta dessa vinculação, se encontra comprometida
"preço corrente", será a interpretação propriamente dita (sem qualquer com a correção sociopolítica e nonnativa da decisão, o que, muitas vezes,
diferenciação prática ou teórica) que irá efetivamente aplicar e concreti- importa em modificação daquele substrato interpretado, ou seja, consciente
zar o valor do preço corrente. Assim, não parece haver uma diferenciação ou inconscientemente o juiz se afasta do significado alcançado, na busca
ontológica séria que pennita a dissociação, senão em um nível meramente de uma tomada de posição (decisão) mais justa perante o caso concreto
teórico (e até mesmo retórico). e/ou a totalidade do sistema jurídico521 , rompendo conscientemente com o
Assim, a pretensão de deslocar os aspectos "supletivos" para resultado da atividade hermenêutica e com a real significação trazida pela
uma fase posterior da interpretação (como se o negócio jurídico fosse coisa. Essa é evidentemente uma atitude que se dá no plano argumentativo
convalidado por uma atividade supletiva posterior) 519 diz com uma fala- após, inclusive, o momento aplicativo que constitui o iter hennenêutico. '
ciosa corrosão da atividade hermenêutica, atentando contra a forma como Adentrando na questão da subjetividade, tem-se que a grande
a exegese realmente ocorre. importância da autonomia privada no âmbito da interpretação dos negó-
Enfrentada a unidade do fenômeno hennenêutico, cabe referir cios jurídicos não implica a prevalência da vontade intema como objeto
que a interpretação negocial não presta contas a questões de ordem juris- hermenêutico, campo no qual aquela se mostra, inclusive, indiferente,
dicional e processual, pois não diz com o ato de decisão sobre determina- excetuando-se a singularidade própria dos atos unilaterais (ex.: art. 1.899
dás pretensões (embora sempre esteja subjacente a qualquer ato de deci- do CC/2002)522 • A interpretação não tem que se preocupar com os pen-
são). Nesse sentido, o pensamento de Carlos Ferreira de Almeida:
520 FERREIRA DE ALMEIDA. 2005, p. 172 e 197-198.
518
MARINO, 2003, p. 105; FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 223. Descabe ao intér- 521
E~bora ~ d~cisão judicial se constihia, por excelência, como sendo um ato de aplica-
prete explorar elementos que se encontram na esfera do silêncio eloquente das partes, çao do D1re1to, Gadamer refere que na tarefa prática de decretar a sentença entram em
ou seja, naquele campo que as partes conscientemente não disciplinaram. Como ad- jogo muitas considerações político-jurídicas (GADAMER, 2005, p. 19), sendo que as
verte Karl Larenz, silêncio e lacuna não são conceitos que se identifiquem, pois esta questões de convicção sociopolíticas não podem ser respondidas do ponto de vista es-
somente se configura quando há uma regulação almejada pelos contraentes, pois se as trito da atividade hermenêutica (GADAMER, 2004, p. 313).
partes não desejaram regular determinada matéria, quanto a esta não há falar em lacu- 522
na (LARENZ, 1989, p. 448-454: REALE, Miguel. Processo Legislativo e Normas de A indagação acerca da vontade interna das partes teria sua justificação na teoria
Interpretação Autêntica. /11: REALE, Miguel. Questões de Direito. São Paulo: Sarai- · da vontade (DANZ, 1955, p. 75), a qual, devidamente corrigida, tem seu lugar
va, 1981b. p. 61). como orientação interpretativa nos atos jurídicos unilaterais (v:g:: mortis causa)
519
AZEVEDO, 2000, p. 41; MARINO, 2003, p. 197. (BETTL 2003b, p. 191-192 ). Embora as teorias da declaração e da vontade se cons-
Interpretação Contratual 161
160 Felipe Kirclmer .
transcendência jurídica ou importância para detenninar o sentido do ne-
samentos interiores, pois a vontade interna, se não se exterioriza, não aócio (significado das palavras e sua eficácia jurídica)524 • Gadamer chega
influi em nada para o conteúdo do negócio jurídico, pois além do contrato ; afirmar que "é evidente que uma hermenêutica jurídica séria não pode
não ser o que detenninado contratante quis exprimir, mas, sim, o que a contentar-se em utilizar como cânon de interpretação o princípio subjeti-
vontade bilateralizada dos contraentes efetivamente exprimiu (em conjun- vo da opinião e a intenção originária"525 •
to e na forma da lei), o comando nonnativo do pacto tem um valor autô- Tamanha é a importância deste aspecto que as diretrizes legais
nomo, que não coincide com a vontade subjetiva de seus artífices e reda- rechaçam a validade da vontade interna não apenas no plano da interpre-
tores, pois na sua aplicação o contrato se contrapõe à individualidade dos tação, mas também no que concerne à validade do negócio jurídico (cuja
. ~ de um pro dut o novo 5-~3.
contratantes na cond1çao análise depende e advém da atividade hennenêutica), confonne estabele-
Assim, verifica-se que as suposições, crenças, propósitos e in- ce o art. 110 do CC/2002: "a manifestação de vontade subsiste ainda que
tenções subjetivas (não objetivadas ou matizadas pela confiança) não têm 0 seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou,
salvo se dela o destinatário tinha conhecimento".
tituam em concepções subjetivistas (FERREIRA DA SILVA, 2006), cabe ressaltar
A vontade interna não pode ser sequer ponto de partida da ati-
que para Betti a opção de prevalência da declaração ou da vontade interior é mal colo- vidade hennenêutica, pois, como afinna Gadamer, "partir da subjetivida-
cada, pois a vontade só adquire relevância juridica quando for reconhecível na forma de, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívo-
de declaração, não havendo aqui valores distintos ou antitéticos (BEm, 2007, p. co"526. Corno refere Ronald Dworkin, embasar a interpretação em uma
359). Esta observação se coaduna com a regra do art. 112, do CC/2002, que, ao falar pretensa intenção ou vontade é "apenas uma cortina de fumaça atrás da
em intenção consubstanciada na declaração de vontade, certamente não diz com a qual eles (sujeitos cognoscentes) impõem sua própria visão acerca do
vontade interna das partes, mas, sim, com a intenção concorde fornrnda entre as par- que a lei deveria ter sido"521 • Na compreensão de um texto, o intérprete
tes. Atendendo a estas considerações, o linrite de significação do contrato não é bus-
não se transfere para a estrutura espiritual do autor, mas, sim, ao seu pen-
cado na subjetividade dos contratantes, mas na situação objetiva complexa em que es-
tas estão inseridas. Salienta Erich Danz que se o legislador tivesse querido que somen- samento objetivado, o que não é refutado sequer pelo ideal objetivista e
te se produzissem efeitos juridicos da vontade intema estaria cometendo uma injustiça, metódico de Emílio Betti 528 •
especialmente nos contratos sinalagmáticos, pois a parte contrária só pode atender à von- A razão para afastar a vontade interna da condição de objeto
tade exteriorizada e ao significado usual da declaração, sendo iníquo fazer com que os da interpretação é óbvia: o sentido de um texto (como o contrato) não se
efeitos juridicos dependam do que se passa na interioridade do sujeito. O dogma da von-
tade é insustentável na prática, pois é dificil provar as intenções (DANZ, 1955, p. 26). A
esgota no sentido que o autor tem em mente 529 • Assim, a interpretação
vontade interna das partes somente adquire relevância quando o parceiro contratual es-
524 DANZ, 1955, p. 49 e 83-84: SANTA MARIA 1966, p. 15.
teja ciente do sentido em que aquela emprega as palavras (DANZ, 1955, p. 246) ou
quanto à prova e ao cancelamento da validade do negócio jurídico (como no caso do er- 525 GADAMEil 2004, p. 465.
ro e do dolo) ou dos efeitos juridicos já produzidos (DANZ, 1955, p. 29, 49 e 86). 52 6 GADAMER. 2004, p. 92.
523 HESSE, 1991, p. 56-58; FERRARA, 1987, p. 134-135; MIRANDA, 1989, p. 29. 527 DWORKIN. 2000, p. 220.
Enzo Roppo elenca importante observação, no sentido de que não existe coincidência 528 GADAMER, 2004, p. 73: GADAMER, Hans-Georg. Sentido y Ocultación de Sentido
necessária entre dogma da vontade e tutela da autonouria privada, pois para garantir o em Paul Celan. ln: GADAMER. Hans-Georg. Poema y Dialogo: ensayos sobre los
respeito à din1ensão de autonouria e liberdade (interesse dos contratantes) não é ne- poemas alemanes más significativos dei siglo XX. Barcelona: Gedisa Editorial,
cessário recorrer à posição psíquica das partes, assim como a busca pela comum in- 1993b. p. 121. Perceba-se que esta concepção aproxima a teoria gadameriana da defe-
tenção dos contraentes não equivale a desenvolver uma tarefa de introspecção mental, sa de Emílio Betti acerca das fonnas representativas, guardadas as devidas ressalvas
individualizando as atitudes psíquicas das partes no momento da conclusão do contra- que foram e ainda serão apontadas.no decorrer deste estudo.
to (ROPPO, 1988, p. 142-143 e 171). Carlos Ferreira de Almeida refere que, embora 529
Gadamer afinna que o cânone hem1enêutico de que ao texto não deve ser introduzido
as conclusões da psicologia sobre os mecanismos da vontade não possam ser direta- interpretativamente nada que o autor não pudesse ter. tido em mente quando de sua
mente transpostas para o Direito - uma vez que para os juristas a vontade não tem o feitura somente pode ser aplicado a casos extremos, pois "os textos não pretendem ser
mesmo significado que tem para os psicólogos -, não há uma refutação plena de sua compreendidos como expressão de vida da subjetividade do autor. Assim, não é a
adurissibilidade, havendo, inclusive, uma proposição legal de utilização em deteruri- partir daí que podem ser traçados os limites de um texto" (GADAMER, 2005, p. 486-
nados campos, como ocorre na interpretação dos testamentos (art. 1.899, do CC/2002) -511 ). Refere Sérgio Mendes que a hennenêutica filosófica tem a grande vantagem de
e no Direito Penal, onde é lícito e imprescindível perscrutar os níveis de consciência e por em evidencia discursos que diziam perscrutar a vontade intema'quando, em reali-
intenção que precedem ou acompanham a conduta do agente quando da prática do ato dade, acabavan1 por traduzir a vontade do intérprete (MENDES, 2007. p. 210).
delitivo (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 88-89).
hlterpretação Contratual 163
162 Felipe Kirchner·
adotando uma postura do Direito enquanto sistema fechado e estático, o
não se limita ao esclarecimento de motivos inconscientes (embora os que não merece prosperar535 •
quantifique, mesmo que indiretamente, pela análise das circunstâncias Em face da dinamicidade das relações sociais sob as quais o
objetivas relevantes), devendo, antes, ultrapassar o horizonte limitado contrato é constituído e desenvolvido, a relação contratual deve ser assu-
do indivíduo 530 • mida como sendo um processo privado em constante construção (private
Também para Emílio Betti a vontade, enquanto fato psicoló- /aw in action) que visa a resolução de urna situação concreta, e não como
gico interno,. é incompreensível e incontrolável, pertencendo ao foro uma norma estatuída de forma impenneável ao transcurso da evolução da
íntimo da consciência individual, tomando-se suscetível de interpreta- pactuação. A procedimentalidade da relação contratual alcança não ape-
ção e de valoração (vinculativa) apenas quando se toma reconhecív~l nas a sequência de atos praticados pelos contraentes em confonnidade
no ambiente social por meio de declarações e/ou comportamentos)31 com a lei (providência necessária para que o pacto alcance efeitos juridi-
não ocasionais e acidentais 532 • Enquanto formas de representação, os camente vinculantes)536 , mas também seu aspecto vinculativo em tomo
instrumentos da autonomia privada são as declarações e os comporta- das circunstâncias do caso concreto, as quais podem se encontrar em
,: .· mentos, e não a vontade interna dos agentes, a qual não se apresenta dissonância com as regulações legais537 • O contrato é uma lei em movi-
como sendo objeto da interpretação, mas corno um resultado desta mento não apenas quando é interpretado538 , mas sempre.
(meta de controle hermenêutico) 533 • Em síntese, no caso de um contra- Contudo, também são objetos de interpretação as reflexões in-
to o sentido deve ser buscado não na individualidade dos contraentes, conscientes e os conteúdos implícitos e marginais do negócio que estejam
m;s, sim, na totalidade do ambiente social em que nasceu e se desen- consubstanciados na situação objetiva complexa, elementos que nada têm
volveu a relação contratual, segundo as visões nele correntes sobre o a ver com a vontade interna dos contratantes539 • Nesse sentido, caberes-
ato de autonomia privada534 • saltar que, embora a atividade interpretativa contratual não perquira a
É interessante notar que a convergência dos autores supramen- vontade interna dos contraentes, sempre diz, de uma maneira ou de outra,
cionados atende também ao resguardo de uma importante característica com o âmbito subjetivo das partes540 • Em certa medida, a intenção dos
da hennenêutica, defendida por ambos: a historicidade (temporalidade da contratantes poderia ser considerada objeto da interpretação, já que estes
história no estabelecimento de sentido dos textos). A consideração do somente contratam em razão de seus interesses próprios. Porém, a ativi-
instrumento nom1ativo como expressão de uma vontade exaurida coloca- dade hermenêutica não deve recair em parâmetros subjetivos, pois aquilo
ria a própria normatividade fora do fluir do desenvolvimento histórico, que deve ser interpretado é a intenção bilateralizada mediada pela confian-
ça, corno antes salientado. A conjugação das intenções e vontade com as
530 Esta conclusão conduz ao abandono do ideal iluminista da estética do gênio, que circunstâncias do caso e a vontade do outro (intenção comum voltada ao
visava compreender 11111 autor melhor do que ele mesmo se compreendeu, pois o texto adimplemento) é o que alarga o espectro da interpretação e a resgata de
objetivado deixa de depender de seu autor e das opiniões que este tenha (GADAMER, um espírito voluntarista541 •
2004, p. 126, 317 e 486; GADAMER, 1998a, p. 76), afinnação última que deve ser
vista com ressalvas no que tange aos contratos, instr11111ento normativo conformado
Questão atinente ao tema em exame é o de que a palavra escrita
pela autonomia privada.
é apenas uma das formas comunicativas, não se podendo excluir que o
531 A distinção destas ações humanas leva em conta a natureza do ato e o evento que a contrato seja formado e desenvolvido com sinais de tipos diferentes (v.g.:
conduz. Enquanto a declaração se dirige, necessariamente, a outrem (que poderá, ou gestos, entoação e simbologias)542 , que nesta condição se tomam absolu-
não, vir a conl1ecê-la), contando geralmente com a colaboração psíquica alheia (atos
jurídicos bilaterais), o comportamento não possui necessariamente destinatários, razão 535 BETII, 2007, p. 93-94.
pela qual não diz com a consciência ou vontade dos agentes, esgotando seu resultado 536
ROPPO, 1988, p. 125.
n11111a modificação fática, objetiva, relevante e socialmente reconl1ecível (BETII, 537
RIBEIRO, 1999, p. 173.
2003a, p. 185). 538
Nesse sentido o entendimento de Karl Larenz: LARENZ. 1989. p. 489.
532 BETII, 2003b, p. 211-212. 539
BETII, 2007, p. 204 e 374.
5 33 BETII, 2007, p. XXXVIII, 5 e 350; BETII, 2003a, 80 e 181; BETII, 2003b, p. 175 e . 540
FERREIRA DA SILVA, 2008.
182. Betti refuta a colocação da vontade interna como objeto da atividade hem1enêuti- 541
ca pelo fato de que a admissão desta situação in1plicaria a aceitação de que a interpre- FERREIRA DA SILVA. 2008. ·' ·
542
tação pode prescindir de uma fonua representativa. ROPPO, 1988. p. 93: FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 668.
53 -t BETII, 2007, p. 369.
Interpretação Contratual 165
164 Felipe Kirchner,
hermenêutico, os preceitos jurídicos estatais implicados e outras situações
tamente relevantes para a atividade interpretativa. Também é intenção
hermeneuticarnente relevantes ao significado procurado 548 •
consciente deste estudo ampliar o objeto hennenêutico, o que se realiza
tanto ao se expandir o que seja a declaração, quanto ao se deslocar o eixo Por abarcar uma complexidade de elementos, a interpretação
do que seja o objeto da exegese. envolve um constante ir e vir entre o texto da declaração negocial, os
fatos e as diretrizes atribuídas pela ordem jurídica (funções do instituto
Nesta tentativa de expansão do objeto da atividade hermenêuti- jurídico em causa e valores jurídicos implicados), quando então se realiza
ca, o estudo encampa parcialmente a noção de enunciado negocial de a qualificação normativa do caso concreto, o que culmina em um neces-
Carlos Ferreira de Almeida, a qual abrange toda e qualquer comunicação sário processo de concreção por meio de ponderação que visa a organizar
adequada ao negócio jurídico determinado e situado, independente de todos esses dados 549 , tendo por objetivo o alcance de uma unidade de
constituir ou integrar uma declaração negocial considerada classicamente sentido e significação presente em uma situação que é inequivocamente
corno completa ou incompleta, tendo como requisitos apenas a unidade objetiva e complexa.
de emissor e a coerência da linguagem543 • Deve-se considerar que nem
Se o regulamento contratual resulta construído por meio de um
. mesmo o texto fechado, em sua pureza objetiva, escapa da sistematicida-
,: •
concurso de fontes 550 , a conceituação, abrangência e objeto da interpreta-
de de suas unidades internas e de relações de intertextualidade, as quais
ção devem acompanhar esta realidade, onde "as declarações de vontade
dizem com o cruzamento de enunciados de outros textos contemporâneos
não são o conh·ato, mas apenas um componente de sua complexa estrutu-
e históricos 544, desde aqueles que se referem à relação pregressa das par-
ra nor111ativa, que integra, nu111 todo orgânico e unitário, 'ele111entos não
tes (contratos anteriores ou fase de tratativas )545 , quanto aqueles emana-
consensuais', fontes de vinculação que não proma11a111 ex voluntate, mas
dos do ordenamento jurídico. É por isso que o intérprete deve encarar a
declaração sempre como sendo um texto e/ou enunciado aberto ao mun- da acção pe1formativa dos contextos situacionais e111 que a relação se
do, tendo-o, na lógica gadameriana, corno resposta a detenninada pergun- estabelece e se desenrola", como refere Joaquim Ribeiro 551 •
ta que é fonnulada pelas partes quando da conclusão do pacto 546 ( contrato O objeto do procedimento interpretativo está voltado, ainda, não
corno resposta às necessidades concretas dos contratantes). Assim, o texto apenas ao contrato enquanto instrumento nonnativo (por vezes fixado por
contratual passa a ser o conjunto coerente e ordenado dos componentes escrito) 552, mas também ao relacionamento geral dos contratantes entre si
do negócio jurídico constantes de seus respectivos enunciados547 • e com o mundo, ou seja, com a situação concreta e objetiva que os cer-
Contudo, a grande questão a ser enfrentada neste tópico é a exa- ca553, conforme salienta Judith Martins-Costa:
ta delimitação do objeto da interpretação contratual. Se a doutrina clássi-
De tudo resulta um novo modo de pensar-se a hermenêutica contratu-
ca entende que essa atividade tem corno objeto a declaração negocial, al. O inté1prete não mais - ou não mais apenas - se vê às voltas da
este estudo encampa a tese de que o agir interpretativo se debruça sobre o "comum intenção" dos contratantes. Cabe-lhe agora, compreender o
conteúdo global do negócio (expresso e/ou implícito), abrangendo o ele- ajuste, considerando a racionalidade econômica e estratégica do
mento textual (em sua dimensão inte1textual), a historicidade do sujeito- "sistema contratual" no qual eventualmente alocados os singulares
objeto, a pré-compreensão do intérprete, a situação contextual do ato acordos; atentar para as circunstâncias que ditaram a sua c01ifor111a-

543 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 278 e 281. 548 LARENZ, 1989, p. 239-240. A declaração negocial somente poderia ser considerada
544 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 294 corno o objeto exclusivo da interpretação se o seu conceito foi expandido para abarcar
545 A conclusão de que a fase de tratativas integra o objeto da atividade interpretativa é urna entidade ideal que integra todos os elementos adequados à fo1111ação do contrato
aceita pelo próp1io sistema jurídico, conforme se depreende das regras dos arts. 427 e (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 1.100).
429, do CC/2002, as quais definem que a proposta de contrato obriga o proponente, e 549
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 130.
a oferta ao público equivale à proposta quando encerra os requisitos essenciais ao con- 550 ROPPO, 1988, p. 187.
trato, salvo se o contrário resultar dos tem10s da manifestação comunicativa, da natu- 551
RIBEIRO, 1999, p. 15-16. No mesmo sentido: FERREIRA DE ALMEIDA, 1992.
reza do negócio, das circunstâncias do caso ou dos usos. Estas regras legais denotam p. 262-263.
não apenas a importância da interpretação na fase anterior à conclusão do contrato, 552
Como salienta Gadamer, "é preciso assinalar que o problema hermenêutico no pro-
mas também a relevância desta fase na posterior declaração constituída. cedimento oral e no escrito é nofimdo o mesmo" (GADAMER, 2004; p. 399).
546
VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 189. 553
GADAMER, 2004, p. 381.
547 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 297.
Interpretação Contratual 167
166 Felipe Kirchner

ção e para a posição social concreta dos contraentes, pois o princípio ou seja, assume tenuos que tendem a se excluir ao trabalhar com a dialógica or-
da desigualdade material convive com o da igualdade formal; ter pre- dem/desordem/organização (ex.: sempre vislumbra o todo, mesmo que ao considerar a
sentes os motivos que ens(?jaram o ato comunicativo, percebendo, 110 sociedade o indivíduo desapareça e ao considerar o indivíduo a sociedade desapare-
espírito e na letra do Código Civil, o relevantíssimo papel reservado ça); (7) reintrodução do sujeito cognoscente: admite que todo conhecimento é uma re-
às 'circunstâncias do caso '554 • construção e tradução por um espírito situado em um detemrinado tempo e cultura
(MORIN, 1990, p. 93-95 e 106-109: MORIN, Edgar. Da Necessidade de um Pensa-
Considerando o que foi dito, deve-se entender que o horizonte mento Complexo. /11: MARTINS. Francisco Menezes: SILVA. Juremir Machado da
do contrato é constituído por uma situação objetiva complexa555 , uma (Org). Para Navegar no Século XXI. Porto Alegre: Sulina e Edipucrs. 2000. Dispo-
nível em: <http://geccom.incubadora.fapesp.br/portal/tarefas/projetos-em-multimeios-
554 i-e-ii-puc-sp/textos-uteis/ pensamentocomplexo.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2008). Mis-
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 135-136.
555 ter se faz salientar que, embora a simplificação separe e reduza, enquanto o paradigma
Carlos Ferreira de Almeida afirma existir uma composição complexa do negócio da complexidade une enquanto distingue, na teoria de Morin a complexidade e a sim-
jurídico, formado por mais do que uma declaração e por outros atos praticados pelas plificação não são excludentes, pois esta é gerahnente necessária para a compreensão
partes ou terceiros (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 262). Em outra obra, refere do todo (mesmo com os riscos que lhe são inerentes). embora deva ser frisado que não
o autor que se o significado negocial é uno, sua detemrinação é complexa (FERREIRA existe o simples, mas apenas o simplificado (Bachelard). Ademais, a complexidade de
DE ALMEIDA, 2005, p. 154). Nesse contexto, o conceito de situação objetiva foi ad- Morin não se assemelha ao conceito de totalidade. Dito isto, cabe salientar os princi-
jetivado de complexo em aproximação com a teoria do pensamento complexo de Ed- pais pontos de contato da teoria ora em desJaque com o paradignia teórico gadameria-
gar Morin, a qual reagrupa unidade e diversidade no campo do conhecimento ao pro- no. Primeiro, Morin também parte de uma compreensão crítica do ideal cientificista
curar "ao mesmo tempo distingiiir (mas não disjuntar) e reunir" (MORIN, Edgar. O cartesiano por adotar o paradigma da simplicidade, restringindo suas análises ao te-
Pensamento Complexo, Um Pensamento que Pensa. /11: MORIN, Edgar; LE MOIGNE, matizá-las por áreas, na vã tentativa de evitar a desordem (nahiral e necessária), o que
Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Petrópolis, 2000. p. 207). acaba mutilando o pensamento do ser humano e relegando a complexidade das ques-
Salienta o autor que, "à primeira vista, a complexidade é 11111 tecido (. . .) de tões tratadas. Para o autor, a ciência deixa de circunscrever suas competências especiali-
constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do 11110 e zadas no contexto natural (realidade) que é multidin1ensional (simultaneamente eco-
do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efetivamente o tecido de acon- nômico, psicológico, mitológico, sociológico, etc.). Ignorando o fenômeno sistêmico.
tecimentos, ações, interações, retroações, determinações e acasos que constituem o a ciência compreende estas dimensões separadamente, em uma "i11teligê11cia parcelar,
nosso mundo fenomenal" (MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. co111parti111e11tada, 111ecâ11ica, disjuntiva e reducionista que quebra o complexo do
Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 20). Em outra passagem, o paradigma da complexi- mundo, produ= fi·agmentos, J,-acio11a os problemas, separa o que é ligado, 1111idi111e11-
dade é definido como sendo "o conjunto de princípios de inteligibilidade que, ligados sionafi=a o 11111ltidi111e11sio11al (. ..) 111ata11do assim todas as chances de julgamento cor-
uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do zmiver- retivo ou de visão a longo termo", o que talvez a tome mais lúcida sobre uma pequena
so fisico, biológico, antropossocial" (MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. parte separada do seu contexto, mas a mantém cega sobre a relação eutre a parte e o
Lisboa: Europa-América, 1982. p. 246), o que leva à conclusão de que o pensamento seu contexto (MORIN, 2000). Tal visão é bem representada no pensamento anedótico
não produz nem detemrina a inteligibilidade, mas incita o sujeito a investigar e consi- de George Bernard Shaw: "o especialista é o homem que sabe cada ve= mais coisas
derar a complexidade do problema estudado. Os procedimentos cognitivos do pensa- 1111111 terreno cada ve= menor, o que o fará saber tudo sobre 11ada." Morin propõe a
mento complexo, que tratam com a incerteza e a organização, são guiados pelos se- quebra de paradigmas por meio de uma abordagem transdisciplinar dos fenômenos,
guintes princípios: (1) sistêmico-organizacional: liga o conhecimento das partes ao abandonando o reducionismo que tem pautado a investigação científica e
conhecimento do todo; (2) hologramático: inspirado no holograma (onde cada ponto privilegiando a criatividade. traço marcante da hennenêutica filosófica. Nesses
contém a quase totalidade da infomiação do objeto representado), evidencia o parado- tem10s, o pensamento complexo liga a autonomia da filosofia (tradicionalmente pen•
xo dos sistemas complexos, onde a parte está no todo e o todo se inscreve na parte sada de um ponto de vista puramente metafisico) com a dependência do detemrinismo
(ex.: cada célula contém todo o material genético do indivíduo); (3) anel retroativo: científico, evitando tanto a manutenção de uma ciência com dependência e sem auto-
media os processos de autorregulação e rompe com o princípio da causalidade linear nomia, quanto uma filosofia com autonomia e sem dependência. Embora o pensamen•
ao entender que a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa; (4) anel recursivo: to complexo não se reduza à ciência ou à filosofia, pemrite a comunicação entre elas,
supera a noção de regulação com a de autoprodução e auto-organização ao defender servindo-lhes de ponte (MORIN, 2000). Essa linha de raciocínio transcende a impor•
que os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os produz (ex.: o in- tância da transdisciplinariedade na pesquisa científica. uma vez que a destaca não
divíduo produz a sociedade que é produtora da humanidade desse indivíduo ao apor- apenas em seu aspecto externo (uso de vários ramos da ciência na análise de determi-
tar-lhe a linguagem, a cultura e as nonnas); (5) auto-eco-organização: media as no- nado objeto, em uma espécie de interdisciplinaridade), mas também em seu viés in-
ções de autonomia e dependência por intermédio do entendimento de que, embora o terno, que diz com a necessidade de assintllação da multidimensionalidade da realida-
indivíduo seja auto-organizado, depende da energia, infonnação e organização do de por cada um dos ramos da ciência (ex.: a própria henuenêutica jurídica deve reco-
meio ambiente social (ex.: cultura) para salvaguardar a própria autonomia, o que de- nhecer a complexidade de seu objeto), o que se constitui em noçãó -iuuito valiosa ao
nota que esta característica é inseparável de sua dependência; (6) dialógico: une para- presente eshtdo. Segundo, a pattir das noções acima mencionadas, Morin aceita a
digmas que, embora excludentes entre si, são indissociáveis numa mesma realidade,
Interpretação Contratual 169
168 Felipe Kirchner.
Seguindo as preciosas lições de Clóvis do Couto e Silva acerca
totalidade orgânica556 , unitária e dinâmica557 , sempre dotada de sentido da relação obrigacional, tem-se que a unidade desta situação objetiva
(concatenação produtiva), a qual é fonnada pelo instrumento contratual complexa não se esgota na soma dos elementos que a compõem e deve
representativo da autonomia dos contraentes, sua relação com o sistema ser considerada em seu aspecto dinâmico, já que a relação contratual se
jurídico e todas as circunstâncias do caso relevantes que permearam sua encadeia e se desdobra, temporária e historicamente, em direção ao
gênese e desenvolvimento558 , de cujo amálgama reside a imprescindibili- adimplemento de todos os direitos e posições jurídicas objetos da pactua-
dade da concreção normativa e fática no procedimento hennenêutico. ção559, o que impõe a verificação de um aspecto cooperativo, tendo em
vista a exigência geral da socialidade560 •
ideia do movimento da compreensão parte-todo-parte (contida no conceito gadameri- A construção do conceito está centrado na ideia de que tudo o
ano de circulo hennenêutico ), quando afimrn que "só podemos conhecer, como di=ia
que é dito não contempla toda a verdade daquilo que pretendia ser comu-
Pascal, as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o
todo se conhecermos as partes que o compõem", devendo o sujeito ligar as coisas que nicado, remetendo sempre ao que não foi dito, a sua motivação ( causa e
parecem separadas umas em relação às outras. Em tennos sociais (interessante do conteúdo do negócio jurídico). Refere Gadamer que uma pergunta da
.... · ponto de vista da tipificação contratual), Morin entende que o sujeito produz a socie- qual não se sabe a motivação não pode ser respondida, sendo na história
dade que o produz, ou seja. o homem é uma pequena parte do todo social que se encon- da motivação da pergunta que se abre o âmbito no qual é possível a busca
tra em sen interior por meio das regras sociais, da linguagem social e da cultura. Parafra-
seando Marcel Mauss, o autor entende que "é preciso recompor o todo" (MORIN, de uma resposta. É só o não dito que converte o dito em palavra que pode
2000). Terceiro, assim como em Gadamer, a concepção de Morin acerca da constru- nos alcançar, ou seja, um enunciado somente se toma compreensível
ção de conhecimento tem natureza clialógica e aberta, não permitindo a exclusão de quando no dito se compreende também o não dito 561 •
argumentos. O quarto, Morin liga o objeto ao sttieito e ao seu ambiente, em uma au-
sência de separação de tais polos da relação hermenêutica, defendendo, ainda, que o
regras que regem o setor econômico no qual inserida a operação (econômica) a que o
objeto deve ser considerado mais como um sistema-organização. O quinto, o enten-
contrato visa instmmentalizar (MARTINS-COSTA, 2005b, p. 122: LARENZ, 1989,
dimento de Morin vai ao encontro do ideal de concreção (fática e nom1ativa) e de sua
p. 223). Ademais, o conceito engloba, inclusive, as motivações conscientes e incons-
sistematicidade, quando propõe a necessidade do sujeito cognoscente contex-tualizar
cientes da ação humana que· foram objetivadas e que também são suscetíveis de inter-
cada acontecimento em um viés sistemático, vislumbrando que as coisas não aconte-
pretação (GADAMER, 2004. p. 506), pois a noção posta não se linúta às declarações
cem separadamente, pois "toda e qualquer informação tem apenas um sentido em re-
externadas, abarcando até mesmo o silêncio, objeto de grande significância no âmbito
lação a uma situação, a um contexto", o que linguísticamente é percebido com a regra
jurídico (MEGALE, 2005, p. 155).
de que "o sentido de 11111 texto é esclarecido pelo seu contexto" (ex.: a declaração amo-
te pode expressar uma paixão sincera ou a farsa de um sedutor) (MORIN, 2000). m O conceito de situação objetiva complexa atende à concepção da obrigação como
556 processo suscitada por Karl Larenz e desenvolvida nacionalmente por Clóvis do Cou-
Betti utiliza reiteradamente expressões como complexo orgânico e co1if11nto orgânico, to e Silva. a qual entende a relação obrigacional como um sistema de processos (cuja
em consonância com o conceito aqui fommlado de situação objetiva complexa unidade não se esgota na soma dos elementos que a compõem): uma totalidade orgâ-
(BETTI, 2007, p. XLVII, 11, 29 e 37). Em outra obra, o filósofo adverte que "o negó- nica de cooperação (onde credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas)
cio é considerado como um todo unitário, a inte1pretar na sua totalidade: um todo, que se encadeia e se desdobra, temporariamente, em direção ao adimplemento (à sa-
entre c1yas diferentes partes, preliminares e conclusivas, não é admissível uma clara tisfação dos interesses do credor). que atrai e polariza a obrigação, abrangendo ·•rodos
separação" (BETTI, 2003b, p. 176). os direitos, inclusive os formativos, pretensões e ações, deveres (principais e secun-
557
GRAU, 2003, p. 55. A apreensão da existência de uma unidade no curso da relação dários dependentes e independentes), obrigações, exceções, e ainda posições jurídi-
contratual impinge o entendimento de que as condutas subsequentes ao contrato for- cas" (SILVA, 1976, p. 5). Em tennos complementares, cabe mencionar a acepção de
mam um todo único com este (BETTI, 2007, p. 367). Essa conclusão é decisiva do Enzo Roppo sobre a processualidade no âmbito do Direito Contratual (ROPPO. 1988,
ponto de vista hermenêutico, pois alcança a dimensão construtiva e relacional desta p. 125) e de Miguel Reale sobre a processualidade do pensar (REALE. 1999. p. 89).
fase comportamental e comunicacional, transcendendo o paradigma clássico que vê os Com relação ao tema, núster se faz destacar, ainda. que a noção do contrato como
comportamentos posteriores à conclusão do pacto de fomrn estática e meramente processo engloba o uso da tenninologia processo (série de atos conforn1ados no tem-
comparativa com uma declaração inexplicavelmente cristalizada no tempo e no curso po, tendentes a um fim, que é o adimplemento) e procedimento (fonna como os atos
das relações humanas. processuais se dão) ( ex.: conclusão imediata e sumária' nos contratos de adesão e mais
558
São exemplos disso a situação pessoal dos contratantes e as condições gerais do negó- longa e negociada nos contratos paritários) (FERREIRA DA SILVA, 2008).
560
cio. Karl Larenz e Judith Martins-Costa mencionam que a atividade de interpretar não BETTI, 2007, p. 355.
561
se restringe ao que consta no instrumento contratual, pois este não é formado apenas GADAMER. 2004. p. 67, 181 e 575: GADAMER. 2007c. p. 78-79. Ao seguir Urban.
por manifestações de vontade ou por condutas, mas igualmente pelas circunstâncias e Enúlio Betti aceita o fato de que o sujeito compreende mais do' que foi expresso
dados contextuais particulares que o cercam, mesmo aqueles de natureza extrajurídi- (BETTI, 1990b. p. 850).
ca, como os interesses empresariais estratégicos, onde devem ser levadas em conta as
Interpretação Contratual 171
170 Felipe Kirclmer ·
contratual passa a buscar o significado do conteúdo global do negócio
Isso ocorre precisamente e sempre no âmbito da interpretação jurídico, e não mais do parâmetro subjetivo do conteúdo da declaração
dos contratos, onde o instrumento é compreendido nos limites das moti- negocial -, não subsiste a mínima razão para posicionar as circunstâncias
vações dos contraentes, ou melhor, no limite da motivação bilateralizada do caso fora do objeto da interpretação. A ideia de que as circunstâncias
dos contratantes quando da realização do pacto e de sua execução. O relevantes (ex.: comportamento do declarante) se constituem em mero
âmbito do contrato não se esgota naquilo que o instrumento diz, no que a material interpretativo (jacta concludentia) do qual o intérprete extrai a
paitir dele vem à fala. Sua linguagem remete para além dela mesma e da declaração e o seu sentido 565, parece mais um artificialismo do que real-
expressividade que apresenta, não porque a linguagem seja imprecisa, mente ocorre na factualidade do agir interpretativo. Esta desconexão com
mas porque sempre pennanece aquém do que evoca e comunica, pos- a realidade hermenêutica fica bem demonstrada quando se observa, por
suindo um sentido implícito que funciona como um pano de fundo diver- exemplo, que de simples comportamentos resultam relações de tipo con-
so da vontade subjetiva e que necessariamente precisa ser quantificada tratual, razão pela qual não se pode negar que estes elementos fáticos e
pelo intérprete562 • É exatamente pela necessidade de abarcar esses fenô- nonnativos são objeto da interpretação que procurará desvelar o signifi-
menos que não se encontram no contrato, mas, sim, no conjunto global cado, alcance e validade dos contratos ou das mencionadas relações para-
das circunstâncias relevantes (fáticas e normativas), que o objeto da in- contratuais. Já na introdução de sua publicação sobre hen11enêutica, Eros
terpretação adotado neste estudo (situação objetiva complexa) é tão Grau é enfático ao defender que as circunstâncias do caso englobam o
abrangente, confrontando-se com a doutrina clássica (oitocentista e vo- objeto da interpretação, por serem constitutivas da nonna: "ao inte,pretar
luntarista) que limita o objeto da interpretação à declai·ação de vontade563 • os textos normativos e os fatos, elementos do caso, o inté,prete toma
Joaquim Ribeiro já delineou a complexidade orgânica e unitária também como objeto de compreensão a realidade em czyo contexto dá-se
da estrutura normativa do contrato formada não apenas pela declaração a inte,pretação, no momento histórico em que ela se dá" 566 •
negocial, mas também por fontes perfonnativas oriundas dos contextos Deve ser salientado, por fim, que, no âmbito da situação objeti-
situacionais (elementos não consensuais). O autor refere que a concepção va complexa, a declaração negocial encerra uma verdadeira fusão dos
do contrato como sendo um sistema particularizado imerso em outros horizontes dos contratantes acerca do negócio jurídico regulado pelo ins-
sistemas mais amplos possui duas grandes vhtudes. A prhneira, que per- trumento que, sendo o produto final do acordo de vontades, não encampa
mite melhor captar no plano da relação dos contraentes (autonomia pre- a vontade do contratante "A" e do contratante "B", mas a vontade unifi-
sente no desenvolvimento da relação contratual) a produção de efeitos cada dos contratantes. Esta vontade bilateralizada é algo bastante diver-
vinculativos que não poderiam ser normativamente reconduzidos a abs- so da soma das motivações subjetivas, não podendo ser desmembrada,
tração jurídica do acordo de vontades (aspecto nomogenético que al81:~ª o especialmente tendo como parâmetro a vontade patticular de qualquer das
espectro dos efeitos obrigatórios do contrato, dotando-o de un~a deseJavel partes. Há um potencial de alteridade em todo consenso, não sendo o
mobilidade relacional). A segunda, a visão do contrato como mstrumento contrato exceção 567 • O contrato implica a paiticipação em um significado
de nonnação de relações sociais permite dar relevo a aspectos estruturais e comum. Além da natureza no1111ativa, o contrato encerra uma dimensão
funcionais da realidade a ordenai·, potencializando o raciocinar por concre- de solidariedade ético-social no acontecer da comunhão de autonomias.
ção, pois a conduta das partes passa a ser analisada de forma situada, abar- Nesses termos, cabe salientar que é exatamente sobre essa vontade unifi-
cando aspectos institucionais dos sistemas social, econômico e jurídico564 • cada que o intérprete se debruça em seu esforço hennenêutico.
Ressalte-se, ainda, que, se estando liberto do dogma da vontade
565
- pois a partir do conceito de situação objetiva complexa a hennenêutica MARINO, 2003, p. 164.
566
GRAU, 2003, p. 17. Esta afirmação é ratificada em diversas outras passagens de sua
obra: GRAU, 2003, p. 22, 28. 84, 93, 97 e 186.
562 GADAMER, 2004, p. 209-210. Nesta última passagem. Gadamer ainda refere que o 567
Ao encontro destas considerações, a concepção dialógic~ gadameriana acerca da conm-
dizer movimenta-se para trás de si mesmo de duas formas: o que no dizer pennanece nicação humana. a qual se encontra fundada na premissa de que o diálogo não se consti-
não dito, tomando-se presente como não dito no dizer, e o que no dizer se encobre. tui em opiniões contrapostas ou na mera soma da opinião dos interlocutores. mas em
Todos esses níveis da linguagem devem ser captados pelo intérprete em seu esforço uma comunhão de opiniões. em uma interpretação comum do mlllldo. pois ele transfor-
hennenêutico. ma a ambos. O caráter dialogal presente no horizonte do contrato ulrnipassa o ponto de
563 MIRANDA, 1989. p. 178: LARENZ. 1989, p. 377; SANTA MARIA, 1966, p. 8. partida da subjetividade dos contratantes (GADAMER, 2004, p. 140,221 e 387).
5 6-1 RIBEIRO, 1999, p. 15-19.
172 Felipe Kirchner •

Em face da natureza socioeconômica do contrato, interpretar


é sempre dar concreção (e concretizar) à pactuação, poi_s é a atividade
hermenêutica que opera a inserção do elemento normativo na sua rea-
lidade constitutiva (retomo ao contexto social que originou e desen-
volveu o contrato). É essa a dimensão que passa a ser analisada na Capítulo Il
segunda parte do estudo, onde serão ªJ?resentadas as pren~i~sas do
raciocínio por concreção, bem como o instrumental necessano ~ o_s
limites presentes na consecução desta tarefa, explorando as potenc1ah- ~
HERMENEUTICA E CONCREÇAO
-
dades hennenêuticas dos postulados das circunstâncias do caso e da
proporcionalidade.

Assentadas as premissas acerca dos pressupostos necessários ao


fenômeno hermenêutico que se debruça sobre o contrato, nesta segunda parte
o estudo procura a complementação teórica do paradigma interpretativo aqui
tratado, apresentando a essencialidade do raciocínio por concreção no iter
exegético568 • Para tanto, inicialmente serão apresentadas as considerações
gerais sobre o método concretista e, posteriormente, serão enfrentadas as
peculiaridades da que serão denominadas concreção fática, relativa ao con-
texto material significativo da relação contratual, e nonnativa, atinente à
relação da pactuação privada com as diretrizes do ordenamento jurídico.
Antes de enfrentar os temas supramencionados, cabe destacar
que neste tópico será enfatizada a influência do método concretista no
âmbito da interpretação contratual, apresentando-o corno premissa ne-
cessária e instrumento indissociável da busca pela compreensão do
contrato. Assim, aqui serão enfrentados os pressupostos que permitirão
a correta e efetiva mensuração dos aspectos fáticos e normativos conti-
dos na situação objetiva complexa, o que se fará mediante a respectiva
utilização dos postulados normativos das circunstâncias do caso e da
proporcionalidade 569 •

568
Dentre os vetores que guardam correlação com o raciocÚlio por concreção. destacam-
-se: o postulado do Dasein, a contemplação hennenêutica da fmitude humana. o
amálgama Últerpretação-compreensão-aplicação. o caráter criativo da atividade exegé-
tica, a ausência de separação entre sujeito e objeto, a força vinculante do objeto Últer-
pretado, a historicidade e a dimensão lÚlguística do fenômeno hem1enêutico, a im-
prescindibilidade da pré-compreensão do sujeito cognoscente e a noção de circulari-
dade hermenêutica. No âmbito do assunto ora tratado. Larenz chama a atenção para o
movimento essencial todo-parte-todo presente na noção de circularidade hem1enêutica
(LARENZ, 1989, p. 337). .
569
Devido ao seu objeto, o estudo enfoca a importância hem1enêutica das circunstâncias
do caso. Porém, cabe ressaltar que as mesmas, na condição de vetor~~ materiais. pos-
suem fundamental importância. também. na formação e conformação da relação con-
- Interpretação Contratual 175
174 Felipe Kirchner-
cado destas na conjuntura, circunstancialidade e facticidade em que fo-
Desenvolvendo uma concepção concretista centrada na tese de ram proferidas 571 •
que existe uma dialética produtiva de complementação e restrição recí-
procas na relação entre os pensamentos (formas de raciocínio) tópico e
sistemático, o estudo irá examinar duas vertentes possíveis da concreção. 1 O RACIOCÍNIO JURÍDICO POR CONCREÇÃO
Primeira, sua dimensão fática, que envolve a mensuração hermenêutica
dos elementos concretos formadores da situação objetiva complexa por No presente tópico será apresentada a estrutura teórica do racio-
meio do postulado nonnativo das circunstâncias do caso. Segunda, seu cínio jurídico por concreção 572 • O cumprimento desta tarefa consistirá no
viés normativo, que encampa a relação entre o ato de autonomia repre- enfrentamento dos pressupostos gerais desta vertente hermenêutica, na
sentado pela declaração negocial e o sistema jurídico, o que abrange uma necessária imposição de limites à sua utilização, na apresentação de sua
dimensão sistêmica mediada pelo postulado da proporcionalidade. correlação com a manutenção da força nonnativa do contrato, na atribui-
Contudo, deve-se salientar que a cisão destes planos se dá por ção dos pontos de relevância hennenêutica dos diversos tipos contratuais
razões eminentemente didáticas, pois é somente na análise conjunta dos e, por fim, no desvelamento da natureza jurídica das circunstâncias do
: . ...

aspectos fáticos e nonnativos da concreção contratual que se alcançará a caso e da proporcionalidade, preceitos que irão nortear as duas parcelas
desejada completude no agir hermenêutico. Enfatizar apenas um dos pla- finais desta segunda parte do estudo.
nos (fático-tópico ou nonnativo-sistemático) no iter interpretativo redun-
daria em uma apreensão apenas parcial de um fenômeno complexo que se 1.1 Os Pressupostos Gerais sobre o Raciocínio por Concreção
desencadeia de forma absolutamente unitária.
É por meio destes vetores, conformadores da concreção individua- Em termos conceituais, salienta Miguel Reale que, no plano legis-
lizadora, que a atividade hermenêutica passa a considerar a estrutura única lativo, a concreção jurídica constitui-se na "obrigação que tem o legislador
do caso e, a partir desta, constrói uma compreensão e consequência jurídica de não legislm· em abstrato, para um individuo perdido na estratosfera, mas
estruturada de fonna singular embora com pretensões de universalidade e qum1do possível legislm· pm·a o individuo situado"573 • Voltada ao exame da
intersubjetividade -, de forma que todas as circunstâncias fáticas e norma- interpretação contratual, Judith Martins-Costa assim se posiciona:
tivas repercutam no produto final de uma atividade interpretativa sempre
considerada como instância produtiva, incompleta e crítica570 • A concreção é 11111 método hermenêutico pelo qual as normas de dever
ser (. ..) são compreendidas 'em essencial coordenação com o caso
Nestes tennos, aqui se pretende afastar o erro (e a fácil tenta-
ção!) que deriva do entendimento de que os problemas hermenêuticos 571
REALE. 1997b. p. l e 3-4. Em outro texto. o jusfilósofo brasileiro ressalta que '"toda
podem ser resolvidos tão somente a partir da análise das declarações for-
inte1pretação é condicionada pelas mutações supervenientes, implicando tanto a in-
mais que constituem a relação contratual, pois, como bem salienta Miguel tencionalidade originária do contrato, quanto as exigências Játicas e a.tiológicas
Reale, estas devem sempre ser situadas no complexo unitário de seus ocorridas, numa compreensão global, ao mesmo tempo restrospectiva e prospectiva
motivos e circunstâncias. A um agir hermenêutico que se pretenda mini- (nature=a histórico-concreta do ato inte,pretativo)" (REALE, Miguel. Característicos
mamente sério do ponto de vista científico, não basta a exegese puramen- do Contrato de Concessão Comercial. ln: REALE, Miguel. Questões de Direito Pri-
te fom1al das cláusulas contratuais, uma vez que estes elementos somente vado. São Paulo: Saraiva, 1997a. p. 184).
572
têm significação real quando apreciados em sua concretude, dimensão Refere Fabiano Menke que a denominação concreção do direito (também verificando-
que desvela não apenas o sentido das palavras empregadas, mas o signifi- -se a utilização do tem10 concretização) foi introduzido na ciência juridica pela dou-
trina alemã. a fim de descrever o processo hem1enêutico que supera a técnica da inter-
pretação-subsunção típica do positivismo juridico, promovendo a identificação da
tratual. Exemplo desta situação ocorre com as chamadas relações contratuais de fato nonna do caso concreto a partir da visão total da situação fática (o que aqui se deno-
ou paracontrah1ais (surgidas da proteção da confiança), advindas do contato social, minará concreção fática) e da interpretação do sistema jurídico (denominada nesse es-
comportamentos socialmente típicos (Larenz), relações comunitárias (societárias e de tudo como concreção normativa) (MENKE, Fabiano. A Interpretação das Cláusulas
trabalho) e resultantes da prestação de bens e serviços essenciais (ex.: água, luz, Gerais: a subsunção e a concreção dos direitos. Revista da Ajuris. n. 103, p. 79).
transporte coletivo). FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 27-28; FERREIRA DA 573
REALE, Miguel. O Projeto de Código Civil: situação atual e seus·problemas funda-
SILVA, 2001a. mentais, 1986. p. 6-13.
570
ENGISCH, 1968, p. 389
Interpretação Contratual 177
176 Felipe Kirchner .
-compreensão), elemento nonnativo a ser concretizado (em sua dimensão
concreto, que os complementa e lhes garante força enunciativa', as- sistemática) e problema concreto a ser solucionado577 • Tais elementos são
sim se possibilitando a sua determinação ou especificação. (,,) trata- encarados de fonna dialética e orgânica, pois a teoria da concreção jurídi-
se de um processo multidirecional em que direito e realidade se com-
ca não aceita nenhuma explicação do fenômeno jurídico 578 que derive tão
plementam e inte1penetram continuamente, fornecendo os elementos
necessários à decisão final, Em tal sentido, o termo 'concreção' de-
signa a construção, no caso, do significado da norma jurídica {legal apenas a premissa maior do silogismo, pois o seu domínio é parte integrante da confi-
ou conh·atual) levando-se em consideração as circunstâncias concre- guração da previsão nonnativa. Contudo, cabe mencionar que o autor em exame deixa
tas do caso analisado (elementos fáticos) em sua correlação com de- transparecer que esta simbiose entre norma e realidade se daria apenas nos casos em
terminados elementos normativos, a saber, os princípios, os postula- que o elemento nom1ativo não define de modo suficiente e preciso o seu âmbito de
dos normativos e as regras jurídicas considerados relevm1tes para aquele aplicação. o que não se coaduna com a matriz teórica aqui utilizada (LARENZ. 1989.
caso. Por essa razão, concretizm· implica sopesar os referidos elementos p. 154-157). Por fim. galgado em uma ideologia democrática e como consequência da
fálicos e normativos, de modo que ao 'tomar concreto' o inté1prete adota necessidade de integração da realidade no processo de interpretação, Peter Hãberle de-
uma atitude de ordenação e de estabelecimento de relações compondo e fende a ideia de que todo aquele que vive a norma ( constitucional) acaba por interpre-
entretecendo elementos de ordemfática e nonnativa5 74 • tá-la, razão pela qual toda a sociedade se converte em força produtiva de interpretação
(alargamento do círculo de intérpretes. alcançando todos os órgãos estatais. potências
Em termos estruturais575 , o método concretista576 gravita em públicas, cidadãos e grupos). Nesses tem10s, a interpretação surge como elemento da
tomo de três dados essenciais: compreensão prévia do intérprete (pré- sociedade aberta, sendo ao mesmo tempo 11111 componente resultante da influência
desta e um fator fommdor e/ou constituinte da mesma (HABERLE. 1997, p. 10, 13 e
574
30; BONAVIDES, 1994, p. 228-472).
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 137.
575
576 A expressão método concretista deve ser vista com ressalvas. Embora seja amplamen-
Historicamente, o método concretista foi desenvolvido no campo do Direito por meio te aceita pela doutrina, a fonna de raciocinar por concreção não atende, necessaria-
de estudos voltados ao plano da heteronom.ia, especialmente do Direito Constitucio- mente. a lml pensamento galgado no ideal metódico. o que por certo não ocorre peran-
nal, por grandes expoentes, cada qual oferecendo valiosas contribuições que merecem te o paradigma hennenêutico adotado neste estudo.
ser ao menos smnariamente mencionadas, pois podem ser aplicadas ao plano da inter- 577 HECK, 2006. p. 14. Engisch refere que o raciocínio por concreção contempla refe-
pretação contratual, até porque o Direito Privado é mn dos ran10s mais afeitos ao racio- rências da individualidade do caso e da individualidade de quem decide (EN-
cinio situado (HESSE, 1998, p. 70; LARENZ, 1989, p. 160; GRAU, 2003, p. 54). GISCH, 1968. p. 183).
Konrad Hesse comunga do entendimento gadan1eriano de que a norma somente se 578 O método concretista também assume feições substanciais na seara material de outras
completa no ato interpretativo ( caráter criativo da atividade hermenêutica) e de que a áreas do Direito. É o que ocorre, por exemplo, no Direito de Fanúlia, onde prevalece o
compreensão pressupõe a pré-compreensão do intérprete (STRECK, 2000, p. 244). O entendimento de que a paternidade socioafetiva goza de primazia com relação ao re-
autor entende que a compreensão somente surge em face do problema concreto, de conhecimento fonnal de paternidade. Nesta seara. a consubstanciação do raciocú1io
fonna que a detem1inação do sentido do objeto e a sua aplicação ao caso concreto por concreção ainda assume relevância na questão do procedimento de adoção, onde,
constituem um processo unitário. A ideia de concreção desenvolvida por este pensa- considerando as circunstâncias do caso ( demonstração da paternidade socioafetiva e
dor é a de que o Direito tem a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida de outras provas relevantes acerca do desejo de ser pai/mãe do menor), a jurisprudên-
e a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força cia tem reconhecido inclusive a adoção póstuma (tácita e preexistente aos processos
nom1ativa ( da Constituição) (procedimento hermenêutico submetido ao princípio da nomiativos fonnais). realizando wna interpretação extensiva do art. l.628, do
ótima concretização da nonna [Gebot optimaler Verklichung der Norm]), sendo o CC/2002 (REsp 457635/PB, 4ª Tunna. STJ Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior,j.
procedimento interpretativo adequado quando o intérprete consegue concretizar o sen- em 19.11.2002: AC 70014741557. 7ª Câmara Cível. TJRS. Rei. Des. Ricardo Raupp
tido (Simz) da proposição nom1ativa no contexto das condições reais de uma detenni- Ruschel, j. em 07.06.2006: AC 70003643145, 7ª Câmara Cível, TJRS, Rei. Des. Luiz
nada situação hermenêutica (HESSE, 1991, p. 22: HESSE, 1998, p. 50-51 e 61). Já Felipe Brasil Santos, j. em 29.05.2002). Maiores exemplos poderiam ser trazidos do
Friedrich Muller entende que o texto juridico é apenas a parte descoberta de um ice- Direito Penal. área mais afeita à análise material das questões judicializadas (situação
berg nonnativo composto pela situação concreta, pois a interpretação engloba tanto o nonnada). Nesse campo. pode-se citar a aplicação do princípio da insignificância, que
programa normativo (dados linguísticos da disposição analisada) quanto o seu domí- em razão da análise do contexto fático, afasta a tipicidade da conduta delitiva. raciocí-
nio normativo (parcela da realidade concreta a que anomia se dirige), o qual é apenas nio que pode ser utilizado na seara civil, como decidido pelo TJRS na AC
parcialmente contemplado por aquela dimensão (programa normativo), cabendo ao 70012886412 (ação civil pública sobre improbidade administrativa que tinha como
sujeito cognoscente articular, dentro da atividade de concretização, estes dois proces- objeto dano ao erário apurado em R$ 8,47): "a incidência indiscriminada da norma,
sos parciais que se encontram. teoricamente separados (BONAVIDES, Paulo. Curso sem que tenha o julgador a noção da proporcionalidade e da rccoabilidade, importa
de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 456). Esta apreensão está materia/i::;ar a opressão e a iryustiça. Por isso, condutas que do pontO'(fe vista formal
construída sobre a negação da contraposição entre ser e dever-ser, ou seja, entre a se amoldam ao tipo não devem ensejar punição, quando de nenhuma relevância ma-
norma e a realidade a que ela se dirige. Nessas condições, o elemento nonnativo não é
--
Interpretação Contratual 179
178 Felipe Kirchner .

e separadas)584 , é inequívoco que a posição majoritária entende a nonna


somente de um dos seus aspectos 579, procurando, antes, integrá-los em
estatal ou contratual como um imperativo dado e acabado antes do caso
uma unidade sociodinâmica que detenha natureza lógico-normativa (con-
concreto ao qual o determinado elemento nonnativo se aplica 585 , ativida-
ciliando as exigências estruturais e funcionais do Direito) 580 • Assim sen-
do, a interpretação surge como elemento necessário e imprescindível da de esta que é realizada de forma isolada dos vetores axiológicos que re-
gem o ordenamento em sua condição de totalidade nonnativa 586 •
construção normativa, e a concreção não se debruça apenas por sobre o
caso concreto, como a nomenclatura poderia falsamente indicar581 • Nesse Karl Larenz afirma que o problema fundamental da hennenêuti-
sentido o pensamento de Konrad Hesse, que alcança a concreção nonna- ca jurídica não é a distância temporal entre a concepção da norma e o
tiva (e sistemática) aqui proposta: momento de sua aplicação (historicidade), mas, sim, a distância entre a
sua generalidade (presente em menor medida nos contratos paritários)587 e
A vinculação da inte,pretação à norma a ser concretizada, à (pré)
compreensão do inté1prete e ao problema concreto a ser resolvido,
cada vez, significa, negativamente, que não pode haver método de in- 58-1 HOMMERDING, 2003. p. 40. Seguindo a observação de Tercio Sampaio Ferraz
Júnior, este estudo. ao buscar um normativismo concreto que desvele a complexidade
te1pretação autônomo, separado desses fatores, positivamente, que o
das estruturas normativas e possa responder à chamada crise do direito (REALE.
procedimento de concretização deve ser determinado pelo_ o_,bjeto da 1968, p. 188), se volta "contra uma certa indecisão existente ainda na doutrina atual,
inte,pretação, pela Constituição e pelo problema respectivo' 8-. que permite que a combatida concepção d[l 'normatividade jurídica abstrata '1 expul-
sa pela porta daji-ente, entre, so1rateira, pela porta dos fimdos" (FERRAZ JUNIOR,
Embora o raciocínio por concreção não possa ser considerado 1981). O próprio Gadamer sugere que "um positivismo legal que quisesse redu=ir toda
um tema novo para a teoria da compreensão 583 , ganha enorme relevância a reah'dadejurídica ao direito positivo e a sua aplicação correta dificilmente encon-
no atual contexto, onde os operadores jurídicos, a doutrina e a jurispru- traria hoje alguém que o adotasse" (GADAMER. 2004. p. 465). No mesmo sentido
Larenz, para quem "a inte1pretação das leis, como toda a compreensão de expressões
dência trabalham, de maneira geral, com opostos indesejáveis, optando alheias, tem lugar em 11111 processo que se não pode adequar às estritas exigências do
ora por ignorar a necessidade de um raciocinar por c~ncreção, ora p~r s_e conceito positivista de ciência. Exige, em rigor, a constatação dos factos e, assim, a
utilizar de uma concreção alienante, o que se mostra igualmente preJud1- constatação do texto e de toda e qualquer circunstância que possa vir a relevar para
cial para o desenvolvimento científico do Direito. a inte1pretação" (LARENZ,.1989, p. 141).
585 FERRAZ JÚNIOR, 1981.
Como se não bastassem os radicalismos, extrai-se da práxis ju- 86
5 A falta de un1 discurso concretista na doutrina é, em certa medida, explicada pela
rídica outra forma problemática no uso hennenêutico da concreção, que é
adoção do paradigma da codificação e da instrumentalização (e do ideal cientifico que
a adoção meramente retórica desta forma de pensar o fenômeno herme- lhe dá suporte), importado das ciências naturais e aplicado "a forceps'' a Ul11a dita ciên-
nêutico. Embora seja usual na doutrina e na jurisprudência a adoção de cia social que é o Direito. Esta noção compreende a aplicação de regras nonnativas
um discurso de desvinculação com o positivismo nonnativo radical (para particulares aos indivíduos para que. a partir deste "experimento'', se alcance a possi-
o qual Direito e fato concreto são duas entidades objetivas, independentes bilidade de derivar nonnas gerais que devem ser aplicadas, posteriom1ente. de fonna
dedutiva por meio de um processo de simples subsunção. O grande problema deste
procedimento teórico é o grau de autonomia e independência que alcança o axioma, a
teria!. O princípio da insignificância dá solução a situações de iniqiiidade na medida tal ponto de não pemütir ao operador jurídico efetivar o raciocinio em contrário. ou
em que 'descriminali=a' condutas que embora fonnalmente típicas, não atingem o bem seja, efetivar a verificação de que o axioma deriva da ''.jm1ção" de casos particulares.
jurídico protegido 011 o atingem de modo irrelevante" (AC 70012886412, 21° Câmara FERREIRA DA SILVA, 2008.
587
CíveL TJRS. Rei. Des. Genaro José Baroni Borges,j. em 08.02.2006). O grau de generalidade presente no plano dos contratos é variável, porém sempre
579 existente (ex.: maior generalidade nos contratos de adesão). Mesmo que o contrato se
No que tange ao processo de subsunção,_ poder-se-ia dizer que, no método ~oncretista,
as circunstâncias do caso não atuam mais apenas como elementos da prenussa menor constitua em um elemento nonnativo representativo de uma situação particular, não
da construção silogística, pois passa a concatenar produtivan1ente a norma que consti- deixa de possuir uma pretensão de generalização de suas regras. exatamente por não
hlÍ a premissa maior (VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 180). conseguir prever todas as contingências da realidade. E;ssa dimensão é facilmente per-
580
REALE, 1981a, p. 7. No mesmo artigo o jurista brasileiro chega a afinnar que "a cebida nos modernos contratos relacionais que, devido à complexidade da situação fá-
normajurídica é a sua inte1pretação" (REALE, 1981a, p. 9). tica regulada e da grande duração temporal da pactuação, se limitan1 ao estabeleci-
581
MARTINS-COSTA, 2008; AMARAL, 2006, p. 86-87. mento de processos institucionais pelos quais os termos de trocas e ajustes serão efeti-
582 vados no curso do cumprimento contrahml. A classificação aqui mencionada atende
HESSE, 1998, p. 63.
583
ao paradigma teórico que se encontra na estrutura de modelos contratciais proposta por
Subjacente os tema em exame está o antigo problema metafisico da concreção do
Ian Macneil. Se no modelo clássico o contrato possui como características a desconti-
universal. (GADAMER, 2004, p. 33).
Interpretação Contratual 181
180 Felipe Kirclmer ·
norma, mas na situação normada, referindo expressamente que "a 'con-
as especificidades do caso concreto, sendo tarefa da concretização a supe- creção jurídica' caracteri:::a-se pelas observações das species juris, não
ração deste hiato 588 . em abstrato, mas no conjunto de suas circunstâncias existenciais, levan-
Nesses termos, o que se busca raciocinando por concreção é a do-se em conta a totalidade congruente dos motivos e fatos ocorren-
(re)qualificação do elemento nonnativo em face das exigências particula- tes"592. Trazendo estas lições para o horizonte da hennenêutica filosófica,
res da situação concreta, já que mesmo no âmbito jurídico o desenvolvi- conclui-se que a identidade existencial do elemento nonnativo e a reali-
mento do problema hermenêutico não pode levar em consideração apenas dade (ser-az) estão completamente fundidas, sendo a nomrn (seja de que
questões nonnativas, pois a concretização do Direito nem sempre (ou espécie for) sempre uma norma-no-mundo (norma-mundana).
. 'dº1co m
quase nunca) representa um probl ema JUTI . d ependentess9 , uma vez A situação normada não deve ser concebida como sendo um
que o universo normativo é sempre voltado à regulação de questões fáti- terceiro elemento na atividade interpretativa ou um produto desta, pois
cas (tenham elas uma dimensão social ou individual). além da dimensão linguística do contrato não exprimir de modo suficien-
No curso de seu pensamento culturalista590 e ontognoseológi- te e adequado a sua completude, inexiste uma radical oposição entre
co591, afirma Miguel Reale que a relevância hermenêutica não está na norma e realidade. No contexto da hermenêutica jurídica, não há como
falar em fato e norma enquanto conceitos apartados, até mesmo porque
não é possível uma distinção absolut_a entre Direito e fato, pois "toda
nuidade (atos contratuais independentes e autônomos), a impessoalidade (transação
definida sem quantificar a qualidade das partes), a presentificação (contrato planeja no questão de direito é uma questão de fato e toda questão de fato é uma
presente todos os comportamentos futuros) e o individualismo (conduta egoísta e an- questão de direito" 593 . Como estabelece Enzo Roppo, é a interpretação
tagônica dos contratantes, visando a obtenção da maior vantagem econômica possí- que constitui a atuação concreta da pactuação e realiza, efetivamente, a
vel); no modelo relacional (que supera o modelo neoclássico) o contrato (de longa du- operação econômica que lhe corresponde ao individualizar, em concreto,
ração) detém como peculiaridades as transações continuas, a abertura (grande mutabi- a medida e a qualidade das obrigações que respeitam a cada contraente594 .
lidade de parâmetros contratuais), a procedimentalidade ou desmaterialização do obje-
to (pacto se fünita a estabelecer processos institucionais pelos quais os tem1os de tro- Nesse contexto, há uma solidariedade entre Direito e fato em
cas e ajustes serão especificados no curso do cumprimento contratual), a alta exigên- todo problema jurídico coúcreto, o que inviabiliza uma distinção absoluta
cia de relações primárias e a cooperação e solidariedade como vetores intrinsecos da nos campos prático e teórico. Fonnando um todo unitário incindível,
pactuação (contrato estabelece processos de cooperação interorganizacional na ativi- descabe ao intérprete efetivar uma artificiosa decomposição da situação
dade comercial) (MACNEIL, lan. The Relational Theory os Contra,ct: selected
works of lan Macneil. Londres: Sweet & Maxwell, 2001; MACEDO JUNIOR, Ro- normada ou da norma-no-mundo. Ao encontro destas considerações, a
naldo Porto. Contratos Relacionais e Direito do Consumidor. São Paulo: Max Li- lição de Castanheira Neves:
monad, 1999. p. 105-107: 116-117 e 125-131).
588 LARENZ, 1989, p. 250-251. No mesmo sentido: GADAMER, 2004, p. 359. investiga as condições segundo as quais algo pode se tomar objeto de conhecimento
58q GADAMER, 2004, p. 454: AMARAL, 2006, p. 90. (REALE, 1999, p. 84). procurando retirar todas as cargas excessivas de filosofias ex-
5 ºº A concepção culturalista de Miguel Reale está embasada na correlação entre bens tremamente objetivistas e de disciplinas subjetivistas em geral. Como refere o filóso-
culturais e fatos nomiativos e entre realidade social e experiência juridica, apresen- fo. "na ontognoseologia, ora o problema é posto do ponto de vista do sujeito, ora do
tando os regulamentos nom1ativos como sintese e integração do ser e dever-ser, da ponto de vista do objeto, sendo estas duas considerações complementares, não po-
experiência particular e da experiência do ordenamento, ambas objetivadas na história dendo ser separadas. Só podem ser distintas como aspectos 011 momentos de 11111 único
(REALE, Miguel. Teoria e Prática do Direito: concubinato e sociedade concubiná- processo". (REALE, 2002. p. 301). O filósofo ainda afim1a que se "sujeito e objeto
não se co-implicassem na consciência intencional, não haveria concretitude no ato de
ria. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 54-165; REALE, 1986, p. 112). Esse é um paradigma
conhecer; se, por outro lado, qualq!ter dos dois termos se redu=isse 011 se resolvesse 110
modelar e interessante para este estudo, onde se pretendeu inserir uma matriz herme-
ouh·o, não haveria processo cognitivo" (REALE, 1999, p.114). Já a ontoguoseologiaju-
nêutica ontológica (situada no plano do ser) no universo nonnativo do Direito (situa-
rídica é considerada como sendo Ullla parte especial da Filosofia do Direito, enquanto
do no plano do dever-ser). estudo específico de cada lllll dos elementos da Teoria' Tridimensional de Reale (fato.
5q 1 A ontoguoseologia é uma proposta de teoria do conhecimento que parte de referências
valor e nonna). de acordo com perspectivas éticas, lógicas e/ou histórico-culturais.
objetivas e trabalha com o sujeito e o objeto como sendo duas polaridades que se 592
complementam (REALE, 1999, p. 54 e 60), entendendo que não existe universalidade REALE, 1984, p. 175-201. Gerson Branco desvela a junção dos pensan1entos cultura-
ou concreção fora dos nexos relacionais que se constituem na simbiose destes polos, o lista e ontoguoseológico na obra de Miguel Reale: BRANCO, 2006, p. 62.
593
que se afina com o pensamento gadameriano da ausência de separação entre sujeito e HOMMERDING. 2003. p. 10. , .
594
objeto. A teoria de Reale se divide em guoseologia (parte subjecti), que indaga as ROPPO. 1988. p. 169-170.
condições transcendentais de coguoscibilidade de algo, e ontologia (parte objecti), que
Interpretação Contratual 183
182 Felipe Kirchner •
descura por meio da dedução de conceitos legais, mas sim "de la relación
O "puro facto" e o "puro direito" não se encontra111 nunca na vida entre norma y realidad'', ou seja, com a quantificação hennenêutica das
jurídica: o facto não tem existência senão a partir do 1110111ento em
que se torna 111atéria de aplicação do direito; o direito não te111 inte- peculiaridades do caso em questão600 • ·

resse senão no 1110111ento e111 que se trata de aplicar ao facto: pelo que, No mesmo sentido, Karl Larenz adve1te que "o jurista tem que
quando o jurista pensa o facto, pensa-o co1110 111atéria de direito, atender aos factos sociais a que se refere uma norma e tomá-los em con-
quando pensa o direito, pensa-o co111ofor111a destinada aofacto595 . ta quando a inte,preta. Isto é tão óbvio que só aqui se refere porque se
tornou modo o censurar à Jurisprudência o seu 'ensimesmamento auto-
No Direito não pode subsistir uma separação absoluta entre ser suficiente ', como se o que constitui o objecto da regulação jurídica para
(Sein) e dever-ser (Sollen), pois o conteúdo e o significado da norma de ela não existisse"6º1• Enfocando a relação bilateral entre elemento nonna-
dever-ser não é estabelecido sem observância das relações fáticas que tivo e fatos concretos, salienta Judith Martins-Costa que a nonna deve
envolvem a dimensão do ser. Nesse sentido, tem o Direito e todos seus variar na situação fática, sob pena de perder sua visão instrumental, o que
elementos nonnativos (dos quais o contrato faz paite) uma vinculação determina a correlação entre o raciocinar por concreção e a necessária
básica e fundamental à realidade 596 • evolução da ciência jurídica602 , com o que concorda Karl Larenz, para
Sendo o contrato produto da autonomia humana, deve ser anali- quem a concreção contribui decisivamente para o desenvolvimento do
sado na totalidade dos fatores materiais e espirituais que lhe dão substra- Direito603 • .
to, "integrado nas razões históricas de seu desenvolvimento, nas intera- Eros Roberto Grau, por sua vez, também admite que "a aplica-
ções e correlações necessárias com o mundo envolvente da cultura a que ção do Direito não pode ser reduzida meramente a um exercício de apli-
pertence"597 . Reale tem a argúcia de demonstrar, ainda, que esta renovada cação de uma regra ou de um principio", pois o intérprete aplica o Direi-
investigação da objetividade tem como consequência não a negação da to enquanto sistema complexo de nonnatização do caso concreto, o que
subjetividade, mas seu enriquecimento enquanto subjetividade concreta e demonstra que as normas são produzidas caso por caso 604 • O jurista ainda
intersubjetividade598 • faz as seguintes considerações:
A ciência jurídica deve se esforçar para superar os conceitos le-
gais e alcançar as fonnas concretas e reais da vida (histórica, econômica, O intérprete procede a inte,pretação de textos normativos e, conco111i-
sociológica, religiosa, filosófica, etc.), substrato que não deve apenas se tante111ente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os aconteci111en-
tos que compõem o caso se apresentam vai também pesar de 111aneira
apresentar como objeto do Direito (material a ser ordenado pelo universo deter111inante na produção da(s) nor111a(s) aplicável(veis) ao caso.
nonnativo ), mas também como conteúdo do mesmo. A prática jurídica ( ..) a nor111a é produzida, pelo inté,prete, não apenas a partir de ele-
deve rechaçar uma existência burocrática, tanto porque os conceitos jurí- 111entos que se desprendem do te.r:to (111undo do dever-se,'), mas ta111-
dicos devem operar de forma concreta e vinculada, quanto porque as bém a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a
consequências jurídicas se destinam a situações reais. partir de elementos da realidade (mundo do se,'). lnte,preta-se tam-
bém o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade - no
Como assinala Reale, é inequívoca a correlação entre o ato in- momento histórico no qual se opera a inte,pretação - em c1yo contex-
terpretativo e o ato normativo, "não se podendo, senão por abstração e to serão eles aplicados.
como linha de orientação da pesquisa, separar a regra e a situação re- (..) Além disso, os fatos, elementos do caso, hão de ser ta111bém inter-
grada"599. Engisch ressalta que o sentido jurídico de uma nonna não se pretados. (..)
O que incisivamente deve ser aqui afirmado, a partir da metáfora de
595
Kelsen ( ..), é o fato de. a moldura da norma ser, diversamente, 1110!-
NEVES, António Castanheira. Questão-de-Facto, Questão-de-Direito ou O Pro-
blema Metodológico da Juridicidade: ensaio de uma resposta crítica. Coimbra: Al-
600
medina, 1967. p. 55-56. No mesmo sentido: AMARAL, 2006, p. 90. ENGISCH, 1968, p. 63.
601
596
LARENZ, 1989, p. 154; VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 186; ZACCARIA, 1996, LARENZ, 1989, p. 223.
p. 121-122. 602
MARTINS-COSTA, 2008.
597 603
REALE, 1999, p. 63. No mesmo sentido: VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 127, 180, LARENZ, 1989, p. 352.
183-184, 186-187 e 202. 604
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação
598
REALE. 1999, p. 65. e crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1991. p. 131-132.
SQQ REALE, 1968, p. 247.
- Interpretação Contratual 185
184 Felipe Kirclmer •
A incorporação da dimensão fática no discurso jurídico não de-
dura do texto, mas não apenas dele; ela é, concomitantemente, mol- veria chocar os operadores, eis que o próprio Direito é um nível da reali-
dura do texto e moldura do caso. O inté,prete inte,preta também o
caso, necessariamente, além dos textos e da realidade - no momento dade social, mais próxima da qual se encontra o instituto do contrat0 609 •
histórico no qual se opera a inte,pretação - em czyo contexto serão Os operadores não podem se compadecer com os limites tranquilizantes
eles aplicados, ao empreender a produção prática do direito. da tradi?ão metodológica ou com posições teóricas positivistas que pre-
A norma jurídica é o resultado da inte,pretação. lnte,pretação que - sa- gam o snnples processo de subsunção na atividade hennenêutica, pois é
bemos - não é só do texto escrito - e da própria realidade, no momento de todo evidente que os elementos normativos não detenninam completa-
histórico em que se opera a inte,pretação-, mas também dos fatos. (..,) mente o todo relevante para o deslinde dos problemas jurídicos e sociais. 610
Pois agora sabemos - repita-se - não apenas que a norma é o resul- Como indica Emílio Betti, trata-se de um grande equívoco confundir a
tado da inte,pretação, czyo objeto é o texto, mas também que o intér- lógica do Direito com a lógica fonnal, reduzindo a tarefa da interpretação
prete não inte,preta apenas os textos, porém, em corifzmto com os tex-
tos, os fatos. E, mais, ao contrário do que pensam muitos, imaginando a uma operação de subsunção silogística semelhante, em seu rígido auto-
que basta o saber ler para que se possa inte,pretar corretamente o di- matismo, às operações aritméticas611 •
reito, sabemos ainda que não se inte,pretam simplesmente os textos A distinção absoluta (logicamente pura) entre Direito e fato não
011 11111 texto. lnte,pretamos o direito, todo ele, na sua totalidade, des-
é realizável, pois se é correto afinnar que a relevância dos fatos é mensu-
de a Constituição até os atos normativos menos importantes na hie-
rada em função do elemento normatiyo a ser compreendido e aplicado -
rarquia das fontes do direito6º5.
em função de uma detenninada perspectiva jurídica e situação hennenêu-
É por isso que Eros Grau é enfático ao afirmar que "o direito é tica -, também é verdadeiro que a nonna é selecionada e determinada
contemporâneo à realidade" 6º6 • A relação entre elemento normativo e (mesmo no campo da significação) em função da estrntura concreta do
realidade - que opera a inserção da norma na vida - parece ser indissociá- caso a decidir612 • Como sustenta Engisch, o processo de aplicação do
vel, ocorrendo até mesmo no plano teórico, já que o momento de aplica- Direito apresenta duas faces: a assimilação do fato pela norma e a assimi-
ção integra o agir hennenêutico e o operador sempre supõe a aplicação do lação da nonna pelo fato, o que traduz uma abertura do fato à nonna e
elemento normativo a um caso real ou fictício 607 • vic~-vers~. Essa_ dimensão ~ornplexa não pode ser compreendida ~or
Enzo Roppo explicita um interessante viés acerca do método me~o de smgulandades conceituais como indução e dedução, pois o racio-
concretista no plano dos contratos, entendendo que o raciocinio por con- címo por concreção se utiliza destes dois juízos ao mesmo tempo 6 13 •
creção (dimensão concreta) atua no próprio conceito do instituto. Entende Apropriando-se da metáfora de Peter Hãberle, poder-se-ia dizer
o autor que o contrato, embora seja um conceito jurídico, não pode ser que o contrato é um espelho da realidade que o confonnou, mas é tam-
entendido com a mera consideração de sua dimensão nonnativa, pois esta bém, e ao mesmo tempo, a própria fonte de luz da nonnatividade desta
não constitui uma realidade autônoma. O conceito de contrato reflete uma situação concreta, em face da sua potência nomogenética e função direti-
, • 614 A· - do contrato traduz a realidade concreta do
realidade exterior a si próprio, uma realidade de interesses, relações e va propna . mterpretaçao
situações socioeconômicas, razão pela qual o conhecimento do contrato negócio jurídico nonnatizado pelo instrumento, o que encampa as neces-
depende sempre da atenta consideração da realidade que lhe subjaz e da sidades e possibilidades dos contraentes que transparecem no instrumento
qual ele representa a tradução científico-jurídica. Sequer os fins do con- ou no curso da relação contratual, razão pela qual a atividade hennenêuti-
trato são relativos ao aspecto jurídico, porquanto se encontram voltados à ca não pode superestimar o significado do texto, como oc011e em não
operação econômica instrnmentalizada, sem a análise da qual o contrato raras oportunidades615 •
se toma vazio, abstrato e, consequentemente, incompreensível, já que a
609
própria estrutura da pactuação se altera segundo o contexto em que está GRAU, 2003, p. 124.
610
inserido, inclusive (e especialmente) na fase de cumprimento 608 • ENGISCH. 1968. p. 45.
611
BEITL 2007. p. 229-230.
612
LARENZ, 1989, p. 336: MIRANDA, 1989, p. 115-116.
605 613
GRAU, 2003, p. 22, 28, 84, 93, 97 e 186. ENGISCH, 1968, p. 63.
606 614
GRAU, 2003, p. 38. No mesmo sentido: GRAU; FORGIONI, 2007, p. 26, 40 e 315. HABERLE, 1997, p. 34.
607 615
GRAU, 2003, p. 25, 27 e 34. HABERLE, 1997. p. 43.
608
ROPPO, 1988, p. 7-10 e 24.
h1terpretação Contratual 187
186 Felipe Kirchner ·
devido a inabarcável realidade dos negócios que estrutura -, não havendo
O instante de encontro do texto com a situação fática é a própria razão para falar em uma teoria contratual unitária623 •
nonna jurídica, síntese hermenêutica do complexo fático e axiológico, A premissa teórica deste estudo é a de que a concreçãà não está
elementos inseparáveis da norma estatal ou contratual nos quadr?s ?ª. sua separada da interpretação contratual, pois inte,pretar implica em con-
normatividade. Assim, as circunstâncias do caso e os vetores ax10logicos cretizar614. Como refere Eros Grau, "inte1pretação e concretização se
do sistema jurídico se apresentam, henneneuticarnente, corno sendo com- supe1põem. Inexiste, hoje, inte1pretação do direito sem concretização:
ponentes constitutivos da própria norma. A partir desta noção se identifi- esta é a derradeira etapa daquela" 615 . Por sua vez, Gadamer afirma que
ca facilmente que a concreção diz com o entrelaçamento do dever-ser "o jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determina-
16
(texto nonnativo) com o ser (dados da real~dade_ fática e normativa)~ • do caso concreto, mas procura determinar o sentido da lei, visualizando
Quando o sujeito cogita dos elementos e s1tuaçoes do mundo _da, ~ida construtivamente a totalidade do âmbito de aplicação da lei. É só no
referentes a detenninada nonna, não adentra em um aspecto rnetaJund1co, conjunto dessas aplicações que o sentido de uma lei se torna concre-
pois a própria nonna é composta pela história, cultura e demais caracte- to"616. Segue o filósofo sustentando que "o jurista sempre tem em mente a
617
rísticas do ambiente socioeconômico no qual surgiu e se aplica • lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo deve ser determinado em
Também no campo normativo a facticidade adquire o caráter de relação ao caso em que deve ser aplicado"627 • Imerso no plano da inter-
preceito, de ponto de partida primeiro e detenninante, impedi~do que o pretação constitucional, Hesse assim s.e posiciona:
sujeito cognoscente tome a significação do objeto em se,:1 ~entld? mera- (..) entendimento e, com isso, concretização, somente é possível com
mente abstrato618 • Gadamer afirma ser tarefa da hermeneutlca cnar uma vista a 11111 problema concreto. O inté,prete deve relacionar a norma,
ponte que supere a distância enti·e o elemento normativo e o caso concre- que ele quer entender, a esse problema, se ele quer determinm· seu
to defendendo existir urna ''força produtora de direito inerente ao caso conteúdo decisivo hic et 1m11c. Essa determinação e a "aplicação" da
p~rticular"619 e referindo que "o sentido jurídico de uma le~ determin~-se norma ao caso concreto são um procedimento uniforme, não aplica-
ção posterior de algo dado, geral, que em primeiro lugar é entendido
através da judicação e a universalidade da norma determzna-se basica- em si, a um fato. Não existe inte,pretação constitucional independente
mente através da concreção do caso"610 . Sob o prisma de um elemento de problemas concretos618 .
normativo formado sob o jugo da autonomia, corno é o caso do contra-
to há muito mais razão para a defesa desta forma da raciocinar por con- Como refere Stein, "a inte1pretação do mundo é a inte,preta-
cr~ção, até mesmo porque a narrativa do contrato só pode ser entendida ção da condição fática do ser humano"619 , a qual contempla a sorna de
inte1textualmente. todos os elementos de ordem histórica e cultural concernentes ao caso
O contrato, enquanto elemento textual (texto ou verbo), não analisado (ambiente social historicamente condicionado )630 •
passa de urna mera proposição normativa611 , pois o objeto da interpreta- Embora a concreção implique relacionar algo geral e prévio
ção há de ser a totalidade significativa e axiológica dos elemen!os norma- com urna situação particular, o objeto da interpretação não é sempre
611
tivos contratuais e sistemáticos com a situação normada . E essencial compreendido como algo universal que só poderia ser aplicado posterior-
que o intérprete coloque a vida real corno pano de fundo da atividade mente a uma situação particular. Como refere Humberto Ávila, "não se
hermenêutica urna vez que os conceitos jurídicos não abarcam toda a
623
realidade fen~rnenológica. Esta dimensão parece bem definida até mesmo MARTINS-COSTA. 2008.
624
no plano teórico, pois o contrato é uma categoria plural - especialmente O estudo rechaça a ideia de que interpretação e concretização se constituem em tare-
fas dissociadas, como defende parte significativa da doutrina (ex.: ALVARENGA.
1998, p. 90 e 216).
625
616 GRAU, 2003, p. 31. GRAU, 2003, p. 25 e 75.
626
617 GRAU, 2003, p. 74. GADAMER, 2005, p. 428.
627
618 GADAMER, 2004, p. 376 e 397. GADAMER, 2005, p. 429.
628
61 g GADAMER, 2004, p. 465. HESSE, 1998. p. 62.
62
620 GADAMER, 2004, p. 516. g STElN, 2004, p. 74-75.
630
621 KELSEN, 1998, p. 390-391 e 393. BETTI. 1990b. p. 833-836.
622 REALE, 1968, p. 188.
Interpretação Contratual 189
188 Felipe Kírchner _
Jato, não havendo que se falar em uma inte1pretação isolada dos textos
interpreta a norma e depois o fato, mas o Jato de acordo com a norma e a normativos, desconsiderando-se os fatos envolvidos em dado caso con-
norma de acordo com o fato, simultaneamente"631 . creto"634. É por esta razão que Gadamer entende que "a tarefa-da inter-
A ideia chave do raciocínio por concreção é a necessidade do pretação consiste em concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa
intérprete sempre atentar para uma determinada realidade concreta, não da aplicação"635 .
limitando a atividade hermenêutica aos formalismos meramente abstratos No entanto, até mesmo o sujeito cognoscente (intérprete, seja con-
ou às explicações mediadas pela fundamentação lógica dos silogismos tratante, jurista ou terceiro) é alcançado pela noção de concreção, especial-
jurídicos, como antes delineado. Em certa medida, toma-se ingênua a mente em razão da sua :finitude e da imp01tância da pré-compreensão no
prática de um raciocinar hermenêutico tão somente por gêneros, pois âmbito da atividade hermenêutica. Ao ser humano é impossível se des-
faticamente não existe a figura abstrata do "sujeito de direito", mas, sim, vincular de suas circunstâncias internas (estruturas do ser existencial) e
o homem em seu caráter situado632 • Conceitos são forjados na vida. Con- externas (horizonte do modo de ser da pessoa no meio social, cultural e
ceitos jurídicos são construídos sobre a vida. A interpretação clássica, histórico). A circunstancialidade do ser humano (aspecto orgânico de sua
devido ao seu corte teórico, só enxerga metade do problema. Os conceitos :finitude) inicia pela corporeidade e se estende à correlação intersubjetiva
abstratos do Direito (v.g.: o casal, o homem médio e a mulher honesta) e vinculação afetiva com seus pares, o que implica, desde suas origens,
funcionam como standards, elementos de comparação de significação e razões de conflito e de solidariedade, elementos sempre presentes no
de conformação das consequências jurídicas, mas apenas isso, não alcan- panorama complexo da relação contr~tual636 • É a partir desta dimensão
çando a condição de elementos substitutivos da realidade, razão pela qual que Miguel Reale constrói a noção de ética da situação, a qual busca a
não podem ser alçados à condição de instrumentos de mediação com o con-elação entre o homem situado e a comunidade concreta631 , proposta
real. que assume grande relevância para a interpretação do contrato.
No campo dos contratos, Jorge Cesa Ferreira da Silva defende a Sendo evidente que "a própria exigência de racionalidade na
existência de um "processo interpretativo não limitado às declarações i11te1pretação e aplicação das normas impõe que se analisem todas as
das partes", apontando a existência de uma diretriz da concretude orien- circunstâncias do caso coi1creto"638 , ainda subsiste a questão fundamen-
tadora do novo Código Civi1633 • Nesse contexto, a concretização da dire- tal de se saber em que medida a vinculação com a realidade deve deter-
triz normativa é determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, é minar o conteúdo da interpretação do contrato639, temática que será objeto
determinante em relação a ela, sendo impossível definir como fundamen- do tópico subsequente.
tal e prevalente somente a pura normatividade ou a eficácia das condições
sociais e econômicas que geram e regulam a relação contratual. Há uma
verdadeira reproblematização do Direito, por meio do redimensionamen- 1.2 A Necessária Imposição de Limites ao Raciocínio por
to do elemento normativo, que passa a ser analisado de uma forma mais Concreção
ampla, em conexão com a realidade e com o papel criativo do sujeito
cognoscente que está, assim, obrigado a relacionar o instrumento contra- Corno já delineado, a separação absoluta entre nonna e realida-
tual com a situação hermenêutica concreta na qual se encontra juntamente de traz indesejáveis consequências, especialmente no plano dos contratos.
com o objeto. 6
34 SILVA. 2005. p. 292-293.
A captação da situação na sua particularidade concreta é função 635
GADAMER. 2005. p. 418,432 e 439.
incindível e indelegável da atividade exegética, aspecto que, no entendi- 63 6 RIBEIRO. 1998. p. 751-752. .
mento de Sérgio André Silva, "tem particular importância no âmbito 637
REALE. 1999. p. 210-212 e 226.
638
jurídico, na medida em que se reconhecem as implicações entre norma e Á VILA. 2006. p. 154.
63
g Deve ser considerado tanto que o Direito fixa suas raízes sobre a estrutura ontológíca
dos homens e da comunidade, quanto que o contrato possui destinatários específicos e
631
ÁVILA, 2006,p. 99. um âmbito de aplicação bem mais situado que a nom1a legal. somente fazendo senti-
632
MARTINS-COSTA, 2008. do, portanto, perante o fato concreto (ENGISCH, 1968. p. 193. 195-, 198, 201, 203-
633
FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e Extinção das Obrigações. 204, 222. 346 e 361),
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 44-45 e 225.
Interpretação Contratual 191
190 Felipe Kirchner .
Refere Miguel Reale que o sujeito cognoscente deve superar a
Contudo, a utilização de uma concreção alienante se mostra igualmente fratura do pensamento contemporâneo. Se o henneneuta não pode se
perniciosa, razão pela qual se faz necessário ressaltar a imprescindibili- desvencilhar da experiência humana, também não pode abrir mão dos
dade do alcance de um ponto de equilíbrio entre o abandono da normati- imperativos das categorias racionais. É este o grande desafio da teoria do
vidade em favor da dominação das relações fáticas e a concepção de uma conhecimento: abranger os aspectos da realidade, assegurando relativa
nonnatividade despida de qualquer elemento de realidade 640 • unidade às conclusões hennenêuticas643 •
Nessa relação dialética entre a necessidade hennenêutica de O tema proposto transita por duas questões que merecem desta-
quantificação dos elementos fáticos e nonnativos relevantes e subjacentes que. A primeira, diretamente relacionada à atividade hermenêutica, diz
à declaração negocial - que traz consigo um contributo produtivo de com a solução a ser alcançada em concreto entre o privilégio à realização
complementação do Direito641 - e o resguardo da segurança do tráfico da justiça particular ou o resguardo da certeza jurídica644 • A segunda,
jurídico, existe a necessidade imperiosa de se impor limites ao raciocínio inserta no plano da argumentação, diz com a necessidade do operador
por concreção, fixando balizas ao arbítrio do sujeito cognoscente. O re- sistematizar os critérios de decisão utilizados em seu esforço hennenêuti-
curso retórico à figura do caso concreto não pode se transformar em um co. No campo da prática jurídica, o uso do método concretista recai sem-
apanágio para a ditadura da subjetividade e do descritério. pre no perigo da "assistematicidade" de suas conclusões, cabendo ao
Assim, nesta segunda paite do estudo serão definidas algumas operador quantificar, no âmbito da cir_cularidade hermenêutica, elementos
das condições de procedibilidade do raciocínio por concreção, fixando os que pennitam a promoção, ao menos paulatina, da sistematização das
perímetros da teoria e algumas balizas à atuação do henneneuta. Judith conclusões exegéticas, em respeito à segurança645 •
Martins-Costa externa com precisão a necessidade de se impor limites ao No plano abstrato, já foram definidos, nas duas primeiras paites
raciocínio hennenêutico por concreção: deste estudo, alguns destes balizamentos que derivam dos pressupostos
condicionantes da atividade hern1enêutica. No paradigma gadameriano,
Numa época em que a tarefa hermenêutica está por vezes como que os principais limites objetivos ao raciocínio por concreção estão situados
intoxicada por um excesso de concretização - i111peditiva do discer- no caráter vinculante do objeto interpretado (aspecto teórico que parado-
nir, separar, valorar, ordenar e siste111atizar e, por isso, abstrair, is-
xahnente também resta por detenninar o uso do método concretista) e na
to é, pensar - cabe à doutrina, 111ais que tudo, fixar critérios que
possibilite111 a concreção 1111111 quadro de inteligibilidade e controle pretensão de universalidade do procedimento hermenêutico, aspectos que
intersubjetivos642 • atendem aos postulados da segurança jurídica e da justiça (aspecto práti-
co), pois exigem tanto uma generalização tipificadora que garanta a
6-lo HESSE, 1991, p. 14; VIOLA. ZACCARIA, 1999, p. 183. igualdade de tratamento, quanto uma individualização que garanta a
6-ll LARENZ, 1989, p. 251. Sendo o Direito matizado pelo valor justiça, a tarefa de quantificação das especificidades próprias do caso em exame 646 • Ade-
interpretar envolve a busca pela decisão justa dentro do sentido jurídico do elemen- mais, estas dimensões hermenêuticas se encontram em constante relação
to normativo analisado (GADAMER, 2005, p. 432). Vislumbrando o plano da hete- de complementação e restrição recíprocas.
ronomia, Gadan1er entende que na situação concreta o jurista que se vê obrigado a Quanto à universalidade, cabe mencionar o pensamento de Mi-
atenuar o rigor da lei o faz para não cometer uma incorreção, pois atenuando a lei
guel Reale, para quem "não há condições do conhecimento a não ser em
não faz reduções ao Direito, "mas encontra 11111 direito melhor" (GADAMER, 2005,
p. 419). Aduz Judith Martins-Costa que o cânone fundamental da certeza jurídica função de um mundo circundante, mas são condições universais e neces-
pode ser relativizado, em numerosas hipóteses, pelo princípio superior da justiça sárias a quantos se situem naquelas circunstâncias"647 • No plano da prá-
material (MARTINS-COSTA, 1998, p. 147). No julgamento da AC 590086831, o
TJRS corretamente delineou a premissa de que "a lei não esgota o direito e o direi- 6-1 3 REALE, 1999.p. 17-18.
to não esgota a realidade", razão pela qual no exercício da prestação jurisdicional o 6-1-l Sobre a realização da justiça pa1ticular. em detrimei1to do resguardo da segurança
juiz (enquanto intérprete/aplicador) "quando cria não uswpa: completa o direito" jurídica. remete-se o leitor à discussão já travada 110 tópico '"O caráter ct'Ítico da ativi-
(AC 590086831, 3ª Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. Décio Antônio Erpen, j. em dade hermenêutica".
20.02.1991). Esta decisão ainda posiciona a jurisprudência como fonte normativa, 6-ls MARTINS-COSTA, 1998. p. 130.
6
afimiando o seguinte: "a lei dá a segurança jurídica. A jurisprudência fa= justiça 6-1 ENGISCH, 1968. p. 59-60. , ·
7
no caso concreto." 6-1 REALE. 1999. p. 44.
642 MARTINS-COSTA, 2006, p. 35.
Interpretação Contratual 193
192 Felipe Kirchner •
forma de raciocínio seria desimportante, pois o processo de subsunção se
xis jurídica (principalmente jurisprudencial), destaca-se a máxima de que constitui em fator essencial ao fazer científico (v.g.: classificação, tipifica-
o sujeito cognoscente deve interpretar determinado elemento normativo ção e qualificação da declar~çã? _negocial)654 . O problema_ está tia es_colha
de maneira que a sua interpretação possa ser efetiva e válida para todos os das premissas pelo operador Jund1co. Em outros termos: a rnterpretaçao e a
outros casos similares, ou seja, para as outras situações nonnadas adstri-
tas à mesma situação hennenêutica648 . Essa é uma valiosa lição para que J·urisprudência (em especial dos tribunais estaduais e superiores) devem
conseguir se elevar do concreto, embora d evam sempre quantlºfi ca- , 1o65,-.
se evite um raciocínio por concreção que conduza a conclusões subjeti-
A interpretação deve voltar-se e desenvolver-se em consonância
vas, arbitrárias e alienantes.
com as peculiaridades do caso concreto, mas jamais pode admitir a su-
Não obstante, a principal chave de limitação está no controle do premacia do proble;11a sobre o elemento n01mativo, o qu~ importaria em
caráter criativo da atividade interpretativa por meio do resguardo da força uma agressão ao nucleo fundamental do ato de autonomia. Essa conclu-
vinculante do objeto interpretado 649 . A necessidade de abertura do intér- são afasta o paradigma aqui proposto das apreensões mais radicais sobre
prete para a alteridade da coisa, deixando que esta lhe fale algo contra o método tópico-problemático656 .
suas próprias convicções (força vinculante do objeto interpretado), parece
Também acerca da aplicação de critérios de proporcionalidade e
ser o grande critério presente na teoria gadameriana para a aferição da
ponderação, que acompanham o método co_ncretist~, faz-se necessá~a a
correção do produto da interpretação650 e, consequentemente, para se
fixação de balizas, a fim de evitar o que Judith Martms-Costa denomrnou
evitar a dimensão alienante do método concretista. Nesse sentido, Gada-
de vulgata da ponderação, que se constitui em uma "epidemia quase
mer sustenta que "a tarefa hermenêutica se converte por si mesma num
endêmica segundo a qual 'o caso' é tudo, cabendo ao juiz 'ponderar'
questionamento pautado na coisa em questão, e já se encontra sempre
segundo a impressao - provocada pel o caso em sua sens1ºb 1·1·dz ade " 657 .
co-determinada por esta" 651 .
Enfocando o discurso moral, Maria Claudia Cachapuz aduz que
A fim de evitar o predomínio da subjetividade, deve-se esclare-
não há uma dissociação necessária entre as funções da universalidade
cer como se realiza a construção do significado por via da concreção da
(necessária à estrutura aberta) e da particularidade (reservada à experiên-
situação objetiva complexa, fonnadora de um sistema que se constitui em
cia concreta). Somente com a conciliação destas duas dimensões é que se
fator de legitimação e de limite para a aplicação dessa espécie de raciocí-
dará a equalização entre a segurança da estrutura nonnativa e a impres-
nio652. O método da concreção não afasta - antes requer - a referência ao
cindível abe1tura ao caso fático em exame 658 .
ordenamento e aos seus princípios e, apesar de impor um viés tópico, não
se apresenta como substitutivo do processo de subsunção nem da lógica
da inferência, peculiar ao raciocínio dedutivo 653 . 654 MARTINS-COSTA. 2008.
655 MARTINS-COSTA. 2008.
Nesse contexto, a concreção não pode renunciar a uma possibi-
65 6 GRAU, 2003, p. 98.
lidade de análise abstrata dos casos e da argumentação jurídica. Não se 7
65 MARTINS-COSTA. 2006. p. 34.
pode confundir a crítica ao silogismo fonnal com a defesa de que essa 6 8
5 CACHAPUZ. 2006. p. 144. Cabe delinear um interessante exemplo do uso meramen-
8
te retórico do raciocúuo por concreção. consubstanciado na discussão travada entre os
6-1 LARENZ, 1989, p. 378; VIOLA, ZACCARIA, 1999, p. 98. ministros Nelson Jobin1 e Moreira Alves na ADI 2.212. constante no voto daquele.
9
6-1 Hesse admite tanto que a hermenêutica importa em uma tarefa concretiz.adora (conteúdo Este julgado tinha como objeto a discussão acerca da constitucionalidade da pr~visão
normativo determinado sob inclusão da realidade a ser ordenada), quanto o fato de legal do instituto da reclamação na Constituição Estadual do Estado do Ceara e do
que a interpretação jurídica tem caráter criador (o conteúdo da nomrn interpretada se Regimento Interno da sua Corte Estadual. Como na época o entendimento consolida-
conclui primeiro na interpretação), mas expressamente refere que a atividade exegéti- do do Supremo Tribunal Federal era no sentido de que a figura da reclamação possuía
ca "tem somente neste aspecto caráter criador: a atividade inte1pretativa permanece natureza processual, o Governador do Estado ingressou com a demanda, alegando,
vinculada à norma" (HESSE, 1998, p. 61). fundamentalmente. usurpação da competência da União para legislar sobre processo
650
GRAU, 2003, p. 109. civil (art. 22, I, da CRFB/1988) e ofensa ao princípio da simetria. Nesse co!ltexto, e~11
65
' GADAMER, 2005, p. 358. sendo mantido o entendin1ento da Corte (natureza processual da reclamaçao ), estana
652 configurada a inéonstitucionalidade, o que se conclui por meio de um simples raciocí-
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 137-138. Refere Gadamer que a única pertença à lei
nio silogístico. Contudo, a decisão tomou-se um leading case pelo, fato do STF, na-
que se exige na tarefa de concreção é que a ordem jurídica seja reconhecida como vá-
quela oportunidade, ter alterado sua posição. passando a considerar que a natureza do
lida para todos (GADAMER. 2005, p. 433). instih1to da reclamação se situa no âmbito do direito constitucional de petição (art. 5°.
653
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 138.
194 Felipe Kirchner . Interpretação Contratual 195

Feitas estas considerações sobre a necessidade de se impor limi- que, em não sendo assim, o instrumento perca a sua desejada força nor-
tes ao raciocínio por concreção, cabe adentrar na discussão atinente à mativa no âmbito material. Ocorre que, indubitavelmente, entre o enuncia-
influência do raciocínio por concreção na força normativa do contrato. do nonnativo e a sua real condição de eficácia existe, sempre, a mediação
hermenêutica de significação do elemento interpretado 659•
O que realmente interessa na verificação da relação existente
1.3 A Influência do Raciocínio por Concreção na Força entre interpretação e resguardo da força normativa do contrato é a rele-
Normativa do Contrato vância hermenêutica que decorre dos elementos fáticos, a serem quantifi-
cadas pelo sujeito cognoscente no curso da atividade interpretativa. Como
O raciocínio hermenêutico por concreção abrange todas as fases a conduta anterior e posterior das partes influencia o objeto da interpreta-
da existência do contrato e deve ser exercido por todos os intérpretes que ção, estando diretamente atrelada à fonna de cumprimento do pactuado, é
com ele se deparam (paites, operadores j w-ídicos e terceiros), sob pena de inerente ao agir hermenêutico quantificar todas as relações a paitir das
quais deriva a força nonnativa do pactuado e a autoridade desta dimensão
XXXIV, da CRFB/1988), do que deriva a consequência de que a sua adoção pelo es- no comp01tamento (principalmente posterior) dos contraentes.
tado membro, pela via legislativa local, não implica invasão da competência privativa
da União para legislar sobre Direito Processual üá que o instituto não se insere neste No paradigma hennenêutico aqui delineado, a norma contratual
dominio ). No entanto, o ministro Nelson Jobim encaminhou voto no sentido de que, deixa de ser um dado apartado do caso concreto ou um simples instru-
embora o instituto da reclamação tenha, em seu entendimento, natureza processual, o mento de captação linguística e de medição da validez da realidade, pas-
caso concreto excepcionaria o vício de inconstitucionalidade, o que culminou em um
verdadeiro excesso de concreti::;ação - por se afastar do sistema e da dogmática jurídi- sando a se constituir em um modelo fimcional que dialoga bilateralmente
ca sem explicitar as razões concretas que conduziram sua conclusão hermenêutica -, com as diretrizes normativas do ordenamento jurídico e contém em si as
afastando seu raciocúlio de um quadro de inteligibilidade e controle intersubjetivos, circunstâncias do caso, o que detennina a quantificação do momento situ-
restando por desconsiderar os imperativos das categorias racionais do Direito, sendo
que o privilégio à realização da justiça particular acabou afetando o re_sguardo da c~r- acional (Dasein) como sendo um componente integrante, intrínseco e
teza e da segurança juridica. Na espécie, o julgador acabou desconsiderando aqmlo necessário da atividade exegética. Se para a corrente clássica a nonna se
que a coisa tinha para lhe falar (em a nonna detendo natureza processual, conforme contrapõe ao caso concreto em tennos de ajuste e/ou desajuste, no racio-
seu próprio entendimento, restaria a decretação da inconstitucionalidade) e acabou so-
lapando a pretensão de universalidade de suas considerações exegéticas, porquanto cínio hermenêutico por concreção a atividade interpretativa aceita e intro-
deixou de sistematizar os critérios de decisão utilizados em seu esforço hermenêutico jeta a conexão necessária do elemento nonnativo com a realidade fática
( a fundamentação foi construída apenas para o caso concreto), impossibilitando a sis- (circunstâncias do caso) e nonnativa (totalidade axiológica do sistema
tematização das suas conclusões. Contraponto ocorre no julgamento da AC
70018555144 (2ª Câmara Cível, Rei. Des. Adão Sérgio do Nascúnento Cassiano, j. jurídico). Usando a tenninologia de Miguel Reale, a atividade interpreta-
em 28.03.2007), no qual o TJRS entendeu que a norma de linlitação da continuação tiva passa a quantificar as condições de reali:::abilidade do elemento nor-
da fruição do beneficio previdenciário até a idade de 24 anos deve ser interpretada em mativo analisado 660 • É nesse sentido que a interpretação se constitui em
conformidade com a "situação excepcionalíssima posta 110 caso dos autos", em uma um processo de individualização e concretização do elemento nonnativo
"'leitura não meramente literal da 11or111a, afastando-se o pensamento legalista (... ) e
consentânea às modificações sociais e às peculiaridades do caso concreto". Contudo, em um reviver concreto deste, que experimenta modificações de ajuste às
merece ser exaltado não apenas o teor da construção hermenêutica (que partiu de um peculiaridades de cada nova realidade661 •
paradigma construtivo e criativo), mas o fato de que a decisão judi~ial não recaiu em
uma interpretação concretista alienante, principalmente porque o Julgador externou O tema da concreção contratual influencia diretamente no res-
com exatidão as peculiaridades concretas que excepcionaram a incidência da norma de guardo da força normativa da pactuação privada porque se relaciona com
limitação do beneficio previdenciário: (1) orfandade da autora; (2) autora se encontrar a questão do adimplemento, remetendo ao que poderia ser denominado de
inlpossibilitada de prover seu sustento e de seu filho em virtude da carga exigida pela fa- quantificação das possibilidades do adimplemento como fator determi-
culdade de medicina da UFRGS, que exige dedicação integral dos seus alunos e únpos-
sibilita o trabalho simultâneo; (3) situação excepcionalíssima de a data de formatura não nante da inte1pretação. Como a relação obrigacional constitui-se em um
coincidir com a data de cessação do beneficio previdenciário. Tanmnha foi a preocllpa-
659
ção com a tmiversalidade e cientificidade do decisum, que o relator afinnou que "ao Jui:; REALE. 1981a, p. 8.
não pode ser dado ignorar (os preceitos expressos ou únplícitos no ordenamento), ao 660
REALE, 1968. p. 201: FERRAZ JÚNIOR. 1981.
111enos se tiver alg11111a preocupação cientijica, quer co111 o uso do direito co1110 fator de 661
transformação social quer co111 a própria reali::;ação da justiça 110 caso concreto, co1110 RECASÉNS SICHES, Luis. La Nueva Filosofia de la InterpretaéÍón dei Derecho.
5. ed. México: Porrúa. 1979. p. 276.
valorfimdamental do siste111aj11rídico''.
Interpretação Contratual 197

196 Felipe Kirchner ·


se exige partilhar do que se poderia denominar de vontade do contrato665
sistema de processos polarizado temporalmente pelo adimplemento ,
662 terna que diz diretamente com a realização do adimplemento e com ~
este é o fator conceituai que consubstancia a finalidade buscada pela in- resguardo da autonomia privada enquanto vetor hennenêutico. .
tenção comum das pattes. Como adve1te Komad Hesse, o intérprete deve Ao encontro das considerações tecidas nos parágrafos antece-
observar e seguir as condições, possibilidades e limites reais da interpre- dentes, é importante frisar a necessidade dos contratantes alcançarem a
tação. Como o elemento nonnativo pretende ser efetivamente realizado visão do outro. Tanto na formação quanto no curso do cumprimento da
(os contraentes pretendem que a situação regrada pelo ato de autonomia pactuação, a_s partes (e o intérprete no curso do procedimento interpretati-
seja efetivamente concretizada na realidade), a interpretação constitutiva vo) devem mcorporar parte da "estrutura contrária", que no plano dos
de sentido não pode se separar das condições fáticas relevantes de sua contratos diz com a vontade manifestada pelo outro contratante, o que se
realização (históricas, culturais, naturais, econômicas, técnicas e sociais), adita ao conceito já externalizado de vontade bilateralmente unificada666 •
as quais criam situações próprias que não devem ser desconsideradas pelo Também o contrato possui uma determinada possibilidade de reali=ação de
hermeneuta, pois a pretensão de eficácia do contrato depende destas variá- seu conteúdo, a qual resta majorada quando a pactuação considera e incor-
pora aquilo que já está delineado na condição individual da atualidade667 •
veis. Se a força condicionante da realidade e a normatividade do contrato
se constituem em aspectos que podem ser diferenciados no plano teórico, Do que foi exposto, extrai-se que o resguardo das circunstâncias
esta cisão não se mostra adequada ou desejável do ponto de vista herme- do caso transcende a própria atividade hennenêutica, encampando dire-
nêutico663, como antes frisado. Contudo, deve ser salientado que estes tamente a criação_ e o desenvolvimento do contrato. O ponto nevrálgico
elementos fáticos não limitam a expressão nonnativa do contrato, pois a parece ser o seguinte: para que tenha alguma eficácia nonnativa, o con-
pretensão de eficácia do pacto não se confunde com as condições de sua trato deve trazer em si o germe material de sua força vital com relação à
realização. Se o contrato é detenninado por uma realidade social, também historicidade das suas circunstâncias, ou seja, aceitar e quantificar a reali-
dade que o circunda. A eficácia do contrato está diretamente ligada a sua
é detenninante com relação a ela664 .
vinculação com as forças de dominância das pattes e do contexto socioe-
Levando em consideração as fases contratuais, a primeira rela- conômico, elementos que possibilitam o desenvolvimento da relação
ção entre o raciocínio por concreção e a força nonnativa ocorre no mo- contratual e sua ordenação objetiva e, em face disso, adquirem imensa
mento da fonnação do instrumento. Já no momento genético faz-se ne- relevância no curso da interpretação contratual 668 •
cessário que os contraentes deixem o objeto falar, atribuindo relevância A força normativa do contrato não se limita ao seu grau de re-
às circunstâncias do caso e aos vetores axiológicos do ordenamento jurí- conhecimento ou adaptabilidade à realidade, mas na força ativa e coativa
dico que lhe dá suporte, sob pena da pactuação já surgir natimorta, ou que o ordenamento outorga aos contraentes (meios de cumprimento for-
seja, ser constituída com um déficit significativo na força normativa fáti- çado), o que transfonna o pacto num elemento para o cumprimento de
ca, afetando as condições de realizabilidade do contrato e dificultando, tarefas estabelecidas pelo ato de auton01nia. Contudo, mais eficaz será o
consequentemente, o adimplemento. contrato se, juntamente com a vontade de poder (antagonismo dos contra-
Essa relação também deve ser observada no curso do desenvol- tantes), houver também uma vontade de cumprimento do pactuado (visão
vimento e cumprimento do contrato, pois, caso as paites se distanciarem solidária) no campo da práxis contratual. Em regra, quanto maior o con-
arbitrariamente do conteúdo material e normativo construído na fase de teúdo do contrato - e a atividade hermenêutica que lhe concede significa-
conclusão (distanciamento que pode se dar em razão da alteração do con- do - lograr_ corresponder à natureza singular das circunstâncias do caso, e
texto fático ), há uma inequívoca perda da efetividade da disposição con- quanto maiores forem as possibilidades de adaptabilidade do contrato à
tratual que consubstancia a vontade bilateralizada dos contraentes. Como mudança destas condicionantes, tanto mais seguro será o desenvolvimen-
salienta Komad Hesse, o resguardo e incremento da força nonnativa do to de sua força normativa669 .
pactuado depende não apenas de seu conteúdo, mas também de sua prá- 665
xis. De todos os partícipes da vida do contrato - inclusive do intérprete- HESSE, 1991, p. 21.
666
A questão foi vista no tópico "A autonomia privada e sua relevância hermenêutica''
667 HESSE, 1998, p. 48. .
668
HESSE, 1991, p. 17-18. _, .
662 SILVA, 1976, p. 5. 669
HESSE, 199L p. 19-21: HESSE, 1998, p. 49.
663 HESSE, 1991., p. 14-15: HESSE, 1998, p. 60.
664 HESSE, 199L p. 14-15: HESSE, 1998, p. 60.
Interpretação Contratual 199

198 Felipe Kirchner


ção e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu insepará-
Aqui novamente se faz presente o paradoxo ~a liberdade que a vel contexto, e no seu condicionamento recíproco" 613 • Contudo, a propos-
ideia de autonomia bilateralizada traz consigo: se qmser preservar sua ta de verificação da relação existente entre a atividade hennenêutica e a
• • ' • 670
força nonnativa, o contrato deve mcorporar parte ~a estrutura ~o~trar!a , força normativa do contrato diz com a análise qualitativa do elemento
ou seja, os interesses de ambos contraentes, o que nnporta na h~mtaç~o da nonnativo no plano exegético, transcendendo o contemplar da norma
liberdade de cada sujeito, mas no florescimento de um ato d_e l:berahdade apenas por meio das figuras relativas à validade (estar em vigor ou estar
maior. A noção de solidariedade contratual rep~usa sobre a ideia de qu~ o derrogada).
sacrificio de um interesse pessoal fortalece o vmculo e a força normativa A concepção de Konrad Hesse, de que o Direito tem sua eficá-
da pactuação. cia condicionada pelos fatos concretos da vida e a interpretação tem sig-
A determinação da :finalidade prática do contrato depende do nificado decisivo para a consolidação e preservação da força nonnativa
entendimento das relações da vida para cuja regulamentação a norma resulta na conclusão de que também o procedimento hennenêutico con-
contratual foi criada, já que esta visa dar satisfação a detenninadas exi- tratual se encontra submetido ao princípio da ótima concretização da
gências econômicas, sociais e existenciais dos sujeitos envolvidos. Em nonna (Gebot optimaler Verklichzmg der Norm). As condicionantes do
razão deste contexto, a atividade hermenêutica depende de um estudo caso concreto, que se encontram na situação objetiva complexa, devem
atento e profundo não apenas do mecanismo técnico destas relações, mas ser correlacionadas com as proposiçõe~ normativas objetos da interpreta-
também das exigências que derivam da realidade negocial. També~ por ção, alcançando-se sucesso na atividade interpretativa quando o intérprete
este plano prático sobressai que a interpretação n~o se desenvo~ve median~e consegue, na circularidade hermenêutica, concretizar o sentido da propo-
processos metódicos construídos sobre, ~resunço~s e abstr~ç~es, necess~- sição normativa no contexto das condições reais de uma determinada
tando se envolver com as realidades praticas da vida dos sujeitos envolvi- situação hermenêutica674 •
dos na relação contratual671 • Por fim, cabe delinear que o raciocínio hennenêutico por con-
Um contrato que, no momento de sua constituição, não quanti- creção, especialmente mediante a utilização do postulado nonnativo das
fique de forma razoável os interesses dos ~ontratantes está f~dado, ou ~o circunstâncias do caso, assume uma função extremamente relevante na
menos muito mais propenso, ao descumprunento, sem menc10nar a exis- análise das condições de superação de um determinado elemento nonna-
tência de eventual agressão ao equilíbrio sinalagmático do pacto. Muito tivo. Esta forma de apreensão do fenômeno hennenêutico auxilia na veri-
embora não seja definido de forma absoluta por vetores externos, o res- ficação da existência de uma modificação das razões e consequências
guardo de uma concreção nom1ativa no plano heimenêutico diz, em certa estabelecidas prima facie pelas normas contratuais no contexto de sua
medida, com a busca pela comutatividade da pactuação, ~té ~esmo ~ar- aplicação, tornando mais controlada e segura a consideração de dados
que as diretrizes legais de ordem constitucional (v.g.: sohda1;eda?e: iso- contextuais como razões superiores àquelas que justificam a aplicação da
nomia e proporcionalidade) e infraconstitucional (e:<-.: boa-fe obJ_et_iva e própria regra. Resguardando os limites necessários ao raciocínio por con-
função social dos contratos) vêm ao encontro da efetiva correspectividade creção, seu uso aumenta o contexto de racionalidade e fundamentação
entre as prestações e manutenção do eqmºl'b ~ 67i-.
. d a contrat açao
i no intersubjetiva na busca pela justiça do caso concreto, que é o grande crité-
Como sustenta Hesse, "o significado da ordenação jurídica na rio de decisão, quando o operador, no curso da atividade hennenêutica,
realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas - ordena- conclui pela necessidade de superação de uma determinada nonna contra-
tual ou legal.
Humberto Ávila suscita interessante exemplo 675 advindo da in-
67 º HESSE, 1991, p. 21. terpretação legal, atinente à nonna construída a partir dos mts. 213 e 224,
671 FERRARA, 1987, p. 141. alínea a, do CP, detenninativa da presunção incondicional de violência na
672 FERREIRA DA SILVA, 2006. A comutatividade moderna resgata a tradição aristoté-
lico-tomista Qusto corretivo), em um contexto neoforma!ista, ~ois re~salta ª. estrutura
do vínculo contratual, mas não propriamente o seu contendo. Ja a noç?o de_ smalagma, 673
HESSE, 1991, p. 13.
que se refere à correspectividade das pr~staçõ,es (deslo~amento_ pat~1o~?l que tem 674
HESSE, 1991, p. 22-23.
como consectário a necessidade de um agir reciproco), da uma d1mensao etica ao con- 675
teúdo do contrato (FERREIRA DA SILVA, 2008: FERREIRA DA SILVA. 2001a, P· ÁVILA, 2006, p. 45.
14, 192 e 194-195).
Interpretação Contratual 201
200 Felipe Kirclmer ·
ai~da, que º. c_onteúdo n~nnativ,? (presunção de violência) não pode ir
prática do ato sexual se a mulher "não é maior de cator=e anos". No jul- alem da relatividade das circunstancias em que o fato se verificou.
gamento do HC 73.662676, que tinha como objeto uma relação sexual Como refere Luis Renato Ferreira da Silva, o Direito usualmen-
envolvendo uma adolescente de 12 anos (com violência presumida, por- te assume uma autossuficiência deveras injustificada. Está imerso na
tanto), o STF entendeu como não configurado o tipo penal em razão da cultura; ~as nem sempre desvela seu meio. É por essa razão que se faz
relevância de circunstâncias particulares não previstas intrinsecamente necessano afinnar que o interpretar e o raciocinar por concreção é sem-
pela norma, quais sejam, a aquiescência da mulher, seu comportamento pre contextual, pois não há experiência sem referência677 • Tal ideia abar-
social e a aparência física e mental, elementos que indicariam se tratar de ca a de processualidade da relação contratual e de integralidade da inter-
pessoa com idade superior aos 14 anos.
pret~ção, pois a_co~creçã~ é fonnada em um quadro de significados que,
Quantificando o contexto fático na aplicação da norma, o minis- efetivamente, nao e redutivel aos fatos, e os institutos jurídicos que dão
tro Marco Aurélio ressaltou que "a presunção de violência prevista no supo1te ao contrato e sua interpretação são apenas um pequeno aspecto do
art. 224 do Código Penal cede à realidade", citando, inclusive, a modifi- Nomos Jurídico 678 • A realidade em que se desenvolveu o contrato e a
cação dos costumes que impõem uma interpretação evolutiva da lei, o relação contratual é tão paite do mundo nonnativo quanto o texto da de-
que diz com a tarefa do intérprete de flexibilizar o texto normativo para claração negocial, aspecto que não pode ser ignorado ou obscurecido no
torná-lo adequado e oportuno ao contexto (situação hermenêutica) con- plano da atividade hermenêutica.
temporâneo. Nesses te1mos, entendeu o julgador que a presunção legal
Nesses termos, no plano da hennenêutica contratual cabe ao in-
deve ceder às peculiaridades do caso.
térprete verificar sobre qual dos contratantes está o foco de relevância
Já o ministro Francisco Resek, afamando a necessidade de
hennenê_utica, consid,er~ndo ? tipo contratual em exame, tarefa que passa
quantificação das circunstâncias para a realização da justiça no caso con- a ser delmeada no proxnno topico.
creto, afirma que a simples aplicação da nonna acarretaria na consagra-
ção da arriscada tese de que o Tribunal estaria dispensado de raciocinar,
observação bastante elucidativa e adequada ao paradigma hennenêutico 1.4 O Ponto de Relevância Hermenêutica e a Extensão dos
aqui adotado, especialmente no que se refere à opção hennenêutica de Meios Interpretativos
parte significativa dos operadores que restam por ignorar a necessidade
de um raciocinar por concreção. A distinção e a consideração do ponto de relevância hennenêu-
O ministro Maurício Corrêa, por sua vez, adentra no modelo in- !ic~, ~nediante a ,c~n!J~er~ção da estr~tura concreta efetiva para a eficácia
terpretativo aqui adotado. Se por um lado reafinna o caráter criativo da ~und~ca do. negoc10 , tem enorme importância no processo exegético,
interpretação ao sustentar que deve o julgador "emprestar a interpretação influmdo diretamente nos meios interpretativos à disposição do henne-
que a sua consciência ditar" em razão da evolução dos fenômenos sociais, neut~, ~u seja, na exten_s~o do círculo formado pelos meios interpretativos
defende o raciocinar por concreção ao aduzir que "é preciso levar em pass~ve1s ~e serem legitnnamente empregados pelo intérprete. Esta con-
conta também a condição humana do paciente, examinar os aspectos em clusao denva do fato de que as circunstâncias henneneuticamente rele-
que o fato se verificou, a sua participação completa no evento, a ambiên- vantes variam confonne o tipo contratual interpretado ou, como quer
cia". Aplicando diretamente o método concretista, o julgador afirma, Larenz, segundo o escopo da interpretação680 •

677 MARTINS-COSTA, 2008.


676 Nesse sentido a ementa da decisão mencionada: "( ... ) Estupro. Configuração. Vio- 678
lência presumida. Idade da vítima. Natureza. O estupro pressupõe o constrangi- REALE, 1999, p. 242; MARTINS-COSTA, 2008.
679
mento de mulher à co1ifunção carnal, mediante violência 011 grm•e ameaça art. 213 Interessante notar que a consideração do ponto de relevância hennenêutica do contra-
do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é re- to interpretado atende à exigência de concreção da atividade hennenêutica (GAMBI-
lativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova NO. 2000. p. 236-237).
680
dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos L~N_Z, 1~89. p. 241. Importante é frisar. desde já. que a natureza do contrato
14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Al- ?~º Imuta a mterpretação, mas, sim, o material interpretativo à disposição do su-
cance dos arts. 213 e 224, alínea "a", do Código Penal" (HC 73.662. 2ª T., STF, Rei. jeito cognoscente.
Min. Marco Aurélio,j. 21.05.1996, DJ 20-09-1996 p. 34535).
Interpretação Contrahml 203
202 Felipe Kirchner ·
que o declaratário teve ciência real ou potencial, o que implica uma con-
A amplitude das circunstâncias passíveis de serem consideradas sequente limitação dos meios interpretativos à disposição do henneneuta.
no processo hennenêutico se altera (redução e expansão) conforme a Em contrapartida, se o ponto de relevância hennenêutica se ·situar no
categoria negocial em que inserida a relação contratual objeto da interpre- declarante (o que geralmente deriva de um baixo grau de recognoscibili-
tação, em uma equação que deve levar em consideração, ainda, o hori- dade objetiva da contratação e da confiança despertada pelo negócio),
zonte daquele que detém a autoridade da situação hermenêutica relevan- haverá um incremento do material interpretativo, sendo que em detenni-
te681. A tese que se encontra subjacente ao desenvolvimento deste tópico nados casos poderão ser quantificadas até mesmo circunstâncias ocultas
é a de que, como salienta Emílio Betti, "a questão inte,pretativa não se aos interessados (ex.: como ocorre nos negócios mortis causa).
. d , · ,,6s,
apresenta em termos uniformes para to das as categonas e negocws -, O ponto de relevância hem1enêutica perpassa todas as esferas
razão pela qual se faz necessário conceder relevância hennenêutica à do processo interpretativo. Exemplificativamente, cite-se Custódio Mi-
estrntura típica do contrato 683 • Como menciona Francisco Marino, citando randa, para quem em sendo a declaração de um negócio jurídico bilateral
Vito Rizzo, inexiste uma interpretação do contrato, mas sim interpreta- redigida segundo os usos sociais não partilhados pelo declaratário, o con-
ções dos diferentes contratos684 . trato deve ser entendido nos tennos dos usos sociais do círculo a que este
A temática proposta enfoca diretamente o universo comunicacio- pertence (destinatário), pois é nele que se centra a mencionada relevância.
nal presente na relação contratual, o que desloca o foco hermenêutico da Contudo, a análise deve ser situada, pois diversas circunstâncias podem
intenção do declarante para a participação ativa e concreta do destinatá- indicar que o destinatário devia ou deveria conhecer o uso peculiar utili-
rio685, atendendo à natureza bidimensional da autonomia negocial, nos zado pelo declarante, tais como: a natureza habitual das relações mantidas
tennos tratados anterionnente686 . entre as partes, as manifestações anteriores, a linguagem especial do de-
Antecipando algumas das questões que serão abaixo enfrenta- clarante ou própria de detenninado ramo comercial, o lugar e o tempo
das pormenorizadamente quando da análise das diversas espécies contra- específicos da declaração, etc. 687 .
tuais, cabe salientar que se o ponto de relevância hennenêutica se situar Feitas estas considerações, a primeira classificação a ser anali-
no destinatário da declaração ( o que geralmente deriva de um alto grau de sada é a dos negócios jurídicos inter vivos, que visam atender às diversas
recognoscibilidade objetiva da contratação e da confiança despertada pelo necessidades da vida de seus autores, trazendo consigo um conflito de
negócio), somente poderão ser consideradas na interpretação as circuns- interesses entre declarante e destinatário; e mortis causa688 , que objetivam
tâncias que estejam compreendidas no horizonte deste, ou seja, aquelas a predisposição do destino do patrimônio e/ou de detenninados bens do
indivíduo após a ocorrência de sua morte, sem que haja um conflito de
681 MARINO, 2003, p. 96 e 255. interesses entre os sujeitos envolvidos na relação sucessória (de czgus e o
682 BETTI, 2003b, p. 190; BETII, 2007, p. 361. herdeiro ou legatário).
683 BETII, 2003b, p. 193; BETII, 2007, p. 365. O plano da concreção atinge até mesmo
Na primeira espécie, que se encontra subsumida ao sistema ob-
a análise da tipologia do contrato, pois, como salienta Engisch, os tipos contrahmis
jetivo de interpretação, o ponto de relevância hermenêutica está no desti-
não são meros assuntos de uma realidade jurídica ou modelos arbitrariamente constnú-
dos mas antes se constituem em imagens sensíveis referidas à realidade da vida do natário da declaração e/ou no círculo social que tem sua confiança por ela
Dir~ito, além de que sempre aparecem em contratos concretos em seu caráter sihmdo despertada. Essa conclusão deriva do alto grau de recognoscibilidade
(ENGISCH, 1968, p. 554-55). objetiva e de expectativa (confiança) gerada ao destinatário, e da conse-
684 MARINO, 2003, p. 115. Já foi decidido no RC 71001607027 (1ª Tumrn Recursai quente aplicação do princípio da autorresponsabilidade689 , o que demanda
Cível do RS, Rei. Juiz Ricardo Torres Hennam1,j. em 29.05.2008) que "não pode(...) que o conteúdo da declaração seja apreensível objetivamente (sem que se
regra contratual receber inte,pretação divorciada das peculiaridades do tipo de con-
trato que versa o litígio". 687
685 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 182 e 187-188. Nesse sentido a regra do art.
MlRANDA. 1989. p. 142.
688
236, do Código Civil Português: "art. 236º (Sentido normal da declaração) 1. A de- A doutrina admite pacificamente como espécies do gênero negócio jurídico mortis
claração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posi- causa o testamento e o codicilo, sendo que parte elenca, ainda, a disposição gratuita
ção do real declaratário, possa dedzdr do comportamento do declarante, salvo se es- do próprio corpo regrada pelo artigo 14, do CC/2002 (MARINO, 2003. p. 234).
689
te não puder ra:;oavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a Este preceito encampa a ideia kantiana da convivência da Iiberdade-xesponsabilidade.
vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida". sendo esta decorrência daquela (SILVA. 2001. p. 11 ).
686 No tópico "A autonomia privada e sua relevância hem1enêutica".
Interpretação Contratual 205
204 Felipe Kirclmer ·
havendo direito para uma das pmtes e apenas obrigação para a outra (em
faça necessária a busca de intenções subjetivas e/ou ocultas), nos te1mos não sendo avaliados os deveres anexos) (ex.: mandato e depósito); e bila-
do mt. 112, do CC/2002. DecoITência lógica deste quadro teórico é a terais ou sinalagmáticos, nos quais a obrigação recai sobre todos· os polos
restrição dos meios interpretativos à disposição do henneneuta, pois so- da relação, havendo direitos e deveres equivalentes para ambas as pmtes
mente podem ser quantificadas na atividade interpretativa as circunstân- (prestações recíprocas) (ex.: compra e venda )695 • Importante frisar que a
cias que o destinatário teve ciência real ou potencial. classificação refere-se a carga de obrigações das partes, e não ao número
Embora a espécie não esteja inserta no objeto deste estudo 690, de contratantes696 •
cabe salientai· que nos negócios jurídicos mortis causa, adstritos ao sis- Nos contratos bilaterais, o ponto de relevância hermenêutica
tema subjetivo de interpretação (teoria da vontade adotada no art. 1.899, sempre se encontra no destinatário da declaração, enquanto nos unilate-
692
do CC/2002)691 , o ponto de relevância hennenêutica está no declarante • rais (principalmente nos geneticamente unilaterais), a relevância henne-
Isso deriva do baixo grau de recognoscibilidade objetiva e de expectativa nêutica pode se situar em terceiros interessados que não fazem parte do
do destinatário693 , mitigando sensivelmente a aplicação do princípio da contrato. No âmbito desta classificação, cabe enfatizar impo1tante dife-
autotTesponsabilidade e pem1itindo que o intérprete vasculhe a vontade renciação. Em se tratando de negócios jurídicos receptícios (ex.: oferta),
hipotética do declarante, o que encontra l~~te_ a~e?as nas contrad~çõ~s o ponto de relevância reside no destinatário, enquanto nos negócios jurí-
lógicas com o conteúdo expresso do neg~c10 Jund1_co (cotTespond~ncia dicos não-receptícios (ex.: promessa_ de recompensa) a proeminência
com o texto do instrumento). Com a adoçao da teona da vontade ha um hermenêutica se encontra no declarante, embora seja relevante a confian-
significativo incremento do material interpr~tativo, podendo ser quan!ifi: ça despertada pela declaração no círculo social por ela abrangida697 •
cadas até mesmo circunstâncias ocultas aos mteressados. Essa extensao e Ademais, na primeira espécie destacada (contratos bilaterais), o
também justificada pelo fato de nos negócios jurídicos mortis causa ine- grau de recognoscibilidade objetiva (ligado ao princípio da aut01Tespon-
xistir o conflito de interesses presente nos negócios jurídicos inter vivos, sabilidade) e de expectativa do destinatário-comunidade é mais elevado
onde o operador tem a missão de compor o conflito com justiça (manu- do que nos contratos unilaterais, sendo que nestes tais parâmetros detêm
694
tenção da comutatividade e do caráter sinalagmático) • uma importância majorada nos negócios jurídicos receptícios, em compa-
A segunda classificação é a dos contratos com efeitos unilate- ração com os não receptícios, muito embora nestes somente possam ser
rais, nos quais a obrigação recai sobre apenas um dos polos da relação, consideradas as circunstâncias passíveis de serem conhecidas pelos indi-
víduos componentes do círculo social a que a declaração se dirige 698 •
óQO Em face desta consideração, todas as demais análises deste tópico irão privilegiar, em
regra, os negócios juridicos inter vivos.
695 Francisco Marino adota a classificação bettiana, focada no aspecto genético. Nesta, os
6QJ É controversa a aplicação do art. 112, do CC/2002, aos negócios jurídico~ mortis causa,
em face da regra especial do art. 1. 899, do CC/2002. Consoante o entendunento. de Pon- negócios jurídicos geneticamente unilaterais são aqueles fonnados por um ímico polo
tes de Miranda (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. 56, Rio de Ja- da relação. no qual a declaração negocial se esgota (o destinatário não se toma parte
neiro: Borsói, 1972, p. 336) e Francisco Marino (MARINO, 2003, p. 209 e 260), deve-se do negócio, embora possa fazer parte da relação juridica criada pelo negócio). Esta
espécie se subdivide em subjetivamente simples, quando há um único indivíduo no
entender pela aplicabilidade conjunta dos dispositivos legais, o que !amb~m _ocorre n?
caso do art. 113, do CC/2002, embora aqui também se configurem d1vergencias doutri- polo ativo: e subjetivamente complexo. quando há vários indivíduos no polo ativo de-
tendo a mesma legitimidade. Já os negócios jurídicos geneticamente bilaterais são
nárias (MARINO, 2003, p. 236). Em sentido contrário: MIRANDA, 1989, p. 195.
formados em uma relação composta por dois polos (duas partes), que possuem legiti-
6Q2 Nessa espécie de negócio jurídico há, frequentemente, uma grande prevalência do
midades diversas (posições jurídicas diferentes com relação aos interesses em jogo).
fator tempo, em razão do período transcorrido entre a confe:çã~ d~ test~ent_o ou c~- 696
Todo contrato é sempre bilateral qÚanto às partes (no mínin10 duas paites), mas quan-
dicilo, e a produção de seus efeitos, onde pode haver alteraçao s1gnificat1va e 1mprev1-
to aos efeitos pode ser unilateral ou bilateral. Como qualquer contrato gera obrigações
sível das circunstâncias fáticas (MARINO, 2003, p. 218).
para os dois pólos da relação obrigacional (ao menos no que tange aos deveres ane-
69 3 Carlos Ferreira de Almeida elenca, ainda, o dever de respeito a personalidade do
declarante (que é humana antes de ser jurídica) e a garantia de inexistência de repre- xos), nos contratos bilaterais não se trata da mera existência de deveres para as duas
sentantes como fimdamentos para a dimensão intencional do significado nos testa- partes, pois o que realmente interessa é a causa das obrigações principais e a efetiva
correspectividade entre as prestações, inexistente nos contratos unilaterais.
mentos (FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 195). 697
6Q4 BETTI, 2007, p. 393-394, 396-400; BETTI, 2003b, p. 224-231: MARINO, 2003,
MIRANDA, 1989, p. 203-204, 220 e 228. , .
698
p. 93-94, 234-236 e 255-256; FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 195; MIRANDA, MARINO, 2003, p. 95-96 e 240-241.
1989,p. 151, 178-180,201-202,228.
Interpretação Contratual 207
206 Felipe Kirchner .
A quinta classificação, mais afeita à disciplina dos títulos de
A terceira classificação a ser analisada é a dos contratos gratui- crédito 7° 4 , é a dos negócios jurídicos abstratos, nos quais a causa subja-
tos ou benéficos, nos quais apenas uma das partes tem vantagem e provei- cente não é (ou não precisa ser) expressa e/ou reconhecível a- partir da
to econômico (ex.: doação); e onerosos, onde ambas as partes têm vanta- estrutura do negócio jurídico sobrejacente ou cambiário (o qual se des-
gem e proveito econômico (ex.: compra e venda)699 • prende da sua origem), não tendo relevância na detenninação do trata-
Na esteira da doutrina italiana (Luigi Mosco, Fabio Ziccardi e mento jurídico e dos efeitos do negócio (v.g.: nota promissória e letra de
Vito Rizzo ), aponta Francisco Marino que a extensão do material interpre- câmbio); e causais, nos quais a causa subjacente é manifesta e reconhecí-
tativo é maior nos contratos gratuitos do que nos onerosos, pois naqueles vel a partir da estrutura do negócio jurídico sobrejacente ou cambiário,
há a necessidade de uma tutela mais efetiva dos interesses do declarante caracterizando o próprio tipo negocial, e exercendo, portanto, influência
que presta (ex.: doador, comodante, mutuante, etc), em relação àquele que direta na detenninação do tratamento jurídico e dos efeitos do negócio
recebe a prestação gratuitamente, enquanto nestes (onerosos) há uma ele- (ex.: duplicata).
vação dos parâmetros de recognoscibilidade objetiva, autorresponsabilida- Como nos negócios jurídicos abstratos o ordenamento pennite
de e expectativa criada. Estas conclusões são amparadas tanto pela regra que as pmtes silenciem acerca do interesse típico detem1inante do negó-
do mt. 114, do CC/2002, que impõe uma interpretação estrita nos negó- cio subjacente, há sempre a previsão de uma detenninada fonna (o negó-
cios jurídicos benéficos - o que implica indiretamente a adoção de uma cio é sempre solene), o que denota uma aproximação das consequências
interpretação em favor do devedor700 - , quanto pela regra hermenêutica hermenêuticas trazidas pela classificação anterionnente enfocada705 • Nes-
de que em casos exh·emos deve-se tutelar o interesse daquele que almeja
ses tennos, nos negócios jurídicos abstratos deve haver maior referência
evitar o prejuízo (qui certat de damno vitando) e não daquele que busca
interpretativa ao conteúdo expresso do negócio jurídico, o que implica a
garantir o lucro (qui certat de lucro captando )7º1•
minoração do material interpretativo à disposição do henneneuta 706 •
A quarta classificação verificada é a dos contratos formais ou
Embora este estudo se dirija primariamente aos contratos paritá-
solenes, nos quais a validade depende da observância de forma estabele-
rios, cabe salientar, por fim, a classificação existente entre os negócios
cida (em lei ou pelas partes); e informais ou não-solenes, nos quais a
jurídicos individuais ou personalizados, constituídos de fom1a pessoali-
validade independe da observância de forma (inexiste previsão legal ou
zada e negociada, com natureza geralmente paritária (respeito à liberdade
contratual), espécie amparada no sistema jurídico brasileiro pelo princípio
de contratar e a liberdade contratual); e de massa ou standarti::::ados que,
da liberdade das formas previsto no art. 107, do CC/2002702 •
ganhando vulto com a globalização e massificação econômica707 , são
A previsão legal da fonna, que visa assegurar a unívocidade do
ato em decorrência de sua importância social (grande recognoscibilidade não pode a declaração valer com um sentido que não tenha 11111 mínimo de corres-
objetiva), implica a valorização do conteúdo expresso e, consequente- pondência no texto do respectivo documento, ainda que impe1feitamente expresso. 2.
mente, a redução dos meios interpretativos, uma vez que o exegeta deve Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as ra-
se ater mais ao conteúdo da declaração (comparativamente com o negó- =ões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade".
cio não solene), o que não implica, evidentemente, na adoção de uma 70-l Embora o sistema brasileiro não preveja negócios juridicos absolutamente abstratos
interpretação literal7º3 • (como é o caso do acordo de transferência de propriedade do Direito alemão. denomi•
nado de Einigung), a classificação aqui enfocada se justifica, pois, conforme atestam
Francisco Marino e Antônio Junqueira de Azevedo, não obstante o ordenamento bra-
699 Os negócios jurídicos onerosos podem ser comutativos, quando as prestações são sileiro deixar de prever a causa como um dos requisitos do negócio jurídico no art.
equivalentes, certas e determinadas, ou aleatórios, nos quais a prestação de uma das 104, do CC/2002 (o que foi feito no art. 1.325, n. 2, do Código Civil Italiano. por ex.)
partes depende de acontecimentos incertos, ou seja, a álea é elemento do contrato ( ex.: - apenas havendo menção aos motivos detenninantes pela regra do art. 166. IIl. do
contrato de seguro). CC/2002 -, a causa consta como elemento intrínseco no sistema jurídico nacional
700 PON1ES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. 38, Rio de Janeiro: Borsói, (MARINO, 2003, p. 249; AZEVEDO, 2000, p. 239). .
705 As classificações partem de critérios distintos e, portanto, não devem ser sobrepostas.
1962, p. 96.
701
MARINO, 2003, p. 94 e 243-245. Embora todo negócio jurídico abstrato seja solene, .os negócios jurídicos causais po-
702 dem ser solenes (ex.: pacto antenupcial) ou não solenes (MARINO, 2003, p. 249).
"Art 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, 7 5
ó MARINO, 2003, p. 248-249.
senão quando a lei expressamente a exigir". 707
703 ROPPO, 1988, p. 308-309.
MARINO, 2003, p. 246-248; MIRANDA, 1989, p. 182. Nesse sentido a regra do art.
238º, do Código Civil Porh1guês, sobre os negócios formais: '•J. Nos negócios formais
Interpretação Contratual 209
208 Felipe Kirchner ·
te 710 , resta confrontar a condicionalidade interpretativa envolvendo o
concluídos com um grande número de indivíduos de f01n1a contínua, problema concreto e o elemento normativo. Para tanto, este estudo irá se
automatizada e despersonalizada. Esta espécie se subdiv~de em contratos valer de dois preceitos fundamentalmente necessários à efetivação do
de adesão, nos quais urna das partes apenas adere (com ltberd,ade de con- processo de concreção no âmbito da atividade hennenêutica contratual: as
tratar mas sem liberdade contratual), e por adesão, que detem natureza circunstâncias do caso e a proporcionalidade.
coati~a (inexistindo qualquer liberdade) (v.g.: contrato de fornecimento Antes de delinear as especificidades próprias de cada vetor, ca-
de água e luz). be frisar que, no âmbito da interpretação contratual, as duas disposições
Em face da padronização dos contratos de massa, o ponto de conceituais detêm a natureza de postulados normativos aplicativos 111 ,
relevância hermenêutica se situa no público por ele atingido ( de exten- especialmente porque assumem a condição de metanonnas ou de n01n1as
são variável), o que implica redução do materia~ de int~rp~etação,,ta~- de segundo grau, estabelecendo a estrutura de aplicação das nonnas con-
to porque somente podem ser consider~da~ a,s circui:is!ancias passi~eis tratuais ( e da relação destas com os elementos n01n1ativos de fato e do
de serem conhecidas pelo standard do mdividuo med10 que com~oe o ordenamento estatal)712 • Nos dizeres de Humberto Ávila, esta espécie
público destinatário da declaração negocial 708 , quanto porque se iden- abarca nonnas imediatamente metódicas, que estruturam a interpretação e
tifica certa primazia do conteúdo literal, nos termos dos arts. 20, 30 e a aplicação de outras normas mediante a exigência, mais ou menos espe-
31 do CDC ( em se tratando de contrato de consumo), dispositivos que cífica713, de relações entre elementos c_om base em critérios 7 14 •
ap~ntam para a rigidez de toda informação, publicidade ou of~rta vei- Os postulados nonnativos aplicativos se diferenciam das regras
culada pelo fornecedor, que passa a integrar o contrato que vier a ser e princípios em diversos aspectos. Primeiro, quanto ao nível, pois, en-
celebrado 709 • quanto as regras e os princípios são objeto de aplicação, os postulados
Tecidas estas considerações gerais sobre o raciocínio por con- estabelecem critérios de aplicação daquelas n01n1as. Segundo, quanto à
creção, cabe adentrar na discussão envolvendo a ~atureza )1:1'ídica das função, pois, enquanto as regras servem de comandos para detenninar
circunstâncias do caso e da proporcionalidade, preceitos que irao amparar condutas próprias (obrigatórias, pennitidas e/ou proibidas) e os princípios
a consecução desta tarefa hennenêutica. Assim, o tóp~co infra abre a d!s- se encontram voltados ao alcance de detenninados fins, os postulados
cussão acerca das especificidades do método concretista no curso da m- servem como parâmetros de realização daquelas nonnas. Terceiro, quanto
terpretação contratual, matéria que será objeto das duas últimas parcelas
desta segunda parte da pesquisa.
7rn Respectivamente nos tópicos "O procedimento, os métodos e as regras de interpreta-
ção'" e "A fixação do objeto e da dimensão funcional da hennenêutica contratual".
711 O tem10 é utilizado por Humberto Ávila. para quem a denominação é secundária,

1.5 A Natureza Jurídica das Circunstâncias do Caso e da sendo decisivo a delimitação das especificidades de sua operacionalidade (ÁVJLA,
2006. p. 124).
Proporcionalidade 712 ÁVJLA 2006, p. 121-122. Hmnberto Ávila sustenta a existência de três tipos de

exames (fenômenos) que bem diferenciam a aplicação dos postulados nonuativos


Como visto anterionnente, o procedimento de concretização aplicativos: (1) a verificação se a regra geral se aplica ao caso individual por intenué-
deve quantificar a pré-compreensão do intérprete, o objeto da i_nterpreta- dio da razoabilidade: (2) a verificação da lisura do meio escolhido para a perfectibili-
ção contratual, o problema respectivo e as regras e vetores onundos do zação do fim por meio da proporcionalidade: (3) a verificação se a obrigação não feriu
sistema jurídico. o núcleo essencial de um direito fimdamental por intenuédio da proibição de excesso
(ÁVILA. 2006, p. 163-164).
Como as temáticas envolvendo a pré-compreensão do intérprete 713 Humberto Ávila apresenta distinção dentro do gênero. De um lado tem-se os postula-
e O objeto da interpretação contratual já foram enfrentadas anteriormen- dos nommtivos inespecíficos ou incondicionais (v. g ponderação, concordância prática
e proibição de excesso). que exigem o relacionamento entre elementos sem especifi-
10s A utilização do standard não ilide a análise concreta e situada das relações contratuais car quais são os critérios que devem orientar a relação. De outro se encontram os pos-
que se desenvolvem tendo como base as disposições padronizadas dos contratos de tulados normativos específicos ou condicionais (ex.: razoabilidade e proporcionalida-
de), os quais exigem o relacionamento entre elementos com a especificação de crité-
massa.
10g MARINO, 2003, p. 250-252. Cabe mencionar, ainda, as regras do_~· 423, do CC/200~, rios que devem orientar a relação (ÁVILA, 2006, p. 129-130). ' ·
714
e do art. 47, do CDC, que estabelecem, cada qual com seus reqms1tos (regra, respecti- ÁVILA, 2006, p. 121-124 e 168.
vamente, concreta e abstrata), a adoção da interpretação mais favorável ao aderente.
h1terpretação Contratual 211
210 Felipe Kirchner ·
se limita propriamente a nenhum de seus paradigmas constitutivos 720 • A
ao destinatário, pois, enquanto as regras e os princ1p10s se destinam a tese é a de que a incorporação da conjuntura sociocultural e jurídico-
quem deve obedecê-las, os postulados dirigem-se aos intérpre:es ~ ?pera- nonnativa às categorias teóricas utilizadas na interpretação dos· contratos
dores. Destarte, no contexto da interpretação contratual, o rac10cm10 me- e na resolução de conflitos pelo Direito pode (e deve) ser feito por inter-
diado pelos postulados em exame é sempre relativo à aplicação das dis- médio dos po,stulados nonnativos das circunstâncias do caso e da propor-
posições oriundas da situação objetiva complexa715 • cionalidade. E a utilização destes preceitos que servirá à mediação entre o
Nessas condições, as circunstâncias do caso 716 e a proporcionali- contexto objetivo do contrato, a vontade objetivada dos contratantes e o
dade se constituem em verdadeiros postulados normativos de promoção e sistema jurídico.
efetivação da concreção contratual, uma vez que se apresentam como ele- Apesar da natureza comum, os preceitos em exame possuem âm-
717
mentos gerais constitutivos do negócio contido na declaração negocial • bitos de atuação dissonantes. Enquanto as circunstâncias do caso (e a razoa-
Nas duas últimas parcelas desta segunda paite do estudo serão bilidade) agem na quantificação da nmmatividade intrínseca do pacto, con-
propostas a quantificação e a incorporação das circunstâncias do caso e jugando o instrumento com as condições fáticas objetivas em que a relação
das diretrizes normativas estatais (principalmente seus vetores axiológi- contratual nasceu (momento genético) e se desenvolveu (momento dinâmi-
cos) no iter hennenêutico, o que posiciona a interpretação contratual no co ou funcional), o postulado da proporcionalidade desvela a nonnativida-
encontro da tópica718 com o pensamento sistemático 719 , cujo produto não de extrínseca do contrato, dizendo mats diretamente com a relação do ins-
trumento com o sistema jurídico, fonnando a regulamentação jurídica am-
11s ÁVILA, 2006, p. 123-125 e 166. Os postulados não impõem a promoção de um fim pla do negócio concebido pela livre disposição das partes721 •
nem prescrevem comportamentos (como aqueles estabelecidos pelas cláusulas do
instrumento contratual), mas estruturam a aplicação do dever de promover um fim rias, deve-se considerar que o método tópico não dispensa o pensamento dedutivo tan-
por meio de critérios, modos de raciocú1io e argumentação relativamente às normas to pelo fato das prentlssas que são encontradas por via indutiva serem aplicadas ao ca-
que compõem a situação objetiva complexa, estabelecendo parâmetros para a sua so particular por meio de dedução lógica, quanto porque não se pode subestimar os
efetivação. elementos de sistematizaçãp que aparecem ao lado do tópico numa ordem jurídica
716 MARTINS-COSTA, 2005b, p. 141. fundada sobre a casuística. pois mesmo nas ordens jurídicas concebidas como a soma
717 DANZ, 1955, p. 51. de soluções de casos em espécie (antigo direito romano e a contemporânea com111011
11s Gerson Branco afimia que o art. 421, do CC/2002, pemtlte o uso da tópica juridica a law mglesa e norte-americana), os elementos de sistematização aparecem no sistema,
partir de critérios sistemáticos, pois a autonontla privada não se contrapõe ao princípio mesmo que externamente, quando as proposições e as noções que fundamentam a ca-
da socialidade. em face do caráter axiológico do sistema privatista, formando uma sín- suística são provadas por via dedutiva. Canaris assim se posiciona: "Perante o pensa-
tese: a autono;1tla privada baseada na socialidade (BRANCO, 2006, p. 256). Porém, mento sistemático, a tópica tem, assim, aqui, uma fimção complementadora inteira-
cabe mencionar que a hennenêutica filosófica se dissocia da tópica em razão de sua mente legítima a cumprir; pode-se mesmo di=er que, nesta questão, se exprime de no-
pretensão de universalidade (ANDRADE, Christiano José de. A Contribuição de Ga- vo a 'polaridade' dos valores jurídicos mais elevados: a tópica ordena-se na equida-
damer para a Hennenêutica Juridica. Revista da Associação Paulista do Ministério de, portanto na tendência individuali=adora da justiça; ela representa o processo
Público, v. 2, n. 16, mar. 1998, p. 28). mais adequado para 11111 problema singularformulado o mais estritamente possível ou
719 A discussão acerca do pensamento tópico e do pensamento sistemático refoge aos uma argumentação de equidade, orientada para o caso concreto, na qual, 110 essencial,
estreitos lintltes deste estudo. Porém, cabe frisar que existem, basicamente, três postu- 11enh11111 ponto de vista discutível se pode rejeitar li111i11ar111e11te como inadmissível, tal
ras distintas acerca da relação entre os pensamentos tópico e sistemático, quais sejam, como é típico do pensamento sistemático abstrato, apoiado na tendência generali=a-
a de exclusão ou incompatibilidade (Viehweg), a de tensão (H. Otto) e a dialética e de dora da justiça. (..) Já disse que os pensamentos tópico e sistemático não são opostos
complementação recíproca, a qual foi aceita no curso da presente pesquisa. Entre os exclusivistas, mas antes se comple111e11ta111 111ut11a111e11te. Assim, eles não estão, como
autores que sustentam a compatibilidade dos raciocútlos problemático e sistemático, talve= possa ter resultado das considerações feitas até aqui, isolados umji-ente ao ou-
forma-se novan1ente uma visão tripartida, havendo a defesa da preeminência do pen- tro, antes se inte,penetrando mutuamente" (CANARlS. Claus-Wilhelm. Pensamento
samento tópico (H. Horn e E. Schneider), da primazia do pensamento sistemático Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Calouste, 1989.
(Canaris, Diederichsen e Würtenberger Jr.) e da importância equivalente entres as p. 272-273). . .
720
formas de raciocmio ora em exame (Esser, Rodig, Friedrich Muller, H. Garm e S. Refere Francisco Amaral que. em face do pluralismo metodológico que domina a
Stoljar), a qual parece ser a posição mais equilibrada e acertada, e que, ~or iss_o,_ será ciência jurídica. perdeu relevância a contraposição entre os raciocmios dedutivo e m-
utilizada no desenvolvimento deste estudo (ZANITELLI, Leandro Martms. Top1ca e dutivo (AMARAL, 2006. p. 87).
721
Pensamento Sistemático: convergência ou ruptura? ln: MARTINS-COSTA, Judith. A As observações de Humberto Ávila vêm ao encontro desta forn1á.·de mcidência. O
Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 124). autor refere que no exame da razoabilidade-equivalência analisa-se a nonna que insti-
Não obstante a existência de uma mdividualidade própria das duas vertentes doutrmá-
Interpretação Contratual 213
212 Felipe Kirchner
siderandos) que, também atuando na condição de metanonuas, adquirem
O tema em exame inequivocamente remete a aplicação de eixos enonne importância exegética e passam a atuar diretamente na confonna-
valorativos constitucionais e infraconstitucionais à relação contratual. ção do contexto fático e nonnativo em que inserido o pacto. ·
Contudo, deve-se salientar, desde já, que estes preceitos influem e auxiliam Deve ser considerado, ainda, que no curso da atividade henne-
no plano hermenêutico do contrato, mas não dizem necessariamente co- nêutica o intérprete sempre faz uso dos postulados nonuativos das ~ir-
mo a interpretação deve ser feita. cunstâncias do caso e da proporcionalidade, ainda que não racionalize
Embora os postulados atuem de forma complexa no iter exegé- essa dimensão. Estes preceitos também acontecem no iter interpretativo
tico, incidindo sobre a totalidade das diretrizes e normas contratuais, po- para além do querer e fazer do intérpret~. Como refere ~~rios Ferreira_ ~e
de-se realizar um recorte de incidência, levando em consideração as espé- Almeida, "interpretar é proceder um calculo de probabzlzdades e deczdzr
cies nonnativas que compõem a declaração negocial. Nesses termos, cabe · ifi cad o que pareça mazs
pelo szgm ' 1"7-? 3 , o que ~' mensurad o sempre
· razoave
salientar que dentre as disposições contratuais existem, essencialmente, e de forma inevitável por meio dos postulados normativos em exame.
três tipos de n01mas, que no âmbito da normatividade interna da declara-
ção negocial importam na aplicação de cada um dos postulados aqui deli-
neados. Primeiro, previsões de ordem principiológica (normas com super- 2 A CONCREÇÃO FÁTICA DA INTERPRETAÇÃO
fície translúcida, permitindo ao operador vislumbrar facilmente seu fim- CONTRATUAL
damento axiológico, que se encontra explícito) - seja por previsão ex- Sendo plenamente verdadeiro que nenhum poder no mundo -
pressa ou incidência de n01mas públicas (ex.: boa-fé objetiva e função nem mesmo a vontade da constituição ou o próprio texto constitucional,
social do contrato) -, para cuja confom1ação se utiliza a proporcionalida- como salienta Komad Hesse724 - pode alterar as condicionantes naturais
de. Segundo, determinações semelhantes a regras (normas com superficie (ex.: fatores sociais e econômicos), justificada está a tese de que também
opaca, sem discussão axiológica direta), que são conformadas pelo pre- 0 contrato está subsumido aos fatores materiais do caso concreto.
ceito das circunstâncias do caso 722 • Terceiro, nonnas narrativas (ex.: con- Nesse momento, o estudo se dirige à verificação da dimensão fáti-
ca do método concretista, o que envolve a mensuração hennenêutica dos
tui a intervenção com a finalidade de verificar se há equivalência entre sua dimensão e elementos concretos formadores da situação objetiva complexa por meio do
a falta que ela visa punir (nom1atividade intrínseca), enquanto no exame de proporciona- postulado nonnativo das circunstâncias do caso. Para tanto, serão enfrentadas
lidade investiga-se a nonna que institui a intervenção para verificar se o preceito que
justifica sua instituição será promovido e em que medida os outros princípios serão
as peculiaridades próprias deste preceito, ~es:'elados al~s dos elem~nt?s
restringidos (normatividade extrinseca) (ÁVILA, 2006, p. 166). que lhe atribuem significado e, por fim: sera feita t~ma anah~e do plano J~n_s-
722
Embora a análise das espécies noID1ativas seja assllllto que desborda dos limites desta prudencial, especialmente no que respeita ao paradigma trazido com a ed1çao
pesquisa, perfimctoriamente cumpre frisar que a diferenciação das normas de dever-ser da Súmula Vinculante 01, do Supremo Tribunal Federal.
está assentada principalmente na função e no grau de abstração e de indetenninabilidade
de cada tipo uonnativo. Os valores (situados no plano axiológico), que se prestam para a
justificação, sustentação e legitimação do Direito, em razão de possuírem grande grau de 2.1 O Postulado Normativo das Circunstâncias do Caso
abstração (pouca definição de dever-ser), se constituem em mandados de definição, uma
vez que definem o conteúdo das demais normas (princípios e regras) (ALEXY, 1997. p. Como visto, a interpretação contratual tem de quantificar todas
144). Já os princípios (situados no plano deontológico), que servem para definir a aber-
tura e os limites do sistema juridico, podem ser vislumbrados tanto como sendo "11111 pa- as circunstâncias do caso, pois estas estabelecem critérios, modos de ra-
drão que deve ser observado (...) porque é uma exigência de justiça 011 equidade 011 al-
guma ouh·a dimensão da moralidade", como quer Dworkin, quanto como sendo "man- destaca-se que este estudo assume a perspectiva (discutida doutriuariamente) de que não
dados de optimi:;ación, que están caracteri=ados por el hecho de que puedem ser cum- existe Ullla condição hierárquica necessária e aprioristica entre as espécies, evidencian-
pridos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento 110 sólo depende do-se uma relação dialógica baseada nas diferentes funções desempenhadas por cada
de las possibilidades reales sino tambiém de las jurídicas.", perante a difundida teoria norma. Nesse sentido, não se pode afirmar que os princípios, na condição de normas ba-
de Robert Alexy (ALEXY, 1997. p. 86). Por fin1, as regras, que possuem grande deter- silares, são mais importantes para o Direito que as regras, pois são elas que estabelecem
minabilidade, indicando claramente comportamentos e sanções e contendo soluções ju- com clareza os comportamentos a serem seguidos.
ridicas (sanções) preconcebidas, são normas aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada (à 723
luz do caso concreto só podem ser cumpridas ou não), não havendo falar em "medida FERREIRA DE ALMEIDA, 2005. p. 201.
724 HESSE. 1991. p. 24.
ctm1primento". como ocmTe com os princípios (DWORKIN. Ronald. Levando os Direi-
tos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39-40; ALEXY. 1997. p. 87). Por fim,
hlterpretação Contratual 215
214 Felipe Kirchner _
Em face da incessante e infinita variedade que a vida oferece é
ciocm10 e argumentação que dão à declaração negocial - palavras ou impossível dar uma definição exata do que sejam as circunstâncias do
conduta das partes - a sua significação no contexto material concreto 725 • caso731 • Natalino Irti adota definição de Cardona, para quem o contexto
Deixando de ter em conta na interpretação wn só ponto das circunstâncias material seria o "conjunto das condições gerais, das características cul-
do caso relevantes, altera-se o sentido da declaração, que deixa de corres- turais, das situações individuais que acompm1ham o ato lingüístico"732 ,
ponder à verdadeira situação, resultando em um possível (e provável) razão pela qual pode-se conceituar as circunstâncias como sendo as con-
efeito jurídico falso 726• dições fáticas e objetivas que formam o contexto e o ambiente geral do
Contudo, cabe ressaltar que o postulado das circunstâncias do contrato733 , o que encampa contexto verbal e situacional. Carlos Ferreira
caso não auxilia a interpretação do contrato apenas na busca pelo alcance de Almeida assim se posiciona acerca destas duas categorias do contexto
da significação do instrumento. Assim corno ocorre com o ordenamento, (verbal e situacional):
no plano interno do contrato existem inúmeros elementos que trazem
consigo fatores significativos que remetem a concepções materiais do "Contexto" tanto pode s;gnificar: (a) em sentido estrito, o ambiente
entorno social (ex.: cláusulas remissivas à realidade e atinentes ao seu do termo na frase, da frase no enunciado 011 no texto, isto é, a série de
elementos que os precedem e os seguem nesse enunciado ou texto; (b)
objeto, motivo e causa), sem coincidir totalmente com elas, eis que jurí- em 11111 sentido amplo (pragmático), a situação do discurso (contexto
dicizadas em uma declaração bilateral 727, surgindo a interpretação concre- situacional), isto é, a situação espácio-temporal particular que com-
tista como sendo a atividade necessária para a significação nonnativa preende os interlocutores, a ideia que cada 11111 tem do outro, as ac-
desta realidade. Nesses termos, pode-se dizer que o contrato é um micros- ções que realizam nesse momento, os diferentes objectivos e aconte-
sistema abe1to às circunstâncias do caso (e aos vetores do ordenamento cimentos com que se relacionam 734 •
jurídico, como se verá no tópico próprio)728 •
Contudo, parece inequívoco que o contexto abrangido pelas cir-
Ern termos de abrangência, as circunstâncias do caso abarcam
cunstâncias do caso significa tanto o ambiente textual e intertextual das
as negociações precedentes e as manifestações concomitantes e posterio-
disposições contratuais no todo unitário da declaração (contexto sistemá-
res das partes729 • O postulado possui, ainda, enorme relevância no campo
tico das cláusulas, frases e enunciados), quanto a situação de discurso
da colmatação do contrato. No âmbito da circularidade hennenêutica, o
(contexto situacional), ou seja, a situação espaço-temporal (econômica,
intérprete está legitimado a atribuir relevância às circunstâncias externas
histórica e cultural) particular que compreende o objeto e os interlocuto-
ao regulamento (porque não tomadas em consideração direta na declara-
res da relação contratual 735 •
ção, ou seja, não assumidas diretamente pelas partes como sua "vontade
contratual") na busca de uma solução harmônica com a operação econô- A dimensão intertextual do contrato parece por demais signifi-
mica desenvolvida em seu conjunto (ainda que o significado não resulte cativa do ponto de vista hermenêutico, não apenas pela declaração nego-
imediatamente do teor das cláusulas acordadas pelas partes) 730 • cial se constituir em um produto de cruzamento entre enunciados, mas
principalmente por ser um centro de remissão para o texto de outros atos
e para todas as condutas que conformam e constituem a relação contratual
725
Neste estudo serão utilizadas as expressões circunstâncias do caso e contexto para
abranger a condição verbal e situacional concreta do contrato (FERREIRA DE AL-
MEIDA, 1992, p. 349).
731 O Código Civil utiliza os seguintes tennos para as circunstâncias do caso: c01iforme
726 as circunstâncias exigirem (art. 690), c01iforme as circunstâncias (do caso) ou con-
DANZ, 1955, p. 35, 51, 77, 93, 100 e 245. forme os usos (arts. 24; 138: 151, parágrafo {mico; 152: 156, parágrafo único; 233;
727
ENGISCH, 1968, p. 30. 311; 320, parágrafo único; 327; 500. § 1º, 699: 700; 701; 724; 753, § 1º; 869. § 1°;
728
O plano normativo do método concretista será enfrentado no tópico "A concreção 953, parágrafo único), usos a que se destina oufim a que se destina (arts. 566, I: 567),
normativa da interpretação contratual''. usos convencionados ou presumidos (art. 569, I) e costumes da localidade (art. 1297,
72
Q DANZ, 1955, p. 52-53, 84 e 354; ALPA, FONSI. RESTA, 1983, p. 3. Gino Gorla § Iº) (MARTINS-COSTA, 2005b, p. 141).
entende que a quantificação das circunstâncias do caso abrange a averiguação da in- 732 IRTI, Natalino. Testo e Contesto. Padova: CEDAM, 1996. p. 124.
tenção de se obrigar, independente dos critérios de forma e da coisa objeto da contra- 733
DANZ, 1955, p. 52.
tação (GORLA, Gino. E/ Contrato: exposición general. t. 1, Barcelona: Bosch Cada 734 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 299. , .·
Editorial, 1959, p. 92). 135 FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 299.
730
ROPPO, 1988, p. 175 e 177.
Interpretação Contrah1al 217
216 Felipe Kirchner .

presença ao texto do negócio jurídico. Como refere Carlos Ferreira de


objetiva, orgânica e complexa. Como refere Carlos Ferreira de Almeida, Almeida, as circunstâncias definem e constituem a base do negócio jurí-
"há pois, entre o acto e o texto, uma relação dialética, que nem gera dico em seu sentido subjetivo e/ou objetivo, e sua atuação é multifuncio-
confitsão das duas entidades nem conduz a um círculo vicioso"736 • nal, pois a mesma circunstância pode desempenhar mais de uma função
Ademais, o postulado das circunstâncias do caso abrange a am- na complexa estrutura do contrato:
bientação cultural e histórica ínsitas no Dasein. Desta feita, aqui não se
diferencia o contexto situacional (circunstâncias concretas em que os As circunstâncias estruturais do negócio jurídico fazem parte dele,
enunciados são proferidos) do contexto cultural (crenças, valores e luga- como elementos de composição, complementar dos elementos funcio-
nais, contribuindo para completar, restringir, circ11nscrever ou expli-
res comuns de um grupo social). Contudo, como salienta Francisco Mari- car por q11e modo se realiza a eficácia negocial ou como se satisfazem
no, a distinção é relevante para demonstrar a existência de circunstâncias os objectivos sociais e económicos.
concretas (ligadas ao universo específico das partes) e circunstâncias abs- As circunstâncias contextuais e as circunstâncias básicas são pressu-
tratas ou típicas (ligadas ao círculo social a que as partes pertencem) 737 • postas na compreensão e no equilíbrio negocial; as circunstâncias es-
Feitas estas considerações introdutórias, a primeira grande dis- truturais são dispostas no seu conteúdo e nele figuram como referên-
cussão a ser dirimida é a forma como as circunstâncias do caso agem na cias. Aquelas são exh·atextuais (e, por isso, não referidas) ou são,
quando muito, intertextuais; estas são intratextuais, como participan-
atividade interpretativa, em sua condição funcional indicativa da interde- tes eventuais e, por vezes, necessárias do texto negocial.
pendência entre o fenômeno jurídico-social e o seu ambiente cultural e Essas diferenças não devem contudo ofuscar as coincidências. As res-
histórico 738 • Se na condição de postulado normativo as circunstâncias que pectivas classes (tempo, espaço, finalidade, eventualidade, .. .) e cam-
cercam a emissão da declaração negocial surgem inequivocamente como pos paradigmáticos (...) são parcialmente comuns, as fronteiras nem
meio para interpretar essa declaração, com o que concorda a doutrina sempre bem definidas. Os problemas de inte1pretação, integração e
majoritária739, perante o paradigma hermenêutico aqui adotado as circuns- determinação da base do negócio suscitam certas dificuldades distin-
tâncias do caso transcendem essa condição, tornando-se verdadeiros ele- tivas (..), precisamente porque a mesma circunstância pode ser to-
mentos do todo complexo que forma o contrato 740 • mada como elemento do texto determinante directo dos efeitos, como
simples meio para a inte,pretação de 11111 outro elemento, como objec-
Deve ser enfatizado que a interpretação contratual incide sobre to da representação de e.,pectativas ou como factor objectivamente
toda a factualidade dos comportamentos relevantes relativos ao negócio. influente na realização do escopo negocial. Por exemplo, a destina-
O texto da declaração negocial, que também faz parte da situação objeti- ção da coisa 1111111 contrato de compra e venda tanto pode constit11ir
va complexa, revela apenas parcialmente o resultado do ato de conclusão "c/á11s11/a" integrante (sendo então circunstância esh·utural de.finali-
do contrato, não reproduzindo toda a atividade desencadeada, pois se diz dade) como pode ser a ele exterior, influenciando a interpretação das
o essencial do que aconteceu, não diz como aconteceu, nem evidencia a qualidades do objecto ou conh·ibuindo para m1aliar sobre 111110 even-
plenitude da eficácia jurídica no contexto da dinâmica do acontecimento tual eliminação 011 alteração da base do negócio 742 •
social741 • Em tennos instrumentais, as circunstâncias do caso devem ser
Assim, as circunstâncias do caso possuem uma dupla função na fixadas antes de proceder a interpretação (por meio de prova ou confis-
interpretação dos contratos: além de aportar elementos para a compreen- são)743, o que não conduz ao entendimento de que sua significação e ava-
são da declaração e da qualificação da conduta social como negócio jurí- liação independa dá atividade hennenêutica, pois já foi definido neste
dico, trazem consigo fatores fo1mativos da contratação, figurando em co- estudo que a fonna de realização da compreensão é a interpretação 744 •

742 FERREIRA DE ALMEIDA. 1992, p. 349-350.


736
FERREIRA DE ALMEIDA. 2005, p. 31 l.
743 DANZ, 1955, p. 263-266; ENGISCH, 1968, p. 40.
737
MARINO, 2003, p. 91.
744 LARENZ. 1989, p. 342. Exemplificativamente. ao ver-se o cliente estendendo dinhei-
738
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 350.
739 ro ao vendedor. o entendimento de que o ato trata-se de um pagamento depende do
MARINO, 2003, p. 79-80. contexto fático geral e do agir hermenêutico da testemm1ha ocular. pois uma interpre-
740
Esse parece ser o entendimento de Eros Roberto Grau, quando o jurista afirma que "a tação evidente pode se mostrar incorreta após o conhecimento mais âproxirnado da to-
interpretação abrange também os fatos" (GRAU, 2003, p. 33). talidade das circunstâncias do caso.
741
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 302 e 311-312.
Interpretação Contratual 219
218 Felipe Kirclmer
ato de autonomia 749 • Assim, caberia ao intérprete analisar as diversas
Nunca é demais lembrar que o intérprete não trabalha diretamente com a circunstâncias do caso, e nestas verificar se o destinatário deveria (ou
realidade mas com fatos conshuídos pela mediação hermenêutica (em não) conhecer o uso peculiar utilizado pelo declarante. Na resolução do
sua dim;nsão histórica e linguística). Desta feita, além de selecionar a problema proposto, inúmeros elementos adquirem relevo, tais como: a
pertinência dos fatos no curso da sua própria cognição, é o sujeito cog- natureza habitual das relações mantidas entre as partes, as manifestações
745
noscente que (re)constrói todas as circunstâncias emjogo • anteriores, a linguagem especial do declarante ou a linguagem própria de
Nessa tarefa é essencial ao intérprete saber quais circunstâncias detenninado ramo comercial, o lugar e tempo específicos da declaração,
eram (ou não) notórias às partes, pois só devem ser consideradas ~álidas etc. 750 • Em tennos abstratos, no exemplo proposto parece que a melhor
ao processo hennenêutico aquelas a que todos os contrae~tes tiveram solução seja a atribuição de eficácia ao sentido do declarante, embora o
ciência, ou seja, aquelas circunstâncias que se mostraram recipro~amente ponto de relevância hennenêutica esteja situado fonnahnente no destina-
reconhecíveis746 ou ao menos reconhecíveis para aquele que detiver so- tário B.
• 'd' Do caso hipotético acima nan-ado ainda se extrai o problema de
bre si o ponto de ,
relevância hermenêutica141 . Como nos negocios' •
JUn !-
cos bilaterais o foco hermenêutico está, em regra, na pessoa do declarata- graduação entre o conhecido e o cognoscível, pois se pode entender como
rio ' cabe ao declarante tomar objetivas as circunstâncias relevantes nas válido o uso de todas as circunstâncias que o sujeito devesse conhecer, ou
, . . apenas daquelas circunstâncias que o contratante efetivamente conhe-
fases de tratativa e conclusão do contrato, tambem em respeito aos pnn-
748 cia751. Embora a questão dependa de urna análise tópica e situada (poden-
cípios da boa-fé objetiva e da confiança •
do variar devido às peculiaridades do contexto fático ), correta se mostra a
Contudo a questão da necessidade de objetivação das circuns- teoria objetivista de Erich Danz, para quem o intérprete somente pode
tâncias do caso não é simples, como pode ser extraído do seguinte exem- tomar em conta as circunstâncias do caso que sejam notórias para as par-
plo apresentado por Fen-er Con-eia e mencionado por Custódio Ubaldino tes ao celebrar o negócio jurídico - em um exame que não pode prescin-
Miranda. Suponha-se que A é locador de dois ~móveis lo~a~os a_B (negó- dir do uso de standards -, pois do contrário restaria afrontado o princípio
cio jurídico bilateral com o ponto de relevância henneneutica situado no da boa-fé objetiva e a legít4na confiança que a outra parte põe na signifi-
destinatário B), recém-chegado na região, um situado_~º tén-eo e out~o no cação das palavras tal como se apresentam, quebrando a segurança do
primeiro andar de uma mesma edificação. Sendo emitida por A_ notifica- tráfico jurídico. Nesse sentido, o essencial da interpretação é saber se as
ção "para cessar a locação da rés-do-chão" ~ap~ame~to ,situado n? circunstâncias do caso eram ou não notórias às partes 752 • Assim sendo,
tén-eo ), B interpreta tal expressão como sendo dmgida ao 1movel do pn- podem ser utilizadas na atividade hermenêutica todas as circunstâncias
meiro andar pois este é o sentido da expressão "rés-do-chão" em sua que os contraentes pudessem ou devessem conhecer com o uso de uma
ten-a natal, ; sob este pressuposto celebra com C contrato de sublocação diligência normal na situação hennenêutica determinada, ou seja, no exa-
do imóvel do andar tén-eo, ao mesmo tempo em que A, entendendo que B to contexto objetivo em que construído o contrato e desenvolvida a rela-
interpretou con-etamente a sua manifestação de vontade, celebrou novo ção contratual753 •
contrato de locação do apattamento tén-eo com D.
Neste problema, atribuir à declaração de_ A o sentido ente~di~o 749
MIRANDA. 1989, p. 145.
750
pelo destinatário B (que é aquele que detém em si o ponto de relevancia MIRANDA, 1989, p. 142.
751
hermenêutica) é forçá-lo a um sentido que jamais esteve presente em seu MIRANDA, 1989, p. 142.
752
DANZ, 1955. p. 52-53. 77. 84 e 354.
753
MIRANDA. 1989, p. 186. Dito isso. mister se faz delinear que se a menção a uma
745 ÁVILA, 2006, p. 100. "diligê11cia 11ormaf' indica o uso de um sta11dard. o mesmo não pode ser confundido
746 BETII, 2003b, 180-181. com um modelo puramente abstrato (ex.: homem médio). pois também deve ser cons-
7-1 7 A questão foi enfocada no tópico "O ponto de relevância hermenêutica dos tipos truído no curso do procedimento hem1enêutico. uma vez que deve sempre ser mensu-
contratuais e a extensão dos meios interpretativos''. rado o "contexto objetivo em que co11struído o contrato e desenvolvida a relação co11-
748 A relação entre o uso do postulado normativo das circunstâncias do caso no plano tratuaf'. Cabe ainda aduzir que, embora haja a necessidade de que as circunstâncias
hem1enêutico e a proteção da confiança legítima parece clara. Como refere Karl L~- do caso sejam reciprocamente reconhecíveis. parte da doutrina entende que as cir-
renz ·'a ordem jurídica tutela a confiança do dec/aratário, afim de que a declaraçao cunstâncias de tempo e local do negócio independem de menção, incidindo sempre in
valh~ com o significado com que, segundo as circunstâncias, podia e devia ser enten- re ipsa (BETil, 2007. p. 352-353).
dida" (LARENZ, 1989, p. 360).
Interpretação Contratual 221
220 Felipe Kirchner ·
não é admissível uma clara separação", não devendo a atividade herme-
É por essa razão que Erich Danz e_ Karl Larenz propõem qu~ .º nêutica operar uma brusca separação do preceito contratual em relação ao
intérprete deve interpretar a declaração negoci~l _atendendo aos, u_sos socia~s seu processo de fonnação e a totalidade espiritual e teleológica na qual
como faria um profano, colocando-se na posiça_o do decl~ratano e consi- ele naturalmente se enquadra corno manifestação da autonomia privada757 .
derando todas as circunstâncias, a fim de verificar quais eram por ele Corno já salientado, a importância das circunstâncias do caso na
conhecidas ou cognoscíveis no momento do acesso . à declara_ç~o e no atividade hermenêutica diz com a sua influência tanto naquilo que se está
curso do cumprimento da relação contratual. Nesse mister, o sujeito cog- interpretando, quanto na pessoa do intérprete. Para compreender o texto o
noscente deve conceber o declaratário enquanto participante do tráfego intérprete "não pode ignorar a si mesmo e a situação hermenêutica na
jurídico familiarizado com o uso ge!·al_ da linguagem (apreensão q_ue resta qual se encontra. Se quiser compreender, deve relacionar o texto com
mitigada nas searas protetivas do Dll'e1to, co~no n~ caso das _relaçoes _con- essa situação"758
sumeristas e laborais), quantificando, em situaçoes n01mais, tambem o
754 Também no plano da concreção é interessante a concepção pre-
uso especial da linguagem do círculo de relações em causa •
ceptiva de Ernilio Betti, para quem "os interesses que o direito privado
Neste tópico ainda cabe enfrentar a quest~o sobre a possi~ilida- disciplina, existem na vida social, independentemente da tutela jurídica,
•. ··.·.
de de consideração hermenêutica das circunstâncias qu~ contr~em a e movem-se numa vicissitude perene", sendo que o valor vinculativo do
declaração negocial. Como coneta1:3-ente adve:1e _Francisco Ma~o, a contrato advém não apenas da ordem normativa ( que reconhece o vínculo
questão é mal formulada, pois o sentido a ser atnbmdo ~o con!rat? e exa- e lhe atribui uma sanção jurídica), mas também do contexto fático 759 que
tamente aquele resultante da consideração de todas as CU'cunstanci~s rele- deve ser quantificado no iter hermenêutico. Embora centrado em um viés
vantes. Assim, não é possível afinnar aprioristicamente 9-ue ~a cir:uns: reconstrutivo, aqui expressamente rechaçado, o filósofo italiano aporta
tância contraria o sentido da declaração quando tal sentido amda nao foi
interessante observação ao afll'IDar que os mesmos critérios que explicam
determinado ( determinação que depende exatamente da avaliação do
a construção da declaração emitida e comunicada devem governar a sua
contexto situacional). Nesses termos, o intérprete jamais pode ?~scartar interpretação760 •
detenninado elemento fático em virtude de uma suposta contradiçao com
O postulado norinativo em exame impõe-se a todas as espécies
0 sentido literal da declaração negocial, pois, no âmbito da hennenêutica
contratuais, pois sempre serão as circunstâncias do caso que constituirão
filosófica, o sentido desta declaração é provisório, já que se enconti·a em
· da crrcu
· 1an'dade hermeneu ~ t·ica 755 .
o filtro pelo qual devem ser ponderadas e sopesadas as regras situadas no
construção no gll'ar
plano da autonomia - tendo importância decisiva no modo e na escala de
No horizonte gadameriano o texto deve ser compreendido com aplicação também dos princípios presentes nessa dimensão -, permitindo
as pretensões que apresenta a cada instante. _Em cada situação _concreta a discernir entre seu valor nominativo, seu valor nonnativo e seu valor
declaração negocial passa a ser compreendida de urna rnaneir~ :1ova e hermenêutico 761 • Como afinna Humberto Ávila, "a própria exigência de
distinta, o que importa na quantificação das diversas fases e estagios por racionalidade na inte1pretação e aplicação das normas impõe que se
que passa a vida do contrato. A dinan!icid~de da r~l_ação co:1tratu~l deve analisem todas as circltnstâncias do caso concreto"762 .
ser verificada na interpretação, o que nnphca a analise da di11;e~sao pro-
Por fim, cabe salientar que, em tennos de estmturação da ativi-
cessual da relação contratual, no sentido de que ~ª ~enneneu!ica deve
dade exegética, o postulado das circunstâncias do caso se aproximam do
quantificar não apenas fases estanques, mas a sequencia d~te~n~m~da das
dever de razoabilidade763 , principalmente no que tange à busca de efeti-
etapas contratuais. Contudo, essa relação contratual, que e dmamica,_ o~-
gânica e complexa, comprime uma realidade maio~ ~? conte;:t~ do Dll'el~ 151 BETII, 2007, p. 348-349.
to e da declaração negocial 756 • Como refere Betti, o negoczo_ deve _se, 75s GADAMER, 2005, p. 426.
considerado como um todo unitário, a ser inte1pretado na sua mtegrzda- 759
BETII. 2003a. p. 63-67.
de: ltm todo, entre clljas partes individllais, preliminares e conclusivas, 76
º BETIL 2003b, p. 189; BETIL 2007. p. 360.
761
MARTINS-COSTA. 2005b, p. 142.
754 DANZ, 1955, p. 183-184 e 192; LARENZ, 1989, p. 360. 762 ÁVILA. 2006. p. 154.
763
155 MARINO, 2003, p. 117-118; DANZ, 1955, p. 35 e 93; ENNECCERUS; KIPP; Existem diferenças entre o dever de proporcionalidade e o dever .de razoabilidade.
WOLFF, 1954, p. 6. embora este postulado possa ser enquadrado no exame da proporcionalidade em sen-
75 6 FERREIRA DA SILVA, 2008.
Interpretação Contratual 223
222 Felipe Kirchner .
(2) exige a vinculação da nonna com a realidade a que faz referência,
vação da concreção contratual 764 • Entende Karl Larenz que o apreender também em dupla perspectiva: exigindo um suporte fático concreto que
de sentido de um termo ou preposição no contexto de uma cadeia de re- seja adequado ao enquadramento legal e demandando uma relação con-
gulação requer considerações acerca da razoabilidade, até mesmo porque gruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir 768 ; (3)
o ato hermenêutico comporta elementos subjetivos 765 • exige a relação de equivalência entre duas grandezas769 •
Quanto à atividade de concreção, a razoablidade possui três Afirma Humberto Ávila que "a razoabilidade atua como ins-
acepções que merecem destaque: ( 1) exige a relação das normas gerais trumento para determinar que as circunstâncias de fato devem ser consi-
com as individualidades do caso concreto em um duplo sentido: desve- deradas com a presunção de estarem dentro da normalidade" incidindo
lando a perspectiva que a norma deve ser aplicada e em quais hipóteses 0 no processo de "interpretação dos fatos descritos nas regras jurídi-
caso deixa de se enquadrar na nonna 766 , devido as suas especificidades767 ; cas"77º. Este raciocínio pode ser estendido aos ditames contratuais, no
que tange a conjugação do dever de razoabilidade com o postulado das
tido estrito, caso se entenda qne este exame compreende a ponderação de vários inte- circunstâncias do caso, tanto que o próprio autor refere que aquele precei-
resses em conflito, ~nglobando os interesses pessoais dos titulares dos direitos funda- to exige a interpretação confonne as circunstâncias de fato, impondo "a
mentais atingidos (AVILA, 2006, p. 147). Enquanto a proporcionalidade pressupõe a consideração do aspecto individual do caso nas hipóteses em que ele é
relação de causalidade entre o efeito de uma ação (meio) e a promoção de um estado sobremodo desconsiderado pela generalização", atuando "na inte1preta;
de coisas (fim), a razoabilidade não faz referência a esta relação (meio-fim), mas sim
a _uma relação de correspondência entre duas grandezas (dever de equivalência), que
ção das regras gerais como decorrência do princípio da justiça"111 • E
dizem com o critério de diferenciação escolhido (qualidade) e a medida adotada, sen- também perante esse dever de harmonização do geral com o individual
do que aquele não leva à medida, mas é critério intrinseco a ela (ÁVILA, 2006, (dever de equidade)772 que a razoabilidade incide, ao lado do postulado
p. 146-147 e 165). Enfocando o método aplicativo da proporcionalidade e da razoabi- das circunstâncias do caso, no processo de concreção contratual.
lidade, tem-se que "enquanto o primeiro consiste 1111111juí=o com referência a bens li-
gados a fins, o segundo tradu= 11111 juí=o com referência a pessoa atingida" (ÁVILA,
Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever consideração de dados contextuais como razões superiores àquelas que justificam a
de Proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, aplicação da própria regra.
n. 215, jan./mar. 1999, p. 173-175). Por fim, deve-se salientar que parte significativa 768 Esse último viés aproxima o dever de razoabilidade do exame de proporcionalidade
da doutrina e da jurisprudência se utilizam dos postulados como preceitos equivalen- em sentido estrito, nos tennos anteriom1ente referidos em nota supra.
tes (RE 211.043, Rel. Min. Marco Aurélio; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. 76g ÁVILA, 2006, p. 139 e 169.
Aplicação dos Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade no Direito Civil. 770 ÁVILA, 2006, p. 141.
Revis.ta da EMER~, Rio de Janeiro, v. 9, n. 33, 2006, p. 183). De qualquer fomrn, o 771
própno Humberto Avila refere ser questão secundária a definição conceituai do uso ÁVILA,2006,p.141-142.
772 ÁVILA, 2006, p. 146. Em tem10s de uma teoria geral da interpretação, o dever de
deste ou daquele postulado. pois o verdadeiro problema reside em confundir exames
concretos diferentes, ou seja, o problema não está em usar uma palavra para dois fe- equidade parece estar situado no plano do caráter criativo, construtivo e produtivo da
nômenos, mas em não perceber que há dois fenômenos diferentes a analisar, quais se- atividade hermenêutica, com os limites que lhe são subjacentes. tais como a necessi-
jam, a razoabilidade que investiga a relação existente entre duas grandezas ou entre dade de deixar a coisa falar, o que no plano dos contratos diz com o respeito substan-
uma medida e o critério que infonna a sua fixação, e a proporcionalidade que investi- cial ao espírito e à lógica provenientes da autonomia dos contraentes, descabendo mo-
ga a relação entre a medida adot~da, sua finalidade e o grau de restrição causado aos dificar o contrato e fazer derivar dele consequências contrárias à composição de inte•
direitos dos sujeitos envolvidos (A VILA, 2006, p. 165). resses em que as partes fündaram a operação (ROPPO. 1988, p. 175-176). A posição
7 majoritária da doutrina nacional desautoriza o uso da equidade (MIRANDA, 1989, p.
6-1 Como refere Carlos Ferreira de Almeida, "inte,pretar é proceder 11111 cálculo de pro-
babilidades e decidir pelo significado que pareça mais ra=oável" (FERREIRA DE 216-217 e 229-230) ou o relega à função de colmatação de lacunas, ressalvando um
ALMEIDA, 2005, p. 201). pretenso risco para a certeza das· relações. por este vetor estar em oposição com o
765
LARENZ, 1989, p. 141-142. princípio da confiança (BETTI, 2003b, p. 222). Isso é um derivativo cultural de nossa
766 matrizjuridica que merece superação, sendo a equidade um vetor amplamente utiliza-
Análise do suporte fático concreto em relação ao suporte fático abstrato, que se cons-
titui na hipótese de incidência prevista normativamente. do nos países do common law (equity). Como será demonstrado quando do exame do
767 postulado da proporcionalidade, o ministro Eros Grau afirma que a proporcionalida-
O dever de razoabilidade assume uma função extremamente relevante na análise das
condições de superação de um detenninado elemento nom1ativo. No curso da ativida- de/razoabilidade não passa de un1 novo nome dado à equidade, exatamente porque
de voltada à concreção do contrato, a razoabilidade auxilia na verificação da existên- atua perante a interpretação concreta e no momento da aplicação, e·llão na fommlação
cia de uma modificação das razões e consequências estabelecidas prima facie pelas abstrata do elemento nommtivo em exame (GRAU, 2003, p. 188-189).
nomms contratuais no contexto de sua aplicação, tornando mais controlada e segura a
224 Felipe Kirchner • Interpretação Contratual 225

2.2 Os Elementos que Compõem o Postulado das camente mantidos e reconhecíveis, enquadrados no contexto das circuns-
tâncias concomitantes.
Circunstâncias do Caso
Dito isso, cabe ressaltar que a primeira grande fonnà de con-
O contrato é o contrato e suas circunstâncias, ou seja, é texto e substanciação do postulado das circunstâncias do caso se dá no âmbito da
contexto, razão pela qual sem individuação não há qualquer possibilidade dimensão linguística da interpretação contratual. Dentre os sentidos lite-
de compreensão. Além de interpretar as palavras, gestos e atividades, o rais possíveis, a quantificação do contexto proporciona a concordância
sujeito cognoscente deve interpretar as circunstâncias em que as palavras, objetiva e intertextual da disposição contratual, dando prevalência ao
gestos e atividades são criados e desenvolvidos 773 • Não há conhecimento sentido consoante ao comportamento das partes, ao conjunto de declara-
e interpretação desvinculados de um quadro de significados e de um uni- ções por elas emitidas e à ordenação externa derivada das leis 777 .
verso de narração que os sustentam774 . A dimensão meramente semântica do significado negocial é de
As circunstâncias do caso detenninam o significado das obriga- todo insuficiente. A tese clássica de que o significado do contrato residi-
ções, mas possuem conteúdo incompleto, o qual deve ser preenchido por ria exclusivamente no conteúdo da vontade revelada por sua manifestação
•. ··•.·.·
detenninados elementos fáticos e nonnativos para que se alcance a atri- (declaração negocial) toma por objeto apenas um texto anônimo, descai·-
buição do significado usual correspondente ao ato de autonomia priva- nado, despersonalizado e isolado da relação comunicativa concreta que se
da,775 tendo em vista que a interpretação contratual trabalha com um de- estabelece entre quem o produz e quem dele toma conhecimento 778 •
terminado discurso jurídico. A detenninação de significado de uma declaração depende não
De uma maneira geral, pode-se apresentar a interessante distin- apenas das regras de composição da mensagem (sintática) e dos sinais
ção entre situação de fato enquanto acontecimento e como enunciado, comunicativos utilizados (semântica), mas também das relações entre o
devidamente observada por Karl Larenz776 • Ocorre que no fenômeno uso dos sinais em um dado contexto fático (pragmática), razão pela qual
contratual há detenninadas circunstâncias fáticas dispostas expressamente se faz necessário que o sujeito cognoscente enfoque os efeitos interacio-
na declaração de vontade (selecionadas pelos contratantes entre a multi- nais do uso da linguagem em uma detenninada comunidade linguística e
plicidade inabarcável do constante fluir do acontecer fático), as quais em um contexto social (relações que se instauram por intennédio do uso
assumem, portanto, a condição de enunciados nonnativos (a serem utili- concreto da linguagem) 779•
zados para mensurar os comportamentos posteriores dos contraentes, em Nesse sentido, a necessidade de concreção atinge a análise lin-
regra por meio de processos de subsunção). De outro lado, há todo o resto guística do contrato. Além do significado das palavras variar confonne as
das circunstâncias do caso que delineiam, englobam e fundamentam a circunstâncias em que são fonnuladas e depender das nonnas estatais de
relação contratual, e que, nessa condição, devem ser consideradas como natureza conceituai (estando sempre relacionado com as circunstâncias
acontecimentos relevantes à atividade hennenêutica. 780
fáticas e normativas), aquilo que se compreende como enunciado sem-
Confonne se extrai da teoria preceptiva de Emílio Betti, o rele- pre vem acompanhado de motivações. Os enunciados linguísticos jamais
vante na atividade hennenêutica não é tanto o teor das palavras ou a ma- t~m seu pleno conteúdo de sentido formado a partir de si mesmos, neces-
terialidade da conduta, mas a situação objetiva em que aquelas são pro- sitando sempre da quantificação de urna dimensão relacional e intertextual
nunciadas ou subscritas, ou seja, o complexo de circunstâncias em que a (ex.: a palavra "aqui" não é compreensível pelo simples fato de ter sido
declaração e o comportamento se enquadram como seu meio natural e em pronunciada ou escrita, pois sua significação é complementada pela oca-
que assumem, segundo o ponto de vista da consciência social, o seu típi-
co significado e valor. Nesses tennos, são objeto de interpretação nos 777
LARENZ, 1989, p. 391 e 394. A questão atinente à ordenação externa derivada das
negócios jurídicos as declarações trocadas e os comportamentos recipro- leis denota a dimensão indissociável que existe entre ·concreção fática e nonnativa e.
consequentemente. entre a utilização dos postulados das circunstâncias do caso e da
773 proporcionalidade no iter hermenêutico.
FERREIRA DA SILVA, 2006. 778
774 FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 163.
MARTINS-COSTA, 2008. 779
775 FERREIRA DE ALMEIDA. 2005, p. 163. , ·
DANZ, 1955, p. 56-57. 780
776 DANZ, 1955. p. 18 e 24.
LARENZ, 1989, p. 333-334.
hlterpretação Contratual 227
226 Felipe Kirclmer ·
Nunca é demais frisar que a linguagem varia confom1e condi-
sião em que foi pronunciada)781 . Como refere Gadamer, "nenhuma frase ções geográficas, culturais e sociais (ex.: usos do comércio), e é confor-
é por si mesma uma unidade. Ao contrário, toda frase perte_.,nc~ a uma madora de um modo de construir as declarações negociais, redundando
unidade de sentido que empresta ao todo do texto a sua tensao mterna e na constituição dos usos sociais dentro de detenninada classe. Exemplifi-
o seu tom próprio"182 • No mesmo sentido, Emilio Betti, para quem cativamente, em uma contratação envolvendo pessoas de classes comer-
ciais distintas (contratos de consumo), as palavras devem ser interpreta-
o significado, a intensidade e a nuança de um? P_alm1ra só podem ser das no sentido vulgar; já quando o negócio caiba dentro da órbita especial
entendidas no contexto em que tal palm 1ra foz dita 011 se encontra, o de uma determinada classe comercial (v.g.: contrato de distribuição co-
significado e o valor de uma preposição e daqu<;las que se associ~m a
ela só pode111 ser co111preendidos pelo nexo reciproco e pelo co,yunto mercial ou contrato de construção de uma casa sendo aceitante um arqui-
orgânico do discurso a que pertencem 183 • teto788), a linguagem deve ser compreendida em seu sentido técnico, o
que deve ocorrer também quando o destinatário, mesmo não sendo partí-
Nesses termos, a concreção hermenêutica, mediada pelas cir- cipe de igual classe social/comercial do proponente, conhece o sentido
cunstâncias do caso, é fator detenninante na distinção entre o uso geral e especial que é dado às palavras e não emite manifestação em contrário 789 .
o uso particular da linguagem nas declarações negociais, tendo em vista Ainda mensurando o plano linguístico, Carlos Ferreira de Al-
ser inequívoco que as palavras não têm um sentido fixo 784 . meida ressalta a necessidade de análise de todos os meios acessíveis ao
O significado referencial dos signos utilizados na declaração intérprete, dentre os quais se destaca Ô comportamento global dos decla-
negocial depende sempre daqui!o a que_ re~nete, ou sej_a, ao _seu conte~o rantes, as especificidades linguísticas do local e da profissão, a comuni-
fático e nonnativo, o que toma 1mprescmd1vel a quantificaçao da relaçao dade ou círculo linguístico em que se inserem contrato e contraentes,
globalmente apreendida 785 . É o horizonte da s~tuação objetiva ~omplexa tendo em vista que a situação e o meio falam tão claramente quanto as
que perfaz a verdade dos enunciados contratuais, send? ce~o, amda,, q~e palavras790 .
parte do universo comum dos contratantes se e~contra msendo na propna Carlos Ferreira de Almeida refere que os interlocutores do diá-
dimensão linguística dos enunciados contratuais, por força do ato de au- logo contratual (sejam pessoas fisicas ou jurídicas, destinatários detenni-
. 786
tonomia ou dos comportamentos postenores nados ou indeterminados) participam do processo comunicativo segundo
Erich Danz demonstrou que o intérprete contratual não pode re- determinantes pessoais que abrangem competências linguísticas e para-
cair em dois equívocos: ater-se ao sentido literal das expressões e_ e?ten- linguísticas (v.g.: gestos, entoação e simbologias), abarcando aspectos
der as palavras pelo sentido da linguagem comum. No _cur_so da at1v1dade pessoais (ex.: idade, sexo, cultura, profissão, capacidade econômica, ima-
hennenêutica, o sujeito cognoscente deve entender o s1~1ficado dos t~r- gem social, capacidade e legitimidades jurídicas) e objetivos do estamen-
mos contidos na declaração negocial sempre em relaçao a todas as cir- to social a que estão submetidos. Contudo, há uma graduação hennenêu-
cunstâncias do caso, eis que as palavras nunca têm um sentido fixo, pois tica destas determinações, pois as mesmas ganham relevância interpreta-
seu significado depende sempre dos elementos fáticos e normativos rele- tiva quando integradas em uma esfera de conhecimento mútuo que as
vantes, se alterando quando estes se mo d1.fi1carem787 . tome atendíveis como fatores de compreensão do sentido do texto 791 .
A mesma indefinição presente na conceituação do que sejam as
78 1 GADAMER, 2004, p. 229-230. circunstâncias do caso alcança a abrangência de atuação do postulado no
782 GADAMER, 2007b, p. 123. plano hermenêutico, pois como refere Karl Larenz, "se antes falamos de
783 BETTT, 2007, p. XLVII.
784 FERREIRA DE ALMEIDA. 2005, p. 161. 788 Este exemplo demonstra que a questão tratada trai1scende o enquadrainento jurídico.
785 GADAMER, 1998a, p. 102-104 e 108. pois se aplica tanto aos contratos paritários. quai1to às ·pactuações consumeristas. em-
786 GADAMER, 2004, p. 68. bora nestas o intérprete deva ter um cuidado redobrado no uso da linguagem técnica.
78 7 DANZ, 1955, p. 52-53. Pensando o Direito antes da viragem linguística, Erich Danz em face das normas estatais de ordem protetiva.
posicionou a linguagem como categoria ati_va e ~~festação própria do~ cl!amados 78
g DANZ, 1955. p. 281 e 284.
usos sociais, sendo, em verdade, o uso social mais importante. Refere o Junsta que, 790
FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 162.
sem conhecer a linguagem e os usos da linguagem, é impossível interpr~tar uma_ di: 791
FERREIRA DE ALMEIDA. 2005. p. 165.
claração de vontade, independente da vastidão e brilhai1tis1110 de conhecimentos Jun-
dicos que o intérprete possua (DANZ, 1955, p. 153, 156 e 251-252).
hlterpretação Contrah1al 229
228 Felipe Kirchner ·
para a qualificação hennenêutica da significação de deter-
'circunstâncias hermeneuticamente relevantes', é de agora acrescentar minada questão (tempo em que foi realizada detenninada
que não é possível um catálogo exaustivo de todas as circunstâncias que prestação) 796 ;
.
possam ser hermeneutzcamente re levantes ,,791 . (4) qualidade das partes envolvidas (especialmente nos negó-
De forma não exaustiva, pode-se elencar uma série de elemen- cios intuito personae): em uma compra e venda de detenni-
tos que atribuem significado ~s c_ircunstânci~s d? ca~o,, ~onforme entende nado produto agrícola, se o vendedor é o próprio produtor se
a doutrina793 • Por uma preferencia de orgamzaçao d1dat1ca, os elementos entende ter ele querido vender o bem produzido em suas ter-
serão apresentados isolada e numericamente, com a explicitação de seu ras, salvo disposição em contrário. Já se o produtor é um in-
conteúdo ou de exemplos concretos para cada qual: termediário, o produto terá procedência indetenninada797 ;
(1) espécie e qualidade do objeto: se alguém entra em um res- (5) relação pessoal dos contratantes (laços de amizade, fami-
taurante e diz ao garçom "traga-me um assado e fósforos", liares ou afetivos): se alguém vai a uma loja de aluguel de
a palavra "traga-me" altera de sentido conforme a coisa bicicletas e diz "deixa-me uma bicicleta para esta tarde", e
pedida. Com relação ao assado, signifi~a que o sujeito d~- o proprietário diz "sim", nasce para aquele a obrigação de
··•.·.··
•,
seja obter a propriedade de alguma coisa em troca de di- pagar o preço corrente pelo uso da bicicleta e para o loca-
nheiro, pois se o mesmo objetiva apenas ver o assado deve- dor a obrigação de deixar usar o bem móvel. Contudo, se
ria declarar "traga-me um assado só para vê-lo". Quanto quem diz a mesma sentença for o filho do locador, aquele
aos fósforos, "traga-me" detém o significado usual de con- em regra não será obrigado a retribuir pecuniariamente a uti-
sumir gratuitamente todos os fósforos necessários para lização do bem, pois é usual que os pais concedam o uso de
acender os cigarros consumidos dentro do restaurante, pois objetos gratuitamente aos filhos, razão pela qual para forma-
se o sujeito quiser levar os fósforos para casa, deve decla- lizar a locação o pai teria de dizer "sim, mas pagando"798 ;
• ~
rar esta mtençao expressament e794., (6) relação prévia existente entre os contratantes: toma-se ab-
(2) lugar: se alguém entra no restaurante, a frase "traga-me o solutamente relevante para a atividade hennenêutica a fase
jornal" significa uma pennissão de uso para leitura dentro das tratativas negociais e as contratações anteriores envol-
do estabelecimento, o que se modifica se o sujeito profere vendo as partes ou seus parceiros comerciais, o que denota
·
a mesma sentença perante um ven dedor d e Jornais· 795 ;
a existência de uma conexidade he1n1enêutica que trans-
(3) tempo: o vetor serve de base para comparações (entre cende a mera sistematicidade interna da pactuação;
comportamentos anteriores e posteriores a contratação) ou (7) usos e costumes: se o sujeito diz a um taxista "faça-me o
favor de levar minha maleta até o Hotel X", assume a obri-
192 LARENZ, 1989, p. 293. gação de pagar o preço usual pelo serviço. Contudo, se o
793 Interessante dispositivo sobre as circunstâncias henueneuticamente relevantes se mesmo sujeito escuta alguém dizendo ao taxista que vá até
encontra no artigo 5:102, do The Principies of European Contract Lml', documento o Hotel X e faz o mesmo pedido ao motorista e ao passa-
editado pela Co111111ision on European Contract Lml': --Article 5:102: Relevant Cir~ geiro, não se verifica a obrigação necessária ao pagamento
cu 111stances ln inte1preting the contract, regard shall be had, in particular,. to:· (a)
the circumstances in which it was concluded, including the preli111inary negotzatwns;
de uma retribuição 799 ;
(b) the conduct of the parties, even subsequent to the conclusion of the contract; (e)
796
the nature and pwpose of the contract; (d) the inte1pretation which has already been MARINO, 2003, p. 89.
aiven to similar clauses by the parties and the practices they hm1e established between 797
MARINO, 2003, p. 88-89. A distinção apresentada acaba sendo relevante, também,
7he111selves; (e) the 111eaning co111111011ly given to terms and expressions in the branclz no plano material dos efeitos jurídicos (ex.: resolução áo contrato por perda ou deterio-
of activity concerned and the inte,pretation similar clauses 111ay already have re- ração da coisa).
798
ceived; (f) usages; and (g) goodfaith andfair dealing". DANZ, 1955, p. 55-56.
799
194 DANZ, 1955, p. 54-55. DANZ, 1955, p. 57; MARINO, 2003, p. 89. Diversos são os dispositivos legais nacio-
1 9 s DANZ, 1955, p. 54-55. O lugar tem enorme s_igni?caç~o no ân~bi~o da linguagem, nais (arts. 111 e 113, do CC/2002; arts. 130 e 13 L IV, do revogado'Código Comerci-
pois existem tenninologias e conceituações regionais cuJas pecuhandades podem al- al) e estrangeiros (art. 1.159, do Código Civil Francês; art. 1.368, do Código Civil Ita-
cançar enom1e relevância na atividade interpretativa.
h1terpretação Contratual 231
230 Felipe Kirchner.
uma pousada e diz "traga-me, por favor, um prato de so-
(8) classes sociais e comerciais: a linguagem varia confonne pa", declara que a deseja gratuitamente, diferente de quan-
as regiões (lugar), mas há classes sociais (ex.: comercian- do a mesma sentença resta fonnulada por um hóspede,
tes) que têm uma linguagem própria, característica de um quando o usual é a retribuição financeira 8º2 ;
modo de falar e proceder que resta por desenvolver decla- (11) circunstâncias reciprocamente reconhecíveis presentes na
rações negociais ( atos e omissões) interpretadas sempre em consciência das partes 803 : trata-se de todo o substrato her-
um mesmo sentido nonnal e ordinário que constitui, dentro menêutico avalizado pela objetivação trazida pelos filtros
desta classe detenninada, o uso social 800 ; das expectativas legítimas e de confiança despertadas nas
(9) práticas comerciais: dois sujeitos vindos do interior chegam partes;
à cidade e veem um táxi com a inscrição "livre", e supondo (12) comportamento total das partes: a interpretação contratual
que aquilo queira dizer "grátis", o tomam. Como nas práti- abrange o conteúdo global dos fatos antecedentes (v.g.: nego-
cas comerciais não é usual que o taxista preste seus serviços ciações preliminares) e consequentes (conduta posterior) 8º4 ;
gratuitamente, haverá a obrigação de retribuição 80 1;
.... •.·· (13) conjunto das várias declarações e/ou cláusulas entendidas
(1 O) modo de comportamento (nas fases pré-contratual, contra- como elementos de um todo: diz com a remissão herme-
tual e pós-contratual): um morador de rua que chega em nêutica das partes da regulação com o todo, e deste com as
partes, o que atende aos pressupostos da circularidade
liano; § 157, do Código Civil Alemão) que preveem a aplicação dos usos sociais no hennenêutica805 ;
âmbito hermenêutico. Sobre a atuação destes, deve ser esclarecido que no plano da in-
terpretação dos contratos sua aplicação é imediata, pois para que não se produza o
(14)finalidade e/ou intuito prático visado com a contratação:
sentido correspondente aos usos sociais deve haver uma declaração ou outra circuns- como será visto ainda neste tópico, os motivos detenni-
tância objetiva nesse sentido (DANZ, 1955, p. 63). Os usos ainda formam cânones nantes do negócio (art. 166, III, do CC/2002) são elemen-
práticos de interpretação do contrato, como o entendin1ento de que, no âmbito comer- tos subjetivos do contrato e integram o postulado norma-
cial, se encontra presente a contraprestação mesmo na ausência de convenção do pre- tivo das circunstâncias do caso quando comum a ambos
ço. Existe uma norma tácita em relação aos usos sociais: "aquele que exige de un1 contraentes, apresentando-se como base contratual implí-
fornecedor uma prestação correspondente a sua atividade sem convencionar o preço,
deve pagar o preço usual entre seus clientes". A declaração de vontade deve ser assim
cita e elemento de concreção 806 , assim como a causa da
entendida: "reclamo a prestação em troca do preço que entre seus clientes é usual". A contratação. Cabe ressaltar que a concreção hermenêutica
contraprestação é a corrente entre a clientela. e não a •justa", que em certos casos po- leva em consideração a totalidade congruente dos motivos
de ser outra. Se uma pessoa entra em um restaurante e pede um copo de cerveja sem e interesses individuais no contexto dos fatos oco1Tentes.
pergtmtar o preço, deve pagar o preço usual, não podendo o cliente ou o proprietário
exigir o preço justo, o que demandaria uma declaração expressa antes da realização do
Assim, se a interpretação não se limita ao esclarecimento
contrato (DANZ, 1955, p. 57 e 60-61). A matéria diz, ainda, com a quarta regra de de motivos inconscientes, acaba os quantificando, mesmo
Pothier, a qual afirma que aquilo que pode parecer ambíguo em um contrato se inter-
preta pelo que é de costume do país. (ex.: feito contrato com um viticultor para cultivo
802
de terra sem declinar os valores do pagamento, considera-se que estes são os de uso e DANZ, 1955, p. 61.
803
costume na região) (POTHIER, 2001, p. 98). BETIL 2003b, 180-181.
8
800 DANZ, 1955, p. 281. Os usos comerciais são uma parte dos usos sociais (DANZ, 0-I ROPPO, 1988, p. 171-172. Alguns ordenamentos possuem dispositivos prevendo a
1955, p. 282). Nas contratações envolvendo pessoas que fonnam detenninadas classes quantificação hermenêutica do comportamento total das partes, como oco1Te com os
sociais com pessoas alheias a elas, as palavras devem ser interpretadas no sentido vul- arts. 1.361, item 2 e 1.362, parágrafo único, do Código Civil Italiano. No ordenamen-
gar quando o negócio não caiba dentro da órbita especial destas classes, e no sentido to nacional, a questão encontrava lastro no revogado art. 131, ill, do revogado Código
técnico quando o negócio caiba dentro da órbita especial destas classes (ex.: contrato Comercial. ·
de construção de uma casa fommlado com um arquiteto) ou quando a outra parte co- 805
Existem ordenamentos prevendo esta relação. como ocorre com o ait. 1.363. do Códi-
nhece o sentido especial que é dado às palavras, e não emite manifestação em contrá- go Civil Italiano: "lnte1preta=ione Complessiva dei/e Clausole. Le clausole dei con-
rio (DANZ, 1955, p. 284), como já delienado. tralto si inte1preta110 le une per me==o dei/e altre, attribuendo a ciascuna il senso che
801 DANZ, 1955, p. 58 e 65. No que tange aos efeitos jurídicos dos negócios comerciais, risulta dai complesso dell'atto" , .·
806
só importa o sentido usual da declaração, sendo indiferente que as partes o conheçam MARTINS-COSTA, 2005b, p. 149-150, 152 e 154.
ou o ignorem. O conteúdo do contrato se ajusta, em regra, ao sentido usual.
Interpretação Contratual 233
232 Felipe Kircbner ·
( 18) modo de formação do contrato: o contrato de compra e
que indiretamente, pela análise das circunstâncias objeti- venda pode ser inteiramente estipulado pelo vendedor
vas relevantes 807 ; (contrato de adesão) ou negociado entre as partes; o que al-
(15) natureza e/ou matéria do negócio jurídico: contratado o tera, por exemplo, o ponto de relevância hennenêutica da
aluguel de uma casa por dois anos pelo valor X, esta im- contratação e a sua intensidade vinculativa811 ;
portância deve ser entendida como a quantia mensal, por- Cabe mencionar, ainda, que existem seis elementos fáticos ex-
que é da natureza do contrato de locação que o preço seja pressamente nominados no Código Civil Brasileiro que contribuem na
considerado por mensalidades ( cabendo avaliar, ainda, a atribuição de significado às circunstâncias do caso 812 , os quais, por esta-
compatibilidade do preço com o valor usual praticado no rem positivados, merecem o devido destaque: (1) os usos (art. 113); (2) a
mercado ) 808 ; boa-fé objetiva (art. 113); (3) a finalidade econômico-social do Direito
(16) natureza do tipo legal do negócio jurídico celebrado: este (arts. 187 e 421 ); (4) os bons costumes ( art. 187); ( 5) a causa e os motivos
elemento importa na consideração das peculiaridades do determinantes do negócio (art. 166, III); ( 6) a comum intenção dos con-
···.·.·· tratamento hennenêutico das diversas categorias negociais tratantes (art. 112). Embora não haja espaço neste estudo para uma análi-
(ex.: função econômico-social do negócio, grau de recog- se aprofundada de cada um destes elementos, mister se faz tecer breves
noscibilidade objetiva, nível de expectativas legítimas e de considerações sobre os mesmos.
confiança despertadas nas partes e na sociedade e a exten- A relevância atribuída aos usos surge cumulada com o princípio
são do material interpretativo à disposição do intérprete) 809 ; da boa-fé objetiva, nos termos do art. 113, do CC/2002. Confonne refere
(17) quantificação da modalidade pela qual se procede a exe- Judith Martins-Costa, a nonna legal é detenninativa dos usos negociais,
cução do contrato: exemplificativamente, poder-se-ia dizer verdadeiro critério hennenêutico que diz com elementos de fato implici-
que a execução da obrigação realizada de um detenninado tamente considerados na relação negocial (práticas comerciais e cláusulas
modo não contestado pela parte adversa faz presumir a cor- contratuais habitualmente utilizadas em detenninado setor da economia,
reição da conduta810 ; do comércio ou de categoria profissional), não se confundindo com os
usos normativos, relativos a uma operatividade deste elemento como
8° 7 BETII, 2007, p. 347-348; BETII, 2003b, p. 175-176; MARINO, 2003, p. 89. Exem- norma consuetudinária ou fonte de produção nonnativa813 , embora a dife-
plo desta circunstância se encontra no art. 1.364, do Código Civil Italiano: "Espressioni rença entre os usos normativos e interpretativos esteja situada no plano
Generali. Per quanto generali siano !e espressioni usate nel contralto, questo 11011 funcional, e não ontológico 814 •
comprende che gli oggetti sui quali !e parti si sono proposte di contrattare."
808 MARINO, 2003, p. 89. Esta circunstância remete à terceira regra de Pothier: quando
em um contrato os tem1os são suscetíveis de duplo sentido, deve-se entendê-los se- a expectativa de direito ou faculdade não pachrnda: (4) Tu Quoque: exigência por de-
gundo o sentido que melhor convenha à nature:a do ~on~ato (POTHIER, ~O?l, temtinada parte de algo que também foi por ela descumprido, tomando inexigível de
p. 97). Diversos dispositivos legais preveem esta crrcunstanc1a: art. 1.158, do C~d!go outrem comportamento que ela própria não observou.
Civil Francês: art. 1.369, do Código Civil Italiano. o revogado art. 131, I, do Cod1go 811
MARINO, 2003, p. 112. A composição do conteúdo do contrato é influenciada pelo
Comercial. seu processo de fom1ação. a partir do qual os pontos do regramento de interesses con-
80 9 MARINO, 2003, p. 89 e 261. tidos no negócio poderão (ou não) ser reconduzidos à manifestação de vontade de
810 ROPPO, 1988, p. 171-172. Este pormenor se relaciona como os elementos mitigado- uma ou de ambas as partes.
res da intensidade de posições jurídicas que derivam dos preceitos da boa-fé objetiva e 812
MARTINS-COSTA. 2005b, p. 144-145.
da confiança: (1) Venire Contra Factum Proprium: veda exercício de uma posição ju- 813
rídica em contradição com o comportamento assumido anterionnente, em face da le- MARTINS-COSTA, 2005b, p. 145. No mesmo sentido: BETII, 1990a. p. 341: BET-
gítima confiança despertada, existindo então dois comportamentos lícitos e diferidos TI, 2007. p. 370-371: BETII. 2003b, p. 199. A furição nonuativa é suscitada por
no tempo, sendo que o primeiro (factum proprium) é contrariado pelo segundo; (2) Erich Danz (DANZ, 1955, p. 113), para quem os usos sociais têm especial importân-
Supressio (Ve1111irkung): redução do conteúdo obrigacional pela inércia de U111a das cia para o desenvolvimento do Direito, pois as novas realidades da vida dos povos
partes em exercer direito ou faculdade, gerando na outra a legítima expectativa ~e ~ue fom1am novos usos sociais, a partir dos quais o operador retira novas nonnas jurídicas
a faculdade ou direito não será exercido ( comportamento faz com que certos drre1tos objetivas (DANZ. 1955, p. 158). ' ·
81
não sejam mais exigíveis na sua fonua original, sofrendo minoração): (3) Surrectio: ~ MARINO, 2003. p. 168.
ampliação do conteúdo obrigacional pela atitude de uma das partes, que gera na outra
-- Interpretação Contratual 235
234 Felipe Kirchner •
podem ser considerados decisivos quando conhecidos ou potencialmente
As funções dos usos do tráfego negocial estão dirigidas à ativi- cognoscíveis do declai·atário 821 .
dade hennenêutica, inclusive integrativa do contrato 815 • Detenninando a Havendo pactuação acerca do sentido de tenninado termo, que
relação jurídica, os usos podem servir para a interpretação da declaração
não o usual, deve-se produzir a obrigação que corresponde ao sentido da
negocial ou ser invocados para completá-la, razão pela qual se encontram
palavra dado pelas parte_s, q~e é o senti_do usual no caso ~e.te1minado.
imbricados com diversos elementos condicionantes e constitutivos do
Assim sendo, as detenmnaçoes que denvam dos usos sociais somente
contrato816 .
influem nos efeitos jurídicos em um contexto situado e conforme engen-
Em termos de natureza jurídica, os usos sociais não têm o mes- drados pelo caso concreto 822 .
mo valor de uma nonna de Direito objetivo, sendo parte constitutiva da No que tange à forma de constituição dos usos sociais, cabe re-
declaração negocial, mas em termos funcionais se equiparam aos precei- ferir que há a exigência da reiteração unifonne de ce1tos atos de exterio-
tos legislativos no caso de lacunas normativas 817 . Nesse contexto, cabe ,
rização perceptlve1s - , o que gera um proced er consuetud"mano
• &?3 , · &?4
- . N es-
salientar que não se pode confundir a previsão do ait. 113, do CC/2002, ses termos, não basta que um grupo de pessoas esteja de acordo com de-
como sendo a nonna determinativa dos usos, pois esta apenas determina a
terminado uso (ex.: certos signos que entre eles tenha validade), pois isto
observância de seus elementos constitutivos (ex.: linguagem) no processo
obrigará a eles, mas somente por força do convênio 825 .
hennenêutico 818 .
Embora o postulado das circunstâncias do caso seja completado
Mister se faz ressaltar, ainda, que a utilização desta dimensão
mais diretamente pelos usos, sendo a boa-fé objetiva elemento hennenêu-
do postulado das circunstâncias do caso é limitada, pois as normas deri-
tico autônomo 826 , cabe mencionar que o art. 113, do CC/2002, ainda é
vadas dos usos sociais somente têm eficácia quando exista uma vontade
das partes que persiga precisamente o efeito jurídico que corresponde ao 821 Francisco Marino entende que o intérprete pode se valer do standard do homem
usual. As normas estabelecidas a paitir dos usos sociais são dispositivas e
médio para avaliar o manejo de determinado uso no curso da atividade interpretativa
supletivas para os negócios jurídicos, pois ficam sem efeito perante uma (MARINO, 2003, p. 130).
declaração divergente. 822 DANZ. 1955, p. 150-151, 163, 169. 177 e 200; BETTI. 2003a, p. 127: BETTI. 2003b,
Porém, os usos sociais incidem ainda que as partes não queiram p. 180.
823
sua aplicação, se previamente deixaram de dar expressão a essa vontade As normas dos usos sociais e da experiência são definições ou juízos hipotéticos de
( de inobservância dos usos) dentro do negócio jurídico, o que deve ser conteúdo geral; são nom1as sacadas da experiência. mas teoricamente independentes
dos casos concretos, de cuja observação se deduzem (DANZ. 1955. p. 170).
feito de modo claro e notório nos negócios jurídicos unilaterais e por 824
Cabe frisar a relação existente entre os usos e o costume. Entende Erich Danz que o
meio de um acordo nos contratos 819 . A relação entre os usos contratuais e conceito de uso social e do comércio se subordina ao de costume. pois este abarca to-
a vontade das partes é análoga à existente entre a autonomia e as nonnas das as fonnas de conduta voluntária que o homem faz sua. sendo uma regra individual
dispositivas, já que estas também podem ser afastadas pela livre disposi- de conduta que detém como característica a reiteração nonnal de atos unifonnes.
Quando o proceder do indivíduo corresponde à conduta consuetudinária da comuni-
ção das partes, embora no silêncio produzam seus efeitos no plano ber- dade a que pertence. este proceder se converte em hábito e em uso. O uso é um cos-
menêutico820. Contudo, considerando o ponto de relevância hermenêutica tume social. Quando se fala dos cosh1mes de uma pessoa se está referindo às regras de
situado no destinatário, os usos, enquanto circunstâncias relevantes, só vida e conduta que lhe são peculiares. Em contrapartida. os usos são sempre os cos•
hll11es de uma coletividade maior ou menor (DANZ. 1955. p. 156).
825
815
DANZ, 1955, p. 156.
MARTINS-COSTA, 2005b, p. 145; MIRANDA, 1989, p. 215. 826
8 6
Em uma análise etimológica, Erich Danz refere que a expressão boa-fé significa
1 DANZ, 1955, p. 150 e 157. confiança. seguridade e honorabilidade, se referindo, sobretudo. ao cumprimento da
7
81 DANZ, 1955, p. 150. palavra dada. O vocáculo "fé" significa fidelidade, querendo dizer que uma das partes
818
O uso social mais importante é a linguagem. pois é do uso desta que o juiz saca as se entrega com confiança na conduta leal da outra no cumprimento de suas obriga•
nom1as juridicas de interpretação que indicam o sentido das palavras usadas pelas par- ções. confiando que esta não a enganará (DANZ. 1955, p. 194). Detendo-se sob o
tes (DANZ, 1955, p. 153 e 156). Sem conhecer a linguagem e os usos da linguagem, é prisma normativo, refere Judith Martins-Costa que a boa-fé significa um modelo de
impossível interpretar uma declaração de vontade, independente da vastidão e brilhan- conduta social, arquétipo ou standard segundo o qual cada pessoa deve ajustar a sua
tismo de conhecin1entosjurídicos que o intérprete possua (DANZ, 1955, p. 251-252). conduta à semelhança do homem reto, obrando com honestidade, lêaldade e probida-
819
BETTI, 1990a. p. 88. de, com consideração aos interesses da contraparte. devendo ser levados em conside-
820
ROPPO, 1988, p. 189-190.
Interpretação Contratual 237
236 Felipe Kirchner-
o contrato deve ser por estes interpretado, desde que o preceito em exame
detenninativo da observância deste preceito (boa-fé objetiva) enquanto não os vede, pois comportamentos habituais que contrariem a boa-fé objetiva
critério de interpretação e integração do contrato 827 • Há grande proximi- não devem ser considerados como critérios válidos de interpretaçãà do negó-
dade entre os elementos 828 , pois, como esclarece Erich Danz, no negócio cio jurídico. Porém, em situações nonnais os usos correspondem a visão da
jurídico a boa-fé também proíbe dar por não querido o usual, sem uma sociedade acerca do negócio, razão pela qual quantificá-los no plano herme-
clara justificativa829 • Embora haja a necessidade de uma observância con- nêutico é fazer jus e prestar respeito ao princípio da boa-fé objetiva831 •
jugada dos preceitos, no plano de suas respectivas aplicações a boa-fé O segundo critério mencionado é a finalidade econômico-social
objetiva possui uma prevalência em relação aos usos 830 , no sentido de que do Direito (arts. 187 e 421, do CC/2002), aqui aplicada ao âmbito dos con-
tratos. Desde logo, cabe referir a relação existente entre a função social e a
rações os fatores concretos do caso, como o status pessoal, cultural e histórico dos en-
volvidos, não se admitindo uma aplicação meramente mecânica e subsuntiva do stan-
função econômica dos contratos. Salienta Judith Martins-Costa que a cau-
dard (MARTINS-COSTA, 2001, p. 240. MARTINS-COSTA, 1998, p. 147-148). sa-função (Betti) evoluiu de um modelo abstrato (causa-função igual em
827 SILVA, 1976, p. 32; MARTINS-COSTA, 2001, p. 240; MARTINS-COSTA, 1998, todos os contratos enquadrados no mesmo tipo legal) para uma causa-
·: ···.·.··· p. 148-149. É senso comum que a boa-fé objetiva permite a repressão de comporta- concreta, pennitindo discernir entre razão justificativa do ato, função eco-
mentos desviantes (moralizando a substância do contrato), permitindo a conciliação nômica do negócio e intento prático das partes. Entretanto, não são desco-
da utilidade do pactuado com a justiça que deve ser inerente à contratação privada. nectadas as ideias de função social e fi.mção econômica dos contratos, pois
Contudo, o resguardo do preceito em seu viés material e hennenêutico possui, ainda,
uma interessante consequência em tem10s de fluição do mercado. Diferentemente do
embora a causa.fimção não se confunda com o princípio da função social, é
que aponta parte da doutrina (para quem a vagueza do preceito encerra "riscos" e cus- um de seus elementos de concreção. Assim, a função social é também fun-
tos na contratação), o resguardo da boa-fé objetiva conduz à segurança jurídica e, con- ção econômico-social, no sentido de que é uma função ligada à utilidade
sequentemente, ao melhor funcionamento do mercado. O resguardo do comportamen- concreta da operação econômica instrumentalizada pelo contrato832 •
to de boa-fé traz consigo tun alto grau de previsibilidade, o que diminui significativa-
Como se sabe, a finalidade instrumental dos contratos é a circu-
mente os custos de transação, aumentando a eficiência do sistema, pois a confiança
despertada reduz a complexidade do sistema social. Nesses tem10s, o comportamento lação da riqueza, razão pela qual se diz que este instituto detém função
honesto não in1plica gasto, mas sim economia, tanto para os contratantes, quanto para econômica por excelência:833 • O contrato é a veste jurídica de uma opera-
o mercado, sendo o preceito em exame um verdadeiro "catalisador da fluência das ção econômica, pois ''falar de contrato significa sempre remeter - explí-
relações no mercado". Contudo, é de todo evidente que a aplicação da boa-fé objeti- cita ou implicitamente, direta ou mediatamente - para a ideia de opera-
va, inclusive no viés aqui delineado, deve se adequar aos ramos em que atua, pois os
ção econômica"834 • Nesse contexto, o contrato visa garantir trocas justas e
graus de exigência variam confonne o ramo científico (ex.: a exigência da prestação
de infonnações se acentua em contratações consumeristas. quando comparada com úteis, 835 possuindo um papel constitutivo de manutenção da agilidade das
detemrinados contratos empresariais, onde a assunção de riscos pelas partes é mais relações econômicas em uma sociedade de mercado (de Direito Privado),
aceitável do ponto de vista comercial e jurídico) ou o contexto fático que é tipificado conjugando um aspecto utilitarista de maximização das oportunidades
pelo ordenamento (ex.: o comportamento esperado de um vendedor de carros usados
econômicas com um aspecto ético de comportamento médio de oportuni-
não é o mesmo de um negociante de roupas fmas em uma loja de luxo) (FORGI9NI,
2005, p. 551-558 e 565; FORGIONI, 2007, p. 128 e 133-134; ZANCHIM; ARAUJO,
dade e vantagens recíprocas 836 •
2007, p. 192-193).
828 Judith Martins-Costa refere que os usos do tráfego negocial estão coligados à boa-fé
Código Civil Português: "os usos que não forem contrários aos princípios da boa-fé são
subjetiva e objetiva, indicando que a boa-fé hermenêutica é mensurada segundo a
juridicamente atendíveis quando a lei o determine" (MARINO. 2003. p. 132-133).
concreta configuração do contexto contratual e a função econônrico-social do negócio 831 MARINO, 2003, p. 131-133.
(MARTINS-COSTA, 2005b, p. 145-146). E1ich Danz defende que a interpretação se- 832
gundo a boa-fé não é nem mais nem menos que aquela que se inspira nos usos sociais, MARTINS-COSTA, 2005a, p. 50~51 e 68.
833
sendo que aquele princípio (boa-fé) se aplica sempre que o sentido da declaração MARTINS-COSTA, 2005a, p. 68. SILVA. Luis Renato Ferreira da. A Função Social
seja duvidoso, quando não se pode detemrinar com segurança seu significado aten- do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão êom a Solidariedade Social. 111:
dendo aos usos sociais, devendo o juiz interpretar a declaração de vontade das par- SARLET, lngo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Li-
tes como a entenderiam e procederiam as pessoas corretas e probas (DANZ, 1955, vraria do Advogado, 2003b, p. 136.
814 ROPPO, 1988, p. 8 e 23.
p. 198 e 200-201).
835
829
DANZ, 1955, p. 197. SILVA . 2003 . p. 127-150 . p. 138. _, ·
836
830 Nesse sentido o § 157, do Código Civil Alemão, que manda interpretar os contratos SILVA. 2003, p. 127-150. p. 137.
"como a boa-fé, com consideração pelos usos do tráfego, o exija", e o art. 3º, 1, do
Interpretação Contratual 239
238 Felipe Kirchner ·
nomia privada como poder jurígeno 841 ; (4) cânone de interpretação do
Contudo, esta finalidade econômica do instituto do contrato é contrato.
mediada com o respeito a uma dimensão social das pactuações privadas, . Embora a dis~ussão acerca dos bons costumes extrapole os li-
o que diz com o princípio da função social dos contratos (art. 421, do 1?~tes deste estudo - ate por~ue remete ao exame do conjunto das regras
CC/2002). Este preceito se encontra em constante relação de comple- eticas que possuem peso social relevante num dado ambiente e momento
mentação e restrição recíproca com os demais princípios contratuais, histórico-, cabe referir que o vetor previsto na parte final do art. 187, do
surgindo do hipercomplexo amálgama axiológico existente no sistema CC/2002, surge como elemento de qualificação das circunstâncias do
jurídico a necessidade de uma autonomia solidária 837 - exercida de for- cas? e, de parâmetro de verifica7ão, da legitimidade da pré-compreensão
ma ordenada, mas não subordinada, ao bem comum -, o que acaba por do mterprete, tanto no que respeita a sua atuação como limitador da auto-
sepultar a concepção voluntarista da autonomia da vontade presente nos nomia privada (ex.: impedindo a restrição desmensurada da liberdade
códigos oitocentistas. pes~oal ?u econôm_ica dos !ndivídiuos), quanto como componente de
O princípio da função social dos contratos surge não somente venficaçao dos matizes da vmculação negocial e do conteúdo contratual
838
como preceito qualificador dos efeitos extraídos da boa-fé objetiva - (ex.: arts. 569, II e 596, do CC/2002) .
.,.•.··· promovendo uma distinção de intensidade dos deveres já impostos pelo
Já_ os motivos detenninantes do negócio (art. 166, III, do
a1t. 422, do CC/2002 (v.g.: aplicação perante terceiros)-, mas também CCl2?02) s:o e_lementos do contrato que integram o postulado nonnativo
como elemento fundante de novos deveres, independentes e autônomos, das circunstancias do caso quando comum a ambos contraentes, apresen-
dentre os quais, no plano hennenêutico, merecem destaque: (1) limite tan~o-se como ?ase contratual implícita e elemento de concreção 842 • Os
(externo) ao princípio da liberdade de contratar 839 ; (2) fundamento (in- mo~vos determmantes têm eficácia como regra de interpretação na indi-
terno) da autonomia privada 840 ; (3) elemento de ressignificação da auto- caçao da base contratual levada em conta pelos contratantes atuando
com~ pressuposto condic~onante da compreensão do negóci~ jurídico
837 MARTINS-COSTA, 2005a~ p. 58. Luís Renato Ferreira da Silva entende que quando
considerado como fato soc_ial e regulamento de interesses econômicos 843 •
a nonna do art. 3°, I, da CRFB/1988, instituiu como objetivo fundamental da Repúbli- No plano da práxis se costuma desprezar a motivação que levou
ca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, colocou em xeque o dogma os agentes a celebrar o acordo, isso porque na maioria das vezes este
oitocentista da autonomia de vontade, impondo o reconhecimento de reflexos externos elemento pennanece na esfera subjetiva de cada contratante. Não aden-
na relação contratual. Nesse viés, a função social se constituiria em uma forma de
concretização do objetivo constitucional da solidariedade social, havendo uma relação
trando na densa seara das discussões doutrinárias acerca da distinção 844
substancial entre o art. 421, do CC/2002 e o art. 3°, Lda CRFB/1988 (SILVA, 2003,
p. 129-132 e 148 e MARTINS-COSTA, 2005a, p. 51). ser~, os quais não estão orientad,o~ para o cump~mento do dever principal de pres-
838 Indubitável a necessidade de se diferenciar o campo de aplicação da função social dos taçao (como ?s d~v~res secund~nos ou acessonos). mas, sim, para a conservação
contratos daquele ocupado pela boa-fé objetiva, a fim de que não se esvazie o conteú- dos bens patr1momais ou pessoais que podem vir a ser afetados pela conexão com 0
do daquele preceito. Quando o legislador optou por positivar estes cânones em dispo- contrato.
sitivos diversos, indicou claramente a existência de disparidades no plano teórico e 841
~º? ~~te prisma a autonm~lia_ privada ganha ênfase enquai1to fonte de produção de
prático. Jorge Cesa Ferreira da Silva apresenta importante linha distintiva ao sustentar Jtmd1c1dade com competeucia para a nomogênese (MARTINS-COSTA. 2005b.
que enquanto a boa-fé objetiva detém uma nonnatividade endógena, o princípio da p. 62).
função social detém uma funcionalidade exógena (FERREIRA DA SILVA, 2003a, 842
MARTINS-COSTA. 2005b. p. 149-150. 152 e 154.
p. 107-115). 843 MARTINS-COSTA, 2005b. p. 151.
839 No momento em que o contrato deixa de cumprir sua função social, a liberdade de 844 Brevemente, _cabe de!inear que a d~utrina distingue os motivos da causa da avença.
contratar não será mais tutelada juridicamente (MARTINS-COSTA, 2001, p. 255- Se~do Judith Martms-Costa. motivo e causa são equiparáveis quando significam a
256; MARTINS-COSTA, 1998, p. 146; SILVA, 2003, p. 132 e 135). ra=ao de ser do_ acordo (aquilo que leva as partes a contratar). Porém, no final do sé-
840 A autonomia privada integra um campo de função no dominio da liberdade contratual culo X~ ? motivo passa a ser o dado psicológico, enquanto a causa passa a represen-
(MARTINS-COSTA, 2005a, p. 75). A função social, por sua vez, integra, constituti- tar o obJetivo-fun do co~trato ou a sua função econômico-social (MARTINS-COSTA.
vamente, o modo de exercício deste direito subjetivo, impondo o reconhecimento de 2?05b, p. 150). Adem1:1s, entende-se que _enquanto os motivos se ligam ao passado.
que toda relação contratual possui tanto uma din1ensão intersubjetiva quanto trans- d1zen~o _com as forças mtei:nas que detem1111aram a volição (aspecto.subjetivo), a cau-
subjetiva (ex.: tutela externa do crédito, interdependência funcional de contratos e ex- sa esta h~a~a ao futuro, agm?o como elemento integrante do acordi{de vontades (as-
tensão da eficácia do pacto a terceiros não detem1inados), o que impõe a incidência pecto objetivo). Contudo, nuster se faz destacar que parte significativa da doutrina
dos deveres de proteção (Schut=pflichten de Stoll) ou laterais (Nebenpjlicthen de Es-
240 Felipe Kirchner · Interpretação Contratual 241

entre motivo e causa do negócio 845 , cabe destacar que aquele, enquanto tenção se encontra mais objetivada do que os motivos, e seu uso evita a
permanece no íntimo do agente, não assume maior relevância na ativida- interpretação gramatical e atomística que conduz ao isolamento da decla-
de hermenêutica. Contudo, quando este elemento se objetiva, seja por que ração negocial em relação ao conjunto das circunstâncias socialmente
razão for (ex.: motivação usual percebida no mercado para a realização relevantes em que foi emitida e se desenvolveu. Embora não cheoue ao
de determinado tipo de negócio jurídico), acaba relacionando-se intrinse- extre?1o da teoria da vontade (art. 1.899, do CC/2002), a comum intenção
camente à causa do contrato 846, e nessa condição toma-se uma circuns- perm1~e ~ alargamento dos meios interpretativos (ex.: quantificação de
negociaçoes e pactos precede~tes não referidos pelas partes na declaração
tância objetiva externa que influencia decisivamente na interpretação
contratual) e o correto maneJo daqueles presentes na situação objetiva
(inclusive na integração contratual)847 , especialmente quanto ao resguardo complexa850•
da autonomia privada e à adequação do negócio às legítimas expectativas
das partes. Assim, no campo da concreção o elemento em exame assume , Fei!a~ estas ressalvas, cabe mencionar o amparo jurisprudencial
ao menos os seguintes papéis: ( 1) critério de atribuição da relevância a vertente teonca ora em exame, principalmente no que respeita ao para-
jurídica da avença; (2) critério de interpretação do pacto; (3) elemento de digma trazido pela súmula vinculante 01, do STF.
:. ·•.·.···· qualificação do contrato; (4) critério de adaptação da contratação em face
da alteração do contexto fático, nonnativo e/ou axiológico 848 • 2.3 A Jurisprudência e o Paradigma da Súmula Vinculante 01,
Por fim, Emílio Betti suscita a comum intenção das partes (no do Supremo Tribunal Federal
sistema brasileiro regrada pelo art. 112, do CC/2002), como elemento de
atribuição de significado às circunstâncias do caso. Sendo que este tópico O entendimento de que a atividade hennenêutica deve necessa-
já foi abordado anteriormente849 , cabe aqui salientar que sendo composta riamente te~ ~m ~o~ta todas_ a~ c~·cunstâncias do caso (âmbito material),
por elementos planificados pela autonomia bilateralizada, a comum in- e!-11 uma analise tcp1c~ do !)ire1to mterpretado, com a utilização de crité-
nos de ponderaçao (ambito procedimental) 85 1, restou consubstanciado
(principalmete italiana) vem refutando a separação absoluta entre causa e motivo, pois 850
este elemento objetivo (seja denominado causa ou motivo) passa a significar tanto a BE~I, 2003b: ~- 210-_211: BETII. 2007, p. 381-382. Cabe salientar, contudo, que a
razão justificativa do ato quanto a função socioeconômica do negócio, em uma unida- mençao de Emilto Bett1 estava voltada ao sistema jurídico italiano sendo aproximada
de conceituai que afasta o indesejável dualismo (FORGIONI, 2005, p. 516-519 e portanto, a referência que aqui se faz ao artigo 112, do CC/2002. ' , •
851
528). Por fim, deve-se esclarecer que a definição conceituai é questão secundária, pois D~ntre as di~posições contratuais existem previsões de natureza principiológicas -
o verdadeiro problema reside em afastar o uso de elementos essencialmente subjeti- s~Ja por prev1sã? ex~ressa ou incidência de nom1as públicas (ex.: boa-fé e função so-
vos. Assim, o decisivo é a fixação das especificidades da operacionalidade dos moti- cial) - e detemnnaçoes semelhantes a regras, razão pela qual a interpretação do con-
vos detenninantes do negócio jurídico. trato de~e-se confomrnr cor~1 a ne?e~sidade de trabalhar com critérios de ponderação e
845 Sendo assunto extremamente complexo, para as pretensões deste esh1do torna-se subst~1çao. En~bº:ª. a doutrina class1ca entenda haver interpretação das regras e pon-
satisfatório destacar que a causa conta com apreensões subjetivistas, entendendo-a de~açao dos p1:11c1p1os. o pre~e1:te estudo aceita a tese de Humberto Ávila. para quem
como razão determinante da vontade de contratar, e objetivistas, as quais têm como existe a capacidade hem1:neuttca de ponderação também das regras (contratuais).
foco a significação social do negócio (FORGIONI, 2005, p. 520). Nesses termos, e exatamente porque ~~a aplicação (?specto da interpretação) depende da quantificação
sem pretender abrir um novo foco para debates doutrinários, cabe destacar que a regra d_e outros fatores_ (fatt_c~s e nornrnttvos) que vão além da análise dedutivista que rela-
do art. 166, III, do CC/2002, possui nítida concepção objetiva, pois o '"motivo deter- c1011a de fonna s1mplona o fato concreto com o tipo legalmente estabelecido (ÁVILA.
minante" destacado na norma não é outro senão aquele que for "comum a ambas as 2006, p. 26 e 52), o que ?e amolda com perfeição no universo exegético gadameriano.
partes", ou seja, aquele que tenha se tornado explícito ou ao menos reconhecível com Como refere Humberto Avila. "toda norma jurídica - inclusive as rearas 0
-só tem seu
o uso de unia diligência normal na sihiação hennenêutica detem1inada. Nesse contex- conteúdo de sentido e sua finalidade subjacente definidos mediante um processo de
to, pode-se afirmar categoricamente que o motivo detemúnante previsto no art. 166, ponderação", o qual acompanha o modo de aplicação das espécies normativas (ÁVI-
III, do CC/2002, ao menos se aproxima da noção de causa do negócio (se ainda se LA, 20_06, _P· 55 e 58~ abarc~do todos os elementos ela atividade hermenêutica (com-
pretender manter a dicotonúa motivo-causa). p~eensao, mterpretaçao e ~phcação ). Conforme adverte Eros Roberto Grau 110 Prefá-
846 A conclusão deriva, também, da narureza das regras dos arts. 140 e 166, III, do CC/2002. cio ~a ob~a de_Humbe~o _A;,ilª: '"a ponderação é um momento no interior da inte,pre-
847 AZEVEDO, 1986, p. 129. taçaolapl~caçao do D1re1!~ (~ ':'IL~· 2006. p. 18). Na interpretação das disposições
848
FERREIRA DA SILVA, 2001a, p. 4-9, 40, 60, 63, 65-74, 82-83, 86, 136-137, 139- contratu~1s faz-se ne,cessana. ut~hzaçao de uma ponderação interna, que diz com a re-
140, 144, 147-155, 166-168, 248-250; FORGIONI, 2005, p. 516-529 e 566-567. ~onstruçao do contendo se1:13anttco por meio do confronto das razões.(fáticas e norma-
849
No tópico "A fixação do objeto e da dimensão funcional da hermenêutica contratual". tivas) em favor de eventuais alternativas interpretativas (ex.: determinação do sentido
-- Interpretação Contratual 243
242 Felipe Kirchner ·
No julgamento do RE 418.918 - decisão condutora do entendi-
na edição da Súmula Vinculante 01, do STF: "Ofende a garantia consti- mento sufragado com a edição da disposição sumular supramencionada -, o
tucional do ato jurídico pe1feito a decisão que, sem ponderar as cir- STF decidiu, por meio de uma análise essencialmente tópica da questão sub
cunstâncias do caso concreto, desconsidera a valide::: e a eficácia de judice 853 , que é incabível a proclamação em abstrato de vício de consenti-
acordo constante de termo de adesão instituído pela lei complementar mento, pois este deve ser demonstrado concretamente, o que demanda a
110/2001 " 851 • avaliação do elemento subjetivo do pactuante no momento da avença e das
circunstâncias específicas e relevantes em que esta foi constituída, implican-
de "pátio" para a verificação de uma cobertura de seguro); e também de uma pondera- do no uso necessário do método concretista, com a consequente quantifica-
ção externa, quando existe o conflito de duas disposições sem que a solução importe ção das circunstâncias do caso. No voto da ministra Ellen Gracie, lê-se:
na decretação de invalidade de uma das cláusulas (ex.: conformação hem1enêutica de
regra que determine a realização de determinada atividade custosa para evitar dano ir- ( .. ) A perquirição acerca de vício em algum dos elementos formado-
reparável ao outro contratante em ocorrendo determinada situação concreta, com regra res da vontade do agente haverá de ser demonstrada caso a caso,
que proíbe a realização de atividades que importem em custos sem a prévia autoriza- acordo a acordo, por demandar avaliação do elemento subjetivo do
ção do contratante interessado) (ÁVILA, 2006, p. 88). Assim como a interpretação e
concretização constitucional são dominadas por ponderação, que alcança as normas 853 A análise tópica é evidenciada por intennédio da simples leitura dos votos proferidos
em sentido contrário e os interesses (públicos e privados) divergentes, que são pro- no RE 418.918. Sobre a questão é relevante destacar dois tópicos. O primeiro, a deci-
tegidos constitucionalmente (HECK, 2006, p. 21), no contrato a interpretação media- são atacada pelo Recurso Especial não esgotou a jurisdição de origem, pois foi prola-
da por um raciocínio de ponderação alcança as diretrizes contratuais e os interesses tada monocraticamente por juiz integrante da Tunna Recursai do Juizado Especial
dos agentes envolvidos, que são protegidos pela pactuação e pelo ordenamento a ela Federal. Por maioria, os ministros superaram o óbice da Súmula 281, do STF ("É
subjacente. inadmissível o recurso extraordinário. quando couber na justiça de origem. recurso
852
Súmula aprovada na sessão plenária de 30.05.2007 e publicada no DJE 31/2007, p. 1, ordinário da decisão impugnada''), devido às seguintes peculiaridades do caso concre-
em 06.06.2007, DJ de 06.06.2007, p. 1 e DO de 06.06.2007, p. 1. A disposição teve to: (1) política judicial, atinente à existência de grande número de processos versando
como base os seguintes precedentes: RE 418;918, RE 427.801 AgR-ED e RE 431.363 sobre a matéria e de outros que virian1 com a manutenção da decisão recorrida; (2) juízo
AgR. As peculiaridades do RE 418.918, condutor do entendimento sufragado com a prévio de que o eventual recurso que encerraria a jurisdição da instância ordinária não
edição da disposição sumular supramencionada, são as seguintes: (1) quanto ao pro- modificaria o teor da decisão então atacada, tanto pelo Enunciado 21, do JEF-RJ, que
blema da correção dos saldos das contas do FGTS, a jurispmdência dos tribunais su- pacificou o entendimento de mérito. quanto pelo Emmciado 26. também do JEF-RJ.
periores assim se consolidou, conforme a súmula 252, do STJ: "Os saldos das contas que impede recurso da decisão monocrática proferida pelo relator (fulminando o agra-
do FGTS, pela legislação infraconstitucional, são corrigidos em 42, 72% (IPC) quan- vo): (3) o precedente criado dificilmente se repetiria em outros casos (o que resguar-
to às perdas de janeiro de I 989 e 44,80% (IPC) quanto às de abril de 1990, acolhidos daria a segurança jurídica). Ainda sobre a Súmula 281. a ministra Ellen Gracie afinna
pelo STJ os índices de 18,02% (LBC) quanto as perdas de junho de 1987, de 5,38% que "o que me leva a superar a preliminar para adentrar o mérito é exatamente a pe-
(BTN) para maio de 1990 e 7,00% (TR) para fevereiro de 1991, de acordo com o en- culiaridade da questão". sendo que o ministro Gilmar Mendes refere que na espécie
tendimento do STF (RE 226.855-7-RS)"; (2) como o passivo referente a tais correções "proporia um distinguishing nessa Súmula 11º 281". Em interessante passagem, o mi-
alcançava a cifra de R$ 42 bilhões (quase 4% do PIB nacional), foi editada a LC nistro Sepúlveda Pertence destaca que "não podemos decidir um caso especial (pois)
110/2001, que estabeleceu uma série de medidas tendentes a garantir o aporte de re- estamos estabelecendo uma orientação". tendo observado o ministro Carlos Velloso
cursos, dentre as quais se encontrava o termo de adesão em que o trabalhador renunciava que "sim, para este caso''. o que restou prevalecendo na questão preliminar ora em
a llllla parte dos direitos reconhecidos pela jurisprudência; (3) fixando entendimento exame. O segundo. houve forte manifestação. capitaneada pelo ministro Marco Auré-
sobre a validade dos termos de adesão previstos na LC 110/2001, as Turmas Recur- lio, demonstrando preocupação com a análise tópica em se tratando de decisão profe-
sais dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (JEF-RJ) rida pelo STF: "preocupa-me muito a.fase que atravessamos no Tribunal, que vislum-
editaram o Enunciado 21, que assim dispunha: ··o trabalhadorfa:=jus ao crédito inte- bro, até mesmo, como uma fase de cifastamento de parâmetros, adotando-se regras
gral, sem parcelamento, e ao levantamento, nos casos previstos em lei, das verbas re- especiais para o caso concreto, e.passando o Colegiado a atuar como se legislador
lativas aos expurgos de índices inflacionários de janeiro de 1989 (42,72%) e abril de fosse." Já o ministro Sepúlveda Pertence assim se manifestou: "(. ..) não creio que
1990 (44,80%) sobre os saldos das contas de FGTS, ainda que tenha aderido ao possamos estabelecer critérios conforme o processo. O Direito, tanto o material
acordo previsto na Lei Complementar 110/2001, dedzddas as parcelas porventura já quanto o instrumental, é único; há de ser obsen 1ado .'.. e aí atua o Supremo Tribunal
recebidas"; (4) a demanda que culminou no RE 418.918 se tratou de ação de traba- Federal no campo pedagógico, porque o quefi=ermos aqui tende a vir a ser observa-
lhador requerendo o creditamento integral das verbas relativas aos expurgos de índi- do por ouh·os tribunais. O Direito é único. Não cabe distinguir: bem, neste processo,
ces inflacionários em sua conta do FGTS, mesmo após aderir ao termo de adesão ins- aplico; mas, noutro processo, não aplico. Creio que a insegurança jurídica grassará;
tituído pela LC 110/2001: (5) não obstante o ingresso da demanda, o STF entendeu paga-se um preço - a meu ver até baixo, módico - por se viver em-i1111 Estado Demo-
que o trabalhador não questionou a validade do tenno de adesão finnado, tendo o crático de Direito, que é a observância do Direito posto."
JEF-RJ decretado de oficio o juízo de invalidade do pacto.
h1terpretação Contratual 245
244 Felipe Kirchner .
O jusfilósofo italiano ainda defende que o moderno raciocínio
pactuante no momento da avença, consideradas as circunstâncias
jurídico tende a interpretação individual, conjugando esta, no plano dos
específicas e indissociáveis da personalidade de cada um. Se, por ou-
tro lado, não ocorre essa aferição no caso concreto, e o que se exa- contratos, com a chamada interpretação técnica855 , que
mina são os termos do acordo - termos esses previstos em legislação repropõe o problema que aparece resolvido naquela determinada ob-
complementarfederal - o que está em causa, verdadeiramente, não é jetiva~1º _do espírito e indaga sua solução independentemente da
a vontade eventualmente viciada do agente, mas a constitucionalidade consc1encza reflexa que o autor possa ter alcançado, enquadrando-a-
da regra instituidora do ajuste. (grifo nosso) no caso de um contrato - não mais na totalidade individual de ambas
as partes, mas na totalidade do ambiente social, segundo as visões ne-
Condenando o critério de construção da decisão então recorrida, le correntes sobre a autonomia privada856 •
que não atentou para as circunstâncias do caso concreto, o ministro Cesar
Peluzo assim observou: Embora os termos de adesão previstos na LC 110/2001 tenham
pec_uliaridades próprias - já que suas disposições estão previstas em legis-
Uma afirmação dessa [de que o ato jurídico pe1feito não prevalece laçao complementar federal, não paitindo diretamente da autonomia do
··•.·.···· em face do Enunciado n. 21 das Turmas Recursais] ganha sentido acei~ante, o que se assemelha? estrntura de uma contratação por adesão-,
quando o julgador diz: diante deste caso co11creto, pera11te as cir-
cunstâ11cias tais, diante da prova tal, testemu11hal ou docmne11tal,
e!ettvamente devem ser considerados contratos em sentido amplo 857, ra-
verifica-se que houve erro. Mas aqui 11ão se examina prova alguma. zao pela qual a constrnção hennenêutica e teleológica consubstanciada na
Fixa-se uma tese. Esta que é a verdade. Por isso, fala-se em traba-
lhador e não se faz referência a 11enhum eleme11to do caso co11creto, tério de classificar por tipos 011 classes as declarações e os comportamentos, levando
porque é para ser aplicada em todos os casos, independentemente em conta o genero de circunstâncias em que se desenvolvem e a que correspondem; e
das características singulares de cada um. Enfim, está-se dando tra- a cada 11111 desses tipos afl•~bui 11111 stgnificado constante sem considerar aquela que
tamento de caráter geral, que, como tal, ofende cláusula da Consti- no caso concreto pode ter sido a efehva e diferente opinião das partes".
tuição. (grifo nosso) 855 BETTI, 2007, p. 373; BETII, 2003b, p. 202. As espécies não se confundem, como é
express~me,nte salienta~o por Betti (BETII, 2003b, p. 201). A interpretação técnica se
Já o ministro Gilmar Ferreira Mendes assim se posicionou: contrapoe a chamada mterpretação psicológica, a qual é apresentada como sendo
"aquela voltada a indagar na objetivação do espírito a 'mens ' de quem a reali=ou''
Já foi demonstrado, e estamos aqui a discutir a tese - disse-o bem o (BETTI, 2007, p. 369).
Ministro Cezar Peluso - de que, a rigor, nenhuma consideração faz o 856 BETTI, 2007, p. 369; BETTI, 2003b, p. 198.
Juizado Especial no Rio de Janeiro sobre 11111 dado caso singular, mas 857 Deve:s~ ressaltar que o ministro Eros Grau sustentou que "'110 caso do 'termo de
presume que todos os acordos foram assinados contra esse valor - adesao a que refere o art. 4° da lei complementar não há contrato, menos ainda
fundamental, claro - da autonomia pessoal, da autonomia de decidir. 'contrato d~ adesão"' pois no caso haveria apenas um comando da LC 110/2001. Não
(..) já se demonstrou também, não é possível, de plano, dizer que há obstant~ tais observações, a conclusão a que chegou o STF (é viciada a decisão que
um critério de não-razoabilidade. (grifo nosso) desco~s1dera acordo sem ponderar as circunstâncias do caso concreto) pode e deve ser
es~e~d1da aos contratos em geral. Primeiramente, se trata de manifestação isolada do
Afastando o entendimento que consagrava uma tipificação social llllillstro Eros Grau, tendo os demais julgadores entendido a questão como se contrato
abstrata, a decisão sumulada do STF detennina ao intérprete que a ativi- fosse, tanto que foram utilizadas em diversas oportunidades expressões como "acor-
dade hennenêutica por ele promovida seja de ordem individual, a qual, do", "avença", "elementos fomrndores da vontade" e "elemento subjetivo do pactuan-
nos dizeres de Emílio Betti, é aquela que t~~º- momento da avença". Segundo, salvo melhor juízo, o fato de haver um rígido
dm~smo po_r parte da LC 110/2001 não invalida a natureza contrahial do tem1o de
parte do critério de considerar as declarações e os comportamentos adesao_ refendo nos. seus arts. 4º e 6°, tanto que expressan1ente delineado na lei a
necessidade de mamfestação de vontade do titular da, conta vinculada com os dita-
em sua concretude específica e ah"ibuir-lhes um significado pertinente ~es es_tabelecidos. A~ três, o próprio ministro Eros Grau defende que na espécie
na medida do possível, com o particular modo de ver neles expresso e atua!·w, (-.J a '.'edaçao d_o v~nire contra factum proprium", que como se sabe é fi-
com as situações e relações existentes entre as partes em concreto, le- gura 3und1ca atmente ao mstltuto do contrato, se relacionando com a confiança recí-
vando em conta as circunstâncias individuais do caso 854 • pr~ca. (MAR!~S-COSTA, Judith. O Sistema na Codificação Civil Brasileira: de
Letbruz a Te1xerra de Freitas. Revista da Faculdade de Direito d'a· UFRGS, Porto
854 BETTI, 2007, p. 372-373. Na mesma passagem o filósofo italiano refere o contrapon- Alegre, v. 17, 1999, p. 469).
to a esta fonna de raciocinio, que vem com a interpretação típica, a qual parte ·'do cri-
Interpretação Contratual 247
246 Felipe Kirchner -
múltiplas a serem analisadas segundo dois tipos de relações: corno texto
Súmula Vinculante O1, do STF, pode ser transposta diretamente para a fechado, pela composição de suas unidades internas; e como intertextua-
interpretação dos contratos em geral, os quais estão subsumidos às mes- lidade, pelo cmzamento de vários enunciados tomados de outros textos,
mas categorias utilizadas nos critérios de decisão do RE 418.918. contemporâneos ou que historicamente antecederam a pactuação, o que
Por fim deve ser referida a grande extensão dada pelo STF à encampa até mesmo as regras constitutivas do ordenamento jurídico 860 •
utilização do método concretista. Ocone que, no caso da Súmula y~cu- Como quer Gadamer,
lante 01, a c01te constitucional se utilizou de vetores do modo de rac10cmar
por mais que represente uma unidade de sentido, um texto continua
por concreção em uma contratação "por adesão qualificada", uma vez que
sendo sempre dependente do contexto que com frequência determina
os ditames dos tennos de adesão estavam previstos na LC 110/2001, a qual pela primeira vez de maneira inequívoca a (sua) significação plutopo-
inclusive trazia os contratos preeestabelecidos em suas disposições anexas. sicional. (.) se destacamos uma única parte de um texto de seu con-
Desta feita, se utilizado o método concretista nesse caso, onde o espaço de texto, ele emudece. Falta nesse caso aforça significativa superior861 •
autonomia do trabalhador-aderente era bastante reduzido, muito mais razão
existe para a concessão de relevância hermenêutica ao substrato fático de É a partir destas observações que se constrói uma sistematicida-
··.·.···· uma relação contratual paritária, onde as questões de fato são ainda mais de nonnativa capaz de desvelar a noção da relação bilateral e dialética 862
decisivas na confonnação do instrumento contratual. que existe entre a pactuação privada e o ordenamento jurídico, dimensão
que desvela a força significativa da nonnatividade do contrato e do ins-
trumento de autonomia das partes. A pretensão deste estudo, ao mencio-
3 A CONCREÇÃO NORMATIVA DA INTERPRETAÇÃO nar a existência de uma concreção nonnativa, é situar o negócio no con-
CONTRATUAL texto do ordenamento jurídico863 , pois o contrato, enquanto elemento
normativo, se insere na cadeia de regulação do Direito. Mesmo a regula-
Nesta parcela final do estudo, o foco de análise se dirige ao viés ção particular se desenvolve de acordo com princípios imanentes que
nonnativo do método concretista, o qual encampa a relação entre o ato de fomrnm o sistema jurídico864 , não havendo razão ontológica para que a
autonomia representado pela declaração negocial e o sistema jurídico, atividade hennenêutica contratual ignore esta dimensão, aceita em outras
abrangendo uma dimensão sistêmica mediada pelo postul_ado da pr?por- situações que, devido à ampliação do objeto da interpretação promovida
cionalidade. Nesse contexto, serão enfrentadas as premissas gerais da nesta pesquisa, já foram situadas no contexto do interpretar (ex.: verifica-
concreção normativa da interpretação contratual, apresentadas algumas ção da validade do contrato).
das peculiaridades próprias do preceito supramencionado e, por fim, refe- Como refere Karl Larenz, na detenninação do sentido da decla-
ridas as premissas da sistematicidade hermenêutica que interessam ao ração o jurista também confronta logo o contrato com a lei, até mesmo
paradigma adotado nesta pesquisa. porque o ordenamento coloca exigências jurídicas específicas ao sujeito
cognoscente, especialmente no que respeita ao significado que o sistema
considera como válido e vinculativo, nas detenninadas circunstâncias
3.1 As Premissas Gerais da Concreção Normativa da concretas865 •
Interpretação Contratual
Como já salientado, o texto contratual é um lugar de outros lu- 860
FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 294 e 1099.
gares, pois é sempre uma prática intertextual 858 • Essa observaçã? surge 861 GADAMER, 2007b, p. 123 e 129.
como característica necessária de integração da declaração negocial e da 862
FERREIRA DA SILVA, 2001a, p. 151.
859
relação contratual no âmbito maior do discurso jurídico • 863
MIRANDA, 1989, p. 222.
864
Enfocando especificamente o texto contratual, tem-se que na LARENZ, 1989, p. 147 e 196.
865
declaração negocial se encadeiam enunciados que possuem conexões LARENZ, 1989. p. 231. 343 e 359-360. Exemplificando, quando o cliente diz para o
vendedor "dê-me 1kg de maçãs, por fcwor'', está demonstrando que se obriga ao pa-
gamento do preço, mesmo que subjetivamente assim não o queira. pois o ordenamen-
858 MARTINS-COSTA, 2008. to, nestas circunstâncias fáticas. considera o comportamento juridicamente vinculativo
859 FERREIRA DE ALMEIDA, 1992, p. 165-166.
Interpretação Contratual 249
248 Felipe Kirchner
perímetros. O próprio ordenamento prevê espaços de diálogos mais ou
Este estudo propõe a cisão teórica (e apenas teórica!) do método menos flexíveis, havendo no campo contratual uma grande margem para
concretista, a fim de enfatizar que a relação entre contrato e ordenamento atuação dos sujeitos de direito, do que é exemplo significativo o princípio
é um dos prismas mais relevantes da interpretação contratual. Apenas da liberdade das formas previsto no artigo 107, do CC/2002. Se não há
fora do âmbito de uma hermenêutica jurídica a interpretação do contrato autonomia e liberdade fora do Direito e de uma coletividade juridicamen-
poderia se dar sem a quantificação do sistema (ex.: desconsiderando o te organizada868 , deve-se considerar que a liberdade dos indivíduos é con-
plano jurídico, o contrato absolutamente ilegal pode ser interpretado nor- formadora do sistema normativo que organiza a complexidade do corpo
malmente, sem dar relevo ao seus vícios constitutivos). Como salienta En- social.
zo Roppo, o contrato não é um elemento da realidade física, e o juízo sobre Tal como refere Joaquim Ribeiro, "ainda que com as especifici-
sua constituição nonnativa depende da qualificação de comportamentos dades advenientes da sua natureza de acto de autonomia, de livre inicia-
humanos operada por nonnas jurídicas, pois a sequência de atos necessária tiva dos próprios obrigados (..) o conh·ato integra-se, como um dos ele-
à formação do conteúdo do contrato não depende de um modelo natural e mentos de normação, na ordem jurídica global da sociedade"869 • Segue o
necessário, mas, sim, pré-fixado de modo convencional (e certo modo arbi- pensador referindo que a conexão entre o contrato e a ordem jurídico
trário) pelo Direito, em reconhecimento da realidade social 866 • social é profunda, pois a pactuação não se processa em um espaço vazio
Fator decisivo que merece ser devidamente salientado é o de de normatividade, mas em um universo.institucional que predispõe forma
que, como já frisado, a relação existente entre o contrato e a ordem jurídi- e conteúdo da ação comunicativa e detenninativa dos contraentes. E ape-
ca estatal não é meramente unilateral, mas bilateral, dialógica e dialética. nas o conjunto destes elementos que dota o contrato de um sentido a ser
Se é verdadeiro que o contrato, em seu âmbito material, deve respeitar as intersubjetivamente reconhecido. O sistema jurídico, nesses tennos, não
diretrizes normativas estatais (imposição de limites ao seu objeto) e a sua se posiciona fora e "depois" do contrato, pois é ele também um antece-
inte1pretação deve aceitar as detenninações dos cânones estabelecidos em dente e pressuposto que integra, como componente fundamental, o corpo
lei867; deve-se perceber que a influência do ordenamento atinge o próprio de regras constitutivas da instituição contratual.
núcleo da atividade hermenêutica. O contrato não pode ser interpretado Para além de se constituir em fundamento e base, a ordem jurí-
de forma apartada do sistema jurídico, aspecto este que se encontra inse- dica interfere no conteúdo de significação do pacto, estabelecendo requi-
rido dentro dos esforços de concreção da situação objetiva complexa sitos e limites, fixando efeitos imperativos, predispondo regimes supleti-
formadora da relação contratual. vos ou impregnando, com seus valores e princípios, o sentido do compor-
É verdade que à autonomia privada é reconhecido livre curso tamento declarativo, o que parece ser o principal aspecto a ser enfatizado
dentro das margens demarcadas pelo ordenamento, mas não é menos no plano da atividade hennenêutica. Assim, corno quer Joaquim Ribeiro,
verdadeiro que os atos negociais oriundos desta liberdade pessoal dos "menos do que um radical dualismo de campos opostos, o que se nos
indivíduos tocam (e testam) constantemente os limites fixados normati- depara são, na verdade, duas esferas de regulação comunicantes, com
vamente pelo sistema jurídico, e usualmente acabam redefinindo tais atinências recíprocas", observação que bem enfatiza a conexão dialógica
aqui proposta870 •
(exemplo que ainda poderia questionar a questão da reserva mental do art. 110, do A dimensão enfocada se confinna quando analisada a relação
CC/2002).
866
entres as esferas de autonomia e heteronomia sob perspectiva inversa. Se
ROPPO, 1988, p. 84-85 e 147-148.
867 é inequívoco que o contrato precisa da ordem jurídica para alcançar con-
Este aspecto detennina a verificação da validade do negócio, o qne também faz parte
do processo hermenêutico, como salientado no tópico "A delimitação do horizonte
tornos de operatividade e eficácia, não é menos verdadeiro que o sistema
hermenêutico". Sob este prisma, está-se tratando da relação de detenninação ou vin- necessita do contrato (enquanto fato social) ao reconhecer a autodetenni-
culação existente entre a norma de um escalão superior (ordenamento constitucional e nação da pessoa e a sua liberdade de atuação econômica, o que toma in-
civil) e inferior (sentença judicial, ato administrativo individual ou contrato), a qual
nunca é completa, pois sempre existente uma margem de livre apreciação por parte do 868
escalão inferior, como referem Hans Kelsen e Joaquim Ribeiro (KELSEN, 1998, RIBEIRO, 1999, p. 241.
69
p. 388; RIBEIRO, 1999, p. 225). Essa margem de liberdade é bastante majorada no 8 RIBEIRO, 1999, p. 213.
870
plano dos contratos regrados pelo vértice da autonomia privada, quando comparadas RIBEIRO, 1999, p. 214-216.
outras áreas do Direito (ex.: Direito de Fanúlia).
Interpretação Contratual 251
250 Felipe Kirchner ·
com a sistematicidade interna, ou seja, com a necessidade de que as ex-
dispensável o uso do mecanismo contratual, não apenas para realizaç~o pressões postas no instrumento contratual sejam analisadas de forma glo-
material dos valores constitucionais, mas também para assegurar a funcio- bal e relacional, e não de fonna isolada 876 , aspecto que não suscita maio-
nalidade de uma estrutura social fortemente diferenciada (o que leva à res controvérsias e já insistentemente frisado, principalmente quando
incorporação legislativa e à aceitação jurisprudencial de modelos contra- verificada a noção de circularidade hermenêutica.
tuais surgidos na factualidade das relações negociais e de mercado, do Contudo, a tese principal desvelada pelo aporte do pensamento
que são exemplos os contratos de leasmg. e tlme-s
. hanng
· )sn .
sistemático parece a seguinte: por ser um elemento jurídico inserido no
O contrato integra o sistema jurídico tanto porque dele recolhe universo normativo do Direito, a interpretação do contrato depende de um
pressupostos de criação, manutenção, conformação e coercibilidade, mas caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele (contrato), do texto da
também porque o desenvolve na concretização dos vetores constitucio- declaração até a Constituição, de fonna sempre centrada no ato de auto-
nais da autodetem1inação da pessoa e do espaço de liberdade de atuação nomia e nas suas condicionantes. Por isso a interpretação do contrato é,
econômica do indivíduo, não havendo sentido em sua separação como em certa medida, também interpretação do Direito, pois o texto da decla-
sistema autônomo, ao menos no plano hennenêutico. Joaquim Ribeiro ração e os comportamentos havidos na facticidade da relação contratual
assim se questiona: se o contrato está não estão isolados, desprendidos do Direito e de suas premissas expressas
e/ou implícitas877 •
'dentro' do complexo nor111ativo que é o direito, co1110 ele111ento de
sua diferenciada estrutura de regulação social, co1110 pode si111ultane- Também por este viés se percebe que, no quadro da interpreta-
a111ente ganhar a distância indispensável para se isolar efir111ar como ção do contrato, há urna imbricação limitada do plano da autonomia com
termo de u111a análise comparativa com o próprio sistema de que faz a heteronomia, no sentido de que as normas estatais não se constituem
parte? (.) em nenhum 111omento, nem na sua fase genética, nem na apenas em normas de exame, mas, sim, em normas materiais para a de-
sua fase de execução, o negócio se desliga de seu sistemafundador 872 • terminação do conteúdo e do sentido da pactuação privada 878 • O regula-
Sendo evidente que o contrato não se dilui por completo no or- mento contratual resulta de um concurso de fontes que participam na sua
denamento jurídico, conservando sua alteridade e autonomia quanto à construção e estão em situação de uma constante complementação e res-
trição recíprocas, pois a vontade das partes pode se juntar ou se sobrepor
origem normativa e função específica assinalada pelo próprio sistema
a estas fontes, dadas determinadas condições fáticas e jurídicas (as quais
juridico873 , é inegável sua sistematicidade com o conjunto normativo
são desveladas pelo método concretista).
estatal, estando em constante complementação e restrição recíproca com
seus princípios estruh1rantes 874 • Dito isso, deve ser novamente referido que a existência de fon-
tes diversas do ato de autonomia das paites não significa, necessariamen-
Embora o paradigma trabalhado neste estudo independa de uma
te, fontes contrárias à vontade bilateralizada e aos interesses dos contraen-
apreensão metodológica do fenômeno hennenêutico, mister se faz afirmar
tes (as valorações legais e judiciais podem ser tanto contrastantes quanto
que a tese da concreção normativa encontra lastro no chamado pensamen-
homogêneas ou instrumentais em relação à autonomia privada), até por-
to sistemático 875 , cujo aporte teórico pode ser trazido para o campo da
que o dogma da vontade e a tutela da autonomia são pretensões não coin-
interpretação do contrato. A primeira consequência desta construção diz
cidentes, sendo que esta última dimensão pode ser substancialmente ga-
311
rantida mesmo quando a interpretação prescinde da vontade das partes.
RIBEIRO, 1999, p. 217-218.
872
Exemplo disso são os instrumentos de controle do regulamento contratual,
RIBEIRO, 1999, p. 219 e 222.
8 73 integrantes (ou ao menos dependentes) da atividade interpretativa, e que
BETTI, 2007, p. 190-191.
874 RIBEIRO, 1999, p. 220. podem resultar em uma intervenção não coincidente com as escolhas da
875 Hesse sustenta que a hem1enêutica deve ser construída sobre a base de uma coordena- autonomia privada, mas com os objetivos fundamentais e valores de natu-
ção material entre elemento nom1ativo e as condições de vida ou âmbitos de vida, cu-
jo processo de concretização adota um caráter sistêmico, mas ultrapassa o ponto de
876 MIRANDA, 1989, p. 183.
vista meramente sistemático na interpretação dos textos da nomm (HESSE, 1998, 877
p. 65.). Também Haberle aduz a necessidade dos participantes da interpretação darem GRAU, 2003, p. 40. 127-128 e 186.
878
maior significado ao que o autor denomina de contexto sistemático (HABERLE, HESSE, 1998. p. 71.
1997, p. 11).
h1terpretação Contratual 253
252 Felipe Kirchner ·
contratual 882 , que invariavelmente se fazem presentes (nem que seja sobre
reza ética, social e econômica regentes do ordenamento jurídico, em uma seu aspecto vetorial), a atividade hennenêutica tem o dever de quantifica-
879
ótica solidária (e não meramente pública) da regulação privada • -las, mesmo que as partes não tenham disposto expressamente sobre a sua
Nessa complexidade situacional, se sobressaem, ao menos, qua- incidência. Nesse sentido a lição de Carlos Ferreira de Almeida:
tro aspectos da relação contrato-ordenamento que se mostram extrema- (..) porque antes de ser jurídico, é negócio (e portanto social), o ne-
mente relevantes para a hennenêutica contratual: ( 1) o ordenamento é gócio jurídico vê rejlectidos no seu texto e na compreensão dele uma
elemento estruturante interno do contrato, agindo diretamente sobre seu multiplicidade de regras, com origem e natureza heterogéneas. A di-
conteúdo e significado hennenêutico, e não apenas como elemento exter- mensão normativa do sign[ficado negocial não se contém 1111111 âmbito
no (limite); (2) o ordenamento positivo não interessa à interpretação con- estritamente jurídico, porque se reporta a regras de duas fontes, com
tratual apenas no caso de lacunas a serem supridas com a utilização de alcance e nature=a susceptíveis de distinção: regras propriamente so-
ciais, que são as estabelecidas pela prática reiterada da vida de rela-
normas supletivas, mas sempre; (3) o sistema normativo (e principalmen- ção; e regras propriamente jurídicas (de validade. de composição, de
te seus vetores axiológicos) sempre faz-se presente na circularidade her- metodologia e de equivalência semântica),frequentementefixadas pe-
menêutica e na pré-compreensão do intérprete, razão pela qual o ordena- lajurisprudência e pela doutrina.
·.·.···· mento integra o significado construído pela participação ativa, criativa e Existe todavia uma contínua e essencial inte1penetração enh·e estas duas
produtiva do sujeito cognoscente; (4) o ordenamento detennina premissas classes de regras: porque as regras jurídicas têm naturalmente em conta
a serem observadas no iter hermenêutico (ex.: contratos empresariais os usos e as expectativas genericmnente aceites, reinstit11cionalizm1do as
possuem tratamento interpretativo diverso daquele reservado às relações instituições sociais; porque as regras jurídicas deixam muitas ve::es lugm·
às regras sociais para o preenchimento de suas condições de aplicação
consumeristas, pois o Direito Empresarial impõe a observância de certos
(. ..) e finalmente porque as regras sociais "sh'icto sensu" só têm eficácia
e determinados princípios) 880 • jurídica na medida em que estcgmn satisfeitas as e.-.::igências negativas e
Juntamente com a autointegração que deriva diretamente da au- positivas da ordem jurídica qum1to à significação883 •
tonomia privada dos contraentes, a hermenêutica contratual sempre deve
mensurar elementos decorrentes da heterointegração, o que se dá median- No mesmo sentido o entendimento de Joaquim Ribeiro, que de-
te o recurso a outras fontes, sejam elas fáticas (v.g.: naturezas das coisas e fende uma interpretação que assimile a estrutura relacional do contrato,
usos) ou normativas (ex.: diretrizes axiológicas do ordenamento e equi- não reduzindo sua dimensão ao elemento declarativo, o que ignoraria as
dade). A concreção normativa implica juízos de valor (Reale) mediados conexões contratuais externas (inserção no mundo da vida) e internas
por vetores do ordenamento, ou seja, na coordenação entre situação de (comunicação entre as partes) 884 :
fato (objetiva e complexa) e previsão nonnativa (contratual e legal), já
Sendo a liberdade contratual o principio rector da ordem dos conh·a-
que o intérprete sempre se utiliza (na circularidade hennenêutica e na sua tos, o desafio que se lhe coloca é o de dar satisfação às exigências
pré-compreensão) dos vetores axiológicos do ordenamento (ex.: boa-fé normativas próprias de cada um daqueles planos contratuais, a saber,
objetiva, confiança legítima, bons costumes, usos do tráfego negocial, sen,ir de inshwnento à auto-realização pessoal dos conh·aentes - na
etc.). 881 Existindo fontes heterônomas de detenninação do regulamento especifica forma que ela é possível no âmbito do contrato - ejuridifi-
car convenientemente as relações de troca e de cooperação no mer-
879 ROPPO, 1988, p. 166-168 e 177. cado, respeitando ao mesmo tempq, em medida Sl//iciente, os outros
880 Estas observações certamente não deveriam chocar os operadores jurídicos. Como valores próprios do ordenamento88 '.
sustenta Miguel Reale, a "exigência de inte1pretação global e concreta dos elementos
que compõem, seja um ordenamento legal, seja 11111 instrumento negocial, não repre- Ainda no universo da concreção nonnativa, que impõe uma vi-
senta senão uma versão atuali=ada do antigo ensinamento de Pothier", consubstanciado são organizada dos fenômenos de positivação e, de aplicação do Direito,
no artigo 1.161, do Código Civil Francês: deve-se interpretar uma cláusula pelas ou-
tras cláusulas contidas no documento, precedentes ou subsequentes a tal cláusula 882
ROPPO, 1988, p. 137-138.
(REALE, 1997a, p. 184). 883
FERREIRA DE ALMEIDA, 2005, p. 173-174.
881 Larenz traz uma questão significativa ao tópico abordado, ao referir a noção de justa 884
causa, que existe, segundo a jusriprudencia alemã, "quando, consideradas todas as RIBEIRO, 1999. p. 14-15 e 638.
885
circunstâncias, não é exigível, segundo a boa-fé, a uma das partes do contrato que RIBEIRO, 1999. p. 13-14.
prossiga na relação obrigacionaf' (LARENZ, 1989, p. 347).
Interpretação Contratual 255
254 Felipe Kirchner -
una ,ponderacwn . , s90 de 1a estructura concreta y de la importancia de los
cabe salientar o pensamento de Miguel Reale, no sentido de que não há interes_es en relación_comparativa con todos los modelos y tipos legales",
interpretação e aplicação de elementos normativos que não impliquem o os q~ais surgem do sISt~ma ou do tráfego jurídico (tipos extralegais como
sentido da totalidade do ordenamento, "nem apreciação de um fato que os diversos contratos mistos e o time-sharing) 891 •
juridicamente não se resolva em sua qualificação, em função da tipicida- Especifica~ente no plano normativo, o contrato passa a ser o
de normativa que lhe corresponde"886 , o que remete à dimensão axiológi- foco da heterogeneidade das relações que lhe são imanentes 892, pois a
ca da normatividade, tão cara ao pensamento do jusfilósofo brasileiro. relação contratual, que juridiciza uma determinada operação econômica
Emílio Betti refere que "a disciplina da lei não se detém dian- é construída por intermédio do ato de autonomia e das nonnas do orde~
te do conteúdo do negócio, limitando-se a registrá-lo tal como as par- namento jurídico que lhe são subjacentes. Nesse sentido cabe delinear as
tes o determinaram, mas abrange, também, aquele conteúdo, esclare- e~pec!ficida_51es _doA p~stula~o normativo da proporcionalidade, que media-
cendo-o, integrando-o e, por vezes, até corrigindo-o" 887 • Segue o ju- ra a dnnensao sistem1ca existente no contrato e no ordenamento jurídico.
rista afirmando que a interpretação não deve se limitar ao exame do
ato normativo, devendo se expandir para a verificação da sua relação
.·.•··· com a totalidade significativa do ordenamento jurídico. Contudo, cabe 3.2 O Postulado Normativo da Proporcionalidade
delinear que, nessa atitude, não há uma interpretação direta do orde-
namento, mas apenas do ato negocial em relação ao ordenamento ,
888 . _Refere Pi~tro Perlin~eri que; verificada a operatividade da pro-
inclusive no que tange à formação do conteúdo do contrato e do objeto porc10nahdade no sistema de hvre mercado, é possível que venha a exer-
cer influência em seu principal instrumento, que é o contrato 893 • Canoti-
da atividade hermenêutica. lho colaciona dois exemplos concretos que explicitam a necessidade do
Essa é uma questão que orienta o presente estudo: ao falar de e~ame da proporc!onalidade no campo da hennenêutica contratual, espe-
sistematicidade no plano hermenêutico, está-se falando da relação do ato cialmente na media?ãº, e?tre regulação privada (campo da autonomia) e
normativo privado (objeto da interpretação) com o sistema jurídico, o que normas e vetores ax10logiços do ordenamento jurídico (campo da hetero-
não implica dizer que essa relação sistemática imp01ta na interpretação de nomia), aspecto pertinente à concreção normativa:
todo ordenamento, o que é de todo evidente. Quando se afim1ou que a
interpretação do contrato é, também, interpretação do Direito, e que a A empresa Z conh·atou dois indivíduos do sexo feminino para o seu
interpretação do contrato depende de um caminhar pelo percurso que se serviço de informática, mas condicionou a manutenção do contrato de
projeta a partir dele (contrato), do texto da declaração até a Constituição, trabalho a três cláusulas: (1) szifeitarem-se a testes de gravidez no
não se está a afirmar que a interpretação contratual perca o foco e passe a momento da admissão; (II) aceitarem como justa causa de despedi-
ser interpretação legal, até mesmo porque, tendo como objeto a situação mento o fato de ocorrer uma grm 1idez durante o contrato; (III) consi-
objetiva complexa, essa atividade sempre se encontra centrada no ato de derarem também como justa causa de despedimento o fato eventual de
virem a servir de "mães de aluguel" durante a vigência do conh·ato.
autonomia e nas suas condicionantes 889 • Como conciliar estas cláusulas com direitos, liberdades e garantias
Assim sendo, parece forçoso o reconhecimento de uma concre- com direitos à intimidade pessoal e o direito de constituirfamilia?
ção nonnativa quando percebido que "la apreciación de cada contrato es
890
A pon~eração ~~trapola o viés_ sistemático ou da argumentação jurídica (ou qualquer
886 REALE, 1968, p. 128. ou1:o ro~lo_teonco que s~ queira colocar nessa atividade). pois sihrnda na abertura do
887 BETI1, 2003a, p. 126. carater cnatlvo e construtivo da interpretação.
888 sçi ENGISCH. 1968, p. 460-461.
BETII, 2007, p. 45.
88q Emilio Betti salienta que a sistematicidade da hem1enêutica atende à própria caracte- sqz REALE, 1999, p. 43.
893
rística nomiativa deste tipo de interpretação e diz com a resolução de problemas práti- PERLIN_GIER.1;, Pietr?. Equilíbrio Nom1ativo e Principio di Proporzionalitá nei
cos, atendendo as suas repercussões sociais (BETII. 2007, p. 218). No pensamento Contratt1. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA. v. 12,
metodológico bettiano, o relacionamento da diretriz normativa com a totalidade do P; 131:151, out./dez. 2002: p. 135. O autor ainda refere que o problema da propor-
ordenamento atende aos cânones da totalidade-coerência e da adequação do entender c10nahdade depende, part1culannente, da noção de autonomia negocial (PERLIN-
e, com este, diz com a adaptação do preceito às transfom1ações do entorno sociocultu- GIERI, 2002, p. 131 ).
ral da relação obrigacional (BETII, 2007, p. LXN e CX:Vill-CXIX).
-- h1terpretação Contratual 257
256 Felipe Kirchner ·
se antagonizam com a vontade das pmtes - como se pretendessem a tute-
(. . .) As entidades patrimoniais e as organi:::;ações sindicais celebraram la dos interesses públicos em confronto com os interesses privados 897 -,
11111 contrato coletivo de trabalho, onde incluíram a cláusula de clo- mas visam delinear sua significação, integrar suas lacunas e suprir as
sed-s/zop, 011 seja, a proibição de contratação de operários não sindi- deficiências de seu exercício, respeitando a lógica e o espírito de suas
calizados. Como conciliar esta cláusula contratual com o princípio da escolhas. Sob este prisma, é vedado ao intérprete atribuir ao contrato
liberdade de associação? 89.,,
significados não partilhados pelos contratantes (além das possibilidades
Em ambos os casos a interpretação contratual - que no para- de sentido da relação obrigacional, tendo em vista a força vinculante do
digma aqui estabelecido encampa o juízo de validade e de aplicação das objeto interpretado), com o fundamento de que aquelas acepções seriam
disposições contratuais -, depende de um juízo que envolve o exame da as mais desejáveis do ponto de vista do interesse geral, pois isto implica-
proporcionalidade das disposições privadas. Acerca desta questão se ria uma verdadeira modificação do pacto interpretado 898 .
apresentam os seguintes questionamentos: Existe a viabilidade de aplica- Feitas estas ressalvas, cabe mencionar que, em linhas gerais, es-
ção do postulado da proporcionalidade no âmbito da interpretação dos tá sedimentada a concepção do dever de proporcionalidade como sendo
contratos? Em que medida? Quais as consequências? um parâmetro de valoração de atos, para aferir se eles estão infonnados
··.·.··" segundo detenninados preceitos superiores inerentes ao todo do ordena-
O desenvolvimento deste tópico iniciará com um rápido en-
quadramento do tema no campo da interpretação das relações obrigacio- mento jurídico (relação parte-todo-parf:e). Este preceito é mais fácil de ser
nais, do que seguirá a análise das especificidades nonnativas próprias sentido do que conceituado, eis que se dilui em um conjunto de proposi-
do postulado da proporcionalidade, a defesa de sua aplicação no âmbito ções que não o libertam de uma dimensão subjetiva: é proporcional (e
da hermenêutica contratual e os efeitos deste posicionamento. Contudo, razoável) o que seja confonne à razão, supondo equilíbrio, moderação e
mister se faz salientar, desde já, que a análise da proporcionalidade no hannonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao
iter hennenêutico não se encontra apartada do uso dos postulados das senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar (historici-
circunstâncias do caso e/ou da razoabilidade, tanto que também nesse dade da compreensão) 899 .
campo prepondera o juízo indutivo na busca pela concreção da relação
contratual 895 . 897 Lucio Franzese questiona a cisão do Direito, referindo que o conceito de privado e
público, mesmo no campo contrah1al, não é ontológico, mas fruto de uma reflexão
Seguindo classificação proposta por Enzo Roppo, a temática com finalidade política (FRANZESE. 1998, p. 1-3 e 218).
deste tópico se insere no exame das fontes contratuais diversas da vonta- 898 ROPPO, 1988, p. 172-174.
de das pmtes - não necessariamente em razão da incidência do dever de 899
Humberto Ávila assim diferencia a proporcionalidade dos demais postulados nonnati-
proporcionalidade, mas, sim, pelas nonnas que, no âmbito interpretativo, vos aplicativos: "O postulado da proporcio11alidade não se c01ifi111de com o da justa
são por ele aplicadas -, as quais operam segundo variantes da valoração proporção: e11qua11to este exige uma reali:::;ação proporcional de be11s que se e11trela-
judicial contrastantes, homogêneas ou instrumentais da autonomia priva- çam 1111111a dada relação jurídica, indepe11dente da existência de uma restrição decor-
rente de medida adotada para atingir 11111 fim externo, o postulado da proporcio11ali-
da896. Ademais, está sob foco a análise de critérios objetivos de interpre- dade exige adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito de uma
tação, os quais, por conterem juízos axiológicos, não podem se afastar medida havida como meio para atingir um fim empiricamente controlável. O postula-
dos critérios subjetivos, que dizem com a busca pela comum intenção das do da proporcionalidade não se identifica com o da ponderação de bens: esse último
partes, embora a atividade hennenêutica não se entregue totahnente a este exige atribuição de dimensão de importância a valores que se imbricam, sem que
co11te11ha qualquer deter111i11ação quanto ao modo como deve ser feita essa pondera-
plano. ção, ao passo que o postulado da proporcio11alidade co11tém exigê11cias precisas em
Como já salientado, embora a utilização de critérios objetivos relação à estrutura de raciocí11io a ser empregada 110 ato de aplicação. O postulado
de interpretação implique o uso de uma fonte de regulação diversa da da proporcionalidade 11ão é igual ao da co11cordâ11cia prática: esse último exige rea-
livre e voluntária detenninação dos interesses privados, estes cânones não li::ação máxima de valores que se imbricam, também sem qualquer referência ao mo-
do de implementação dessa otimi::ação, enquanto a proporcionalidade relaciona o
meio relativamente ao fim, em função de uma estrutura racional de aplicação. O pos-
89.,, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. tulado da proporcionalidade não se c01ifi111de com o da proibição de excesso: esse úl-
Coimbra: Almedina, 2000. p. 38. timo veda a resh·ição da eficácia mínima dos princípios, mesmo nà.ausência de um
895
ÁVILA, 2006, p. 156. fim externo a ser atingido, enquanto a proporcionalidade exige uma relação pro-
896
ROPPO, 1988, p. 168.
h1terpretação Contratual 259

258 Felipe Kirchner ·


O preceito, em verdade, ministra parâmetros para que se fonnule um
Em tennos de sua natureza jurídica, a proporcionalidade se juízo acerca da co1Teição de uma detenninada intervenção (mediando,
constitui em um postulado normativo aplicativo, pois estabelece a estru- também, a criatividade do intérprete no iter hermenêutico).
• , d -1·
tura de aplicação de outras nonnas900 , como Jª e m~a do_901 . E sse dever A atuação dos sujeitos de direito (particular, intérprete, legisla-
não impõe a promoção de um fim, mas estrut?ra a ap~1~~çao d__? dever de dor ou administrador) faz-se diante das circunstâncias concretas, sendo
promover um fim ou estado de coisas por 1?e1? _de cntenos, nao_prescr~- destinada à realização de detenninados fins, a serem atingidos pelo em-
vendo comportamentos, mas modos de rac10c1mo e argumentaçao :elati- prego de determinados meios. Deste modo, são fatores invariavelmente
vamente a normas, dentre as quais se enquadram aq1:1elas que comp~e11;1 a presentes em toda ação relevante (inclusive nos atos que culminam na
situação objetiva complexa, que se constitui no obJet? da henn~n~utlca formalização do contrato): os motivos (circunstâncias), os meios e os
contratual estabelecendo parâmetros para a consecuçao desta at1v1dade. fins. A proporcionalidade é, precisamente, a adequação de sentido (her-
Assim, o ~aciocínio mediado pelo dever ~e proporcionalid~de é_sempre menêutico) que deve haver entre estes elementos905 • Sem a existência de
relativo à aplicação de outras disposições90:-, sendo que sua v10laçao ocor- uma relação meio/fim não se pode realizar o exame do postulado da pro-
re com a não interpretação da situação objetiva complexa de ~co;·~o c~: porcionalidade, pela falta de elementos que o estruturem906 • Se no aspecto
.··.·.···· a sua estruturação (confonnada pelos vetores do ordenamento JUnd1co) . jurídico lato sensu o fim diz com o resultado concreto ambicionado pelo
Assim, a proporcionalidade não se constitui em ?m p1:e:eito que elemento normativo (estado desejado_ de coisas), no plano dos contratos
sirva, autonomamente, para apurar a significação das d1spo~içoes ou a este não é outro senão o adimplemento.
legitimidade de restrições impostas pelo Estado ou p~los part1c_ulare_s por No que tange à sua estrutura, a doutrina endossa uma tríplice
meio do instrumento contratual9º4• Inexiste afronta a proporcionalidade caracterização do postulado da proporcionalidade, apregoando a necessi-
enquanto tal, mas, antes, ofensa a alguma diretriz normativ~ (le~al ou dade dos seguintes exames907 : (1) adequação (Geeignetheit) que, ao en-
contratual) que se dá pelo desrespeito ao postulado da proporcionalidade. focar o aspecto interno, analisa a relação meio e fim, exigindo que as
medidas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos (o
porcional de 11111 meio relativamente a 11111 fim. O postulado da proporcio,_zalida~e meio promove o fim?) 9º8 ; (2) necessidade (Notwendigkeit) que, ao dizer
não se identifica com o da ra=oabilidade: esse exige, por exemplo, a c~ns1d:raçao com uma análise externa do ato, impõe a verificação da inexistência de
das particularidades individuais dos sujeitos atingidos !:elo ato de_ aplzcaç~o fDll-
creta do Direito, sem qualquer menção a uma proporçao entre mews e fins (AVI-
905 Analisando as decisões do Supremo Tribunal Federal, Humberto Ávila demonstra que
LA, 2006, p. 152). , .
goo ÁVILA, 2006, p. 121-122; GRAU, 2003, p. 183-184. Humbert? ~~la apresenta a "exigência de proporciona/idade vem sendo aceita como um dever jurídico-
interessante metáfora: "quem define a proporcionalidade como prmczpw confunde a positivo" (ÁVILA, 1999, p. 152). Assim, tem as mesmas consequências materiais de
balança com os objetos que ela pesa! E, ao fa=ê-lo, perde de vi~ta a diferença enh:e o preceitos dessa ordem, dentre as quais se destaca a irradiação de efeitos na relação
que deve ser reali=acfo (princípios/regras) e o que serve de parametro para a realz::a- contratual privada.
905 ÁVILA, 2006, p. 150.
ção (postulados)". (AVILA, 2006, p. 127). . . ,,
907 ÁVILA, 1999,p.172.ÁVILA,2006,p.146-147el49.
901 No tópico "A natureza jurídica das circunstâncias do caso e da proporc10nahdade .
908 Salienta Humberto Ávila que a adequação do meio pode ser avaliada por intennédio
902 ÁVILA, 2006, p. 123-124. O dever de proporcionali~ade "impõe uma condiçi}ofor-
mal 011 estrutural de conhecimento concreto (aplicaçao) de outras normas. Nao con,- do aspecto quantitativo (promover menos, igualmente ou mais o fim), qualitativo
siste numa condição de sentido de que, sem ela, a aplicação do D!reifo s~ri~ impossz- (promover pior, igualmente ou pior o fim) ou probabilístico (promover com menor,
vel. Consiste numa condição normativa, isto é, instituída pelo proprzo I_!zrez!o par~ a igual ou maior certeza o fim), não tendo o agente que escolher sempre o meio mais in-
sua devida aplicação. Sem obediência ao dever de proporcio,nalidade nao ha a devida tenso, melhor e mais seguro. mas.sim o meio que efetivamente promova o fim. Ade-
reali=ação integral dos bens juridicamente resguardados" (AVILA, 1999, p. 170). mais. a relação de adequação deve ser avaliada diferentemente no plano geral (legal) e
903 ÁVILA, 2006, p. 122. particular. Em se tratando de nom1as gerais, a medida será adequada se, no momento
, , .
90-I Robert Alexy afuma que a máxima da proporcionalidad~ e resultante da propna es-
da escolha Guízo prévio, e não posterior), servir abstrata e geralmente de instrumento
sência dos direitos fundamentais (ALEXY, Robert. Teona de los Derechos Funda- para a promoção do fim. Em se tratando de atos meramente individuais, a medida será
mentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p .. 111-112). _D_eve _ser adequada se, no momento da escolha. servir concreta e individuahnente de instrumen-
ressaltado que também no âmbito da interpretação contratual existem r~s~çoes im- to para a promoção do fim. Além disso, quanto à intensidade do controle pela propor-
postas pelo Estado, tanto no que respeita aos lin~tes impost_?S ao exerc1cio da auto- cionalidade, deve haver uma demonstração objetiva, evidente e fündan1entada que
nomia. quanto na influencia direta em uma deternunada relaçao contratual, o que pode permita a declaração da invalidade do ato (ÁVILA, 2006, p. 153-158 e 169).
se dar, inclusive, com un1a intervenção judicial equivocada.
Interpretação Contratual 261
260 Felipe Kirclmer-
proporcionalidade no âmbito da interpretação dos contratos. Como se
meio menos gravoso aos direitos dos sujeitos envolvidos para a efetiva- poderá verificar dos julgamentos abaixo mencionados, a matéria em
ção dos fins visados (dentre os meios igualmente apropriados à p~omoção exame diz com a influência dos direitos fundamentais nas relações priva-
do fim, não há outro menos restritivo aos direitos fundamentais afeta- das915, envolvendo a problemática do como 916 e com que intensidade se
dos?)9º9; (3) proporcionalidade em sentido estrito (Zumutbarkeit oder dá a vinculação dos particulares a essas garantias917 .
Angemessen ), que importa na ponderação entre o ônus imposto e o bene-
ficio trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos 915 Embora a questão da influência dos direitos fundamentais nas relações privadas susci-
direitos dos indivíduos ou se há restrição excessiva aos direitos envolvi- te uma série de debates. deve-se atentar que é nas relações contratuais que ela revela
dos; tratando-se, assim, da verificação do custo-beneficio da medida, ~om suas maiores controvérsias. pois nesse campo todos sujeitos envolvidos detém auto-
a ponderação entre os "danos" causados e os resultados a serem obtidos nomia e são titulares de direitos fundamentais (RIBEIRO. 1998, p. 743: SOMBRA.
(as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem ou superam Thiago Luís Santos. A Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Jurídico-
as desvantagens provocadas pela adoção do meio?) 91 º. Privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamen-
tais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004. p. 73). Se a doutrina e a jurispmdên-
Juarez Freitas refere a importância da proporcionalidade no cia não são unifonnes, deve-se atentar que para além do atendimento dos interesses
.·.·.·· contexto de uma interpretação tópico-sistemática e, não obstante a polari- individuais, o contrato surge füncionalizado em nosso Estado Democrático de Direito,
zação do postulado na análise da_ adequação. meio/fim, defende u!lla. apli- servindo como ferramental de efetivação dos direitos fündamentais nas relações entre
cação mais abrangente do preceito, no sentido de buscar o sacnfic10 do particulares. Valendo-se dos ensinamentos 'de Schwabe, Cláudia Lima Marques afirma
mínimo para a preservaçao - do maximo
' . d e d"irei·tos911 . que o contrato é um verdadeiro "ponto de enconh·o dos direitos fundamentais", defen-
dendo que "a nova concepção mais social do conh·ato o visuali:::aria - 011 revisitaria -
Corroborando a tese acima delineada, Eros Grau afinna que como uma instituição jurídica flexível, que é hoje ponto de encontro de direitos consti-
''proporcionalidade e razoabilidade são, destarte, postulados normativos tucionais dos szgeitos envolvidos" (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código
da inte1pretação/aplicação do direito - um novo nome dado aos velhos e de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 210-211).
desprezados cânones de inte1pretação"911 . Porém, o pensador vai além, Sendo pacífica a eficácia vertical (relação Estado-particular) dos direitos fundamen-
ampliando sobremaneira o espectro de atuação do postulad~ ao ~firm~; tais, deve-se enfrentar a problemática do "como'" se dá a influência destas garantias na
chamada eficácia hori:::ontal (relação particular-particular), apresentando, pontual-
que "a proporcionalidade não passa de um novo nome dado a eqwdade , mente, as teorias existentes. Primeiro, tem-se a teoria da eficácia imediata ou direta
exatamente porque atua perante a interpretação concreta e no momento (Unmittelbare Drittwirkung) (adotada pelo Tribunal do Trabalho Alemão). fommlada
913
da aplicação, e não na formulação abstrata do elemento nonnativo . por Hans Carl Nipperdey e desenvolvida por Walter Leisner, a qual se embasa no
Sendo postulado estruturante de n01:mas que concret~me~te se princípio da supremacia constitucional e da unidade do sistema, apregoando a desne-
imbricam em tomo de uma relação causal meio-fim, a proporc10nahdade cessidade de quaisquer transfomrnções ou pontes dogmáticas para a aplicação dos di-
tem uma aplicação restrita às hipóteses em que há uma medida concreta reitos fundamentais nas relações privadas. pois aqueles assumiriam diretamente a
destinada a realizar uma finalidade 914 . Nesse contexto destaca-se a rela- condição de elemento linútativo do tráfico jurídico-privado e de direitos de defesa
oponíveis em desfavor de outros particulares. Assim. esta corrente defende a possibi-
ção obrigacional, que tem todos os seus elementos polarizados pelo lidade do particular invocar direitos subjetivos fundamentais também perante seus
adimplemento, fim próprio do contrato. semelhantes (eficácia horizontal), de maneira sinúlar (mas não igual) àquela com que
Cabe salientar, ainda, que não somente a doutrina, mas também opunha estes preceitos perante o Estado (eficácia vertical). Essa teoria foi adotada pe-
lo STF no julgamento do RE 201.819 (Rei. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, Se-
a jurisprudência tem se posicionado na defesa da aplicação do dever de gunda Turma, 11.10.2005). que aplicou a teoria dos poderes sociais e referiu que os
princípios constitucionais se constituem em limites à autononúa privada. O TJRJ tam-
909 O exame da necessidade envolve duas etapas de investig~ção: exame da igualdade de bém adotou esta vertente na discussão envolvendo a garantia do mínimo existencial
adequação dos meios e exame do meio menos restritivo (AVILA, 2006, p. 158). em contratações privadas, conforme os seguintes precedentes: Agln 2005.002.18558,
9 10 ÁVILA, 2006, p. 160. Afinna o ministro Eros Roberto Grau que dentre as suas con- Rei. Des. Antônio Cesar Siqueira, 5ª Câm. Cív., TJRJ. j. 08.11.2005; AC
vicções está a de que "a inte,pretação é a inte17:reta_çãolap~icação dos_texto~ e d~sfa- 2006.001.16305, Rei. Dr Cristina Tereza Gaulia, 5ª Câm. Cív., TJRJ, j. 25.04.2006:
tos e de qJte a ponderação é um momento no mtenor da 111te1pretaçaolaphcaçao do Agln 2006.002.06063, Rei. Des. Antônio Cesar Siqueira, 5ª Câm. Cív. TJRJ. j.
direito" (AVILA, 2006, p. 18). 11.07.2006: AC 2006.001.40839. rei. Des. Antônio Cesar Siqueira. 5" Câm. Cív ..
9 11 FREITAS, 2005, p. 329. TJRJ, j. 22.08.2006. Esta vertente teórica não está alheia a criticas, sendo estes os
9 2
1 GRAU, 2003, p. 186. principais argumentos pugnando pela inviabilidade da aplicação diret-a: (1) ambos su-
g 13 GRAU . 2003, p. 188-189. jeitos são destinatários de direitos fündamentais. merecendo igual proteção das nor-
9 14 ÁVILA, 2006, p. 149-150.
Interpretação Contratual 263

262 Felipe Kirchner ·

continua sendo o destinatário precípuo dos direitos fundamentais, mas possui um de-
mas jusfundamentais: (2) haveria violação material ao núcleo essencial da autonomia ver absoluto de proteção dos sujeitos privados contra agressões aos bens jurídicos
privada e do próprio direito privado; (3) se configuraria violação ao princípio do Esta- fundamental~1ente assegurad?s pela Constituição. mesmo que estas sejam provenien-
do de Direito em face da imprecisão de aplicação das nonnas jusfundamentais na re- t~s ~a atuaçao de 0~1tros particulares. Assim. evidencia-se a ahiação ambivalente dos
lação privada; (4) inexiste previsão expressa, no caso brasileiro, que detenuine a efi- d1re1tos ~und_a~entais, que de!em~an~ ªf:tações negativas e positivas por parte do Es-
cácia direta; (5) seria possível ao particular renunciar aos seus direitos (sendo vedada tado,_ ct~Ja atl~idade, fora do amb1to pubhco, encontra-se edificada sobre as estrumas
apenas a autolimitação que atinja o conteúdo núnimo do direito constitucionahuente de D1re1to Pnvado (CANARIS, Claus-Wilhelm. A Influência dos Direitos Fundamen-
assegurado) (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle da t~is _s~bre o_Di_reito Privada na Alemanha. ln: SARLET, lngo Wolfgang (Org.). Cons-
Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1999. p. 123; ZITSCHER, Harriet titn1çao, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Ad-
Christiane. Introdução ao direito civil alemão e inglês. Belo Horizonte: Dei Rey, vogado, 2003. p. 36). A quatro, tem-se a teoria da com,eraência estatista origiual-
1999. p. 175). Segundo, tem-se a teoria da eficácia mediata 011 indireta (Mittelbare ~1ente dese~v?lvid~ por Jurgen Schwabe, a qual nega a rele;ância da discu;são trace-
Drittwirkzmg) (adotada pelo Tribunal Constitucional Alemão), criada por Gunter Du- jada n~ste topico, eis que a atuação dos particulares, no exercício da autonomia priva-
rig, a qual defende que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais dar-se- da, sena sempre produto do pemússivo estatal. sendo as ofensas sempre oriundas des-
-ia por meio da interpretação e aplicação das cláusulas gerais (generalklauseln) e dos te (CANARIS, 2~03, p. 6~). razão pela qual não poderia haver a imputação ao parti-
conceitos jurídicos indeterminados, a serem previstos no seio da legislação privada, cular por ofensa ~ norm~ JUsfundamentaL pois este não teria cometido o ilícito se o
sob a égide da axiologia constitucional, havendo, quando muito, vinculação direta E~tado houvesse rnterfendo de fomrn decisiva. Desta feita, o que existiria seria um di-
apenas para o legislador jusprivatista. Desta feita, as posições jurídico-subjetivas, re- reito de d_efesa c~ntr? as ingerências do Estado, mesmo no tráfico privado, envolven-
conhecidas ao particular frente ao Estado, não poderiam ser transferidas de modo dire- d~ uma vrnculaçao d1'.eta apenas do legislador privado e da jurisdição civil. Por fim, a
to para as relações particulares, mas apenas por intermédio de um efeito irradiador mi- crnco, te~-s_e a doutrina norte-americana da state action, para a qual os direitos fun-
tigado, ou seja, as normas jusfundamentais não seriam diretamente oponíveis, como damentais vrncul~1_ apenas o Estado e são invocáveis somente em face de uma ação
direitos subjetivos, nas relações entre particulares. Ao encontro destas considerações é estatal de orde_m 1hctta, sen?o que as condutas privadas estariam imunes a esta espécie
que parece ter sido editado o Enunciado n. 23, aprovado na I Jornada de Direito Civil, de :ontrole, n~o sendo afendas e°: face da Constituição. Assim, somente haveria pro-
promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: "afim- teçao dos p~rticulares quando venficado que a violação cometida contra seus direitos
ção social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o prin- fun_d~~ntms por outro ci~adão pode ser imputada ao Estado. pois fora desta hipótese
cípio da autonomia contratual, mas atenua ou redu= o alcance desse princípio quan- os rnd1viduos pod m argmr em s_eu favor a impossibilidade de praticarem ingerências
do presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade 7
c?ntra as nonuas Jusfundamentai?. Atualmente a tese foi suavizada pela jurisprndên-
da pessoa humana". Ademais, na supramencionada discussão acerca da garantia do cia da S~pr~ma Co~e norte-amencm1a, por intenuédio da ampliação dos conceitos de
1uiuimo existencial em contratações privadas, o TJRS optou pela utilização desta ver- poder publico e_ açao estafa(, ~ec~nhecendo-se a noção de imputação do Estado pela
tente teórica: MS 70013336359, Rei. Des. Jaime Pitem1an, 2° Grnpo de Câmaras Cí- cond~ta do part1,c~lar e da srnulandade deste com o Leviatã, quando do exercício de
veis, TJRS,j. 09.06.2006; Agln 70017472754, Rei. Des. Paulo Vieira Sanseverino, 3• funçao ~statal t1p1c? ~oder s?cia! privado) (GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação
Câm. Cív., TJRS,j. 31.10.2006; AC 70015326994, Rei. Des. Paulo Vieira Sanseveri- Afirmativa e Prmc1p10 Constituc10nal da Igualdade: o direito como instrumento da
no, 3ª Câm. Cív., TJRS, j. 03.08.2006. Em face dos argumentos utilizados no julga- transfonnaçã~ social, a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 88).
mento da ADI 2.591 (chamada "ADIN dos Bancos"), parece que o STF se inclina pe- 917 Refer: Joa~mm de Souza Ribeiro que os linútes que os particulares estão obrigados a
la aplicação da teoria da eficácia mediata ou indireta, embora a questão não tenha si- respeitar nao deve~ ser os mesmos que vinculam os poderes públicos, pois altera-se 0
do, nesta oportunidade, nomeada expressamente pelos julgadores. Ante as questões can~po de valoraçao (RIBEIRO, 1998, p. 745). A questão passa pela análise inicial do
supramencionadas, como adverte Tlúago Sombra, são tecnicamente corretas as dire- fenomeno do_s cham_ad?s pode:·~s sociais, que são os sttjeitos privados dotados de
trizes emanadas da teoria da eficácia imediata, pois a defesa da tese contrária implica- grande podeno econonuco, pohtico e/ou social. capazes de condicionar as decisões da
ria em "11111 pedido de permissão dos direitos fimdamentais ao Direito Privado para pai:e adve:sa (pretensamente hipossuficiente). O reconhecimento destes entes implica
que pudessem incidir nas relações por este reguladas" (SOMBRA, 2004, p. 162), o a d1fe~encia ão ~a~ esferas jurídicas privadas a serem t11teladas pelos direitos funda-
que não poderia subsistir. No mesmo sentido: SARLET, lngo Wolfgang. Direitos 7
mentais, p01s ~xi~ti_rão relações configuradas com a presença dos particulares e dos
fundamentais sociais, minin10 existencial e direito privado: breves notas sobre alguns det~ntores ~o rndigita~o poder_ social, pautadas pela desigualdade e muito semelhm1-
aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares.
SARMENTO, Galdino; GALDINO, Flávio (Orgs.). Direitos fundamentais. Rio de
?e
tes as re:aço_es eficaci~ vertical; e outras onde não há um necessário desequilíbrio
(o que nao sigrufica a venficação de uma real igualdade material), pois verificadas fo-
Janeiro: Renovar, 2006. Contudo, a questão perdeu importância significativa com a r~ da esfera d~s relações de poder. Desta feita, deve haver uma ponderação das ques-
edição do Código Civil de 2002, que prevê um grande número de cláusulas gerais e toes em ~onfli!o, levando-se em conta o substrato fático que penneia o caso, majoran-
conceitos jurídicos indetenninados, preceitos que pemútem que o operador jurídico dê do_-s_e a rntens1dade da proteção na exata medida da desigualdade verificada entre os
primazia à vinculação dos contraentes aos direitos fundamentais por meio destas es- suJeit~s: sendo que est~ consideração não exclui a vinculação dos-':mjeitos privados
pécies de positivação nonnativa infraconstitucional. Enfrentadas as principais verteu- . • aos dtrettos fimdamentais em uma relação de iguais.
tes teóricas, cabe delinear. por terceiro, a teoria dos deveres de proteção, defendida
por Konrad Hesse, Klaus Stern e Claus-Wilhelm Canaris. a qual entende que o Estado_
Interpretação Contratual 265
264 Felipe Kirchner .
Em tennos de excertos jurisprudenciais estrangeiros, Joaquim
Iniciando esta breve análise da jurisprudência, cabe mencionar de Souza Ribeiro apresenta interessante julgado do Tribunal Constitucio-
o voto do ministro Castro Filho no REsp 259.263, onde o Superior Tribu- nal Alemão (Bundesve,fassungsgericht), que acabou se tornando para-
nal de Justiça afirma expressamente que o exame de proporcionalidade digma na jurisprudência daquela Corte Constitucional:
deve nortear os contratos918 •
Outro caso que merece destaque é o do RE-ED-EDv-AgR [discutia-se a} validade da fiança prestada por uma filha de 21 anos,
161.243 919, onde o Supremo Tribunal Federal entendeu que o contrato de para garantia de uma dívida de 100000 DM, contraída pelo seu pai
junto a uma instituição bancária. A fiadora não possuía pah·imônio
trabalho formalizado pela Air France feria o princípio da igualdade, uma próprio de relevo, nem qualquer grau acadêmico ou preparação pro-
vez que a empregadora-reclamada se negava a aplicar o Estatuto Pessoal da fissional, auferindo, como operária, o salário mensal de 1150 DM A
Empresa ao empregado-reclamante, sob a alegação de que este era brasilei- sua queixa teve sucesso, entendendo o Bzmdesverfassungsgericftt que
ro, e não francês, fundando o fator de discrimen exclusivamente em atribu- os h·ibunais ordinários, ao admitirem a eficácia da fiança, tinham vio-
to, qualidade e nota intrínseca do empregado, qual seja, a sua nacionalida- lado o artigo 2°, 1, da Grundgesetz, norma que consagra aquele direi-
de. Cabe ressaltar que na fundamentação da decisão houve a menção ex- to ao livre desenvolvimento da personalidade. Esse direito da fiadora
,·.···· pressa ao postulado da proporcionalidade na mediação da relação contrato era coarctado pela executoriedade de 11111 encargo de tal monta e tão
desproporcionado dos seus rendimentos que importaria a sua asfixia
e princípio da isonomia, tendo sido determinada a aplicação desse vetor
econômica para toda a vida. Na sua fundamentação, o Tribunal fixa
deontológico na regulação do contrato de trabalho então examinada. como pressupostos de uma inten,enção correctora, ah·m1és, designa-
No julgamento do HC 12.547920 , onde examinado contrato de damente, da determinação da ineficácia do acto, a constatação de
alineação fiduciária e decreto de prisão civil por descumprimento, o minis- conseqüências vinculativas invulgarmente onerosas para uma das
tro Ruy Rosado Aguiar Junior utilizou a proporcionalidade para fixar o partes, em resultado de sua iriferioridade estrutural 923 .
entendimento de que a interpretação do contrato denotaria que a relação No sistema da common lm11 cabe mencionar o famoso caso
negocial (elevação da dívida de R$ 18.700,00 para R$ 86.858,24 em menos Shelley versus Kramer, onde a Suprema Corte Norte-Americana conside-
de 24 meses, em face da previsão de juros em patamar considerado abusi-
rou inconstitucional a presença de cláusula discriminatória em um contra-
vo) e as consequências da aplicação da ordem jurídica (imposição de prisão
to de Direito Privado, por ofensa ao princípio da igualdade, em aplicação
para apenas uma das partes) não possuíam equivalência, em face da inci-
mediada pelo postulado da proporcionalidade924 •
dência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Feitas estas considerações, deve-se ressaltar que o dever de pro-
Na AC 70003742103 921 , o Tribunal de Justiça do Estado do Rio porcionalidade, enquanto postulado normativo, toma-se importante para a
Grande do Sul decidiu que feria a proporcionalidade a incidência do art. interpretação do contrato não por estabelecer a realização de um estado
8°, da Lei 10.209/2001 (e dos ditames da Medida Provisória que antece- de coisas - pois esta dimensão é regulada pelo instrumento contratual -,
deu esse dispositivo) na relação contratual sub judice, pois a indenização
pelo não pagamento antecipado de pedágios em valor correspondente ao 923 ln: V. Juristenzeitung, 1994, 408 s., apud RIBEIRO. 1998, p. 749-750. Verifica-se
dobro do valor dos fretes era desproporcional e impunha a reparação de claramente que nesta decisão a Corte Constitucional Alemã se utilizou do princípio da
prejuízos não efetivos922 • igualdade e do dever de proporcionalidade, além do preceito do livre desenvolvimento
da personalidade humana. para interpretar o contrato. a fiança prestada, as condições
918
pessoais da fiadora e de sua desigualdade material perante a instituição financeira.
REsp 259263-SP, 3ª T., STJ, Min. Castro Filho, DJ 20.02.2006 p. 330. 924
O caso foi edificado perante a teoria da state action, mas se tomou paradigma por
919
RE-ED-EDv-AgR 161243, Tribunal Pleno, STJ, Min. Sydney Sanches, DJ adotar entendimento de que a ação estatal de ordem ilícita pode ser verificada na
17.12.1999, V. 01976-02, p. 415. própria atuação jurisdicional. No caso em exame (Shelley versus Kramer), a Su-
920
HC 12.547, 4ª. T., STJ, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 12.02.2001 p. 115, RSTJ vol. prema Corte norte-americana considerou inconstitucional a presença de cláusula
148 p. 387. discriminatória em um contrato de direito privado, pois llllla Corte estadual havia
921
AC 70003742103, 2ª Câmara Especial Cível, TJRS, Revisora e Redatora para Acór- concedido medida injuntiva ao particular, considerando legítima e válida a mencio-
dão Desª. Marilene Bonzanini Bemardi, j. em 29.05.2002. nada disposição negocial. Se antes tratava-se de um negócio entre sujeitos privados,
922
No caso concreto, o valor dos pedágios que não forrun adiantados girava em tomo d: houve a publicização da questão quando o judiciário passou a -'chancelar o ato
R$ 5.000,00, enquanto o dobro dos fretes (quantum estabelecido pela Lei (SOMBRA, 2004, p. 196).
10.209/2001) beirava R$ 200.000,00.
hiterpretação Contratual 267
266 Felipe Kirclmer
De início, cabe mencionar que o raciocínio sistêmico contribui
mas por determinar o modo corno a regulamentação privada se relaciona com a hennenêutica contratual principalmente na verificação da sistema-
com o ordenamento e com os efeitos jurídicos emanados do amálgama ticidade interna da declaração negocial (análise textual), bem como na
existente entre os planos da autonomia e heteronomia. Nesse contexto, é análise da sistematicidade externa da nonnatividade do conti·ato (análise
importante frisar que o exame da proporcionalidade não ~e s!1:1ª fora da intertextual e correlacional), em especial no que se refere à relação desta
atividade interpretativa - como se fosse uma tarefa posterior a mterpreta- dimensão com as diretrizes oriundas do ordenamento - criando pontes
ção, atinente a conformação de suas concl~s~es -, mas, sim, em um pro- pennissivas do diálogo entre os níveis de heteronornia e autonomia -
cesso ativo e condicionante do ato hermeneutico. tema objeto deste tópico. Contudo, mister se faz ressaltar que a inserção
Buscando a congruência dos atos com os seus fms, o pri~cípio do pensamento sistemático em uma obra norteada pela amplitude e aber-
da proporcionalidade indica que a relação co~tr_atual pod~ ser eficiente, tura dogmática da hermenêutica filosófica - atitude que põe em choque a
atingindo econômica e juridicamente o ~eu obJetivo e~pecifi~o, ,~as pode metodologia com a apreensão filosófica - importa em uma verdadeira
não ser proporcional quanto aos fins cohrnados pelo_ sistema J':nd1c~ (ex.: apropriação teórica, que nem sempre se amoldará com exatidão nos pu-
justiça, equilíbrio da relação contratual, boa-fé obetiva e funçao social do rismos de cada escola de pensamento. Contudo, a noção de interpretação
·,••" contrato) ou em razão da posição ocupada por um dos contratan~es (ex.: sistemática é aqui adotada sem radicalismos, procurando retirar de suas
hipersuficiência econômica do fr~nqueador no ~ontra~o de franq_ma). Sem considerações aquilo que possa contribuir para o desenvolvimento de
desconsiderar a absoluta relevância da autonomia na mterpretaçao contra- uma atividade hermenêutica sempre ci1ativa e construtiva, mas também
tual, cabe destacar que a busca do hermeneuta não se resu~e, à ~nálise do -sempre concreta e matizada pelo objeto interpretado 927 •
tráfego jurídico, mas atinge a verificação e a busca do eqmhbno do des-
locamento patrimonial, pois a proporcionalidade, enquanto ~ânon~ partí- da Ciência do Direito. culnúnaram por influenciar o pensamento contemporâneo:
cipe do iter interpretativo, vai além do aspecto formal da d11Uensao eco- Hans Kelsen admitiu que as normas jurídicas são molduras a serem preenchidas pela
ação do intérprete: Theodor Viehweg preconizou importantíssimo avanço ao elaborar
nômica do contrato. a teoria da incompleh1de do_ sistema: Josef Esser trouxe considerações acerca dos
Por fim, cumpre destacar que não é dado ao intérp~ete i~npor os principios gerais do Direito e da justiça social dentro do sistema, bem como da inci-
seus valores aos contratantes, a pretexto de avaliar a proporc10nahdade de dência dos princípios constitucionais positivos e materiais para a criação jurispruden-
um contrato. Mesmo à luz de uma Constituição que mostra vocação diri- cial; Walter Wilburg reconheceu a mobilidade do sistemajuridico: Karl Engisch apor-
tou teoria sobre os conceitos juridicos indetemunados: E1nil Lask se deteve na pro-
gente, o controle de proporcionalidade deve r~sp~i!ar a mar~e~ de l_i?er- blemática dos valores. salientando, principalmente. sua sistematização dinâmica; Wal-
dade relativa ao poder de conformação dos md1viduos. Nao e legitimo ter Burckhardt trouxe à lume a diferenciação entre justiça lógica e justiça ética (KEL-
que a aferição da proporcionalidade _culmine por romper com_a margem SEN, 1998. p. 390-391; FREITAS. Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito.
de liberdade de que gozam os particulares na regularnentaçao de s~as 3. ed. São Paulo: Malheiros. 2002. p. 44: PASQUALINI. 1999. p. 102; CANARIS.
relações. O dever de proporcionalidade, antes, controla o ~so dess~ ~is- 1989 p. 67). As teorias citadas se constituem nas principais contribuições que redun-
cricionariedade, para prevenir excessos evidentes, mas nao substitui o daram nas doutrinas contemporâneas de Norberto Bobbio. Karl Larenz. Claus-
Wilhelm Canaris. Robert Alexy e Ronald Dworkin. Para maiores considerações sobre
contratante pelo intérprete. a história do pensan1ento sistemático. destaca-se a seguinte obra: MARTINS-COSTA.
2000.
926
CANARIS, 1989, p. LXV-LXVI e 22: BISINGHINI, D'ALESSANDRO, 2000, p. 58.
3.3 Os Pressupostos da Sistematicidade Hermenêutica Longe de ser uma aberração, como pretendem os críticos do pensamento sistemático,
a ideia do sistema jurídico se justifica normativamente a partir do princípio da justiça
Confonne acentua Canaris, o significado da ideia de sistema para e de suas concretizações nos preceitos da igualdade e da segurança jurídica, estando
a ciência do Direito é dos ternas mais discutidos da metodologia jurídica lastreada, ainda, na busca de um núnimo de racionalidade dogu1ática, na identifica-
ainda em nossos tempos925 , havendo as mais diversas opiniões doutrinárias ção das instituições com sistemas de ações e interações, na ideia do Direito como
926 sendo um sistema de comunicações e no apoio sociológico da estruturação jurídica
sobre sua aplicabilidade, verificabilidade, importância e validade • (CANARIS, 1989. p. 22).
927
Descabe abandonar as imprescindíveis contribuições da teoria sistemática pelo fato de
92s o desenvolvimento do pensamento sistemático dependeu do trabalho e esforço de a mesma possuir certas limitações. As críticas ao pensamento sisterhático derivam e
inúmeros pensadores. sendo importante, sem pretender esgotar o tema, t:cer. br~~es variam. evidentemente. da concepção que se tenha sobre o que seja a interpretação
considerações e homenagens sobre as mais variadas teorias que, na evoluçao h1stonca
- hlterpretação Contratual 269
268 Felipe Kirchner ·
tem apenas no plano teórico da inter-relação existente entre ordenamento
Afora as questões de ordem linguística, o liame teórico do pen- e ciência do Direito. Como bem refere Menezes Cordeiro, "a lógica ima-
samento sistemático com a hennenêutica contratual encontra-se na con- nente do Direito e as proposições externas necessárias ao seu estudo e à
secução da concreção, que vislumbra o sistema nonnativo (ordenamento sua aprendizagem constituem um todo que só em abordagens analíticas
e contrato) na sua real condição de totalidade axiológica. No que tange ao pode ser dissociado" 930 • Nesse contexto, são as noções de unidade e or-
contrato, já se verificou que o instrumento e suas nonnas singulares so- denação interna, conjuntamente com a hierarquia, que compõem o grande
mente podem ser entendidas em consonância com o conjunto axiológico ideário de concatenação do sistema jurídico, pois são estes os elementos
e de regras particulares que compõem o ordenamento928 • centrais na maioria das definições doutrinárias, mesmo daquelas que par-
Logo de início, cabe salientar que este estudo aceita a concep- tem e chegam a lugares de conhecimento tão diversos 931 .
ção de que o sistema jurídico é uno, pois as dicotomias propostas pela
doutrina (ex.: sistemas externo e interno, cientifico e objetivo)929 subsis- teóricos, dos quais muitos restaram aproveitados na dogmática aqui defendida. sendo
conveniente salientar: sistema de puros conceitos fundamentais (Stammler, Kelsen e
sistemática. Como mencionado, este estudo procura abandonar os radicalismos exis- Nawiasky); sistema lógico (juríspmdência dos conceitos); sistema axiomático-
tentes, visando adequar as premissas básicas do pensamento sistêmico com uma apreen- dedutivo (Ulrich Klug. Victor Kraft e Hasso Harlen); sistema como conexão de pro-
são da interpretação contratual que é confonnada pelas condicionantes da hem1enêuti- blemas (Max Solomon e Fritz Von Hippel); sistema de decisões de conflitos (juris-
ca filosófica, da qual resulta uma concepção bastante an1pla do fenômeno da compre- pmdência dos interesses de Philipp Heck): sistema de institutos jurídicos (Savigny);
ensão que não deve ser restringida pela concepção sistêmica. Nesses termos, se a ati- sistemas estático e dinâmico (Bobbio) (CANARIS, 1989 p. LXIX. 27-53. 55-66, 84-
vidade hermenêutica quantifica as diretrizes do pensamento sistemático (ex.: unidade, 85; BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10 ed. Brasília: Universi-
inseparabilidade das normas, ordem hierárquica e ordenação axiológica ou teleológi- dade de Brasília, 1997, p. 71-74 ). Estas concepções foram refutadas por Canaris em
ca), jan1ais nega a criatividade do intérprete. Aceitando que as diretrizes normativas suas individualidades. por não serem capazes de exprimir a adequação valorativa e a
do contrato (objeto da interpretação contratual) e do ordenamento se constituem em unidade interior da ordem jurídica (CANARIS. 1989. p. 280).
instâncias relativamente abertas e dialógicas, o estudo continua trabalhando com o fa-
93 ° CANARIS, 1989, p. LXIX. Francisco Amaral entende que a concepção sistêmica
to de que o significado não é extraído do sistema, mas do amálgama complexo exis- alcança não apenas a visão unilateral do relacionamento das normas, devendo se es-
tente entre as peculiaridades do objeto interpretado. a pré-compreensão do sujeito, as tender para a compreensão global do Direito, atingindo a totalidade (unitária. coerente
circunstâncias do caso a solucionar e as vertentes sistemáticas do Nomos Jurídico in- e dinâmica) das nom1as. relações e instituições que compõem o sistema jurídico
terpretado. (AMARAL, 2006, p. 40).
931
928 Muitas das opiniões contrárias ao pensamento sistemático defendem sua invalidade na Kant caracterizou o sistema como "a unidade sob uma ideia de conhecimentos varia-
confrontação com a ideia clássica de ordenamento, no sentido de que, embora ambas dos" ou como "11111 cor/junto de conhecimentos ordenado segundo princípios". Eisler o
as teorias abarquem as características da hierarquia, coerência interna e compleição de define como sendo "uma multiplicidade de conhecimentos, unificada e prosseguida
ideias. tão somente a opção pelo ordenamento conteria urna perspectiva teleológica, através de 11111 princípio, para 11111 conhecimento co1y1mto ou para uma estrutura ex-
opinião a muito ultrapassada, desde que Canaris, no escopo da teoria de Karl Larenz, plicativa agrupada em si e unificada em termos interiores lógicos''. Para Savigny o
desvelou uma das mais importantes características do sistema jurídico: a ordem axio- sistema significa a "concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as
lógica ou teleológica interna (CANARIS. 1989, p. 66-67). Porém, para além da distin- regras de Direito numa grande unidade.'' Para Rudolf Stanunler seria "uma unidade
ção linguística, aduz Judith Martins-Costa que ""ordenamento e sistema, como se sabe, totalmente coordenada.'' No entender de Julius Binder, seria "um c01/junto de concei-
não são sinônimos. O ordenamento é o cor/junto das normas que regulam a vida jurí- tos jurídicos ordenado segundo pontos de vista unitários.'' Sob a ótica de August
dica em certo espaço territorial. O sistema exprime as ligações, nem sempre existen- Hegler, o sistema é "a representação de um âmbito do saber numa estrutura signifi-
tes, entre essas normas" (MARTINS-COSTA, 2000, p. 43). Salienta-se que, no pre- cativa que se apresenta a si própria como ordenação unitária e concatenada." Para
sente estudo, o termo ordenan1ento será empregado em seu viés sistemático. Heinrich Stoll. seria um "c01y11nto unitário ordenado.,. Na visão de Hehnut Coing.
929 São extremamente multifacetadas as concepções de sistemas suscitados pela doutrina. poderia ser traduzido como sendo uma "ordenação de conhecimentos segundo 11111
Karl Larenz possui concepção dualista, defendendo existir um sistema externo, relacio- ponto de vista unitário". Max Weber o caracterizou como sendo "a concatenação de
nado à ciência do Direito e sendo constituído de conceitos gerais abstratos (generali- todas as proposições jurídicas, obtidas por análise, de tal modo que elas formem, en-
zação de elementos a partir dos chan1ados tipos jurídicos), e um sistema interno, que tre si, um sistema de regras logicamente claro, em sOogicamente livre de contradi-
seria o próprio ordenamento positivo (LARENZ, 1989, p. 338 e 534; CANARIS, ções e, sobretudo e principalmente, sem lacunas." Para Canaris, o sistema pode ser
1989, p. 26). Nesta mesma vertente, Canaris defende a existência de um sistema lógi- objetivamente conceituado "como sendo uma ordem teleológica de princípios gerais
co-científico, que diz com o sistema de conhecimentos, ao lado de um sistema objeti- de Direito." Por fim, para Bobbio o mesmo diz com "uma totalidade ordenada, um
vo, que diz com o sistema dos objetos de conhecimento que formam o ordenamento co1yunto de entes entre os quais existe uma certa ordem" (CANARfS, 1989, p. 10-11
(v.g.: leis, costumes, doutrina. jurispmdência, etc.) (CANARIS, 1989, p. 13). A des- e 29; BOBBIO, 1997. p. 71).
peito disso, inúmeras outras concepções surgiram, trazendo consigo relativos avanços
-- Interpretação Contratual 271
270 Felipe Kirchner ·
Aproximando-se dos vetores gadamerianos, tem-se que também
Embora este estudo não comp01te uma análise mais aprofunda- neste paradigma a hermenêutica jurídica jamais ocupa um lugar secundá-
da dos meandros da teoria sistemática, cabe referir a imprescindibilidade rio, uma vez que a interpretação tópico-sistemática, em última analise, é
tanto da interpenetração e complementação mútua dos pensamentos sis- atividade "não exterior ao objeto de sua apreensão" 936 , sendo capaz de
temático e tópico, quanto da quantificação da inseparabilidade das nor- engendrar as multifacetadas características do sistema frente ao inarredá-
mas no plano hennenêutico 932 • Como defende Judith Martins-Costa, "o vel desenvolvimento histórico, social e cultural.
raciocínio tópico é de valia, porque possibilita situar os problemas em Tecidas estas breves considerações, cabe adentrar na análise das
aberto a partir de uma multiplicidade de perspectivas", sendo que "o características do sistema jurídico, as quais interessam à tarefa de concre-
raciocínio jurídico não se desenvolve nem de uma forma 'puramente' tização da relação contratual por criarem pontes permissivas do diálogo
tópica, nem 'puramente' sistemático-dedutiva" 933 • Nesse contexto, Nor- entre os níveis de autonomia e heteronomia.
berto Bobbio assim se posiciona sobre a interpretação sistemática: De início, cabe ponderar sobre a unidade interna do sistema,
(a interpretação sistemática) tira os seus argumentos do pressuposto pois tamanha é a sua importância para a dogmática jurídica e outros ra-
de que as normas de um ordenamento, ou mais exatamente, de uma mos do pensamento científico que Miguel Reale chega a referir que "não
parte do ordenamento (. ..) constituam uma totalidade ordenada (. ..), existe ciência sem certa unidade sistemática, isto é, sem entrosamento
e, portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente lógico entre as suas partes componentes. O direito, por exemplo, como
integrar uma norma deficiente recorrendo ao chamado "espírito do
sistema", 111esmo indo conh·a aquilo que resultaria de uma inte,preta- experiência humana, como fato social, (...) passou a ser objeto de ciência
ção meramente litera/934 • tão-somente (...) quando adquiriu unidade sistemática"937 • No mesmo
sentido o magistério de Norberto Bobbio, para quem "a complexidade do
Cumpre colacionar, ainda, o entendimento de Juarez Freitas: ordenamento (...) não exclui sua unidade. Não poderíamos falar de orde-
namento jurídico se não o tivéssemos considerado algo de unitário" 938 •
A inte,pretação sistemática deve ser entendida como uma operação
que consiste em ah·ibuir, topica111ente, a melhor significação, denh·e
Além de referir que "a ideia de sistema significa o desabrochar de uma
várias possíveis, aos princípios, às normas esh·itas (ou regras) e aos unidade numa diversidade, que desse modo se reconhece como algo coe-
valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o so do ponto de vista do sentido" 939 , Karl Larenz assim se posiciona, fa-
alcance e superando antinomias em sentido a111plo, tendo e111 vista zendo menção ao movimento circular da interpretação jurídica:
be111 solucionar os casos sob apreciação 935 •
A unidade do siste111a repousa na irredutível relação de todos os ele-
mentos constitutivos com esse cenh·o fundado em si próprio (co1110 a
032 No julgamento da AC 70024048456 (14ª Câmara CíveL TJRS, Reiª. Des". Isabel de deste último repousa nos elementos constitutivos, que se definem, jus-
Borba Lucas, j. em 12.06.2008) o TJRS concluiu que as "disposições legais relacio- tamente, pela posição que ocupam em face dele). Trata-se, portanto,
nadas com os direitos constitucional, obrigacional e de proteção às relações de con- de algo comparável a 11111 círculo, ao passo que, ao invés, o sistema de
sumo (. ..) devem ser inte,pretadas de forma sistemática"( ... ) "não me parece correta conceitos que se deter111ina pelos princípios da lógica formal se asse-
a aplicação pura e simples dessa regra especial, sem o seu conji·onto e inte,pretação melha, digamos, a uma pirâmide940 •
sistemática com os princípios constitucionais, de direito obrigacional e de proteção
ao consumidor, mormente porque ao Jui= cumpre interpretar e aplicar de forma inte- 936
grada as normas legais vigentes, assegurando a ampla defesa, do contraditório e o FREITAS, 2002, p. 82.
937
devido processo legal". REALE, 2002, p. 63.
938
933 MARTINS-COSTA, 2000, p. 80 e 370-371. Viehweg, instigado pelo pensamento BOBBIO, 1997, p. 48.
939
de Vico, elabora a técnica de pensamento tópico que se funda, inicialmente, nas LARENZ, 1989, p. 20.
noções de topai (lugar ou senso comum) e endoxa (entendimento dos mais sá- 140 LARENZ. 1989. p. 20. Interessante a observação de Judith Martins-Costa sobre o
bios), ou seja, em pontos de vista considerados relevantes e consensualmente binôruio fonuado pela unidade e a existência de um núcleo fundamental no ordena-
aceitos, que nesta condição servem para solucionar os raciocinios que são estrutu- mento: "Esta unidade na diversidade pode-se expressar, contudo, de duas maneiras
rados a partir do próprio problema trazido ao intérprete (MARTINS-COSTA, distintas: 011 como um círculo, 110 qual os elementos constitutivos do sistema se agre-
2000, p. 356-360). gam em torno de um centro, repousando a unidade do sistema na irrt;dutível relação
934 BOBBIO, 1997, p. 76. de todos os elementos constitutivos com esse centro fundado em si próprio ou como
935 FREITAS, 2002, p. 80.
Inte1pretação Contratual 273

272 Felipe Kirchner ·


não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais
Somente a vocação do sistema para a unidade941 é que pennite forma um sistema normativo" 946 .
ao mesmo legitimar-se como tal942 , e é unicAan~ente com ~ reco~ec~n:ento Conforme esta abordagem hermenêutica, o elemento normativo
de que há uma unidade no plano hermeneuti~o ~ntre s1stem~ Jund1co e (nonna jurídica, contrato ou disposição contratual) só se esclarece na
contrato que se alcança a real condição deste mstituto como mstrumento totalidade do Nomos Jurídico, pennanecendo obscuro e ininteligível
normativo e coativo. Como salienta Miguel Reale, "é no contrato(..) que quando analisado à parte dos demais elementos nonnativos que compõem
se impõe com mais razão e força o reconhecimento da natureza unitária a situação objetiva complexa, por mais claro que seja o seu enunciado,
. 'dºzco ,,943 .
e congruente d o ordenamento 1urz donde infere-se que qualquer exegese abarca, mesmo que indiretamente,
No plano prático, a noção de unidade _deság~~ no ent~ndi~e~to uma aplicação e quantificação do Direito em sua totalidade 947 •
uno que o operador deve possuir em face da ime~si_dao de dispo~iç~es Outra importantíssima característica do sistema, já integrada ao
com que atua cotidianamente. Nesse contexto, a atividade hennene~tica senso comum dos operadores jurídicos pela própria escola positivista948 ,
por ele promovida não pode recair na an~lise isolada de nenhuma ~ispo- diz com a existência de uma ordem hierárquica intema949 • Como bem
sição normativa (legal ou contratual)_, p01s deve captar a complexa mter- leciona Bobbio, "devido à presença, num ordenamento jurídico, de nor-
.....

relação que os textos positivos guardam uns com os outros, o que se de- mas superiores e inferiores, ele (sistema) tem uma estrutura hierárqui-
nomina no plano da interpretação legal de inseparabilidade das normas, ca."950 Mister se faz salientar que este.esquema de divisão diz com a in-
noção que, no plano da hermenêutica contratual, deve s_e~ alargada p~ra o ter-relação da diretrizes normativas in concreto, não havendo uma hierar-
que se pode denominar de insepara~ilidade dC: normatzv1da_1e das d1spo- quia preestabelecida que dispense o interpretar do operador, pois como
sições jurídicas (legais ou contratuais). Tambell1: por ~st~ vies se percebe bem refere Juarez Freitas, "o a priori existe no sentido de pré-
que a sistematicidade d~ ~terpre~aç~o se relaciona mtlma~ent,e com~a compreensão, mas não suprime a indeterminação garantidora da liber-
ideia do círculo hermeneutico, prmcipalmente no que respeita a relaçao dade do intérprete para hierarquizar, sob pena de não compreender. " 951
parte-todo-parte. É a partir deste aspecto que a doutrina majoritária entende que a
Vislumbrando o plano da heteronomia, Karl Larenz refere que influência do sistema jurídico no campo da hennenêutica contratual se
as disposições "não estão desligadas umas das outras, mas estão numa restringe à imposição de limites ao seu objeto principal, que é a autono-
conexão multímoda uma com as outras"944 • Canaris, por sua vez, eviden- mia das partes, pois é inequívoco que o contrato está submetido a deter-
cia que "só a ordenação sistemática permite entender a norma questio~ minados ditames legais de natureza imperativa. No entanto, a correição
nada não apenas como fenômeno isolado, ma_s c?mo parte ~e u!~1 to- desta premissa não invalida a possibilidade de que a relação entre os pla-
do"945. Bobbio põe em relevo o fato de que as diretnzes nonnatlvas mm- nos da heteronomia e autonomia evolua para uma fo1ma verdadeiramente
ca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com dialógica, onde as pontes entre as esferas normativas se bilateralizam em
relações particulares entre si(..,) sendo evidente que uma norma jurídica vias de mão dupla, nos tennos defendidos neste estudo.
Uma outra característica, que se assemelha em muito com a
uma pirâmide, na qual a unidade vem estruturada atrm1és do conceito geral absh·ato, acima externada, é a da ordenação do sistema jurídico, assim salientada
depurado de tudo o que exista em particular" (MARTINS-COSTA, 2000, p. 220). por Canaris: "no que respeita (. ..) à ordenação, pretende-se, com ela -
941 Judith Martins-Costa ainda dispõe que "'a noção de sistema implica também a de quando se recorra a uma formulação muito geral, para evitar qualquer
unidade (. ..) a qual pode ser vista, sob o aspecto negativo, pelo viés da não- restrição precipitada - exprimir um estado de coisas intrínseco racio-
identidade 011 diferenciação com o que está fora do co1if1111to, os elementos externos,
circundantes do sistema" (MARTINS-COSTA, 2000, p. 41).
942 A visão do ordenamento como uma pluralidade indefinida de sistemas, cuja relação 946
BOBBIO, 1997, p. 19-21.
recíproca não seria estritamente comprovável, como queria Viehweg, somente condu- 947
ziria a conclusões vazias de conteúdo racional (FREITAS, 2002, p. 154). De fato, so- FREITAS, 2002, p. 70.
948
mente com o reconhecimento da unidade e da existência de um núcleo fundamental KELSEN, 1998, p. 247.
9
do ordenamento tem-se perfeitamente consubstanciada a ideia de sistema. 9-1 LARENZ, 1989, p. 579.
950
Q4 3 REALE, 1997b, p. 3. BOBBIO, 1997, p. 49.
951
944 LARENZ, 1989, p. 531. FREITAS, 2002, p. 71.
945 CANARIS, 1989, p. 156.
hlterpretação Contratual 275
274 Felipe Kirchner .
Assim entendido, este verdadeiro pressuposto lógico do siste-
na/mente apreensível, isto é, fundado na realidade" 952 • Bobbio também 1na956 pode ser analisado por três ângulos distintos: (1) sob o ponto de
defende que "o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de vista da regulação (legal ou contratual), que admite a recepção de novas
normas"953 . diretrizes pela norrnatização positiva; (2) sob o prisma do conhecimento
Estas lições aproximam o aspecto hierárquico de um ideal de científico, onde se demonstra a incompletude do próprio saber dogmáti-
pensamento concreto e situado, sendo imperioso referir que o contrato co;957 (3) por fim, por meio da natureza epistemológica do Direito, deri-
está ordenado com/pelas diretrizes legais, aspecto que não pode ser vada da indetenninação (intencional ou não) dos enunciados semânticos
suprimido da atividade interpretativa. Adernais, as noções_ de hierar- em rnatériajurídica958 .
quia e ordenação servem. à interpretação c?ntratual na medida. em. que No que tange aos contratos, é o caráter aberto do sistema que
também as normas da declaração negocial se encontram. dispostas permite o amálgama normativo entre sistema jurídico e relação obriga-
hierarquicamente, com a prevalência técnica e teleológica de algumas cional complexa regulada pelo contrato. Como é facilmente perceptível
sobre outras. pela análise das peculiaridades da característica ora em exame, a con-
Talvez a principal característica permissiva do diálogo aqui cepção sistemática permite um significativo incremento do diálogo, no
proposto entre os planos da autonomia e da heteronomia seja a 9.ue .º ?e plano hermenêutico, do entrecruzar da autonomia com a heteronornia.
Se o contrato deve respeito e é complementado hermeneuticamente
pensamento sistemático concebe o ordenamento corno uma mstancta
aberta e dialógica, e não como um sistema fechado e completo corno pelos vetores materiais e axiológicos· presentes no ordenamento, resta
imaginava o pensamento dedutivo-normativista, corno bem refere Ale- por completar esse mesmo ordenamento, na medida em que desenvolve
e concretiza os vetores constitucionais da autodeterminação da pessoa e
xandre Pasqualini:
do espaço de liberdade de atuação econômica do indivíduo. Nesses ter-
Felizmente, na seara jurídica, a ideia de sistema combina com a de mos, embora o contrato mantenha sua independência funcional e onto-
abertura. É a junção das duas que faz e refaz a unidade do fenômeno lógica com relação ao ordenamento, não há sentido em considerá-lo, no
jurídico, uma vez que o Direito se constitui, ao mesmo tempo, em um plano exegético, corno sistema autônomo e impenneável ao diálogo
lugar de preservação e de inovação. O sistema (.,.) é qpenas uma me-
com o plano da heteronomia.
tade, sendo a abertura (..,) a outra metade do Direito 9 ) 4 •

Contudo, a noção de abertura encontra limites formais e materiais, 956 Judith Martins-Costa aduz que "sistemati=ação e assistemati=ação constituem, assim,
ontológicos e racionais. Judith Martins-Costa observa que "não se pode a polaridade dialética na qual se desenvolve o sistema aberto, eis que tende11te à
permanente ressistemati=ação'' (MARTINS-COSTA. 2000. p. 377).
entender a expressão sistema aberto em sua literalidade. Um sistema 57
g "A abertura como incompleitude do conhecimento científico acresce assim a abertura
completamente aberto é um não-sistema, uma contradictio in term.inis. como modificabilidade da própria ordem jurídica. Ambas as formas de abertura são
Devemos, pois, entender por sistema aberto um sistema que se auto- essencialmente próprias do sistema jurídico e 11ada seria mais errado do que utili=ar
,.,, . de mod o apenas re lat.zvo ,,955 .
reJerencza a abertura do sistema como objeção contra o significado da formação do sistema na
Ciência do Direito ou, até, caracteri=ar 11111 sistema aberto como uma contradição em
si." E dentro da ótica das espécies de sistema que compõem a sua doutrina. segue Ca-
952 CANARIS, 1989, p. 12. naris argumentando que o "sistema não é fechado, mas antes aberto. Isto vale tanto
953 BOBBIO, 1997, p. 21. para o sistema de proposições doutrinárias ou 'sistema científico', como para o pró-
g5 4 PASQUALINI, 1999, p. 106. Larenz comunga desta concepção: "O sistema interno prio sistema da ordem jurídica, o 'sistema objetivo'. A propósito do primeiro, a aber-
não é(..,) 11111 sistema fechado em si, mas 11111 sistema aberto, 110 sentido de que são tura significa a incompletude do conhecimento científico, e a propósito do último, a
possíveis, tanto mutações na espécie de jogo concertado dos princípios, do seu al- mutabilidade dos valoresjurídicosfimdamentais" (CANARIS, 1989, 109 e 281).
cance e limitação recíproca, como também a descoberta de novos princípios; seja QSS FREITAS. 2002, p. 50. Transcendendo a transfonnaç,ão pela ação do legislador. o
em virtude de alterações da legislação, seja em virtude de novos conhecimentos da sistema é aberto também pela possibilidade da (re)descoberta de outros princípios que
ciência do Direito ou modificações na jurisprudência. A ra=ão última disso é, para se sucedem no desenvolvimento histórico de uma sociedade, muito embora ainda pos-
falar como Canaris, 'que o sistema, como unidade de sentido de uma ordem jurídi- sua, internamente, fundamentos fixos (v.g.: as cláusi.Jlas contratuais ou as cláusulas
ca concreta, comunga do modo de ser desta, quer di=er, assim como não é estático, pétreas constitucionais) que orientam e garantem a manutenção da unidade do orde-
mas dinâmico, apresenta, portanto, a estrutura da historicidade'" (LARENZ, 1989, nan1ento e o resguardo do binômio estabilidade (segurança jurídica)·e mutabilidade
p. 592). (desenvolvimento normativo) (FREITAS, 2002. p. 59).
g5 5 MARTINS-COSTA, 2000, p. 43.
Intetpretação Contratual 277
276 Felipe Kirchner ·
O direito abre para sistematizar e sistematiza para abrir. Tudo se
Em sintonia com a noção de incompletude da atividade henne- passa como se a ordem jurídica, e111 cada instância e instante, pren-
desse e libertasse o inté1prete: a tarefa do sistema é i111pedir que a
nêutica, o pensamento sistemático defende, corno corolário lógico da abertura se transfor111e 1111111 vórtice de indeter111inação e o da abertu-
ideia de abertura, que o Direito (e suas regulações normativas particula- ra, por sua vez, obstar que o sistema se converta num buraco negro
res) adquire as características de ser um sistema inacabado e inacabável, autofágico963 •
potencialmente contraditório normativo e axiologicamente959, considera-·
ção que se mostra correta também quando analisado o prisma da interpre- Sendo o ordenamento de natureza valorativa, tem-se que inter-
tação contratual. Canaris assim se posiciona: namente o mesmo contém uma ordenação axiológica ou teleológica964 , já
que constituído de valores voltados para um determinado fim. Sobre esta
(. .. ) a formulação do sistema jurídico - possivelmente em oposição a característica, Canaris assim se pronuncia:
outras Ciências - nunca pode chegar ao fim, antes sendo por essên-
cia, u111 processo infindável; aí reside também u111 certo sentido prá- (...) o significado do sistema para a obtenção do Direito torna-se evi-
tico, derivado do sistema ser aberto. (. .. ) De fato a formação de um dente quando se subscreva a opinião, aqui defendida, do sistema "in-
·.•·"
..... sistema co111pleto numa determinada orde111 jurídica permanece terno" de 11111a ordem jurídica como axiológico ou teleológico; o ar-
sempre um objetivo não totalmente alcançado. Opõe-se-lhe, invenci- gumento sistemático é, então, apenas uma forma especial de fi111da-
velmente, a natureza do Direito. (...) Uma determinada ordem jurí- 111entação teleológica e, como tal, deve, desde logo, ser admissível e
dica positiva não é 11111a "ratio scripta", 111as sim 11111 conjunto histo- relevante. Pode-se, nessa linha,falar de u111a "capacidade de deriva-
ricamente formado 960• ção teleológica ou valorativa" do sistema, desde que se enfoque que a
"derivação" não se deve entender no sentido de dedução lógica 111as
A ideia de abertura sistemática (e hermenêutica) fornece ao sim no de ordenação valorativa965 •
Nomos Jurídico, ainda, as condições ideais, ao menos do ponto de vista
teórico, para que o mesmo mantenha sua estabilidade. A capacidade para Deste modo, quando o intérprete realiza uma hierarquização ou
abarcar novos valores histórico-culturais pennite ao sistema jurídico ordenação sistemática, de certa forma está, mesmo que por via reflexa,
acompanhar o inevitável desenvolvimento por que passam as sociedades fazendo uma afinnação sobre o conteúdo axiológico do Nomos Jurídico
no revolver dos tempos961 , noção que se afina com a historicidade da interpretado. Assim, o jurista acaba por lidar com os valores e, em espe-
compreensão gadameriana e com a interpretação histórico-evolutiva pre- cial, com os princípios gerais da ordem jurídica, os quais sempre estão e
sente no pensamento metodológico de Emilio Betti. Sobre o tema, cabe sempre estarão por detrás de qualquer interpretação, mesmo nas situações
mencionar a lição de Juarez Freitas: que se situam no plano da autonomia966 • Aduz Miguel Reale que
(. ..) não se deve supor 11111 11111ndo jurídico acabado fora do pensamen- todo contrato deve ser visto co1110 uma unidade normativa resul-
to, tampouco pretender constituir oufor111ular um conceito de sistema tante da concreta valoração dos fatos feita pelos contraentes, mo-
fechado à base de definições alheias ao mundo dos valores 111ateriais tivo pelo qual a inte,pretação sistemática e teleológica se impõe
e históricos. O direito positivo é aberto, vale dizer, a ideia de 11111 su- de maneira irrefi·agável. (...) Nessa ordem de ideias, insisto em
posto cor/junto auto-suficiente de normas não apresenta a menor afirmar que o elemento teleológico é o núcleo por excelência da
plausibilidade, s<efa no plano teórico, seja no plano empírico962 • exegese contratual967 •

Cumpre ainda referir, com relação à atuação da característica da 63


Q PASQUALINt 1999., p. 69.
abertura sobre o ordenamento, a lição de Alexandre Pasqualini: 9
6-1 CANA.RIS, 1989, p. 66. A jurisprudência tem decidido que os "rigorismos formais
extremos e exigências inúteis não podem condu::ir a inte,pretação contrária à finali-
959
FREITAS, 2002, p. 47 e 49. dade da let' (REsp 797179/MT, lª Turma, STJ ,Minª. Denise Armda, j. em
%o CANA.RIS, 1989, p. 111 e 199. 19.10.2006; AI 70023136617, 22ª Câmara Cível. TJRS. Reiª. Desª. Mara Larsen Che-
961 chi,j. em 29.05.2008).
"História e Direito são uma obra abe11a, c1/ja significação co111J]o11a em si o poder de 965 CANA.RIS, 1989, p. 152-153.
ulh·apassar. Não há como erguer o ordenamento legal acima do flw;o sem fim da História, 966
exatamente porque não nos parece possível, no sistema, sublimar o acontecer da h·adição" CANA.RIS, 1989, p. 154. , .
%7 REALE, 1997b, p. 3 e 5. No mesmo sentido: REALE, 1997a, p. 184. ·
(PASQUALINI, 1999, p. 113). No mesmo sentido, vide: LARENZ, 1989, p. 200.
Q
62 FREITAS, 2002, p. 32.
Interpretação Contratual 279
278 Felipe Kirchner ·
mas. Como quer Larenz, a "missão da interpretação (...) é evitar a con-
Inexistindo hierarquia interna a priori, e sendo o sistema um to- tradição entre normas, responder às questões sobre concurso de normas
do aberto sujeito aos desenvolvimentos socioculturais ?ª
ines~otável e concurso de regulações e delimitar, uma face às outras, as esferas de
t01Tente histórica - o que se afina com o universo gadamenano da 1:1com- regulação, sempre que tal seja exigível"972 • Este desígnio da atividade
pletude da atividade hem1enêutica e da historicidade da compreensa_o -, a hennenêutica não causa maiores surpresas, pois expressamente inserta na
exegese (também contratual) deve necessariamente resguardar a unidade, própria conceituação de sistema anteriormente delineada.
em meio à multiplicidade axiológica, na construção e na reconstrnção Por fim, cabe aludir que os limites à utilização do pensamento
968
hermenêutica do Direito e do elemento nonnativo interpretado . Assim, sistemático se encontram situados nos marcos da teoria gadameriana. O
não obstante a necessária utilização do pensamento tópico, é com o uso primeiro diz com a necessidade de o sujeito cognoscente deixar a coisa
do pensamento sistemático que se torna possível abarcar a co~nple~i?ad~ falar e com a existência de um sentido literal possível da nonna analisa-
hennenêutica do fenômeno contratual. Somente esta apreensao teonca e da973. O segundo resulta da natureza teleológica dos elementos nonnati-
capaz de resguardar todas as peculiaridades da nonnatividade intrínseca vos que compõem a situação objetiva complexa974 . Uma terceira baliza
na concretização da situação objetiva complexa que encampa o ato de
que merece ser mencionada diz com os limites à abertura e com a exis-
·..• autonomia representado pelo contrato e º. sistema, jurídico que l~e _con-
;

forma e concede força normativa, o que diz, tambem, com a opos1çao de tência de lacunas e contradições nonnativas e axiológicas no sistema, do
que resulta que este não apresenta sempre respostas prontas ou potenciais
limites à forma de raciocinar por concreção969 .
à resolução do caso em que deve ser aplicado 975 •
O processo sistemático, que atribui ao operador a necessidade
de identificação e materialização dos princípios e valores norteadores da 912 LARENZ. 1989. p. 376-377.
situação objetiva complexa, também obriga o intérprete, no âmbito da 973 LARENZ. 1989. p. 387-388. Analisando o plano da heteronomia. Larenz refere duas
interpretação que encampa a aplicação, dar concretude_ aos_elem~n!os possibilidades de desenvolvimento dos elementos nonnativos. cujo raciocínio importa
axiológicos e teleológicos que confonnam essa mesma s1tuaçao obJet1va ao presente estudo. O primeiro seria um desenvolvimento imanente. pois incide no
complexa (sejam oriundos do ordenamento e/ou do at~ de auto_nomta dos plano originário da teleologia da disposição nomiativa, quando existe uma lacmia. O
contraentes) tarefa essencial ao resguardo e promoçao da umdade e da segundo seria o desenvolvimento superador. que está além do limite literal. mas den-
consistência' do ordenamento e da sua força normativa970 . O intérprete tro do quadro dos elementos axiológicos diretivos da disposição nonnativa (que no
caso dos contratos se encontram na situação objetiva complexa), sendo aplicável
deve respeito não somente aos valores direta ou indiretamente contidos quando evidenciada uma questão jurídica que não pode ser solucionada pelo desen-
nos elementos normativos, mas também às finalidades que por eles são volvimento imanente {LARENZ, 1989, p. 444, 517-518).
(mesmo que programaticamente) instituídas. Esta observância deve ser 974 Canaris refere que no procedimento interpretativo o s1tjeito deve levar em conta a
perfectibilizada em um processo exegético global, qu_e embora sem~r_e necessidade de "11111 controlo teleológico - pelo menos implícito - quanto a saber se a
esteja vetorialmente polarizado pelo ato de autonomia, deve perqmm premissa maior 011 o conceito mais vasto tomados ao sistema com1111ica111 plena e
acertadamente o conteúdo valorativo significado" (CANARIS, 1989. p. 187). Sendo
sobre a vontade do sistema (também constitucional). o instrumento contratual um microssistema nom1ativo (que não se encontra apartado
Cabe referir, ainda, que a concepção sistemática impõe a obri- do ordenamento). a lição se aplica também para a análise restrita da declaração, onde
gatoriedade do hermeneuta evitar, tanto quanto possível, as antinomias o sentido de cada disposição nonnativa deve ser buscado pelo sujeito cognoscente, le-
entre nonnas estatais e disposições conh·atuais971 , e destas consigo mes- vando em consideração os elementos teleológicos e axiológicos do caso concreto (cir-
cunstâncias) e do sistema jurídico. Este limite diz com a busca pela finalidade com
que o elemento nonnativo foi editado, bem como com a carga valorativa implícita no
g 68 FREITAS, 2002, p. 71-72. mesmo (LARENZ, 1989. p. 230). Descobertos estes dois aspectos, a interpretação ja-
9 6g Juarez Freitas radicaliza o potencial do paradigma ora tratado quando afirma que mais pode desconsiderá-los.
75
"a inte1pretação jurídica é sistemática ou não é inte1pretação" (FREITAS, 2002, q Do mesmo modo que deve ser evitada a falácia de que o sistema é sempre dado, de
p. 174). antemão. como pronto e acabado, não se deve ter, a p,:iori. a premissa de que o mes-
g 7o FREITAS, 2002, p. 158. mo exige sempre uma detemúnada solução. pois, como refere Canaris, "o que pareça
911 A necessidade de superação das antinomias no ca1~po da in~erpreta~ão contra~~l é (.. .) como conh·ário ao sistema, pode, pouco mais tarde, surgir ulh·apassado. (..) Pa-
mencionada por Francesco Viola e Giuseppe Zaccana, os quais menc1011am a utiltza- ra além (..) do 'controlo teleológico', cada argumento sistemático coloca-se assim
ção do princípio da coerência (VIOLA. ZACCARIA, 1999, p. 184). Sobre o tema, ainda sob a da possibilidade de um desenvolvimento ou modificdção do sistema"
remete-se para a seguinte obra: PECZENIK. Aleksander. On Law and Reasou. Dor- (CANARlS, 1989, p. 189-190).
drecht: Kluwer Academic Publishers, 1989.
CONCLUSÃO

Finalizando o presente estudo, que investigou as bases sob as


quais surge a compreensão do contrato e os caminhos necessários à efeti-
vação da atividade interpretativa (com destaque para a imprescindibilida-
de do raciocinar por concreção ), será feita uma síntese das considerações
abordadas. A opção por uma apresentação pormenorizada atende a crité-
rios de ordem didática, visando a recordar o que foi dito e clarear possí-
veis obscuridades, expondo os temas tratados de forma mais direta e linear,
à parte das discussões teóricas e dogmáticas que anterionnente foram
desenvolvidas976 •
( 1) A atividade hennenêutica encontra-se na base de toda expe-
riência humana, sendo a própria realidade o resultado de uma interpreta-
ção. O sujeito sempre interpreta, pois é a atividade hermenêutica que
produz toda e qualquer co1npreensão. No campo da exegese contratual, a
g76 Para melhor situar o leitor, cabe explicitar as partes do estudo onde se encontram
inseridas as discussões teóricas de cada um dos tópicos que compõem esta sú1tese
conclusiva: "O objeto e os limites da atividade hennenêutica" (1-4): "A delimitação
do horizonte hermenêutico'· (5-6): "O caráter criativo, construtivo e produtivo da ati-
vidade hermenêutica'' (7-8): "A incompletude da atividade hennenêutica" (9-16): "O
caráter critico da atividade hermenêutica" (17-18); "As particularidades da hermenêu-
tica contratual" (19); "O negócio juridico e seu conteúdo" (20-22); "A autonomia e
sua relevância hem1enêutica" (23-26); "O procedin1ento, os métodos e as regras de in-
terpretação" (27-32); "A fixação do objeto e da dimensão funcional da hermenêutica
contratual" (33-37): "Os pressupostos gerais sobre o raciocú1io por concreção" (38-
44): ··A necessária imposição de limites ao raciocú1io por concreção'' (45-47): "A in-
fluência do raciocmio por concreção na força nomiativa do contrato" (48-49): "O
ponto de relevância hermenêutica e a extensão dos meios interpretativos'· (50-51): "A
naturezajuridica das circunstâncias do caso e da proporcionalidade" (52-53); "O pos-
tulado normativo das circunstâncias do caso" (54-60): "Os elementos que compõem o
postulado das circunstâncias do caso" (61-63); "As premissas gerais da concreção
normativa da interpretação contratual" (64-67); "O postulado nomiativo da proporciona-
lidade" (68-71 ); "Os pressupostos da sistematicidade hennenêutica" (72-77). Mister se
faz salientar, ainda, que apenas o tópico "A jurisp~dência e o paradigma da Súmula
Vinculante n. 01, do Supremo Tribunal Federal", não se encontra representado nesta
smtese conclusiva, eis que no mesmo consta apenas o embasamento· jurisprudencial
de parte ~as teses mencionadas nesta conclusão.
h1terpretação Contratual 283
282 Felipe Kirchner -
(6) A dimensão da aplicação é, de certo modo, integrativa, pois
ampliação do objeto da atividade hen11enêutica permite alcançar a cone- resulta na inserção de uma nova perspectiva no horizonte do objeto (atua-
xão existente entre o instrumento negocial e os elementos fáticos e nor- lização do elemento non11ativo ).
mativos que o constituem. (7) A hermenêutica é uma atividade criativa, construtiva e pro-
(2) O brocardo in claris cessat (11011 fit) inte,pretatio somente dutiva, nunca reprodutiva, receptiva ou declaratória. O contrato não tem
possui validade se entendido que as regras claras dispensam (apenas) o um significado independente do evento que é compreendê-lo e a função
esforço inte,pretativo, pois a atividade hermenêutica sempre ocorre, do intérprete não é a de reviver a intenção dos contratantes quando do
mesmo perante um objeto de fácil compreensão. momento genético, mas a de construir sentido a partir de seu horizonte e
(3) Na atividade hermenêutica há uma pertença do intérprete ao da situação objetiva complexa, sempre respeitando a autonomia das par-
objeto a ser conhecido (constante atuar da coisa sobre o sujeito), sendo tes. No entanto, o reconhecimento da essência criativa da interpretação
tarefa primordial daquele não pen11itir que suas co~cepçõ_es prévias ~ej~m não conduz ao entendimento de que exista uma total liberdade ao intér-
impostas perante a coisa e a sobrepujem fora da circularidade hermeneu- prete, havendo significados mínimos incorporados à coisa e à própria
....... tica (deixar a coisa falar). O compreender exige uma abe1tura para a alte- linguagem, os quais preexistem ao processo interpretativo individual.
1i.dade, de tal modo que o sujeito cognoscente deve estar disposto a d~ixar (8) O caráter criativo da atividade hen11enêutica remete à au-
valer algo contra si, ainda que não haja nada ou ninguém que assnn o sência de separação entre sujeito e objeto, cuja complementaridade es-
exija, além de seu rigor ou consciência científica (o texto não é um pre- sencial deriva da capacidade constitutiva nomotética do espírito do intér-
texto para que o intérprete fale aquilo que lhe convém). Este pressuposto prete, que possui uma faculdade outorgadora de sentido ao real. Inexiste
condicionante não limita a atividade hen11enêutica, mas a expande para um distanciamento dos polos da compreensão no contexto da historicida-
além do horizonte hen11enêutico do intérprete (alteridade presente na de do compreender (intérprete e contrato estão mergulhados numa certa
fusão de horizontes), não indicando, portanto, uma prevalência hierárqui- tradição), o que implica dimensionar tanto a fonna como o sujeito estru-
ca da coisa e nem ilidindo a condição do sujeito como elemento produti- tura o objeto, quanto a medida em que o objeto acaba estruturando o su-
vo da atividade hen11enêutica. jeito e seu projeto de compreensão. A subjetividade não é obstáculo para
(4) No âmbito da interpretação dos contratos, a força vinculante a compreensão, mas uma condição indispensável de sua possibilidade.
do objeto diz com o primado da declaração negocial, pois o sentido literal (9) Ao reconhecer a finitude do ser humano, a atividade henne-
possível do texto contratual surge como base semântica possível de signi- nêutica deve admitir o caráter inconcluso de toda experiência e a inexis-
ficação, detendo dupla missão: é ponto de partida para a indagação do tência de um esforço totalizante de compreensão. Nenhuma interpretação,
sentido e traça, ao mesmo tempo, os limites da atividade interpretativa. por mais válida e convincente que seja, pode-se impor como definitiva. A
Contudo, esta dimensão não se confunde com a pretensão metodológica finitude irrevogável do ser humano (característica produtiva por pennitir
da interpretação literal, já que os marcos do sentido linguísticamente p~s- o alcance da alteridade) tem como derivativo a finitude irrevogável da sua
sível são alcançados pela dimensão intertextual da declaração negocial compreensão.
(sistematicidade interna e externa) e pela concreção do contexto fático e ( 1O) Corno a busca pela verdade é o objetivo do procedimento
non11ativo em que se insere o contrato a ser compreendido. hermenêutico, deve ser aceita a existência de uma realidade fática (objeto
(5) A atividade hermenêutica é um processo unitário envolven- de interpretação) e uma realidade hennenêutica (resultado da interpreta-
do compreensão, interpretação e aplicação. Esta conclusão indica que a ção). Quando se fala da inexistência de uma verdade está-se falando da
exegese não se limita a interpretar os textos normativos, mas também impossibilidade de se alcançar liermeneuticarnente esta verdade, mas não
compreender os fatos relevantes ao ato de aplicação, o que denota a im- se está negando, necessati.amente, a existência da mesma. O fato do pro-
prescindibilidade do raciocinar por concreção. Ademais, a inserção da duto da atividade interpretativa (realidade he1111enêutica) conseguir (ou
aplicação no iter hermenêutico pe1111ite que essa atividade alcance a con- não) atingir a realidade fática não é uma questão que diga respeito a sua
fon11ação de existência, validade e eficácia do instrumento contratual. existência, já que ela existe independentemente da (in)cornpreensão pelo
intérprete. Contudo, embora o objeto exista independentein~nte do sujei-
to, ele não tem sentido (hennenêutico) fora da relação com este sujeito.
Interpretação Contratual 285
284 Felipe Kirchner
(14) Todos os fenômenos objetos da hennenêutica apresentam e
Nesses tennos, pode-se dizer que os direitos e obrigações que emer~e~11 do representam um elemento de linguagem, e é esta a dimensão que deter-
pacto não são criados pela interpretação, mas dependem d~ss~ ~t1v1da~e mina tanto a coisa quanto a ação hermenêutica. Não existe nada fora da
para que alcancem sentido (o contrato existe enquanto ente JU:1d~co auto- experiência de mundo que ocorre na linguagem (o objeto só se toma algo
nomo, mas não tem sentido algum fora da circularidade henneneutlca). para o intérprete dentro da linguagem), a qual não se constitui em simples
(11) A pretensão de alcançar um sentido absolutamente verda- instrumento da compreensão ou objeto próprio de análise, mas abrange
deiro com a atividade exegética é utópica, pois ao se perguntar pela ver- tudo o que possa chegar a ser objeto de interpretação.
dade o intérprete sempre se encontra preso a sua finitude e situação her- ( 15) A pretensão de universalidade da atividade hermenêutica
menêutica (intérprete jamais interpela o ser, mas apenas o ser-110-mun;fo). se concretiza por meio da linguagem, porquanto é ela que possibilita a
Assim, à interpretação contratual interessa uma pretensão de c01Teição articulação do pensamento em toda experiência interhumana. Compmti-
em relação à detenninada situação hennenêutica, a partir da qu~l se pode lhar uma linguagem significa participar de uma tradição que transmite
avaliar a compreensão corno falsa ou verdadeira (caneta ou mco?·eta, uma detenninada visão e pré-compreensão de mundo (realidade).
..... , ...... relativamente a uma terminologia metodológica). Não se pode aceitar a ( 16) A interpretação jurídica deve transcender o reconhecimen-
coneição de uma dupla verdade perante uma mesma sit~ção henn:nêu- to da sua dimensão linguística, aceitando o caráter essencialmente nmrn-
tica, sob pena de falecer a pretensão de universalidade da mterpretaçao. tivo com que é estruturado o universo do Direito. O Nomos Jurídico é
(12) A historicidade da compreensão (história do efeito) é prin- construído por meio de determinados processos de produção discursiva,
cípio básico e questão pennanente da atividade hennenêutica, não se nos quais o intérprete seleciona e refuta elementos ínsitos na situação
tratando de um propósito periférico que assume relevância apenas quando objetiva interpretada. O Direito constitui a realidade a partir de suas fic-
o hermeneuta pretende resolver questões determinadas (interpretação ções, privilegiando e descartando determinados dados ( que interessariam
histórica). A pe1tença à tradição não é uma qualidade restritiva, mas urna à atividade hermenêutica), o que acaba "hipotetizando" a realidade. As-
das categorias que tomam possível o conhecimento, já que o intérprete sim, a realidade é reconstruída por um detenninado discurso jurídico,
somente compreende a partir de sua situação hennenêutica ( composta por limitando as possibilidades da condição social confonne ceitas padrões, o
seu tempo e sua condição singular). A tensão entre presente e passado que é evitado com a utilização do método concretista.
não deve ser dissimulada ou superada, mas desenvolvida conscientemen- ( 17) A interpretação é um ato de decisão que constitui e cons-
te, pois com ela se desvela o seguinte paradoxo pr~dutivo_: quant~ 1:1~ior a trói a significação de um objeto. Se não há crítica sem hennenêutica,
distância da época em que o objeto foi criado, maior se~~ a poss1b1hdade tampouco há hermenêutica sem crítica, já que a necessária abertura do
de compreensão, já que aumentam os dados de consc1encia acerca das intérprete à alteridade da coisa não pressupõe nenhuma neutralidade (ou
condições de descmte de interpretações e1Tôneas. um anulamento de si mesmo), ainda mais no plano do Direito, onde não
(13) Se a historicidade da compreensão implica a reabilitação há como compreender sem se comprometer criticamente, pois todas as
da autoridade na atividade exegética, inexiste uma arbitrarie?a?e ?esta decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.
dimensão, pois, embora o resgate da tradição diga com a ex1~t~nc1a d_e (18) Embora não seja um critério próprio de interpretação, a
elos maleáveis de continuidade, não se pressupõe urna necessana c?nt~- concretização da justiça é uma meta desejável que encontra eco na di-
nuidade de sentido, sendo a apropriação e a transfom1açã? ( d~s~o~!mm- mensão crítica da atividade hermenêutic~, sendo um dos elementos pro-
dade) acepções potenciais do contínuo ( deve-se conc~der m!ehgib1h?ade pulsores da circularidade interpretativa. E da busca pela realização deste
ao descontínuo). A própria historicidade possui uma d11:1e~sao nanativa e. valor que parte o impulso para orepensar hermenêutico. A realização da
crítica (inexiste história autárquica), visto que sendo o mterprete um nar- justiça in concreto é um fator legítimo no processo de interpretação
rador seleciona e refuta elementos ínsitos na condição passada, da qual quando não desconsiderada a coisa a ser compreendida e os ideais de
ele s; distingue. Contudo, o resguardo da tradição na i1:terp1:etação ~~?i- certeza e segurança jurídica.
ca implica a quantificação hermenêutica das regras, pnnc1p10s e ~ntenos ( 19) Sendo a hennenêutica um tema unitário, cabe considerar
de decisões que se mantêm no transcurso da práxis forense ( especialmen- que os pontos de contato entre as teorias da interpretação,das leis e dos
te jurisprudencial), o que remete ao resguardo da justiça e da segurança
jurídica na atividade exegética.
Interpretação Contratual 287
286 Felipe Kirclmer
são atribuídos pelo ordenamento, mas como um instmmento coITelacio-
negócios jurídicos são mais numerosos do que as diferenças q~e as sepa- nado ao ordenamento.
ram. Contudo existem diversas especificidades relevantes da mterpreta- (22) Além do conteúdo expresso ou declarado, formado pelas
ção do contrato, a saber: ( 1) na lei, o elemento reitor da int~rpretação ~ a regras derivadas da autonomia dos contraentes, o negócio jurídico possui
literalidade da disposição nonnativa, enquanto no contr?t? e a a_utonomia; um conteúdo implícito ou não declarado (não dito do contrato), composto
(2) a hennenêutica contratual é mais complexa que a attv~dade mterpreta- pelas diretivas legais e pelas circunstâncias do caso. A reunião desta
tiva legal, uma vez que opera no entrecruzar da auton~mia com.ª Ahe~ero- substância bipartida fonna o conteúdo total ou global do negócio jurídico.
nomia; 0 contrato pode aparecer na fonna de atos da vida e de silencio? a (23) A intenção prevista no art. 112, do CC/2002, não possui
pactuação não se apre~ent~ en~ ten?o_s unifonnes p:ra todas as c~t~gonas uma dimensão individual ou subjetiva, pois diz com o intento comum
de negócios e em seu ambito e mais_ mtensa a rel~çao entre os suJe~tos d~ formado bilateralmente pelas partes conforme parâmetros de reconheci-
direitos colocados no plano de uma igualdade reciproca; (3) n_esta area ha mento objetivos, sendo mediada pela confiança e abrangendo não apenas
uma expansão das circunstâncias passíveis de serem ~onsid_eradas no as deteITninações concordes, mas também as divergências que se subor-
processo hennenêutico; (4) a principiologia e a teleologia da mteipreta- dinam ao acordo. Deste modo, a intenção não é o sentido que deriva da
, ....... ção dos contratos é diferente da hermenêutica legal (embora os metadas vontade interna de qualquer das partes que se presume conhecida ou re-
eventualmente utilizados possam ser os mesmos). conhecível pela outra, nem o sentido da declaração em coITespondência
(20) O contrato instrumentaliza o exercício da a1:to~omia priva- ao tipo contratual, mas o significado que deriva da facticidade complexa
da e possibilita o cumprimento da fimção din~mica_ do Di~eito a~ opera- do negócio jurídico.
cionalizar a circulação de bens. Enquanto o hberahsmo 01tocentlsta for- (24) O negócio jurídico deriva de um ato de autonomia a que a
mulou a teoria do negócio jurídico sob um modelo que pressupunha a ordem estatal liga o nascimento, a modificação e a extinção das relações
identificação individual dos participantes e a sobrevalorização do ato de jurídicas entre particulares por intermédio de um fenômeno de recepção.
vontade subjetiva, a reconstmção críti~a ?~erada na ~eg~nda metade do Na intersecção entre autonomia e heteronomia, deve ser quantificada
século XX substituiu a primazia do subjetivismo pela ideia de uma autor- hermeneuticamente a restrição do espaço de autonomia e liberdade contra-
regulamentação de interesses, conferindo ao ne?ó~io jurídico ,u1;1a_ di1;1~n- tual em face do movimento de funcionalização dos direitos, cabendo ao
são social a ser quantificada no plano heimeneuttco. O negocio Jundic? intérprete verificar, perante as circunstâncias do caso, onde a autonomia é
não é uma construção teórica, mas um fato social, razão pela qual os e:t:e1- liberdade (maior amplitude de ação ao indivíduo) e onde é função (restri-
tos do ato negocial devem ser buscados na facticidade das circunstâncias ção à atividade individual), análise que depende da ponderação de preceitos
do caso. O foco hermenêutico não mais se encontra no ordenamento (en- antagônicos, inclusive no que respeita aos critérios subjetivos e objetivos
quanto organismo produtor de, n~nnativid~d~), mas na realidade so~io~- de interpretação (arts. 112-113, do CC/2002), os quais se encontram em
conômica que produz a sua propna normat~vidad: no espaç_o _comumcati- uma relação de constante restrição e complementação recíprocas.
vo das relações humanas, levando em consideraçao os reqmsitos e proce- (25) A vontade não é o conteúdo do ato de autonomia, mas sua
dimentos previstos no sistema jurídico. fonte geradora. Enquanto a análise oitocentista identifica o ato de auto•
(21) O Estado Democrático de Direito não se .caracteriz_a p~la nomia como sendo o exercício pleno da liberdade individual, o paradigma
subordinação do cidadão ao Estado, mas pelo compror~:us~o, constltuc~o- hermenêutico aqui adotado indica que a pactuação implica a limitação do
nalmente garantido de realização dos interesses de ~ada _mdivid1:o 5~c10- espaço de vontade dos indivíduos envolvidos, já que cada contraente abre
nalização dos direitos pelo interesse social), o qu~ unp~ica a exist~ncia ~e mão de parte de suas pretensões ao firmar um projeto conjunto com o
um espaço irredutível ao exercícioA ~ autonomia_ pnvad?. Assim, n~o outro (adimplemento). A apreensão hermenêutica da autonomia privada
mais se justifica a oposição henneneutica entre efeitos de1:v~dos da lei e deve alcançar sua confonnação bilateral e interativa no espaço de comu-
do negócio jurídico, pois o sistema reconhece o poder c1:attvo da auto- nicação que conduz à fonnação do pacto, pois os dois poderes privados
nomia limitando-se a definir seu âmbito, requisitos de validade e normas somente são exercitáveis cooperativamente (exercício da liberdade por
de int~gração dos efeitos do ato negocial. O negócio j1:rídic~ deve. ser intermédio do outro). Assim, a autonomia de cada contratant.e não é con-
encarado exegeticamente não apenas como um fato social CUJOS efeitos
Interpretação Contratual 289
288 Felipe Kirchner -
dependente da hennenêutica, pois o discurso lógico pressupõe o universo
dicionada apenas pelo ordenamento, mas também pela mediação horizon- da compreensão. Assim, a questão é saber até onde a hennenêutica pode
tal de igual poder da contraparte. se utilizar do método científico, e até onde a ciência pode se 'Valer da
(26) Embora haja uma importância fundame_ntal ?ª _vontade no hermenêutica para dar conta de sua própria racionalidade.
plano hermenêutico, esta não é a _única (e sequer a m~1s propr~a) fo_nte de (29) Não existe interpretação livre de preconceitos, porquanto o
interpretação, pois o contrato se rnsere _em u~a cad~ia. negocial (circula- intérprete sempre interpreta sobre a base de expectativas de sentido que
ção de riquezas) que se desprende da rntençao subJetlva das partes. No extrai de sua próp1ia relação precedente com o objeto, as quais constituem
sistema brasileiro o consenso jamais é fonnado apenas pela vontade ou sua pré-compreensão. Compreender significa ser versado na coisa, e so-
pelo ato objetivo de autonomia, razão pela qual estes elementos deve:n mente secundariamente destacar o sentido da alteridade. Interpretação
ser sempre valorados em conjunto com outras fontes. Contud~, a e~o~ao sem pré-compreensão é mera adaptação, razão pela qual os preconceitos,
do papel da vontade psicológica no contexto de uma apreens~o ob!etlva embora estejam vinculados à ideia de auto1idade, não devem ser vistos
da interpretação contratual não ilide a importância ?ª _autonomia pnva?~, negativamente, pois são eles que possibilitam a compreensão, havendo
pois esta se constitui no norte da atividade h~nn~neuttca. Embora a utlh- apenas a necessidade do sujeito separar os preconceitos legítimos dos
,.,,•"-''
zação de critérios objetivos de interpretação unphque o uso de ~ma fonte ilegítimos. Nesse contexto, a hermenêutica contratual requer que o sujeito
de regulação diversa da livre e voluntária determinação dos mteresses detenha diversas competências em seu.horizonte (aptidões de ordem téc-
privados, esses preceitos não se antagonizam c~m. a vontade das partes - nica, filológica e fática-material). Se o intérprete não vê claramente o
como se pretendessem a tutela dos interesses pubhcos em confronto ~om sentido da situação objetiva complexa porque lhe são estt·anhas as rela-
os interesses privados -, mas visa~ a integra~ ~uas lacuna~ _e supnr as ções de vida regulamentadas pelo contrato, deve-se informar com os co-
deficiências de seu exercício, respeitando a log1ca e o espmto de suas nhecedores destas relações para alcançar os conhecimentos necessários.
escolhas. (30) Em termos procedimentais, a atividade hermenêutica não
(27) As regras legais de interpreta~ão do ~ontrato nã~ fonnam ,º se realiza de maneira linear (com a esgotabilidade das etapas preceden-
conteúdo do pacto, porém integram o conteudo da mterpretaçao do nego- tes), mas de fonna circular, com constantes idas e vindas ao projeto pré-
cio jurídico, constituindo-se em nonnas de segundo grau. Embora dete- vio de compreensão (a objetividade do conhecimento é alcançada mediante
nham um elevado grau de liberdade de apreciação, são autênticas normas avanços e recuos no caminho do entendimento da alteridade ). Aquilo que
jurídicas vinculantes, e não meras diretrizes lógicas ?u prátic~s que se foi avaliado não se esgota, passando a ser constantemente reavaliado no
encontram sujeitas ao arbítrio do intérprete. Sendo leis de carater geral, caminhar à coisa mesma, pois, havendo um choque entre a antecipação de
dirigem-se a todos os sujeitos envolvidos direta ou indiretamente com a sentido e o objeto, deve ser proposto um novo esboço de sentido (outra
relação contratual, e não apenas ao juiz. interpretação) a ser também submetida à coisa, até que seja alcançada a
(28) Os métodos e cânones hennenêuticos elenc~~os pela dou- compreensão a partir desta. O movimento da compreensão vai constante-
ttina e jurisprudência possuem uma função meramente aux1ha~ no ~esen- mente do todo (situação objetiva complexa) para a parte (cláusulas contra-
volvimento da interpretação, agindo como pautas de padromzaçao que tuais) e desta de volta ao todo, pois este deve ser compreendido a partir do
visam guiar a pré-compreensão do intérpret~, a~xiliando no. c~mbate ao individual e o individual a partir do todo, de tal sorte que a concordância
subjetivismo. Porém, diferentemente do que rnd1cam seus obJet1vos - d~r destas dimensões seja o critério para a justeza da compreensão.
segurança e previsibilidade à atividade interpretativa -, a metodologia (31) A compreensão a partir da coisa mesma culmina na fusão
conduz à arbitrariedade e ao subjetivismo. Por não haver uma metanorma dos horizontes do sujeito e do objeto, sendo que compreender significa
que indique a prevalência de qualquer cânone perante o caso concr~to, o deslocar o horizonte de compreensão ao outro sem suprimir o seu pró-
intérprete usualmente age como se não existissem nonnas a respe~t~ de prio. O deslocamento à alteridade do objeto pennite que o intérprete tome
como interpretar, utilizando-se posteriormente dos vetores me_todologicos consciência da individualidade itTedutível do outro, ascendendo sua com-
para justificar argumentativamente as suas conclusões. Ademais, a apreen- preensão a uma universalidade mais elevada que supera a sua particulari-
são metodológica limita a possibilidade do compreender e, sem negar a dade e a da coisa, fazendo surgir algo que antes não havia._.'No âmbito da
imprescindibilidade da met?dologi~, ?eve ser~re~onhecido, que a ,compre- situação objetiva complexa, a própria declaração negocial' encerra uma
ensão não se reduz ao umverso log1co-semant1co. O metodo e sempre
Interpretação Contratual 291

290 Felipe Kirchner ·


se e desenvolvimento, e de cttjo amálgama reside a imprescindibilidade da
fusão dos horizontes dos contratantes acerca do negócio jurídico regulado concreção nonnativa e fática no procedimento hennenêutico.
pelo instrumento. Enquanto produto final do acordo, o texto contratual (3 8) A concreção é uma forma de apreensão hennenêutica pela
encampa a vontade unificada dos conh·atantes que, sendo algo bastante qual as nonnas são compreendidas em essencial coordenação com o caso
diverso da soma das motivações subjetivas, não pode ser desmembrada, concreto, em um processo multidirecional em que Direito e realidade se
especialmente tendo como parâmetro a vontade particular de qualquer das complementam e interpenetram continuamente, buscando o significado
partes. do objeto considerando as circunstâncias concretas e normativas que
(32) Não existindo um procedimento metodológico fixo, deve- permearam sua gênese e desenvolvimento. Assim, o método concretista
-se considerar que a interpretação do contrato precede a sua construção concede relevância não à norma, mas, sim, à situação nonnada. Não se
jurídica (alcançada no âmbito da circularidade hermenêutica) e depende pode separar (senão por abstração e como linha de orientação) a regra da
da fixação de todas as circunstâncias do caso, o que se dá mediante prova situação regrada, já que a n01ma é produzida criativamente pelo intérprete
ou confissão, ainda que o procedimento hermenêutico não se assemelhe a não apenas a partir de dados que se desprendem do texto (mundo do dever-
uma operação probató1ia. Embora a significação do substrato probató1io ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada
.. ,···:·
,
(mundo do ser), dimensões que se entrelaçam de maneira inseparável.
dependa de uma atividade hermenêutica própria, a interpretação do con-
trato se realiza após a fixação das circunstâncias do caso. (39) O objetivo do raciocinar por concreção é a (re)qualificação
(33) A hennenêutica contratual é a atividade voltada à fixação do elemento nonnativo em face das exigências particulares da situação
criativa do sentido, alcance e validade das manifestações de vontade dos concreta. A atividade hem1enêutica não pode levar em consideração ape-
particulares, sendo responsável, ainda, pela qualificação jurídica do con- nas questões normativas, já que a concretização do Direito nem sempre
trato, detenninação do significado negocial (compromissos jurídicos e os representa um problema jurídico independente. Nesses termos, o intérpre-
termos da operação econômica perseguida pela pactuação) e verificação te deve sempre atentar para urna determinada realidade concreta, não
dos efeitos jurídicos produzidos pelo ato de autonomia. limitando a atividade hermenêutica aos fonnalismos meramente abstratos
(34) O objeto da interpretação contratual não abrange apenas a ou às explicações mediadas pela fundamentação lógica dos silogismos
declaração negocial, mas o conteúdo global (expresso e/ou implícito) do jurídicos. Sendo a compreensão um acontecer ontológico, a interpretação
deve se· esforçar para superar os conceitos legais e alcançar as formas
negócio, abarcando o elemento textual (também em sua dimensão inter-
concretas e reais da vida (histórica, econômica, sociológica, religiosa,
textual), a historicidade do sujeito-objeto, a pré-compreensão do intérpre-
filosófica, etc.), rechaçando a existência burocrática da prática jurídica.
te, a situação contextual (circunstâncias do caso), os preceitos jurídicos
estatais implicados e outras situações henneneuticarnente relevantes. (40) A concreção alcança o próprio instituto do contrato. Embo-
(35) Qualquer pessoa envolvida direta ou indiretamente com a ra este seja um conceito jurídico, não pode ser entendido com a mera
relação contratual deve ser considerada intérprete, não prevalecendo as consideração de sua dimensão normativa. Até mesmo as tipificações le-
teses institucionalistas e do intérprete autêntico que apregoam que só ao gais refletem uma realidade exterior a si próprias, remetendo sempre à
juiz cabe a interpretação do negócio jurídico, as quais se embasam na esfera social de interesses e situações socioeconômicas traduzidas pelas
falsa premissa de que a interpretação se dá somente em caso de litígio. categorias previstas na norma estatal.
(36) A partir das noções de circularidade hennenêutica e de que ( 41) Se é cotTeto afirmar que a relevância dos fatos é mensurada
a exegese contratual é um processo unitário, percebe-se ser inadequada e em função do elemento normativo a ser compreendido e aplicado, tam-
artificiosa a decomposição desta atividade em momento recognitivo e bém é verdadeiro que a norma: é selecionada e detetTninada (mesmo no
complementar. As normas cogentes fazem parte de um ato de aplicação campo da significação) em função da estrutura concreta do caso a decidir.
O processo de aplicação do Direito apresenta duas faces: a assimilação do
que integra a atividade hennenêutica.
fato pela norma e a assimilação da norma pelo fato. Esta dimensão dialó-
(37) O horizonte do contrato é constituído por uma situação obje- gica não pode ser compreendida por meio de singularidades conceituais
tiva complexa, a qual diz com urna totalidade orgânica, unitária e dinâmica como indução e dedução, razão pela qual o raciocínio por concreção se
dotada de sentido e fonnada pelo instrumento contratual, sua relação com o utiliza destes dois juízos simultaneamente. Em termos mais abrangentes,
sistema jurídico e todas as circunstâncias do caso que pennearam sua gêne-
Interpretação Contratual 293
292 Felipe Kirchner ·
da busca pela compreensão, o intérprete deve quantificar os elementos
a concretização da diretriz nonnativa é determinada pela reali~ade so~ial que pennitam a promoção, ao menos paulatina, da sistematização das
e, ao mesmo tempo, é detenninante em relação a ela, sendo ~~poss1vel suas conclusões hennenêuticas, em respeito à segurança jurídica.·
definir como fundamental e prevalente somente a pura nom1at1v1dade ou (46) No plano da circularidade hermenêutica, os principais cri-
a eficácia das condições sociais e econômicas que geraram e regularam a térios para o resguardo da dimensão alienante do método concretista são a
relação contratual. força vinculante do objeto interpretado e a pretensão de universalidade do
(42) No âmbito do método concretista, a norma contratual deixa procedimento hermenêutico, aspectos que, complementando os vetores da
de ser um dado apartado do caso concreto. ou um simples instrurnent~ ~e segurança jurídica e da justiça, exigem tanto uma generalização tipificadora
captação linguística e de medição ~a reahdad~, pas~ando a se const~turr que garanta a igualdade de tratamento, quanto uma individualização que
em um modelo fimcional que detenmna a quantificaçao do momento s1tua- garanta a quantificação das especificidades próprias do caso em exame.
cional (Dasein). Assim, a nonna contratua_l não se vincula ao caso _co~- (4 7) No controle da normatividade do contrato, o método con-
creto apenas em termos de ajuste e/ou des~Juste, mas de fon?a constituti- cretista não afasta - antes requer - a referência ao ordenamento e aos seus
va. Nesse contexto, a atividade interpretativa passa a quantificar as con-
. ··•:"• dições de realizabilidade do elemento normativo, individualizando-o
princípios e, apesar de impor um viés tópico, não se apresenta como subs-
titutivo do método da subsunção nem da lógica da inferência, peculiar ao
perante as peculiaridades de cada nova realidade.
raciocínio dedutivo. Deste modo, a concreção não pode renunciar a pos-
(43) A concreção não está separada da interpretação, pois inter- sibilidade de análise abstrata dos casos, razão pela qual a interpretação (e
pretar implica concretizar. Interpretação e concretiz~ção se superpõem, a jurisprudência) precisa se elevar do concreto, embora deva sempre
pois na facticidade da atividade hermenêutica não se mterpreta a norma e quantificá-lo.
depois o fato, mas o fato de acordo com a nonna e a nonna de acordo (48) O raciocinar por concreção alça os elementos fáticos à
com o fato, simultaneamente. condição de parâmetro de interpretação, e, assim, concede relevância
(44) O raciocínio por concreção assume urna função extre?Ia- he1menêutica ao resguardo e à manutenção da força normativa do contra-
mente relevante na análise das condições de superação de um determma- to em todas as suas fases. A exegese depende não apenas da incorporação
do elemento nonnativo, pois a quantificação heimenêutica da realidade da realidade que circunda o contrato, mas também da quantificação de
auxilia na verificação da existência de urna modificação das raz?es e sua vinculação com as forças de dominância reais no contexto sociocultu-
consequências estabelecidas prima facie pelas nonnas contratuais. no ral e nonnativo, o que possibilita a ordenação objetiva da relação contra-
contexto de sua aplicação, tomando mais controlada e segura ~ co~side- tual no iter hennenêutico. A atividade heimenêutica depende não apenas
ração de dados contextuais como razões superi?r~s àquelas ~~e Justlfic~ do conteúdo da pactuação, mas principalmente de sua práxis, sendo exi-
a aplicação da própria regra. Resguardados os Imutes necessanos ao racio- gido que todos os partícipes da relação contratual - inclusive o intérprete
cínio por concreção, sua adoção aumenta a raci~na~idade e a fundamenta- - partilhem da vontade do contrato. Transcendendo a vontade de poder
ção intersubjetiva na busca e realização do valor Justiça no caso concreto. (antagonismo dos contratantes), a exegese deve procurar alcançar a von-
(45) Se a separação absoluta entre nonna e realidade traz inde- tade de cumprimento do contrato (visão solidária).
sejáveis consequências, o excesso de concretização impede a realização (49) Em termos estruturais e negociais, a preservação da força
da atividade científica, visto que o recurso retórico à figura do caso con- normativa do contrato depende da incorporação nonnativa de parte da
creto se transforma em um apanágio para a ditadura da subjetividade e do estrutura contrária, pois o sacrificio de um interesse pessoal acaba fo1ta-
descritério. A atividade deve alcançar um ponto de equilíbrio entre o lecendo o vínculo e a força normativa da pactuação. Em regra, quanto
abandono da normatividade em favor da dominação das relações fáticas e mais a atividade hennenêutica corresponder à natureza singular das cir-
a concepção de uma normatividade despida de qualquer~ elemento de cunstâncias do caso, e quanto maiores forem as possibilidades de adapta-
realidade, superarando a fratura do pensamento con~ei~poraneo e da te~- bilidade do contrato à mudança destas condicionantes, tanto mais seguro
ria do conhecimento que lhe sustenta: se a hermeneutlca contratu~l n~o será o desenvolvimento de sua força nonnativa'.
pode se desvencilhar da experiência humana, tam_b~m não po~e. abnr rnao
dos imperativos das categorias racionais que posic10nam_ a _atividade exe-
gética num quadro de inteligibilidade e controle intersubjetivos. No curso
294 Felipe Kirchner

(50) A distinção e a consideração dos pontos de relevância her-


menêutica servem para avaliar e mensurar a extensão do círculo formado
pelos meios interpretativos que podem ser empregados pelo intérprete. A
l Interpretação Contratual

no contexto material. Deixando de quantificar um só ponto das circuns-


tâncias do caso, altera-se o sentido da declaração, que deixa de corres-
ponder à verdadeira situação, resultando em um possível (e provável)
efeito jurídico falso.
295

amplitude das circunstâncias passíveis de serem consideradas no processo (55) As circunstâncias do caso auxiliam a interpretação contra-
hermenêutico se altera confonne o horizonte do contratante que detém a tual tanto na busca pelo alcance da significação do instrumento, quanto
autoridade da situação hermenêutica e a consideração da estrutura rele- na consubstanciação dos elementos que remetem a concepções materiais
vante para a eficácia jurídica do negócio, o que demonstra que a questão do entorno social (ex.: cláusulas remissivas à realidade e atinentes ao seu
interpretativa não se apresenta em termos unifonnes para todas as catego- objeto, motivo e causa).
rias de negócios.
(56) Sendo impossível definir com exatidão o que sejam as cir-
( 51) Em regra, se o ponto de relevância hennenêutica se situar cunstâncias do caso, pode-se conceituá-las como sendo as condições fáti-
no destinatário da declaração ( o que deriva do alto grau de recognoscibi- cas e objetivas que fonnam o ambiente geral do contrato, englobando o
lidade objetiva e da confiança despertada pelo negócio), somente podem contexto verbal (espaço textual e intertextual das disposições contratuais
ser consideradas na interpretação as circunstâncias que estejam compreen- no todo unitário da declaração) e situacional (situação do discurso) da
didas no horizonte deste, ou seja, aquelas circunstâncias que o declaratá- contratação, encampando o todo da situação espaço-temporal (econômi-
rio teve ciência real ou potencial, o que implica uma consequente limita- ca, histórica e cultural) patticular que compreende o objeto e os interlocu-
ção dos meios interpretativos à disposição do hermeneuta. Já se o ponto tores que participam da relação contratual.
de relevância hennenêutica se situar no declarante (o que deriva do baixo
(57) O postulado das circunstâncias do caso atua de maneira
grau de recognoscibilidade objetiva e da confiança despeitada pelo negó-
multifuncional, pois, além de se constituir em meio para interpretar (e
cio), há um incremento do material interpretativo, sendo que em determi-
colmatar) a declaração negocial, é verdadeiro elemento do todo complexo
nados casos poderão ser quantificadas até mesmo circunstâncias ocultas
que forma o contrato, trazendo consigo fatores fonnativos da contratação
aos interessados, como ocorre nos negócios mortis causa, por força do
que atuam em conjunto com o texto do negócio jurídico. Se a dimensão
art. 1.899, do CC/2002.
textual da declaração negocial diz o essencial do que aconteceu, não diz
(52) No curso do raciocínio por concreção devem ser avaliadas como aconteceu, nem evidencia a plenitude da eficácia jurídica frente à
as condicionalidades hermenêuticas envolvendo o problema concreto e as dinâmica sociojurídica.
valorações oriundas do sistema jurídico, o que se realiza, :respectivamen- (58) Como já mencionado, as circunstâncias do caso devem ser
te, por meio dos postulados nonnativos aplicativos das circunstâncias do fixadas antes da interpretação de qualquer espécie de contrato, por meio
caso e da proporcionalidade, que assumem a condição de metanormas de prova ou confissão. Somente são válidas no processo hennenêutico
(nonnas de segundo grau), estabelecendo a estrutura de interpretação, aquelas que se mostrm·em reciprocamente reconhecíveis, ou seja, aquelas
compreensão e aplicação das nonnas contratuais, principalmente em rela- que os contraentes possam ou devam conhecer com o uso de uma dili-
çijo aos mencionados elementos fáticos e nonnativos que compõem a gência nonnal no exato contexto objetivo em que concluído o contrato e
relação contratual. desenvolvida a relação contratual.
(53) Enquanto o postulado das circunstâncias do caso age na (59) As circunstâncias do caso abarcam os elementos fáticos
concreção fática, quantificando aspectos da normatividade intrínseca da das negociações precedentes e das manifestações concomitantes e poste-
pactuação ao relacionar a declaração negocial com as condições fáticas riores à conclusão do contrato, sendo descabido o descarte de qualquer
objetivas em que a relação contratual nasceu e se desenvolveu, o postula- destes elementos em virtude de uma suposta co~tradição com o sentido
do da proporcionalidade atua na concreção normativa, desvelando a nor- literal da declaração negocial, uma vez que no âmbito da circularidade
matividade extrínseca do contrato ao relacionar o instrumento com os hermenêutica o sentido do texto contratual é pro_visório.
vetores jurídicos e axiológicos do ordenamento.
( 60) Em termos de estruturação, o postulado das circunstâncias
(54) A interpretação tem que ter em conta todas as circunstân- do caso se aproxima do dever de razoabilidade, especialmente quando
cias do caso, pois estas estabelecem critérios, modos de :raciocínio e ar:
gumentação que dão à declaração negocial a significação que esta possm
Interpretação Contratual 297
296 Felipe Kirclmer

este exige a relação das nonnas gerais com a individualidade do caso ção: (i) usos (att. 113); (ii) boa-fé objetiva (art. 113); (iii) finalidade eco-
concreto (desvelando a perspectiva que a nonna deve ser aplicada e em nômico-social (arts. 187 e 421); (iv) bons costumes (art. 187); (v) causa e
quais hipóteses o caso deixa de se enquadrar no elemento normativo, motivos detenninantes (art. 166, III); (vi) comum intenção (art. 1'12).
devido as suas especificidades) ou a vinculação da norma com a realidade (64) Há uma relação bilateral e dialética entre contrato e orde-
a que faz referência (exigindo um suporte empírico adequado ao enqua- namento jurídico, pois o pacto se insere na cadeia de regulação do Direi-
dramento legal e demandando uma relação congruente entre a medida to. Se é verdadeiro que o contrato deve respeitar as diretrizes nonnativas
adotada e o fim a que ela prete11de atingir). estatais, não é menos verdadeiro que os atos negociais tocam (e testam)
(61) As circunstâncias do caso apresentam-se tanto como enun- constantemente os limites fixados pelo sistema jurídico (algumas vezes
ciado normativo (constando expressamente na declaração negocial), redefinindo tais perímetros). O contrato integra o sistema jurídico não
quanto como situação de fato (que mesmo sem constar na declaração apenas porque dele recolhe pressupostos de validade, mas também por-
delineiam e fundamentam a relação contratual), mas, embora detenninem que o desenvolve na concretização dos vetores constitucionais da autode-
o significado das obrigações, possuem um conteúdo incompleto que deve terminação da pessoa e do espaço de liberdade de atuação econômica do
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ser preenchido por detenninados elementos fáticos e nonnativos. indivíduo.
(62) Na dimensão linguística do contrato, a quantificação do ( 65) O contrato se integra corno um dos elementos de norrna-
contexto proporciona a concordância objetiva e intertextual das dispo- ção. da ordem j~r!dica. A pactuação não se processa em um espaço
sições contratuais, concedendo prevalência hermenêutica ao sentido vaz10 de normatividade, mas em um universo institucional que predis-
consoante ao comportamento das partes, ao conjunto das declarações põe forma e conteúdo da ação comunicativa dos contraentes, dotando
por elas emitidas e à ordenação externa derivada das leis. As palavras o contrato de um sentido a ser intersubjetivamente reconhecido. O
utilizadas na declaração negocial estão sempre relacionadas com as sistema jurídico não se posiciona fora ou "depois" do contrato, já que
circunstâncias fáticas ( variando conforme as circunstâncias em que este se situa no complexo normativo que é o Direito, e em nenhum
são formuladas) e normativas (sendo dependentes das normas estatais momento se desliga de seu sistema fundador. Nesses termos, a ordem
de natureza conceituai). Além disso, aquilo que se compreende sempre jurídica estatal interfere no conteúdo de significação do pacto, não
vem acompanhado de motivações, uma vez que os enunciados linguís- havendo razão ontológica para que a atividade hennenêutica contratual
ticos jamais têm seu pleno conteúdo de sentido formado a partir de si ignore esta dimensão.
mesmos, necessitando sempre da quantificação de uma dimensão rela- (66) Menos do que um radical dualismo, contrato e ordenamen-
cional e inte1iextual. to constituem-se em duas esferas de regulação que se comunicam e inter-
(63) Não sendo possível construir um catálogo exaustivo de to- penetram continuamente. A interpretação contratual depende de um ca-
dos os elementos fáticos que sejam hermeneuticamente relevantes, podem minhar pelo percurso que se projeta a partir da pactuação, do texto da
ser destacados alguns fatores que atribuem significado às circunstâncias declaração negocial até a Constituição, alcançando a totalidade significa-
do caso: (i) espécie e qualidade do objeto; (ii) lugar; (iii) tempo; (iv) qua- tiva do ordenamento jurídico de fonna sempre centrada no ato de auto-
lidade das partes; (v) relação pessoal dos contratantes; (vi) relação prévia nomia e nas suas condicionantes. Contudo, é de todo evidente que nesta
dos contratantes; (vii) usos e costumes; (viii) classes sociais e comerciais; atividade não há uma interpretação direta do ordenamento, mas apenas do
(ix) práticas comerciais; (x) modo de comportamento; (xi) circunstâncias ato negocial em relação ao sistema jurídico.
reciprocamente reconhecíveis; (xii) comportamento total das partes; (xiii) (67) Da complexa relação contrato-ordenamento se sobressa-
conjunto de declarações e/ou cláusulas entendidas como elementos de um em quatro aspectos relevantes para a hermenêutica contratual: (i) o or-
todo; (xiv) finalidade e/ou intuito prático visado com a contratação; (xv) denamento é elemento estruturante interno d~ contrato, agindo direta-
natureza e/ou matéria do negócio jurídico; (xvi) natureza do tipo legal de mente sobre seu conteúdo e significado hermenêutico, e não apenas
negócio jurídico; (xvii) modalidade de execução do contrato; (xviii) mo- e.amo elemento externo (limite); (ii) o ordenamento positivo não inte-
do de formação do contrato. Ademais, existem seis elementos fáticos ressa à interpretação contratual apenas no caso de lacunas a serem su-
expressamente nominados no CC/2002 que desempenham a mesma fun-
Interpretação Contratual 299
298 Felipe Kirclmer
dível para a compreensão da complexidade normativa presente na situa-
pridas com a utilização de nonnas supletivas, mas sempre; (iii) o siste- ção objetiva que fonna o contrato, inclusive no que respeita ao combate
ma normativo (e principalmente seus vetores axiológicos) sempre se faz de antinomias das disposições internas do contrato e destas com as nor-
presente na circularidade hennenêutica e na pré-compreensão do intér- mas estatais.
prete; (iv) o ordenamento detennina premissas a serem observadas na (73) Com o reconhecimento da unidade hennenêutica entre sis-
atividade hermenêutica. tema e contrato se alcança a real condição deste como instrumento nor-
(68) A doutrina endossa uma tríplice caracterização do dever da mativo. No plano prático, a noção de unidade se relaciona com a dinâmi-
proporcionalidade, que atua nos seguintes exames: (i) adequação da rela- ca parte-todo-parte presente na circularidade hennenêutica, indicando a
ção meio e fun; (ii) necessidade do meio escolhido; (iii) proporcionalida- complexa inter-relação que os textos nonnativos guardam uns com os
de entre o ônus imposto e o beneficio trazido. outros. Este aspecto redunda na chamada inseparabilidade da nonnativi-
(69) Como os motivos (circunstâncias), os meios (tipicidade e dade das disposições jurídicas, a qual indica que a disposição contratual
espécie contratual) e os fins (adimplemento) são fatores invariavelmente somente se esclarece na totalidade do sistema, pennanecendo obscura e
presentes nos atos que cuhninam na fonnalização do contrato, a propor- ininteligível quando analisada à parte dos demais elementos nonnativos
cionalidade atua como critério de adequação do sentido entre estes ele- que compõem a situação objetiva complexa, por mais claro que seja o seu
mentos. O postulado ministra parâmetros para que o sujeito cognoscente enunciado.
formule juízos acerca das intervenções existentes na bilateralidade da (74) É a partir da noção de hierarquia interna que a doutrina ma-
relação contrato-ordenamento, coordenando a forma como a regulamen- joritária entende que a influência do sistema jurídico no campo da herme-
tação privada se relaciona com o sistema e com os efeitos jw-ídicos ema- nêutica contratual se limita à imposição de limites. Contudo, a correição
nados deste amálgama entre autonomia e heteronomia. desta premissa não invalida a pretensão de que a relação entre os planos
(70) O postulado da proporcionalidade indica que a relação da heteronomia e da autonomia evolua para uma fonna verdadeiramente
contratual pode ser eficiente, atingindo econômica e juridicamente o dialógica.
seu objetivo específico, mas pode não ser proporcional quanto aos fins (75) A característica da ordenação indica tanto que o contrato
colimados pelo sistema jurídico ou em razão da posição ocupada por está ordenado com/pelas diretrizes legais, quanto o fato de que as n011nas
um dos contratantes. Assim, a utilização do postulado pennite que a da declaração negocial se encontram dispostas escalonadamente, com a
hermenêutica contratual transcenda à análise formalista do tráfego prevalência teleológica de algumas sobre outras.
jurídico (dimensão econômica), auxiliando na manutenção do equilí- (76) É a abertura do sistema jurídico que pe1mite o alcance do
brio do deslocamento patrimonial, sem deixar de considerar a relevân- amálgama normativo entre contrato e ordenamento no entrecruzar da
cia do ato de autonomia. autonomia com a heteronomia. O contrato é complementado hermeneuti-
(71) Não é dado ao intérprete impor os seus valores a pretexto camente pelos vetores materiais e axiológicos presentes no ordenamento,
de avaliar a proporcionalidade de um contrato. Mesmo à luz de uma mas também resta por completar esse mesmo ordenamento, na medida
Constituição que mostra vocação dirigente, o controle de proporcionali- em que desenvolve e concretiza os vetores constitucionais da autodeter-
dade deve respeitar a margem de liberdade relativa ao poder de confor- minação da pessoa e do espaço de liberdade de atuação econômica do
mação dos indivíduos. Visando coibir excessos, a proporcionalidade con- indivíduo, como antes salientado.
trola o uso da liberdade de que gozam os particulares para confonnarem (77) A atividade hennenêutica contratual contempla uma di-
suas relações, embora não substitua o contratante pelo intérprete. mensão relativa à ordenação axiológica ou teleológica dos elementos
(72) A dialeticidade hermenêutica entre contrato e ordenamento nonnativos interpretados, pois, como toda nonna possui natureza valora-
encontra lastro nas características do pensamento sistemático, as quais tiva, ao realizar uma hierarquização das disposições contratuais o intér-
criam pontes pennissivas do diálogo entre os níveis de heteronomia e prete está, mesmo que por via reflexa, fazendo uma afinnação sobre o
autonomia. Não obstante a necessária utilização do pensamento tópico conteúdo axiológico desse sistema.
pelo método concretista, o pensamento sistemático se mostra imprescin-
300 Felipe Kirchner

Cabe, por fim, delinear que esta reflexão científica almejou


meramente contribuir, de um ponto de vista situado, com o pensamen-
to jurídico que se debruça sobre o fenômeno da interpretação do con-
trato. Dada a complexidade da matéria, não se pretendeu construir
uma teoria completa sobre a hermenêutica contratual, mas suscitar REFERÊNCIAS
questões que ainda carecem de aprofundamento teórico. Contudo, por
meio da inserção dos matizes da hermenêutica filosófica na base dog-
mática do Direito Privado, foi possível alcançar a dimensão eminen-
temente ontológica do compreender e, a partir desta, fixar algumas ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de
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ÍNDICE ALFABÉTICO

• Atividade hermenêutica .................................................................................... 31


• Autonomia privada e sua relevância hermenêutica ........................................... 99

e
• Conclusão ....................................................................................................... 281
• Concreção fática da interpretação contratual .................................................. 213
• Concreção normativa da interpretação contratual... ........................................ 246
• Concreção. Hermenêutica e concreção ........................................................... 173
• Concreção. Raciocínio jurídico por concreção ............................................... 175
• Contrato. Hermenêutica contratual ................................................................... 84

• Força normativa do contrato. Influência do raciocínio por concreção na


força nom1ativa do contrato ............................................................................ 194

• Hermenêutica contratual ................................................................................... 84


• Hermenêutica contratual. Particularidades da hermenêutica contratual.. .......... 85
• Hermenêutica e concreção .............................................................................. 173
• Hermenêutica. Atividade hermenêutica ............................................................ 31
• Hermenêutica. Autonomia privada e sua relevância hermenêutica ................... 99
• Hermenêutica. Caráter criativo, construtivo e produtivo da atividade
hermenêutica ..................................................................................................... 51
• Hermenêutica. Caráter crítico da atividade hem1enêutica ............... /..·.............. 79
Interpretação Contratual 315
314 Felipe Kirchner
R
• Hermenêutica. Delimitação do horizonte hem1enêutico ................................... 43
• Hermenêutica. Fixação do objeto e da dimensão funcional da hermenêuti-
• Raciocínio jurídico por concreção .................................................................. 175
ca contratual .......................................................................................... •••....... 151
• Raciocínio jurídico por concreção. Influência do raciocínio por concreção
•Hermenêutica.Horizonte da atividade hermenêutica ........................................ 31
na força normativa do contrato ....................................................................... 194
•Hermenêutica.Incompletude da atividade hermenêutica .................................. 62
• Raciociuio jurídico por concreção. Necessária imposição de limites ao
•Hermenêutica.Natureza jurídica das circunstâncias do caso e da
raciocínio por concreção ................................................................................. 189
proporcionalidade ........................................................................................... 208
• Raciocínio jurídico por concreção. Pressupostos gerais sobre o raciocínio
•Hermenêutica.Objeto e os limites da atividade hermenêutica .......................... 31
por concreção .................................................................................................. 175
• Hermenêutica. Ponto de relevância hennenêutica e a extensão dos meios
interpretativos ................................................................................................. 201 • Referências ..................................................................................................... 301
• Hermenêutica. Procedimento, os métodos e as regras de interpretação .......... 116
• Horizonte da atividade hermenêutica ................................................................ 31 s
I • Sistematicidade hermenêutica. Pressupostos .................................................. 266

• Interpretação contratual. Concreção fática da interpretação contratual .......... 213


• Interpretação contratual. Concreção normativa da interpretação contratual ... 246
• Interpretação contratual. Elementos que compõem o postulado das cir-
cU11stâncias do caso ......................................................................................... 224
• Interpretação contratual. Jurisprudência e o paradigma da súmula vincu-
lante 01, do Supremo Tribunal Federal... ........................................................ 241
• Interpretação contratual. Postulado normativo da proporcionalidade ............. 255
• Interpretação contratual. Postulado normativo das circunstâncias do caso ..... 213
• Interpretação contratual. Premissas gerais da concreção normativa da
interpretação contratual ................................................................................... 246
• Interpretação contratual. Pressupostos da sistematicidade hermenêutica ....... 266
• Introdução ......................................................................................................... 21

• Negócio jurídico e seu conteúdo ....................................................................... 89

• Ponto de relevância hermenêutica e a extensão dos meios interpretativos ..... 201


Integrantes dos CONSELHOS EDITORIAIS da i/URUR EDITORR nas áreas de
DIREITO, CONTABILIDADE, ADMINISTRAÇÃO,
ECONOMIA E FILOSOFIA

AdelEITasse Ana Paula Gularte Liberato


Me. e doutorando em Direito Penal. Proc. Federal. M.ª em Direito Socioambiental pela PUCPR. Adv.
Prof. Universitário. Membro da Comissão Interna de Meio Ambiente
da PUCPR. Prof.ª Universitária.
Aderbal Nicolas Müller
Dr. pela UFSC. Me. em Ciências Sociais Aplica- Andrei Koerner
das. Esp. em Administração/Finanças. Graduado Dr. e Me. em Ciência Política pela Universidade de
em Ciências Contábeis pela FAE Business School. São Paulo. Graduado em Direito. Prof. Universitário.
Prof. Universitário. Anélio Berti
André G. Dias Pereira Me. em Ciências Contábeis e Esp. em Auditoria con-
Me. e doutorando pela Faculdade de Direito da tábil. Graduado em Ciências Econômicas. Prof.
Universidade de Coimbra. Universitário.
Airton Cerqueira Leite Seelaender Antoninho Caron
Dr. em Direito pela Johann Wolfgang Goethe- ·or. em Engenharia de Produção e Me. em Desen-
-Universitãt Frankfurt. Me. e graduado em Direito. volvimento Econômico. Graduado em Administra-
Pres. do Instituto Brasileiro de História do Direito. ção de Empresas. Prof. Universitário.
Prof. Universitário. Antônio Carlos Efing
Alessandra Silveira Dr. e Me. pela PUC-SP. Prof. Universitário na gra-
Ora. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni- duação, especialização, mestrado e doutorado.
versidade de Coimbra: Direito público - Direito da Antonio Carlos Wolkmer
União Europeia, Direito constitucional e ciência
política. Prof.ª da Escola de Direito da Universida- Dr. em Direito. Me. em Ciência Política. Esp. em
de do Minho. Metodologia do Ensino Superior. Graduado em Di-
reito. Prof. Universitário.
Alessandra Galli
Antônio Pereira Gaio Júnior
Doutora Tecnologia e Sociedade (UTFPR/Università
Degli Studi di Padova). M.ª em Direito Econômico Dr. em Direito pela UGF. Pós-Dr. Direito pela Uni-
e Social e Especialista em Direito Socioambiental versidade de Coimbra-PI. e em Democracia e Direi-
(PUC/PR). Prof.ª Universitária. tos Humanos pelo /us Gentium Conimbrigae - Fa-
culdade de Direito da Universidade de Coimbra-PI.
Alexandre L. Dias Pereira Me. em Direito pela UGF. Pós-graduado em Direito
Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni- Processual pela UGF - Prisma. Prof. da UFRRJ.
versidade de Coimbra. Prof. da Faculdade de Di- Antônio Veloso Peleja Júnior
reito da Universidade de Coimbra.
Me. em Direito pela UERJ; Pós-graduado em Di-
Alexandre Mota Pinto reito Eleitoral pela UnB; Juiz de Direito no TJMT.
Dr. em Direito pelo Instituto Europeu de Florença: Arno Dai Ri Júnior
Direito privado - Direito do trabalho e Direito co-
mercial e civil em geral. Docente da Faculdade de Pós-Dr. pela Université Paris 1(Panthéon-Sorbonne).
Direito da Universidade de Coimbra. Dr. em Direito Internacional pela Università Luigi
Bocconi de Milão. Me. em Direito e Política da União
Alexandre Coutinho Pagliarini Europeia pela Università degli Studi di Padova.
Pós-Dr. pela Faculdade de Direito da Universidade Bel. em Ciências Jurídicas. Prof. Universitário.
de Lisboa. Dr. e Me. em Direito do Estado. Prof. Artur Stamfor.d da Silva
Pesquisador. Proc. Municipal.
Dr. em Teoria, Filosofia e Sociologia do Direito.
Aloísio Khroling Me. em Direito Público pela UFPE. Diplomado em
Pós-Dr. em Filosofia Política. Dr. em Filosofia. Me. Estudios Avanzados de Tercer Ciclo do Doutorado
em Teologia e Filosofia e em Sociologia Política. de Derechos Humanos y Desarrollo pela Universi-
Graduado em Filosofia e em Ciências Sociais. dad Pablo de Olavid-Sevilla, Espanha. Graduado
em Direito pela Unicap. Prof. Universitário.
Interpretação Contratual 319
318 Felipe Kirchner
Fabiana Dei Padre Tomé Gilberto Bercovici
Beltrina da Purificação da Côrte Pereira Cleverson Vitorio Andreoli Ora. e M.ª em Direito. Graduada em Direito. Prof.ª Dr. em Direito do Estado. Graduado em Direito.
Pós-Ora. e Ora. em Ciências da Comunicação pela Dr. em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Me. em Universitária. Prof. Universitário.
USP. M.ª em Planejamento e Administração do Ciências do Solo. Eng. Agrônomo. Prof. Universitário.
Fernando Galvão da Rocha Gilberto Gaertner
Desenvolvimento Regional, pela Universidad de Cristina Zanello
los Andes - Bogotá, Colômbia. Graduada em Jor- Dr. em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universi- Me. em Engenharia de Produção. Esp. em: Forma-
nalismo. Prof.ª Universitária. M.ª em Direito Negocial pela UEL. Esp. em Direito e dade do Museu Social Argentino. Me. em Direito. ção em Psicologia Somática Biossíntese; Forma-
Negócios Internacionais pela UFSC. Graduada em Esp. em Filosofia. Graduado em Direito. Juiz do ção em Integração Estrutural Método Rolf; Forma-
Benedito Gonçalves da Silva Direito pela PUCPR. Graduada em Economia pela Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais. Prof. ção em Bioenergia Raízes; e Psicologia Corporal -
Me. em Controladoria e Contabilidade. Graduado em UFPR. Prof.ª Universitária. Membro do Instituto de Universitário. Orgone.
Ciências Contábeis. Graduado e Lic. em Ciências. Direito Tributário de Curitiba e Membro da Comis-
Fernando Gustavo Knoerr Gonçalo S. de Melo Bandeira
Graduado e Lic. em Matemática. Prof. Universitário. são de Direito Tributário da OAB-PR. Advogada.
Dr., Me. em Direito do Estado e bel. pela UFPR. Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni-
Carlos Diogenes Cortes Tourinho Danilo Borges dos Santos Gomes de Araujo Prof. do Programa de Mestrado em Direito Empre- versidade de Coimbra. Me. em Direito pela Facul-
Dr. e Me. em Filosofia. Esp. em Filosofia Contem- Dr. em Direito. Graduado em Direito e em Admi- sarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba - dade de Direito da Universidade Católica Portu-
porânea. Graduado em Psicologia e em Filosofia. nistração de Empresas. Prof. Universitário. UNICURITIBA. Prof. de Direito Administrativo da Es- guesa e Esp. em Ciências Jurídico-Criminais pela
Prof. Universitário. cola da Magistratura do Paraná e da Fundação Es- mesma instituição. Lic. em Direito. Prof. da Es-
Dário Manuel Lentz de Moura Vicente cola do Ministério Público do Paraná. Prof. benemé- cola Estatal Superior de Gestão do Instituto Poli-
Carlos Eduardo Batalha da Silva e Costa Dr. e Agregado em Direito pela Universidade de rito da Faculdade de Direito UNIFOZ e Patrono Aca- técnico do Cávado e do Ave - Portugal. Prof. Uni-
Dr. em Filosofia e Me. em Direito pela USP. Gra- Lisboa. Prof. Catedrático da Faculdade de Direito dêmico do Instituto Brasileiro de Direito Político. versitário.
duado em Direito e em Filosofia. Prof. Universitá- da Universidade de Lisboa.
Fernando Rister de Souza Lima Helena de Toledo Coelho Gonçalves
rio e Pesquisador. Deise Luiza da Silva Ferraz Dr. em Filosofia de Direito e do Estado pela PUC/SP, Óra. e M.ª em Direito. Graduada em Direito pela
Carlos Roberto Claro Ora., M.ª e Bela. em Administração. Estágio-dou- com estágio doutoral sanduíche na Università degli PUCPR. Prof.ª Universitária.
Me. em Direito Empresarial e Cidadania. Escritor, toral no Centro de Investigação em Sociologia Studi di Macerata, Itália. Segundo Vice-presidente llton Garcia da Costa
Professor e Advogado. Econômica e das Organizações (SOCIUS) do Insti- da ABraSD. Editor da Revista Bras. de Sociologia
tuto Superior de Economia e Gestão da Universi- do Direito - pub. oficial da ABraSD. Membro do Re- Dr. em Direito. Me. em Administracão e Direito.
Carlyle Popp Graduado em Matemática. Prof. Uni~ersitário.
dade Técnica de Lisboa. search Committee on Sociology of law - Working
Dr. em Direito Civil. Me. em Direito Público. Mem- Group Socio/ogy of Constitution. Prof. Universitário. Irene M. Portela
bro do Instituto dos Advogados do Paraná e da Dennison de Oliveira
Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Prof. Prof. do Departamento de História da UFPR. Dr. Filipe Avides Moreira Ora. em Direito Público pela Faculdade de Direi-
Universitário. em Sociologia (Unicamp). Me. em Ciência Política Lic. em Direito pela Faculdade de Direito da Univer- to da Universidade de Santiago de Compostela.
(Unicamp). Graduado em História (UFPR). sidade de Coimbra: Direito público e Direito priva- Prof.ª da Escola Superior de Gestão e Provedora
Carolina Machado Saraiva de Albuquerque
do. Formador da Ordem dos Advogados. Prof. em do Estudante, do Instituto Politécnico do Cávado
Maranhão Eduardo Biacchi Gomes
pós-graduações na Faculdade de Direito da Universi- e do Ave.
Ora. em Administração. M.ª em Marketing. Gra- Pós-Dr. em Estudos Culturais pela UFRJ. Dr. em
duada em Administração. Prof.ª Universitária. Direito. Prof. Universitário. dade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto. Ivo Dantas

Clarice von Oertzen de Araujo Eduardo Ely Mendes Ribeiro Florence Cronemberger Haret Dr. em Direito Constitucional. Prof. Titular da Fa-
Ora. em Direito Tributário pela USP. Graduada em culdade de Direito do Recife - UFPE. LO. em Direi-
Ora. e M.ª em Direito pela PUC/SP. Graduada em Dr. em Antropologia Social. Me. em Filosofia. Gra- to Constitucional - UERJ. LO. em Teoria do Es-
Direito e LO. em Direito. duado em Filosofia. Direito. Prof.ª conferencista.
tado - UFPE. Membro da Academia Brasileira
Cláudia Viana Elizabeth Accioly Francis Kanashiro Meneghetti de Letras Jurídicas e da Academia Brasileira de
Ora. em Direito Público pela Faculdade de Direito Ora. em Direito Internacional e Diplomada em Dr. em Educação. Me. e graduado em Adminis- Ciências Morais e Políticas. Miembro dei Insti-
da Universidade da Corunha. Prof.ª da Escola Su- Estudos Europeus pela Faculdade de Direito de tração. Prof. Universitário. tuto Ibero-Americano de Derecho Constitucional -
perior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado Lisboa. Prof.ª Universitária. Adv. e consultora ju- Francisco Carlos Duarte México. Miembro dei Consejo Asesor dei Anuario
e do Ave. rídica internacional. Ibero-Americano de Justicia Constitucional, Cen-
Dr. pela Universidade Técnica de Lisboa e pela Uni- tro de Estudios Políticos y Constitucionales (CEPC)
Christian Baldus Eloise Helena Livramento Dellagnelo versidad de Granada - Espanha. Dr. em Ciências Ju- - Madrid. Prof. Universitário.
Prof. da Faculdade de Direito da Ruprecht-Karls-Uni- Pós-Ora. pela Universidade de Essex - Inglaterra. rídicas e Sociais. Me. em Direito. Graduado em Di-
versitãt Heidelberg, Deutschland (Alemanha). Direc- Ora. em Engenharia de Produção. M.ª em Adminis- reito. Proc. do Estado do Paraná. Prof. Universitário. James José Marins de Souza
tor no lnstitut für geschichtliche Rechtswissenschaft tração. Bela. em Administração e em Letras - Por- Geraldo Balduíno Horn Pós-Dr. em Direito do Estado pela Universitat de
"Instituto para a Ciência Jurídica e Jurisprudencial tuguês e Inglês. Bolsa sanduíche na Escola de Ad- Barcelona - Espanha. Dr. em Direito do Estado
Dr. em Filosofia da Educação. Me. em Educação. pela PUC/SP. Professor.
Histórica": História do Direito; Direito romano; Direi- ministração Pública da University of Southern Cali- Esp. em Antropologia Filosófica. Graduado em Fi-
to civil (Direito das coisas; Direito das sucessões); fornia (USC) em Los Angeles. Prof.ª Universitária. losofia. Prof. Universitário. Jan-Michael Simon
Direito alemão e europeu e Direito comparado. Everton das Neves Gonçalves Jurista pela Faculdade de Direito de Rheinische
Germano André Doederlein Schwartz
Claudia Maria Barbosa Dr. em Derecho Internacional pela Universidad de Friedrich-Wilhelms-Universitat Bonn - Alemanha:
Dr., Me. e graduado em Direito. Estágio doutoral Direito penal, Direito processual penal, Direito in-
Ora., M.ª e Graduada em Direito. Prof.ª Universitá- Buenos Aires. Dr. e Me. em Direito, área de con- sanduíche na Université Paris X-Nanterre. Estágio
ria. Membro do Instituto Latinoamericano para una centração em Instituições Jurídico-Políticas. Gra- ternacional penal e Criminologi~.
Pós-Doutoral na University of Reading (UK). Prof.
Sociedad y un Derecho Alternativos - ILSA, com duado em Ciências Econômicas e em Direito pela Universitário.
sede na Colômbia. Consultora ad hoc do MEC. Faculdade de Direito. Professor.
Interpretação Contratual 321
320 Kirclmer
Luís Alexandre Carta Winter Márcio Bambirra Santos
Jane Lúcia Wilhelm Berwanger José Renato Gaziero Cella Dr. em Integração da América Latina. Me. em Inte- Dr. em Administração. Me. em Economia. Professor,
gração Latino-americana. Esp. em Filosofia da Edu- Administrador de Empresas, Economista, Esp. em
Doutora em Direito Previdenciário. M.ª em Direitos Dr. em Filosofia e Teoria do Direito. Me. em Di- cação. Graduado em Direito. Prof. Universitário. "Computação" e "Política Científico-Tecnológica".
sociais e Políticas Públicas. Prof.ª Universitária. reito do Estado. Pesquisador da Universidad de
Zaragoza - Espanha. Prof. Universitário. Luis Fernando Lopes Pereira Mareio Pugliesi
João Bosco Lee Dr. e LO. em Direito. Dr. em Filosofia. Dr. em Edu-
Pós-Dr. pela Università degli Studi di Firenze -
Dr. em Direito Internacional pela Université de José Renato Martins Itália. Dr. em História Social. Me. em História. cação. Bel. em Direito. Graduado em Filosofia.
Paris li. Me. em Direito Internacional Privado e do Dr. em Direito Penal. Me. em Direito Constitucio- Esp. em Pensamento Contemporâneo e em Histó- Prof. Universitário.
Comércio Internacional pela Université de Paris li. nal. Bel. em Direito. Prof. Universitário. ria e Cidade. Graduado em Direito e em História. Marcos Kahtalian
Graduado em Direito. Prof. Universitário. Prof. Universitário.
José Ricardo Vargas de Faria Me. em Multimeios pela Unicamp. Pós-graduado
João Paulo F. Remédio Marques Doutorando pelo Instituto de Pesquisa e Plane- em Administração de Marketing. Prof. de gradua-
Luísa Neto
Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni- jamento Urbano e Regional. Me. em Administra- ção e pós-graduação.
Ora. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Coimbra e Prof. Universitário da ção e Eng. Civil. Prof. Universitário.
versidade do Porto - Direito constitucional - Di- Marcos Wachowicz
mesma instituição.
José Sérgio da Silva Cristóvam reito biomédico e Direito da medicina. Prof.ª da Dr. em Direito. Me. em Direito pela Universidade
João lbaixe Junior Dr. em Direito Administrativo pela UFSC, com es- Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Clássica de Lisboa - Portugal. Graduado em Direi-
Me. em Direito. Pós-graduado em Filosofia. Pres. tágio de doutoramento na Universidade de Lisboa. Luiz Antonio Câmara to. Prof. Universitário.
do CEADJUS. Me. em Direito Constitucional pela UFSC. Advoga- Dr. e Me. em Direito. Prof. Universitário em cur- Margarida Azevedo Almeida
Jorge Cesar de Assis do publicista. Professor em cursos de graduação e sos de graduação, especialização e mestrado. Ooutoranda pela Faculdade de Direito da Univer-
pós-graduação em Direito. sidade de Coimbra: Direito privado. M.ª Prof.ª do
Graduado em Direito e em Curso de Formação de Luiz Carlos de Souza
Oficiais pela Academia Policial Militar do Guatupê. Joseli Nunes Mendonça Me. em Ciências Contábeis e Atuariais. Esp. em Instituto de Contabilidade e Administração do
Prom. da Justiça Militar. Prof. da Escola Superior Ora., M.ª e Graduada em História. Prof.ª Universitária. Administração Financeira e em Política e Estraté- Porto, Instituto Politécnico do Porto.
do Ministério Público da União. Membro do Mi- gia. Prof. Universitário. Margarida da Costa Andrade
Julimar Luiz Pereira
nistério Público da União.
Me. em Educação Física pela UFPR. Esp. em Luiz Henrique Sormani Barbugiani Ooutoranda pela Faculdade de Direito da Univer-
José Antonio Savaris Treinamento Desportivo. Graduação em Lic. em Me. em Direito pela USP. Pós-graduado lato sensu sidade de Coimbra: Direito privado. M. ª Prof.ª da
Dr. em Direito da Seguridade Social. Me. em Di- Educação Física. Prof. Universitário. em Direito Processual Civil, Direito Material e Pro- Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
reito Econômico e Social. Juiz Federal. cessual do Trabalho, Direito Tributário e Direito Sa- Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha
Lafaiete Santos Neves nitário. Graduado em Direito pela UNESP, com ha-
José Augusto Delgado Dr. em Desenvolvimento Econômico. Me. e gradua- bilitação especial em Direito Empresarial. Membro Pós-doutoranda em Direito. Ora. em Direito Cons-
Esp. em Direito Civil e Comercial. Bel. em Direito. do em História. Prof. Universitário. Pesquisador do Instituto Brasileiro de Direito Social titucional. M.ª em Ciências Jurídico-Políticas. Esp.
Cesarino Junior, Seção brasileira da "Société lnter- em Direito Constitucional. Prof.ª Universitária.
José Carlos Couto de Carvalho Lafayette Pozzoli nationale de Oroit du Travail et de la Sécurité Socia- Mário João Ferreira Monte
Subprocurador geral da Justiça Militar aposenta- Pós-Dr. pela Universidade La Sapienza - Roma. le" - SIDTSS. Membro do Instituto Brasileiro de
do. Prof. Universitário. Dr. e Me. em Filosofia do Direito. Graduado em Dr. em Ciências Jurídico-Criminais pela Universi-
Ciências Criminais - IBCCRIM. Membro do Insti-
Direito. Adv. Prof. Universitário. tuto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP. dade do Minho. Me. e Pós-graduado em ciências
Jose Edmilson de Souza Lima jurídico-criminais. Prof. Universitário.
Dr. em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Me. Lauro Brito de Almeida Manuel da Costa Andrade
Masako Shirai
em Sociologia Política. Dr. e Me. em Controladoria e Contabilidade pela Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Univer-
USP. Prof. Adjunto da UFPR. sidade de Coimbra: Direito público - Direito penal e Ora., M.ª e Graduada em Direito. Membro da Co-
José Elias Dubard de Moura Rocha Direito processual penal. Prof. Catedrático da Fa- missão de Exame da Ordem da OAB-SP e da Co-
Dr., Me. e graduado em Direito pela UFPE. Prof. Liana Maria da Frota Carleial culdade de Direito da Universidade de Coimbra. missão de Ensino Jurídico da OAB-SP.
Universitário. Pós-Ora. pela U!]iversité Paris XIII, no Centre de
Manuel Martínez Neira Massimo Meccarelli
José Engrácia Antunes Recherche en Economie lndustrielle (CREI) -
França. Ora. e M.ª em Economia. Graduada em Dr. em Direito. Prof. Universitário na Universidade Prof. Catedrático de História do Direito Medieval e
Dr. em Direito pelo Instituto Europeu de Florença: Ciências Econômicas. Prof.ª Universitária. Carlos Ili - Madrid. Moderno. Coord. do Programa de Doutorado em
Direito privado. Prof. da Faculdade de Direito da Mara Regina de Oliveira História do Direito da Università degli Studi di
Universidade Católica Portuguesa, Centro Regio- Lucas Abreu Barroso Macerata - Itália.
nal do Porto. Dr. em Direito. Prof. da Universidade Federal do Ora., M.ª e Bela. em Direito. Prof." Universitária.
Melissa Folmann
José Henrique de Faria Espírito Santo. Marcelo Pereira de Mello
M.ª em Direito pela PUCPR. Diretora Científica do
Dr. em Ciência Política. Me. em Sociologia. Gra-
Pós-Dr. em Labor Relations pelo lnstitute of Labor Lúcia Helena Briski Young duado em Ciências Sociais. Prof. Universitário. IBDP. Prof.ª da Graduação e Pós-graduação em Direi-
and Industrial Relations - ILIA - University of Michi- Esp. em Auditoria e Controladoria Interna, Gestão to Previdenciário e Proc. Previdenciário. Advogada.
gan (2003). Dr. e Me. em Administração. Gradua- Empresarial e Direito, Direito Tributário e Meto- Marcelo Weitzel Rabello de Souza
Néfi Cordeiro
ção em Ciências Econômicas. Prof. Universitário. dologia do Ensino Superior. MSc. em Coimbra - Portugal. Pres. da Associa-
ção Nacional do Ministério Público. Subprocura- Dr., Me. e graduado em Direito. Graduado em Enge-
José Ramón Narváez Luciano Salamacha . dor geral da Justiça Militar em Brasília. nharia e Oficial Militar pela Academia Policial Mili-
Dr. em Teoria e História do Direito pela Universi- Dr. em Administração. Me. em Engenharia de tar do Guatupê. Oes. Federal. P~o!. Universitário.
dade de Florença. Prof. associado da Univer- Produção. Pós-graduado em Gestão Industrial e
sidade Nacional Autônoma do México. MBA em Gestão Empresarial. Prof. Universitário.
Interpretação Contrahial 323
322 Felipe Kircbner
Salvador Antonio Mireles Sandoval Valdir Fernandes
Nuno M. Pinto de Oliveira Paulo Nalin Pós-Dr. pelo Center for the Study of Social Chan- Pós-Dr. em Saúde Ambiental. Dr. em Engenharia
Dr. em Direito pelo Instituto Europeu de Florença: Dr. em Direito das Relações Sociais. Pesquisa em ge, New School for Social Research. Dr. e Me. Ambiental. Me. em Engenharia Ambiental. Gradua-
direito privado, direito das obrigações e dos con- nível de Doutorado na Università degli Studi di Ca- em Ciência Política pela University of Michigan. do em Ciências Sociais. Academic Partner do pro-
tratos. Prof. da Escola de Direito da Universidade merino. Me. em Direito Privado. Prof. Universitário. Me. em Ciência Política pela University of Texas jeto Advancing Sustainability da Alcoa Foundation.
do Minho. - EI Paso. Graduado em Latin American Studies
Paulo Ricardo Opuszka pela University of Texas - EI Paso. Prof. Univer- Vanessa Hernandez Caporlingua
Nuria Belloso Martín Dr. em Direito. Me. em Direito, na área de Direito sitário. Prof. Assistente. Pesquisador convidado Ora. e M.ª em Educação Ambiental. Graduada em
Ora. em Direito pela Universidade de Valladolid. Cooperativo e Cidadania. Bel. em Direito. Prof. no David Rockefeller Center for Latin American Direito. Prof.ª e pesquisadora em cursos de gra-
Prof. Titular de Filosofia do Direito na Universidade Universitário. Studies, Harvard University como J. P. Lemann duação e no Programa de Pós-graduação em Edu-
de Burgos (Espanha). Coord. do Programa de Dou- Pedro Costa Gonçalves Visiting Scholar. cação Ambiental.
torado em Direito Público. Repres. do Opto. de Di- Vicente Brasil Jr.
reito na Comissão de Doutorado. Dirigente do Cur- Dr. em Direito Público pela Faculdade de Direito Samuel Rodrigues Barbosa
so de Pós-graduação "Especialista Universitário em da Universidade de Coimbra e Prof. Universitário Dr. em Teoria do Direito. Me. em Ciências da Reli- Me. e Esp. em Direito. Juiz do Tribunal Adminis-
Mediação Familiar"na Universidade de Burgos. da mesma instituição. gião. Graduado em Direito. Prof. Universitário. trativo Tributário do RS (TARF). Advogado e Con-
Rafael Rodrigo Mueller sultor Fiscal. Perito e Auditor Tributário. Professor
Octavio Augusto Simon de Souza Saulo Tarso Rodrigues
Dr. e Me. em Educação. Graduado em Administra- Universitário.
Me. no Alabama, EUA. Juiz do Tribunal de Justiça Pós-Dr. em Direito Constitucional e Teoria do Es-
Militar do Rio Grande do Sul. ção de Empresas. Prof. do Programa de Mestrado In- tado pela Uppsala University - Suécia. Dr. em Vittorio Olgiati
terdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento. Sociologia do Estado e do Direito na disciplina de Dr. em Sociologia do Direito. Prof. Associado da Fa-
Oksandro Osdival Gonçalves Direitos Humanos pela Faculdade de Economia da culdade de Direito da Universidade de Macerata -
Rainer Czajkowski
Dr. em Direito Comercial - Direito das Relações So- Universidade de Coimbra. Me. em Direito do Es- Itália.
Me. e graduado em Direito. Pró-Reitor Acadêmico
ciais. Me. em Direito Econômico. Prof. Universitário. tado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Vladimir Passos de Freitas
e Prof. Universitário.
Osmar Ponchirolli Prof. Universitário e Pesquisador.
Renata Ceschin Melfi de Macedo Dr., Me. e Lic. em Direito. Prof. Universitário de
Dr. e Me. em Engenharia de Produção. Esp. em Sergio Said Staut Jr. graduação e de pós-graduação.
Didática do Ensino Superior. Graduado em Filoso- M.ª e Graduada em Direito. Prof.ª Universitária
Lic. Dr. em Direito. Prof. Universitário. Vladmir Oliveira da Silveira
fia. Bel. em Teologia. Prof. Universitário.
Silma Mendes Berti Pós-Dr., Dr. e Me. em Direito. Graduado em Direito
Pablo Galain Palermo Ricardo Tinoco de Góes
Ora. e M.ª Graduada em Direito. Prof.ª Universitá- e em Relações Internacionais. Prof. Universitário.
Dr. em Direito pela Universidade de Salamanca - Doutorando em Filosofia do Direito. Me. em Direi-
ria. Juíza Auditora do Tribunal Eclesiástico da Ar-
Espanha: Direito penal, Direito processual penal e to. Prof. Universitário. Wladimir Brito
quidiocese.
Criminologia. Rivail Carvalho Rolim Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni-
Silvia Hunold Lara versidade de Coimbra: Direito público. Prof. da
Paolo Cappellini Pós-Dr. na Universidade de Barcelona em Socio-
logia Jurídica e Criminologia. Dr. em História. Prof. Ora. em História Social. Graduada em História. Escola de Direito da Universidade do Minho.
Prof. Catedrático de História do Direito Medieval e Prof.ª Universitária.
Moderno. Coord. do Programa de Doutorado em Universitário. Willis Santiago Guerra Filho
Tercio Sampaio Ferraz Jr. Pós-Dr. em Filosofia. Dr. em Ciência do Direito
Teoria e História do Direito. Diretor da Faculdade Roberto Catalano Botelho Ferraz
de Direito Università degli Studi di Firenze - Itália. Dr. em Direito Econômico e Financeiro. Me. em Dr. em Direito. Dr. em Filosofia pela Johannes pela Fakultãt für Rechtswissenschaft der Univer-
Gutemberg Universitat de Mainz. Graduado em sitãt Bielefeld. Me. e graduado em Direito. LO. em
Paula Távora Direito Público. Prof. Universitário. Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e em Ciên- Filosofia do Direito. Prof. Universitário.
Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universi- Roland Hasson cias Jurídicas e Sociais. Prof. Universitário.
Wilson Alberto Zappa Hoog
dade de Coimbra: Direito privado. M.ª Prof.ª da Fa- Dr., Me. e graduado em Direito. Prof. Universi- Thiago Rodrigues Pereira
culdade de Direito da Universidade de Coimbra. tário. Me. em Ciência Jurídica. Perito Contador Auditor.
Pós-Dr. em Direitos Humanos pela Universidade Prof. Doutrinador de Perícia contábil, Direito con-
Paulo Ferreira da Cunha Ronaldo João Roth Católica de Petrópolis - UCP. Dr. e Me. em Direito tábil e de Empresas em cursos de pós-graduação.
Dr. em Direito pela Faculdade de Direito da Uni- Juiz de Direito da Justiça Militar do Estado de pela UNESA/RJ. Prof. adjunto da UERJ e do PPGD
versidade de Coimbra e Dr. em Direito pela Uni- Wilson Furtado Roberto
São Paulo. Membro correspondente da Academia da UCP. Coord. adjunto do PPGD da UCP. Advo-
versidade de Paris li. Prof. Catedrático da Facul- Mineira de Direito Militar. Prof. Universitário. gado e Consultor Jurídico. Me. e Esp. em Ciências Jurídico-internacionais
dade de Direito da Universidade do Porto. pela Faculdade de Direito da Universidade Clás-
Rui Bittencourt sica de Lisboa. MBA em Gestão Empresarial pela
Paulo Gomes Pimentel Júnior Fundação Getulio Vargas. Bel. em Direito.
Me. em Direito. Advogado. Membro do Núcleo de
Doutorando da Universidade de Salamanca - Es- Pesquisa em Direito Civil e Constituição. Prof.
panha. Me. e graduado em Direito. Esp. em Di- Universitário.
reito e Cidadania. Pós-graduado em Jurisdição
Constitucional e Processos Constitucionais. Sady Ivo Pezzi Júnior
Me. em Educação e Trabalho pela UFPR. Pós-gra-
Paulo Mota Pinto
duado em Gestão da Qualidade pelo lnstiMo de
Dr. em Direito Privado pela Faculdade de Direito Tecnologia do Paraná. Pós-graduado em Marketing.
da Universidade de Coimba. Prof. da Faculdade Prof. e Coord. do Curso de Administração.
de Direito da Universidade de Coimbra. Deputado
da Assembleia da República Portuguesa.

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