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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DE VOLTA REDONDA

DEPARTAMENTO DE DIREITO – VDI

COORDENAÇÃO DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

CAROLINE GARCIA ERMANO

DA ESTRUTURA E DA FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

UM DEBATE ENTRE PONTES DE MIRANDA E EMÍLIO BETTI

VOLTA REDONDA

2017
CAROLINE GARCIA ERMANO

DA ESTRUTURA E DA FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

UM DEBATE ENTRE PONTES DE MIRANDA E EMÍLIO BETTI

Monografia apresentada ao Departamento de

Direito do Instituto de Ciências Humanas e

Sociais de Volta Redonda, como parte das

exigências do exame de qualificação para

obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Dalmir José Lopes

Junior

VOLTA REDONDA
2017
TERMO DE APROVAÇÃO

CAROLINE GARCIA ERMANO

DA ESTRUTURA E DA FORMAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

UM DEBATE ENTRE PONTES DE MIRANDA E EMÍLIO BETTI

Monografia aprovada pela Banca Examinadora do Curso de Direito da Universidade Federal

Fluminense – UFF

Volta Redonda, ........de ....................de ..............

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

Prof. Dr. Dalmir Lopes Jr – Universidade Federal Fluminense – Orientador

_________________________________________________

Prof. Dr. Matheus Vidal Gomes Monteiro – Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________

Prof.ª Dra. Patrícia Silva Cardoso – Universidade Federal Fluminense


AGRADECIMENTOS

Todo o esforço empenhado neste trabalho não seria possível sem o incentivo e a

motivação daqueles que sempre acreditaram no meu êxito: minha família. Quero agradecer

aos meus amados pais, Alessandra e Adivaldo, e ao meu irmão, Pedro, por estarem sempre

comigo em todo o caminho que percorri até chegar aqui, até minha formação. Obrigado por

sempre me encorajarem a atingir meus objetivos.

Aos meus professores durante todo o curso que sempre me inspiraram a pesquisar e a

conhecer cada vez mais, eu lhes agradeço. Minha admiração por vocês é enorme.

Em especial, ao meu professor orientador, Dalmir, que, sempre disposto e dedicado,

teve imprescindível participação neste trabalho. Sem você, professor, eu não o teria finalizado

com tamanha satisfação.


“Só se pode alcançar um grande êxito quando

nos mantemos fiéis a nós mesmos.”

(Friedrich Nietzsche)
RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a estrutura do negócio jurídico, mais
precisamente sobre os elementos de sua formação. O tema será analisado nas teorias de
Pontes de Miranda e de Emílio Betti, de forma mais aprofundada. O desenvolvimento se deu
a partir de pesquisa bibliográfica, em obras de diversos autores civilistas, dentre eles os
citados.
Inicialmente, reporta-se ao conceito de negócio jurídico e as teorias que explicam a vontade
na formação do mesmo. Em sequência, demonstra-se a dissonância doutrinária acerca da
formação do negócio e seus elementos estruturais. Adiante, principal objetivo do presente,
expõe-se o pensamento de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, autor cuja teoria ganhou
maior receptividade na civilística brasileira e, após, a teoria de Emílio Betti, jurista italiano e
precursor da teoria preceptiva do negócio, a qual é apresentada aqui como um contraponto e
uma segunda forma compreensiva sobre a formação do negócio jurídico.
O resultado é a demonstração de duas concepções distintas acerca da estrutura do negócio
jurídico, encontrando nas duas teorias seus aspectos diferentes sobre o instituto.

Palavras-chave: negócio jurídico; estrutura; formação; existência; elementos essenciais.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. p. 08

1 DO NEGÓCIO JURÍDICO E SUA DEFINIÇÃO ........................................................ p.

10

1.1 Das teorias voluntaristas do negócio jurídico ................................................................. p.

15

2 DAS DIVERSAS TEORIAS ACERCA DA ESTRUTURAÇÃO DO NEGÓCIO

JURÍDICO ......................................................................................................................... p. 21

3 DA ESTRUTURAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PELA TEORIA DE PONTES DE

MIRANDA.......................................................................................................................... p. 24

3.1 Da manifestação de vontade negocial e consciente......................................................... p.

27

3.2 Da capacidade de direito................................................................................................ p. 32

3.3 Da forma......................................................................................................................... p.

35

3.4 Do objeto ....................................................................................................................... p. 38

3.5 Dos elementos ou pressupostos especiais exigidos para determinados negócios

jurídicos................................................................................................................................ p. 40

3.5.1 Dos negócios jurídicos reais....................................................................................... p. 42

3.5.2 Da compra e venda...................................................................................................... p.

43

3.5.3. Dos negócios jurídicos mortis causa......................................................................... p. 43

3.5.4 Dos negócios jurídicos causais................................................................................... p. 44


4 DA ESTRUTURAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PELA TEORIA DE EMÍLIO

BETTI.................................................................................................................................. p.

45

4.1 Da forma: da declaração e do comportamento................................................................ p.

47

4.2 Do conteúdo.................................................................................................................... p.

56

CONCLUSÕES................................................................................................................... p.

62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. p.

65

INTRODUÇÃO

O negócio jurídico é um instrumento posto pelo direito à disposição dos particulares

para a regulação de seus interesses na vida em comunidade. É um ato de autonomia privada

que consiste na criação, na modificação e na extinção de direitos, de forma a tornar possível

as relações sociais.

A todo momento o homem moderno realiza negócios jurídicos. Seja compra e venda,

doação, ou qualquer outra modalidade de contrato ou negócio – aquele sendo espécie deste –

é intrínseco à vida em sociedade a realização constante de convenções negociais. Ele tem,

portanto, a função de tornar possível as relações jurídicas, recepcionadas pelo ordenamento

jurídico.

Apesar de existir consenso sobre a função dos negócios e da necessidade de cumprir

exigências legais para sua validade e eficácia, subsiste um certo dissenso sobre os elementos

necessários para a sua constituição. A doutrina não possui uma explicação satisfatória sobre
os elementos constitutivos do negócio jurídico. Por isso, neste trabalho tenta-se elucidar as

principais posições sobre quais elementos compõem seu suporte fático. Desse modo, o que

forma e estrutura um contrato ou qualquer outro tipo de convenção negocial? Pergunta-se:

quais os elementos que formam e estruturam o negócio jurídico?

Além do mais, não há, em nosso Código Civil, capítulo e nem dispositivos para

disciplinar os elementos considerados essenciais para a existência de um negócio jurídico.

Ainda em detrimento da omissão legislativa, é de vital importância o estudo da formação do

negócio, razão pela qual o presente trabalho tem preocupação intensamente conceitual e

doutrinária. Vale dizer, é de imensa relevância o estudo da formação do negócio, para que,

quando estiver formado e existir no mundo jurídico, possa a norma nele incidir e produzir

seus efeitos, sendo válido e eficaz.

A fim de imprimir uma visão mais abrangente sobre a estrutura do negócio jurídico,

não se ficou adstrito apenas à abordagem tradicional da civilística brasileira contemporânea –

na doutrina de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda –, mas se buscou uma perspectiva

diferente sobre aquilo que fundamenta o balizamento dos negócios jurídicos. Encontrou-se na

doutrina de Emilio Betti, Catedrático da Universidade de Roma, jurista italiano que representa

de forma significativa a concepção objetivista de negócio, o contraponto necessário para

estabelecer uma abordagem complexa da questão.


11

1 DO NEGÓCIO JURÍDICO E SUA DEFINIÇÃO

Antes de expor as diversas concepções dos autores sobre os elementos de formação do

negócio, imprescindível é a conceituação do negócio bem como a explicação sobre as teorias

voluntarista e objetivista que dele tratam.

O negócio jurídico constitui a principal forma de exercício da autonomia privada1,

compreendendo uma composição de interesses das partes com uma finalidade específica2.

Alguns exemplos típicos são os contratos, o casamento e o testamento.

Orlando Gomes assim declara a importância do tema dentro do Direito Privado:

A função mais característica do negócio é, porém, servir de meio de atuação


das pessoas na esfera de sua autonomia. É através dos negócios jurídicos
que os particulares auto-regulam seus interesses, estatuindo as regras a
que voluntariamente quiseram subordinar o próprio comportamento.
Domina atualmente o pensamento de que o negócio jurídico exprime o poder
de autodisciplina das próprias pessoas interessadas na constituição,
modificação ou extinção de uma relação jurídica, apresenta-se como
expressão da autonomia privada. Salienta-se a correlação entre negócio
jurídico e autonomia privada, dizendo-se que se a autonomia privada é o
poder de autodeterminação, e o negócio é o instrumento através do qual
o poder de autodeterminação se concretiza3.

É meio eficaz e relevante para estabelecer relações jurídicas, e com certo destaque

constitucional, por ser um corolário do princípio da livre iniciativa e da dignidade da pessoa

humana (art. 170 e 1º, III, da Constituição Federal de 1988). O negócio é instrumento

indispensável à própria existência social.

Enuncia Betti que:

1
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: Existência, Validade E Eficácia. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 16.
2
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 6. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 221.
3
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 264, grifo nosso.
12

A iniciativa privada é o aparelho motor de qualquer consciente regulamento


recíproco de interesses privados. (...) Os negócios jurídicos têm a sua
gênese na vida de relações: surgem como actos por meio dos quais os
particulares dispõem, para o futuro, um regulamento obrigatório de
interesses das suas recíprocas relações, e desenvolvem-se,
espontaneamente, sob o impulso das necessidades, para satisfazer
diversíssimas funções económico-sociais, sem a ingerência de qualquer
ordem jurídica. Pense-se, antes de mais, no contrato que se realiza, sob a
forma mais rudimentar, a função da troca de mercadorias: a permuta. É
inegável que a vemos universalmente praticada, até por tribos selvagens,
entre as quais não há quaisquer vestígios de um estado, tanto nas relações
entre elas, como nas relações com os povos civilizados4.

A importância prática de tal instituto é demonstrada, por exemplo, pela constatação de

que todo contrato é um negócio jurídico, sem exceções. A sociedade moderna celebra dezenas

de milhões de contratos dia a dia, destacando-se, portanto, o prestígio do tema5.

Pontes de Miranda define o negócio jurídico nos seguintes termos:

A prestante função do conceito de negócio jurídico está em servir à distinção


entre negócio juridico e ato jurídico não-negocial ou stricto sensu, naqueles
casos em que o suporte fático do ato jurídico “stricto sensu” consiste em
manifestação de vontade. Frisemo-lo bem: manifestação de vontade; para
que não incorramos no erro de definirmos como coextensivos, superponíveis
de modo completo, a manifestação de vontade (suporte fático) e o negócio
jurídico, que é apenas uma das classes dos atos jurídicos em que há, como
elemento fático, manifestação de vontade. O conceito surgiu exatamente
para abranger os casos em que a vontade humana pode criar, modificar
ou extinguir direitos, pretensões, ações, ou exceções, tendo por fito êsse
acontecimento do mundo jurídico. Naturalmente, para tal poder fáctico
de escolha supõe-se certo auto-regramento de vontade, dito “autonomia
da vontade”, por defeito de linguagem (nomos é lei); com esse
auto-regramento, o agente determina as relações jurídicas em que há de
figurar como termo. De antemão, excluamos a confusão entre o negócio
jurídico e o suporte fático (negotium) do negócio jurídico. Negócio jurídico
é classe de fatos jurídicos; e não de suportes fáticos. Negócio juridico já é
o suporte fático, o negotium, após a entrada dêsse no mundo juridico6.

4
BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. 1. ed. Coimbra: ed. Coimbra, 1969, tomo I. p. 89, grifo
nosso.
5
AZEVEDO, Fábio de Oliveira de. Direito Civil: Introdução e Teoria Geral. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2011. p. 350.
6
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor
Borsoi, 1970, tomo III. § 249, p. 3, grifo nosso.
13

Pontes aduz que “todo negócio jurídico cria relação jurídica, constituindo, ou

modificando, ou constituindo negativamente (extintividade) direitos, pretensões, ações, ou

exceções”7. O que se estabelece, pois, pelos interessados no negócio é a sua eficácia, não se

confundindo esta com a vontade8.

Emílio Betti, por sua vez, ao conceituar o negócio jurídico como um ato de autonomia

privada, assim enuncia:

A manifestação precípua desta autonomia é o negócio jurídico, o qual,


precisamente, é concebido como um acto de autonomia privada, a que o
direito liga o nascimento, a modificação ou a extinção de relações
jurídicas entre particulares. Estes efeitos jurídicos produzem-se na medida
em que são previstos por normas que, tomando por pressusposto de facto o
acto de autonomia privada, os ligam a ele como sendo a fatispécie necessária
e suficiente9.
(...) é o acto pelo qual o indivíduo regula, por si, os seus interesses, nas
relações com outros (acto de autonomia privada): acto ao qual o direito
liga os efeitos mais conformes à função económico-social que lhe caracteriza
o tipo (típica neste sentido)10.

Vale transcrever ainda outro trecho da obra de Betti:

O negócio é instrumento de autonomia, precisamente no sentido de que é


posto pela lei à disposição dos particulares, a fim de que possam servir-se
dele, não para invadir a esfera alheia, mas para comandar na própria casa,
isto é, para dar uma organização básica aos interesses próprios de cada um,
nas relações recíprocas11.

Na esteira de Orlando Gomes, “negócio jurídico é toda declaração de vontade

destinada à produção de efeitos jurídicos correspondentes ao interno prático do declarante, se

reconhecido e garantido pela lei”12.

7
Idem. Ibidem. tomo III, § 250, item 1, p. 8.
8
Assim dispõe o autor “O que os interessados no negócio jurídico estabelecem não é mais do que eficácia do
negócio jurídico; não e, sequer, vontade que permanece, nem se há de confundir a vontade, que traçou a conduta
futura e o futuro do próprio negócio jurídico, com a eficácia do negócio jurídico que aponta essa conduta e faz
preestabelecido o futuro do negócio jurídico.” (Idem. Ibidem. tomo III, § 250, item 1, p. 9)
9
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 98, grifo nosso.
10
Idem. Ibidem. p. 107-108, grifo nosso.
11
Idem. Ibidem p. 102.
12
GOMES, Orlando. Op. Cit., p. 269.
14

Importante destacar que o negócio é, de acordo com a doutrina majoritária, espécie de

ato jurídico lato sensu, que, por sua vez, é espécie de fato jurídico lato senso. Portanto, fato

jurídico é gênero, no qual são espécies atos jurídicos em sentido amplo (ou lato sensu) e fatos

jurídicos em sentido estrito (ou stricto sensu).

Para uma conceituação dos fatos jurídicos, estes são, segundo Emílio Betti:

(...) aqueles fatos a que o direito atribui relevância jurídica, no sentido de


mudar as situações anteriores a eles e de configurar novas situações, a que
correspondem novas qualificações jurídicas. O esquema lógico do facto
jurídico reduzido à expressão mais simples, obtém-se estudando-o como um
facto dotado de certos requisitos pressupostos pela norma, o qual incide
sobre uma situação pré-existente (inicial) e a transforma numa situação nova
(final), de modo a constituir, modificar ou extinguir, poderes e vínculos, ou
qualificações e posições jurídicas13.

Nos fatos jurídicos, a nova situação jurídica estabelecida pela norma não se produz

enquanto não se verificar, inteiramente, a hipótese de fato, ou seja, o suporte fático. Isso inclui

o negócio, pois, como se verá, este é subespécie daquele.

A diferenciação entre as duas espécies de fatos jurídicos em sentido amplo – atos

jurídicos em sentido amplo e fatos jurídicos em sentido estrito – se reporta à relevância

jurídica reconhecida, ou não, à consciência e à vontade humana, segundo Emílio Betti14.

Outros autores, como Marcos Bernardes de Mello, de forma um pouco diversa, diferem as

duas categorias pela presença ou não de conduta humana volitiva à base do suporte fático15.

13
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 20.
14
Betti critica a doutrina que distingue os fatos jurídicos em fatos voluntários (atos) e fatos naturais (fatos em
sentindo estrito), sendo desprovida de interesse e equívoca: “Na realidade, a distinção entre actos e factos
jurídicos, só tem sentido na medida em que tome por base o modo como a ordem jurídica considera e valoriza
um determinado facto. Se a ordem jurídica toma em consideração o comportamento do homem em si mesmo e,
ao atribuir-lhe efeitos jurídicos, valoriza a consciência que, habitualmente, o acompanha, e a vontade que,
normalmente, o determina, o facto deverá qualificar-se como acto jurídico. Mas deverá, pelo contrário,
qualificar-se como facto, quando o direito tem em conta o fenómeno natural como tal, prescindindo de eventual
concorrência da vontade: ou então quando ele considera, realmente, a acção do homem sobre a natureza exterior,
mas, ao fazê-lo, não valora tanto o acto humano em si mesmo, quanto o resultado de facto que ele tem em vista;
quer dizer, a modificação objectiva que ele provoca no estado de coisas pré-existente.” (Idem. Ibidem. p. 30)
15
“Parece evidente que a presença de uma conduta humana como componente cerne de suporte fáctico
estabelece uma diferença substancial entre os fatos jurídicos. Analisando o mundo do direito, sob esse aspecto,
constatamos que há fatos jurídicos cujos suportes fácticos são integrados: (a) por simples fatos da natureza ou do
animal, que prescindem portanto, para existir, de ato humano; são os fatos jurídicos stricto sensu, lícitos e
15

Os atos jurídicos lato senso (ou em sentido amplo), por sua vez, se dividem em: ato

jurídico stricto sensu e negócio jurídico.

Betti, em sua obra, expõe que:

A consideração em que o direito toma um comportamento do homem como


acto jurídico, consiste (...) em reconhecer a esse comportamento relevância
jurídica, com base numa valoração da consciência que, habitualmente, o
acompanha, e da vontade que, normalmente, o determina16.

Nesta esteira, prevalece a teoria dualista que, adotada pelo nosso Código Civil, tem

origem alemã (bem como italiana), tendo sido objeto de extensa abordagem por Pontes de

Miranda. Há, para tal teoria, duas espécies de atos jurídicos: atos jurídicos stricto sensu (ou

não negociais) e os negócios jurídicos. A diferença entre as duas espécies consiste em que nos

atos jurídicos stricto sensu os efeitos decorrem da lei, as pessoas envolvidas não podem

alterar as categorias de eficácia (por exemplo, reconhecimento de filho). Já nos negócios

jurídicos, o sistema jurídico deixa ampla margem para que as partes determinem as sutilezas

de eficácia que o negócio terá (por exemplo, contratação de shows musicais por

empresários)17.

O Código Civil de 2002 inovou ao disciplinar sobre o negócio jurídico. O Código

anterior, de Clóvis Beviláqua, elaborado em 1899 não dispensou tratamento específico a estes,

mas apenas aos atos jurídicos. Porém, no atual Código, de lavra do Ministro Moreira Alves,

há a disciplina dos negócios sem se desconsiderar os atos jurídicos em sentido estrito18.

ilícitos; (b) outros, diferentemente, têm à sua base, como elemento essencial (cerne), um ato humano; entre estes:
(b.a) há alguns em que, embora a conduta humana lhe seja essencial à existência, o direito considera irrelevante
a circunstância de ter, ou não, havido vontade em praticá-la, dando mais realce ao resultado fáctico que dela
decorre do que a ela própria: são os atos-fatos jurídicos, lícitos e ilícitos; (b.b) em outros, porém, a vontade em
praticar o ato não somente é relevante, como constitui o próprio cerne do fato jurídico. São os atos jurídicos lato
sensu, que se subdividem em atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos e atos lícitos.” (MELLO, Marcos
Bernardes de. Teoria Do Fato Jurídico: Plano Da Existência. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 122)
16
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 30.
17
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito Civil:
Volume Único. 1. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 490.
18
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodoldo Pamplona. Novo curso de direito civil: Parte Geral. 13. ed.
São Paulo: Saraiva, 2011, v. 1. p. 347.
16

Assim explicam Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald:

O conceito de negócio jurídico ‘é relativamente recente na doutrina jurídica.


Ainda que seu desenvolvimento inicial possa ser atribuído aos jusnaturalistas
do século XVIII, deve-se em grande medida aos juristas alemães do século
XIX, denominados pandectistas, notadamente no auge da jurisprudência dos
conceitos. O direito romano não o desenvolveu, nem os direitos que o
sucederam, como o português, no qual predominavam os tipos empíricos.
Contudo, a doutrina foi construída mediante abstração dos elementos
extraídos do direito romano. No direito brasileiro, seu ingresso se deu em
meados do século XX, por influência dos autores alemães e italianos; sua
consagração ocorreu em 1975, no anteprojeto do Código Civil atual’. Os
alemães usam o termo Rechtsgeschäfte, criado por Ritter Hugo. O Código
Civil alemão, aliás, é apontado como o primeiro a acolher, com
especificidade, o conceito de negócio jurídico19.

Portanto, em sede de nossa legislação o negócio jurídico é, como acima exposto, um

conceito novo, e, assim, precisa de mais desenvoltura de sua matéria, sobretudo sobre os

elementos que o estruturam.

1.1 Das teorias voluntaristas do negócio jurídico

Aspecto de grande relevância também é a diferenciação entre a teoria da vontade e a

teoria da declaração no âmbito dos negócios jurídicos. A doutrina, na conceituação de

negócio, ora o define como ato de vontade, ora como um preceito. O primeiro estaria

relacionado ao termo “autonomia da vontade”, enquanto a segunda corrente ao termo

“auto-regramento da vontade”20.

O negócio jurídico é, para os voluntaristas, a mencionada declaração de


vontade dirigida à provocação de determinados efeitos jurídicos, ou, na
definição do Código da Saxônia, a ação da vontade que se dirige, de acordo
com a lei, a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. Os
objetivistas concebem-no como expressão da autonomia privada. Seu

19
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Op. Cit., p. 489.
20
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. Cit., p.1-2.
17

conteúdo seria preceptivo, tendo, pois, essência normativa, um poder privado


de autocriar um ordenamento jurídico próprio21.

A corrente voluntarista adota a teoria da vontade interna, isto é, o negócio tem sua

existência ou gênese na própria manifestação de vontade. As definições voluntaristas são as

mais antigas em relação às objetivistas. Para Antônio Junqueira de Azevedo, a conceituação

de negócio pela doutrina voluntarista consubstanciaria na “manifestação de vontade destinada

a produzir efeitos jurídicos, ou em ato de vontade dirigido a fins práticos tutelados pelo

ordenamento jurídico”22. Ainda segundo o autor, o pressuposto básico da concepção

voluntarista é “a vontade dos efeitos (jurídicos ou práticos) que caracteriza o negócio

jurídico”23.

Fábio de Oliveira Azevedo enuncia que “a definição voluntarista ou genética leva em

consideração o principal elemento do negócio jurídico, que é a possibilidade de a vontade

humana regular os efeitos desejados, que é a sua perspectiva psicológica”24. O mesmo autor

ainda destaca que se trata de uma concepção liberal do negócio jurídico, embasada em uma

liberdade quase sem limites.

Ainda, esclarecedoras as palavras de Orlando Gomes:

A concepção voluntarista do negócio suscita questões de grande interesse


prático, consistindo a principal em saber se deve prevalecer a vontade real ou
a declarada, se divergentes. Predomina a opinião de que o elemento
verdadeiramente provocador dos efeitos jurídicos é a vontade real. De
acordo com esse entendimento, é necessário, nas expressões de Scialoja, não
só que a declaração seja querida, mas, também, que seu conteúdo
corresponda à intenção interior do declarante, vale dizer àquilo que
realmente quis25.

21
GOMES, Orlando. Op. Cit., 270.
22
Idem. Ibidem. p. 4.
23
Idem. Ibidem. p. 7.
24
AZEVEDO, Fábio de Oliveira de. Op. Cit., p. 351.
25
GOMES, Orlando. Op. Cit., p. 271.
18

Portanto, a teoria voluntarista faz prevalecer a vontade interna do agente, sua intenção,

atendendo à uma perspectiva de valorização da psique, em detrimento da declaração presente

no negócio.

A grande crítica à corrente voluntarista – não seria a única, porém, de grande

significância – é que esta trata da perspectiva psicológica do agente, fundada no dogma da

vontade, que sofreu pesada crítica de Betti26.

A corrente objetivista ou “teoria preceptiva”, como denominou Scognamiglio, tem

como representantes Bullow, Henle e Larenz, na Alemanha, e Betti, na Itália. Para esta teoria,

“o negócio jurídico constitui um comando concreto ao qual o ordenamento jurídico reconhece

eficácia vinculante”27.

Os opositores da teoria voluntarista negam à intenção o caráter de vontade


propriamente dita, sustenta que o elemento produtor dos efeitos jurídicos é a
declaração. A teoria objetivista, esboçada por Von Bulow, cobrou atento na
obra de autores italianos contemporâneos. No pensamento de seus adeptos, a
essência do negócio jurídico encontra-se na autonomia privada, isto é, no
poder de auto-regência dos interesses, que contém a enunciação de um
preceito, independente do querer interno. O negócio seria ‘norma concreta
estabelecida pelas partes’. Tem, na autonomia privada, seu pressuposto e
causa geradora, mas, nem por isso, pode ser qualificado como preceito dessa
autonomia28.

Para os objetivistas, a valorização paira na declaração, no preceito de autonomia

privada, e não da vontade interna – como nos voluntaristas.

Tal é a doutrina de Emílio Betti:

Na medida em que é reconhecida pela ordem jurídica, ela não é chamada a


criar, e nem sequer a integrar, qualquer norma jurídica, mas a realizar a
hipótese de facto de uma norma já existente, dando vida, entre particulares,
àquela relação jurídica que essa norma estabelece. Só neste sentido pode
considerar-se reconhecida aos indivíduos, pela ordem jurídica, uma
competência dispositiva; não no sentido de que a ordem jurídica delega neles

26
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. Cit., p. 8-9.
27
Idem. Ibidem. p. 11-12.
28
GOMES, Orlando. Op. Cit., p. 271.
19

uma parte da competência normativa, assim os transformando em órgãos


seus. Bem longe de se fundar numa delegação de poderes, numa investidura
do alto, a competência dispositiva dos particulares deriva do facto de a
ordem jurídica reconhecer e sancionar uma autonomia, que os próprios
particulares já realizam no terreno social, nas relações entre eles.
Precisamente esta autonomia extra-jurídica, entendida como o facto social do
auto-regulamento de interesses próprios, dá-nos, antes de mais, a razão do
reconhecimento e da sanção por parte da ordem jurídica29.

Precursor da teoria preceptiva do negócio, Betti expõe que a vontade, como fato

psicológico meramente interno, consiste em qualquer coisa, incompreensível e incontrolável,

que pertence ao foro íntimo da consciência individual, apenas30. In verbis:

Só na medida em que se torne reconhecível no ambiente social, quer por


declarações quer por comportamentos, ela passa a ser um facto social,
susceptível de interpretação e de valoração, por parte dos consociados.
Somente declarações ou comportamentos são entidades socialmente
reconhecíveis e, portanto, capazes de poder constituir objeto de
interpretação, ou instrumento de autonomia privada. O facto de, na
interpretação e valoração de declarações e comportamentos, não devemos
deter-nos na forma exterior ou literal da conduta alheia, devendo, antes
procurar descobrir-se a mens animadora, ou o sentido nela objectivado, não
significa que mens e sentido se possam adivinhar, prescindindo da forma sob
que se tenham tornado reconhecíveis. Só um dado objetivo, uma entidade
reconhecível, precisamente, no ambiente social, pode ser objeto de
interpretação e de valoração social31.

Betti ensina que a declaração tem natureza preceptiva ou dispositiva, e, desta forma,

caráter vinculativo (o que será tratado mais adiante). O comportamento concludente também

dispõe deste caráter. Ressalta que a vontade, entendida não como fato psicológico individual

do querer, mas como orientação concreta e tomada de posição, em relação a certos interesses,

deve se tornar exteriormente reconhecível no ambiente social, para poder adquirir relevância e
29
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 101, grifo nosso.
30
“Uma definição, ainda hoje comum na doutrina, onde se tornou translatícia por uma espécie de inércia mental,
caracteriza, ao invés, o negócio como uma manifestação de vontade, destinada a produzir efeitos jurídicos. Mas
esta qualificação formal, frágil e incolor, inspirada no <<dogma da vontade>>, não lhe apreende a essência, a
qual está na autonomia, no auto-regulamento de interesses nas relações privadas, como facto social:
auto-regulamento, portanto, que o particular não deve limitar-se a desejar, a <<querer>>, na esfera interna da
consciência, mas antes a preparar, ou seja, a realizar objectivamente. (...) Nega-se, apenas, que a vontade se
encontre, no negócio, em primeiro plano, e que a concordância entre os efeitos jurídicos e a função ou razão
(causa) do negócio, também deva, ela própria, ser querida, como se pretende quando se postula uma vontade
individual orientada para os efeitos jurídicos.” (BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 111-114)
31
Idem. Ibidem. p. 109, grifo nosso.
20

obter a tutela da ordem jurídica32. Ao contrário da vontade, interna e inseparável da pessoa,

incontrolável, o preceito é estabelecido, uma atitude exprimida externamente no ambiente

social, e, em razão disso, verificável sem a possibilidade de equívocos.

A teoria da declaração, valorizando a vontade declarada, seria uma fase para se chegar

à teoria objetivista, como enuncia Junqueira de Azevedo 33.

No direito brasileiro destaca-se Antônio Junqueira de Azevedo que, em tentativa de

conciliar as duas teorias – voluntarista e objetivista – criou o critério “estrutural”, para quem

“negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o

ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os

pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele

incide”34.

Fábio de Oliveira Azevedo35 expõe que, para Antônio Junqueira, o negócio jurídico

não consiste em um ato de vontade pura e simplesmente; é uma manifestação de vontade

qualificada, a que se atribuirá o nome declaração de vontade. Quer dizer que há uma

manifestação de vontade, porém, esta é cercada de certas circunstâncias, inexistentes no ato

jurídico em sentido estrito, denominadas circunstâncias negociais36.

32
Idem. Ibidem. p. 133.
33
Idem. Ibidem. p. 10.
34
“A referência ao negócio jurídico como um poder da vontade o associa à teoria da vontade, enquanto a alusão
a autorregramento o vincula à teoria objetivista. Eis aí a razão que levou Antônio Junqueira de Azevedo a
‘concluir que as duas concepções do negócio são insuficientes; impõe-se a adoção de uma terceira concepção’.”
(AZEVEDO, Fábio de Oliveira de. Op. Cit., p. 353)
35
Idem. Ibidem. p. 353.
36
Apesar de louvável trabalho elaborado por Antônio Junqueira de Azevedo, mais acertada é a adoção à teoria
objetivista, a qual se perfilha o presente trabalho. Até mesmo o autor, ao definir o negócio, assim o faz como
“todo fato jurídico consistente em declaração de vontade...”. Nota-se que, em regra, mesmo para o autor, a
valorização deve ser da declaração, de forma que esta constitui o negócio, e não a vontade interna do agente. Não
se pode, ao mesmo tempo, valorizar a vontade interna e a declaração. O que deve preponderar é a segunda em
relação à primeira, até mesmo em atenção aos ditames da boa-fé objetiva e da segurança jurídica que norteiam o
ordenamento jurídico. A teoria criada, denominada “estrutural” em muito se aproxima das teorias objetivistas,
uma vez que valoriza a vontade declarada, e não o caráter psíquico do agente. A semelhança pode ser percebida
em tal trecho da obra de Junqueira: “O importante na caracterização do negócio é salientar que, se, em primeiro
lugar, ele é um ato cercado de circunstâncias que fazem com que socialmente ele seja visto como destinado a
produzir efeitos jurídicos, em segundo lugar, a correspondência, entre os efeitos atribuídos pelo direito (efeitos
jurídicos) e os efeitos manifestados como queridos (efeitos manifestados), existe, porque a regra jurídica de
atribuição procura seguir a visão social e liga efeitos ao negócio em virtude da existência de manifestação de
vontade sobre eles.” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Op. Cit., p. 19)
21

Em suma, importante é deixar claro que a teoria da vontade (Willenstheorie) sustenta

que a vontade real prevalece; e a teoria da declaração (Erklärungstheorie) sustenta o

contrário, que deve prevalecer a declaração feita, objetivada.

Para Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald o Código

Civil atual pareceu trilhar um caminho intermediário, enunciando, no art. 112: “Nas

declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido

literal da linguagem”37. A afirmação, porém, não é uníssona na doutrina. Ana Luisa Maia

Nevares entende que o Código Civil atual, em seu art. 112, adotou a prevalência da declaração

de vontade em detrimento da vontade interna, sendo expressão da teoria objetivista:

Já no Código Civil de 2002 adota-se a teoria da confiança na interpretação


dos negócios jurídicos. Consoante o disposto no art. 112 deste Código, nas
declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas
do que ao sentido literal da linguagem. Tem-se em vista não a intenção
interna ou real do declarante, mas aquela consubstanciada na declaração de
vontade, ou seja, aquela que emerge para o destinatário da declaração, ou,
em outras palavras, aquela que é absorvida pelo destinatário da declaração38.

2 DAS DIVERSAS TEORIAS ACERCA DA ESTRUTURAÇÃO DO NEGÓCIO

JURÍDICO

Visto isto, quais seriam os elementos que formam e estruturam o negócio? Dito de

outra forma, o que é necessário para que o negócio se forme ou exista, e nele incida a norma

jurídica? A resposta guarda alto nível de complexidade e está longe de ser uníssona na

doutrina brasileira e até mesmo estrangeira. No presente capítulo, expõem-se as diversas

concepções sobre a estrutura do negócio jurídico, e como elas divergem entre si.

37
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Op. Cit., p. 491.
38
NEVARES, Ana Luisa Maia. O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no Código Civil de 2002. In:
TEPEDINO, Gustavo (Org.) A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 263.
22

Explica Pontes de Miranda:

Ou algo entrou ou se produziu e, pois, é, no mundo jurídico; ou nêle não


entrou, nem se produziu dentro dêle, e, pois, não é. (...) O ser juridicamente e
o não-ser juridicamente separam os acontecimentos em fatos do mundo
jurídico e fatos estranhos ao mundo jurídico. Assente que todo fato jurídico
provém da incidência da regra jurídica em suporte fático suficiente, ser é
resultar dessa incidência39.

O suporte fático, à que aludimos, faz referência “a algo (=fato, evento ou conduta) que

poderá ocorrer no mundo e que, por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da

normatividade jurídica”40. Betti propõe o termo fattispecie para designar o suporte fático do

negócio jurídico41.

A norma jurídica, considerada no seu arranjo lógico, consta de uma previsão


e de uma disposição correspondente. Isto é, prevê, em abstracto e em geral,
hipóteses de facto, classificadas por tipos e, ao mesmo tempo, orientadas
segundo as directivas de uma valoração jurídica – hipóteses que, em
terminologia técnica, são denominadas fattispecie –, e estabelece-lhes um
tratamento apropriado, relacionando com elas, através de uma síntese
normativa, como se fossem <<efeitos>>, situações jurídicas
correspondentes. Logo que se realiza, em concreto, um facto ou uma relação
da vida social, que, enquadrado na sua moldura circunstancial, apresente os
requisitos previstos e corresponda ao tipo de fatispécie contemplado,
intervém a síntese, o nexo estabelecido pela norma, de um modo hipotético,
entre aquele tipo de fatispécie e a correspondente disposição: isto é,
produz-se a nova situação jurídica disposta em previsão42.

O que se busca identificar é o conjunto de fatos que devem estar presentes para que o

negócio jurídico se forme, vale dizer, qual seria o seu suporte fático ou fatispécie. Na

legislação privada brasileira não há disposição sobre tais elementos do suporte fático. Além

disso, não encontram concordância na doutrina.

39
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Editor
Borsoi, 1954 tomo IV, § 358, item 1, p. 8.
40
MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 41.
41
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 17-18.
42
Idem. Ibidem. p. 17-18.
23

Desta forma, enunciam-se, a seguir, as diversas posições dos autores, quais elementos

os juristas aduzem como sendo estrutura do negócio jurídico.

Pontes de Miranda considera como elementos que configuram o suporte fático do

negócio jurídico a manifestação de vontade – com finalidade negocial e consciente –, a

capacidade de direito, a forma e o objeto.

Fábio Oliveira de Azevedo enuncia como elementos essenciais genéricos do negócio:

o sujeito, o objeto, a forma e a declaração de vontade. O autor segue a tricotomia de Pontes de

Miranda, adotando, ainda, os mesmos elementos deste, como se verá nos capítulos ulteriores.

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho elencam como elementos constitutivos do

negócio jurídico a manifestação de vontade, o agente emissor da vontade, o objeto e a

forma43. Tais autores adotam a divisão dos planos da existência, validade e eficácia de Pontes

de Miranda.

Para Francisco Amaral, os elementos constitutivos, isto é, que compõem a estrutura do

negócio jurídico, são: a vontade, o objeto, e a forma44.

José Abreu Filho, por sua vez, enuncia os seguintes elementos estruturais ao negócio

jurídico: a vontade (exteriorizada por meio da declaração), a idoneidade do objeto em relação

ao negócio jurídico, a causa e a forma. Esta estará presente se for da substancia do ato45.

A doutrina de Silvio Rodrigues ensina que, entre os elementos essenciais, figuram a

vontade humana, revelada através da declaração, a idoneidade do objeto e a forma46.

Carlos Roberto Gonçalves, por outro lado, enuncia como requisitos de existência do

negócio – os seus elementos estruturais – a declaração de vontade, a finalidade negocial e a

idoneidade do objeto. Faltando qualquer destes, segundo o autor, o negócio inexiste47.

43
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodoldo Pamplona. Op. Cit., p. 360.
44
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. p. 397, apud AZEVEDO, Fábio de Oliveira de. Op. Cit., p.
355.
45
FILHO, José Abreu. O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 111.
46
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1. p. 171.
47
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v. 1.
p. 350.
24

Orlando Gomes, em sua obra, elenca como requisitos de existência – o autor assim os

denomina – a declaração de vontade, a causa e a forma48.

Caio Mário não adota a tricotomia de Pontes de Miranda, e o respectivo plano da

existência49, que aqui se destrincha. O autor segue a doutrina francesa, e trata apenas da

validade do negócio, não tratando de sua existência e formação. Destaca, ainda, a causa como

“elemento” dos negócios jurídicos, principalmente os bilaterais.

Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald elencam como

elementos do negócio: agente capaz, objeto lícito, possível, e determinado ou determinável e

forma prescrita ou não defesa em lei. Consideram os autores os elementos de validade

enunciados no art. 104 do Código Civil pátrio, não considerando, portanto, elementos de

existência do negócio50.

Emílio Betti estrutura o negócio a partir de dois elementos: forma e conteúdo. O

primeiro consiste numa declaração ou num comportamento concludente, enquanto o conteúdo

abarca o preceito de autonomia privada regulamentado pelas partes, que, recepcionado pelo

ordenamento jurídico pela sua relevância social, expressa os interesses destas na realização do

negócio51.

Portanto, demonstrada está a falta de unissonância dos autores em relação à estrutura e

formação dos negócios jurídicos. O presente trabalho busca investigar a concepção de dois

autores que, entre os citados, se destacam.

Desta forma, analisa-se nos próximos capítulos, de forma mais aprofundada, a

doutrina de Pontes de Miranda, e a de Emílio Betti. Pontes de Miranda tem grande relevância

na civilística brasileira, a maioria dos autores o seguem. De forma diferente deste, Emílio

48
GOMES, Orlando. Op. Cit., p. 363.
49
Ao contrário do que afirma Tartuce, em sua obra, para quem Caio Mário adota a teoria da inexistência do ato
ou do negócio jurídico (TARTUCE, Flávio. Op. Cit., p. 230). Discordamos da afirmação, uma vez que o autor
trata diretamente da validade do negócio, ignorando sua (in)existência (PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Instituições De Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 1. p. 309-313).
50
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Op. Cit., p. 504-508.
51
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 243-328.
25

Betti expõe a formação do negócio também de forma notável, que merece total consideração e

destaque.

3 DA ESTRUTURAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PELA TEORIA DE PONTES

DE MIRANDA

Antes de se adentrar nos elementos que Pontes de Miranda considera como integrantes

do suporte fático do negócio jurídico, insta esclarecer que o autor divide toda a lógica do

negócio em planos. Assim enfatiza:

Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de
validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da
existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é
possível pensar-se em validade ou em invalidade. Nem tudo que existe é
suscetível de a seu respeito discutir-se se vale, ou se não vale. (...) Os
conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a
atos humanos que entraram (plano da existência) no mundo jurídico e se
tornaram, assim, atos jurídicos52.

Para ele, a existência do negócio constitui o primeiro plano (plano da existência); a

validade seria o segundo plano (plano da validade); e a eficácia estaria no terceiro plano

(plano da eficácia). Estes são cumulativos, de forma que, ao se analisar o segundo plano, para

dizer se o negócio é válido ou não, isto é, se incide ou não uma causa de nulidade ou

anulabilidade, ele deve existir, deve ter cumprido os elementos do plano da existência53. O

negócio é nulo ou anulável quando alguma regra jurídica sobre nulidade ou anulabilidade o

atinge, porém entra no mundo jurídico.

52
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo IV, § 357, item 1, p. 6-7.
53
“Existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz,
ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia (H. KELSEN,
Hauptprobleme, 14). O que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há
validade, ou eficácia do que não é.” (Idem. Ibidem. tomo IV, § 359, item 1, p. 15)
26

Ainda, os planos da validade e da eficácia são independentes. O negócio pode existir,

ser inválido (nulo ou anulável), e ainda produzir efeitos – apesar de serem raras as hipóteses:

Os fatos jurídicos, inclusive atos jurídicos, podem existir sem serem


eficazes. O testamento, antes da morte do testador, nenhuma outra eficácia
tem que a de negócio jurídico unilateral, que, perfeito, aguarda o momento
da eficácia. Há fatos jurídicos que são ineficazes, sem que a respeito deles se
possa discutir validade ou invalidade. De regra, os atos jurídicos nulos são
ineficazes; mas, ainda aí, pode a lei dar efeitos ao nulo54.

Muitos autores, como já exposto supra, adotam a tricotomia

existência-validade-eficácia de Pontes de Miranda. Marcos Bernardes de Mello, em sua obra

Teoria do Fato Jurídico expõe sua concordância com o autor:

(...) (a) que existência, validade e eficácia são três situações distintas por
que podem passar os fatos jurídicos e, portanto, não é possível trata-las
como se fossem iguais; (b) que o elemento existência é a base de que
dependem os outros elementos. Essas conclusões demonstram a extrema
propriedade e utilidade da proposta de Pontes de Miranda de considerar o
mundo jurídico dividido em três planos, o da existência, o da validade e o da
eficácia, nos quais se desenvolveria a vida dos fatos jurídicos em todos os
seus aspectos e mutações55.

Pontes de Miranda ainda critica incisivamente aqueles que confundem, de certa forma,

a existência com a validade:

A súbitas, enfrentam o problema dos negócios jurídicos nulos, ou dos atos


jurídicos stricto sensu nulos, que têm alguns ou algum efeito, e caem na
contradição mais gritante: se o nulo não existe e se há nulo com efeitos, há
efeito do que não existe e, pois, do nada. A educação lógico-matemática e
física do século XX repele tais imprecisões conceptuais. Certamente, a
produção de efeitos pelo nulo não ocorre sempre, é rara; mas bastaria que,
em algumas espécies, surtisse efeitos o negócio jurídico nulo, ou o ato
jurídico stricto sensu nulo, para se ter de admitir que o ato jurídico nulo
exista, seja. Se o ser pode não produzir efeitos, efeitos não podem vir do
não-ser, do nada, do inexistente. Compreende-se o esforço dos pensadores do
direito para se reduzir ou eliminar essa contradição, que depõe contra a
segurança racional do seu conhecimento. Em vez de procederem à distinção
54
Idem. Ibidem. tomo IV, § 359, item 1, p. 15.
55
MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 99, grifo nosso.
27

entre o inexistente e o nulo, o que a evitaria, — procuram atribuir o efeito do


ato jurídico nulo a algo que estaria no seu lugar56.
Os juristas que não distinguem o não-existente e o nulo excluem a classe
nula, e tropeçam com ela a cada momento, porque o direito, histórica e
sistematicamente, alude a ela. Ao pretenderem tratá-la como sinônimo de
não-existente cometem ter todos não operam excluem a classe nula, e
tropeçam com ela a cada, êrro de lógica (confusão entre “nulo” no sentido de
não ter todos os elementos componentes, de modo que os que tem não
operam, e “não-existente”)57.

Constata-se que o autor estabelece uma lógica quase matemática do negócio,

sistematizada58.

Superados estes esclarecimentos, reporta-se para o objeto do presente trabalho, isto é,

analisar o suporte fático necessário para a formação do negócio. No presente Capítulo, a

doutrina de Pontes de Miranda.

3.1 Da manifestação de vontade negocial e consciente

Em sua obra, logo em seu prelúdio do Tomo III do Tratado de Direito Privado, Pontes

de Miranda enuncia o primeiro elemento do suporte fático do negócio jurídico, a manifestação

de vontade, bem como expõe sua aproximação à teoria objetivista, distinguindo a

manifestação de vontade do próprio negócio, nos seguintes termos:

56
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo IV, § 358, item 1. p. 8 -9.
57
Idem. Ibidem. tomo IV, § 358, item 17, p. 14.
58
“Para ser deficiente, é preciso que exista. O que não existe nem é válido, nem inválido: não entrou, ou já não
está, no mundo jurídico. Revela pouco estudo de lógica e, mais ainda, da estrutura dos sistemas lógicos,
pensar-se que, se há o conceito de inexistência, êsse há de estar no mundo jurídico: e seria cometer o êrro
inverso, — em vez de se forçar a inserção do nulo no inexistente, forçar-se-ia a inserção do inexistente no nulo,
trazendo-se aquêle para o mundo jurídico.” (Idem. Ibidem. tomo IV, § 360, item 2, p. 19)
Fábio de Oliveira Azevedo, seguindo a tricotomia de Pontes de Miranda, assim a explica de forma bastante
satisfatória: “O negócio jurídico equipara-se, ilustrativamente, a um edifício. No primeiro andar está a existência
do negócio jurídico. No segundo, está a validade. E no terceiro reside a eficácia. Não é possível erguer o segundo
e terceiro andares sobre o nada, o que torna o primeiro pavimento um pressuposto lógico e necessário dos
demais. Mas os três não são andares sequenciais, pois é possível passar diretamente do primeiro ao terceiro, ou
daquele para o segundo. O que não se admite é a ausência do primeiro andar, pois se assim fosse o segundo e o
terceiro ‘flutuariam’, o que é inconcebível para a engenharia, e igualmente para o Direito. Mas, apesar dessa
autonomia para “pular andares”, a ordem natural, porém, é subir do primeiro (existência) ao segundo andar
(validade), finalmente alcançando o terceiro (eficácia).” (AZEVEDO, Fábio de Oliveira de. Op. Cit., p. 354)
28

A manifestação de vontade é elemento essencial do suporte fático, que é o


negócio; com a entrada dêsse no mundo jurídico, tem-se o negócio jurídico.
Daí o êrro de se identificarem manifestação de vontade, que é
acontecimento do mundo fático, e negócio jurídico, que é juridicização
do suporte fático (manifestação de vontade + x + incidência da lei). Há
manifestações de vontade que entram no mundo jurídico sem produzirem
negócio jurídico. Tão-pouco, precisa ela, para produzir negócio jurídico,
ser “clara” (= declarada)59.

No trecho acima, o autor começa a expor acerca da importância da vontade declarada,

isto é, a relevância da declaração – em detrimento da vontade interna60.

Ainda, em aproximação à teoria objetiva, que se infere do seguinte trecho:

A constituição de negócios jurídicos só se permite dentro dos limites


legais. A respeito de muitas relações, não é possível, juridicamente,
negociar-se. Posso contar com o voto de A que me prometeu; não há entre
nós negócio jurídico. Prometi a B visitá-lo todos os anos, à data do seu
aniversário; não negociei isso, no plano jurídico. Mas C, que é músico, pode
negociar os seus serviços para a data do aniversário de B, em dois, ou mais
anos seguidos. O pai de D não pode renunciar ao pátrio poder; nem pode o
tutor ceder a tutela. Quando nada pode a vontade dos figurantes, ou do
figurante único, há cogência da lei (ius cogens). Se ficou branco, em que a
vontade deles, ou dêle, se pode inserir, a técnica jurídica legislativa assume
atitude menos enérgica: ou edicta regras jurídicas que incidam, se nada se
introduziu de vontade, ou edicta regras jurídicas que resolvam as dúvidas
sôbre a vontade, ou nada edicta para encher o branco. Se houve vontade,
interpreta-se; se não houve, continua o branco. É de notar-se que a permissão
da escolha entre negócios jurídicos, ou a própria constituição de negócio
jurídico, já é deixar algo à vontade. (...) Só há efeitos jurídicos se a regra
jurídica os determina, atribuindo-os ao fato jurídico. Nos negócios jurídicos,
ainda quando êsses efeitos são queridos pelo figurante, ou pelos
figurantes, fora, portanto, dos que resultam de terem querido o negócio
jurídico em si-mesmo, a vontade só produz efeitos se a regra jurídica o
estabeleceu, isto é, se deixou no figurante ou figurantes branco para
auto- regramento. O branco, que a lei deixa, é interior ao negócio jurídico,
de modo que é a lei mesma que estatui: “O que, no branco, deixado à
autonomia da vontade, fôr querido tem eficácia”. Onde essa regra jurídica
explícita ou implicitamente não existe, a vontade não tem efeitos. A vontade
só tem efeitos porque é elemento de suporte fático que se torna fato
jurídico e é esse que irradia eficácia. Fala-se de efeito da vontade por

59
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 249, item 1, p. 4, grifo nosso.
60
Vale transcrever a disposição contida no Código Civil Português, que segue a mesma linha de raciocínio:
“ARTIGO 245º (Declarações não sérias) 1. A declaração não séria, feita na expectativa de que a falta de
seriedade não seja desconhecida, carece de qualquer efeito. 2. Se, porém, a declaração for feita em circunstâncias
que induzam o declaratário a aceitar justificadamente a sua seriedade, tem ele o direito de ser indemnizado pelo
prejuízo que sofrer.” Disponível em:
<http://www.cm-cascais.pt/sites/default/files/anexos/gerais/codigo_civil_atualizado_ate_a_lei_59_99_.pdf>.
Acesso em 14 de novembro de 2017.
29

abreviação. O que há é efeito do negócio jurídico, ou do ato jurídico stricto


sensu, ou do ato ilícito, em cujo suporte fático está a vontade61.

O autor expõe que, quando os interessados escolhem o negócio, o escolhem por

conhecerem, anteriormente, seus efeitos legais, bem como por saberem quais os efeitos

“queridos” que podem determinar62.

A declaração de vontade, portanto, é um elemento do negócio jurídico, mas ela pode

se dar de algumas formas diversas: traz-se à baila a distinção entre declaração de vontade e

manifestação de vontade ou ato volitivo adeclarativo. Defende o autor que “não seria de

admitir-se que não produzissem negócio jurídico atos humanos adeclarativos, em que há

vontade de negócio”63. Para ele, não se poderia dizer que não há negócio jurídico em

manifestações de vontade, ou atos volitivos adeclarativos, isto é, que não consubstanciam

declaração de vontade, quando aqueles expressam vontade de negociar, por exemplo: na

aceitação da herança, na aceitação da oferta pelo consumo da mercadoria, o uso da coisa

vendida a contento, entre outros citados pelo ilustre autor. Complementa ainda que, alguns

atos adeclarativos são tão próximos a declarações de vontade que se consideram,

juridicamente, como declarações de vontade tácitas, como no exemplo da revogação do

testamento pela destruição. Nas declarações de vontade tácitas há intenção de comunicar a

vontade e, nelas, a lei ou as circunstâncias garantem que essa intenção existe. Se a própria

manifestação de vontade dá resposta sobre qual seja o seu conteúdo, diz-se expressa. Fora daí,

é tácita64.

Em suma, haveria a diferenciação ainda entre os atos volitivos adeclarativos e as

declarações de vontade tácitas. Aqueles são sem declaração, posto que manifestem vontade; e

estes têm declaração silente, como a propósito da revogação do testamento ou mandato por

61
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 253, itens 1 e 2, p. 45-46, grifo nosso.
62
Idem. Ibidem. tomo III, § 253, item 4. p. 47-48.
63
Idem. Ibidem. tomo III, § 249, item 2. p. 5.
64
R. HENLE, Ausdruckliche und stillschweigende Willenserklarung, 30 s. apud PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 249, item 2. p. 4-7.
30

destruição. “No ato volitivo adeclarativo, o ato é indício de vontade, talvez de vontade de

negócio; na declaração de vontade tácita ou pelo silêncio, ainda o é, mas há o plus de

declaração de vontade, embora sem palavras”65. Neste ponto, Pontes de Miranda se opõe a

Andreas von Tuhr, jurista e professor russo-alemão para quem as declarações de vontade

silentes são espécies da classe dos atos volitivos adeclarativos66.

Assim, o elemento estrutural da vontade pode se dar por meio de declaração expressa,

por manifestação (ato volitivo adeclarativo) ou declaração tácita67.

Paulo Lôbo, em texto publicado em revista jurídica eletrônica, assim conclui:

Tomando posição na controvérsia que dividiu os juristas, entre teoria da


vontade (voluntarismo) e teoria da declaração (objetivismo) no negócio
jurídico, Pontes de Miranda afasta os voluntarismos e os subjetivismos (tema
de uma de suas obras, publicada em alemão, Subjektivismus und
Voluntarismus im Recht, 1922), optando pela manifestação de vontade como
dado objetivo, exteriorizado, reconhecível pelo direito. A manifestação de
vontade é o elemento nuclear do suporte fático do negócio jurídico, que o
identifica e individualiza, sendo gênero do qual são espécies a manifestação
tácita ou silente e a manifestação expressa, ou ainda, a declaração da vontade
e a manifestação simples (manifestação adeclarativa, v.g. a aceitação da
herança, a derrelicção e a revogação do testamento pela destruição). No
conflito entre a vontade, em si, e a exteriorizada, esta deve prevalecer68.

Em sequência, superada as distinções, o autor deixa claro que o importante para saber

se a declaração de vontade ou o ato volitivo adeclarativo pode ser suporte fático do negócio

jurídico é definir se a vontade, que se declara, ou que se manifesta contém a de estabelecer o

negócio jurídico ou o suporte fático deste. Deve haver vontade de negócio, e sem ela este não

há. Há de existir vontade de negócio e não só declaração de vontade, não sendo essencial a

receptividade. Por exemplo, o testamento é negócio jurídico, sendo suporte fático a declaração
65
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 249, item 2. p. 6.
66
Idem. Ibidem. tomo III, § 249, item 2. p. 4-7.
67
Porém, nem todos os atos volitivos adeclarativos, e nem todas as declarações de vontade, podem servir como
suporte fático de negócios jurídicos. Por exemplo, a restituição do penhor, é ato volitivo adeclarativo, porém não
configura negócio; ou a declaração de vontade ao confessar-se ao padre, não sendo suporte fático da convenção
negocial.
68
LÔBO, Paulo. Autorregramento da vontade - um insight criativo de Pontes de Miranda. Revista Jus
Navigandi, Teresina/PI,  5 de outubro de  2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/25357>. Acesso
em: 30 de julho de 2017.
31

de vontade; e assim o é mesmo que não haja intuito inicial de divulga-lo. O que se conclui

que a declaração de vontade pode ser sem destinatário imediato69.

Marcos Bernardes de Mello, autor que segue a doutrina de Pontes de Miranda enuncia

que “A intenção negocial — intenção de realizar negócio jurídico — constitui, como a

consciência de negócio, elemento do núcleo do suporte fáctico dos negócios jurídicos”70.

A manifestação de vontade de negócio deve ser, ainda, consciente, por exigência da

teoria do autorregramento da vontade, que deriva da autonomia privada. O elemento

“consciência”, pois, é essencial à declaração de vontade ou manifestação da vontade71. Não

deve ser considerada, por exemplo, uma vontade externada em estado de hipnose.

Assim expõe o autor:

De modo que é suporte fático do negócio jurídico assim a declaração de


vontade como o ato volitivo (adeclarativo), desde que a vontade, que ali se
“declara” e aqui se “indicia”, seja a de negociar (=concluir negócio jurídico).
Se falta a manifestação da vontade, o negócio jurídico é nenhum; resta saber
se é nenhum quando falte a consciência da exteriorização da vontade de
negócio, ou a consciência de que do ato seria inferida a vontade de negócio.
(O problema nada tem com o do êrro, porque êsse concerne ao conteúdo do
negócio jurídico: a anulabilidade segundo o art. 86-91 só se dá se o
declarante, ou agente do ato volitivo adeclarativo que é suporte tático do
negócio jurídico, não quis declaração ou manifestação dêsse conteúdo que lá
está)72.

Pontes de Miranda problematiza ainda se a falta de consciência seria capaz de retirar a

existência da vontade e, consequentemente, do negócio.

Conclui a problemática com duas conclusões: a falta de vontade de negócio –

finalidade negocial – exclui a existência da declaração de vontade ou da manifestação de

vontade (ato a declarativo) para compor suporte fático do negócio jurídico, isto é, não há

negócio jurídico; e, além disto, a falta de consciência da exteriorização da vontade de negócio

69
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 249, item 2. p. 4-7.
70
MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 45.
71
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 249, item 3. p. 7-8.
72
Idem. Ibidem. tomo III, § 249, item 3. p. 7-8.
32

exclui a existência da declaração de vontade, ou da atuação de vontade (ato volitivo

adeclarativo), para compor suporte fático de negócio jurídico.

Pode afirmar-se, desta forma, o primeiro elemento de existência na concepção de

Pontes de Miranda: a declaração de vontade – expressa ou tácita – ou o ato volitivo

adeclarativo – manifestação de vontade –, em que a vontade que se declara ou que neste se

indicia seja negocial, com a finalidade de concluir o negócio jurídico, bem como consciente.

No que tange à complementação da manifestação de vontade, quando omissas ou

obscuras, Pontes diferencia as normas jurídicas em regras jurídicas dispositivas e regras

jurídicas interpretativas73.

Vale ainda breve abordagem sobre o que Pontes intitula de “Auto-Regramento da

Vontade”. Em sua definição, “é o espaço deixado às vontades, sem e repelirem do jurídico tais

vontades (...) o nome que se dá à possibilidade de se fazer elemento nuclear do suporte fático,

suficiente para tornar jurídicos atos humanos, a vontade”74. Em suma, é como se denomina a

possibilidade de se fazer que a vontade integre o suporte fático do negócio jurídico, isto é,

tornando jurídico o que seria ato humano.

Nesta parte da obra, o autor se remonta aos limites legais que tratamos acima, expondo

que “somente dentro de limites pré-fixados, podem as pessoas tornar jurídicos atos humanos

e, pois, configurar relações jurídicas e obter eficácia jurídica. A chamada “autonomia da

vontade”, o auto-regramento, não é mais do que ‘o que ficou às pessoas’”75. Pontes adverte

que não se deve denominar “autonomia privada”, no sentido de auto-regramento de direito

73
“Por vezes, é preciso que o conteúdo e o futuro da eficácia do negócio jurídico sejam previstos claramente; dai
a técnica legislativa adotar a) regras jurídicas dispositivas, regras jurídicas ‘preenchentes”, que tomem o lugar
das manifestações de vontade que deveriam ter sido feitas num ou noutro sentido e não no foram, e b) regras
jurídicas interpretativas, que sirvam, na dúvida, para se entender o que foi que quiseram os manifestantes
obscuros. Regras jurídicas somente para os casos em que se não haja adotado alguma declaração, ou
manifestação, — as regras jurídicas dispositivas nada sofrem com ficarem sem incidência. Elas mesmas se
marcaram esses limites. São normas para se encher vazio de declaração ou de manifestação de vontade. As
regras jurídicas interpretativas nada dispõem: resolvem dúvida, que o próprio manifestante deixou.” (Idem.
Ibidem. tomo III, § 250, item 1. p. 8-9)
74
Idem. Ibidem. tomo III, § 254, item 1. p. 54-55.
75
Idem. Ibidem. tomo III, § 255, item 1. p. 55-56.
33

privado, porque excluiria qualquer auto-regramento da vontade em direito público, o que seria

falho. “O que caracteriza o auto-regramento da vontade é poder-se, com êle, compor o suporte

fático dos atos jurídicos com o elemento nuclear da vontade. Não importa em que ramo do

direito”76.

3.2 Da capacidade de direito

O segundo elemento do plano da existência enunciado pelo autor é a capacidade de

direito e, podemos interpretar como agente. Explica que, sendo a capacidade de direito

pressuposto necessário comum a todos os atos jurídicos, gênero no qual o negócio é espécie, é

também pressuposto deste, por ser subclasse daquele77.

Capacidade de direito é a aptidão oriunda da personalidade, para adquirir os direitos na

vida civil. Distingue-se da capacidade de fato, que é a aptidão para utilizar e exercer os

direitos por si mesmo78. Toda pessoa é dotada de capacidade de direito, mas nem toda de

capacidade de fato. A primeira, pressuposto fático do negócio, é decorrente e está

intimamente ligada à personalidade, que se adquire ao nascimento com vida79. “Como toda

pessoa tem personalidade, tem também a faculdade abstrata de gozar os seus direitos”80.

A falta de capacidade de direito, isto é, de agente – a este atribuída a personalidade -

torna o negócio inexistente. Pontes ainda destaca que, a falta de capacidade civil torna o

suporte fático deficiente, e faz nulo ou anulável o negócio jurídico81, enquanto que, a falta de

76
Idem. Ibidem. tomo III, § 255, item 1. p. 56.
77
Idem. Ibidem. tomo III, § 251, item 1. p. 10.
78
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. Cit., p. 162.
79
“A capacidade de direito, de gozo ou de aquisição não pode ser recusada ao indivíduo, sob pena de despi-lo
dos atributos da personalidade. Por isso mesmo dizemos que todo homem é dela dotado, em princípio. Onde
falta esta capacidade (nascituro, pessoa jurídica ilegalmente constituída), é porque não há personalidade.” (Idem.
Ibidem. p. 162)
80
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. Cit., p. 162.
81
“A capacidade civil, especialmente a capacidade para os negócios jurídicos (capacidade negocial), o poder de
disposição, a procuração etc., são elementos do suporte fático e acompanham todas as declarações ou
manifestações de vontade, sem que a falta deles ou de algum deles exclua a suficiência do suporte fático: só o
torna deficiente. E.g., o negócio jurídico do louco é nulo, e não inexistente. A alienação do bem móvel, com a
34

capacidade de direito – ou, para aprimorar a clareza, de agente, ou pessoa – determina a

inexistência do negócio. Faltando o pressuposto da capacidade de direito, o negócio não seria

apenas deficiente, mas insuficiente o suporte fático82.

A capacidade de direito, portanto, estaria dentro do núcleo do suporte fático,

juntamente com a manifestação de vontade – já mencionada – e, a capacidade civil, bem

como o poder de disposição são complementares do núcleo. As manifestações de vontade

complementares, como o assentimento do responsável legal, servem à validade a sua falta

determinará a anulabilidade do negócio. Assim expõe:

A capacidade civil e o poder de disposição são pressupostos subjetivos,


complementares do núcleo; o assentimento de terceira pessoa (do pai ou
tutor do menor relativamente incapaz, do cônjuge para alienação ou gravame
de bens particulares seus), não: nem é pressuposto subjetivo, nem é
declaração ou manifestação de vontade núcleo do suporte fático; faz parte do
suporte fático como condicio iuris e a sua falta dá ensejo à anulabilidade
(simples deficiência do suporte fático). Quem presta o assentimento não é
negociador, é pessoa anexa ao negócio jurídico. Não se deve dizer, sequer
que é “parte anexa”, — é figurante anexo. Os Códigos Civis e Comerciais
costumam tratar dos atos volitivos dos pais, tutôres, curadores, cônjuges etc.,
ao mesmo tempo que dos pressupostos; isso de modo nenhum os faz
pressupostos: a manifestação de vontade do menor relativamente incapaz
é parte do suporte fático, núcleo, ou não, dêle; a sua capacidade civil é
pressuposto subjetivo (parte não-volitiva do suporte fático); a assistência
(= prestação de assentimento) do titular do pátrio poder ou do tutor é
manifestação de vontade complementante e das outras declarações ou
manifestações de vontade. A sua presença serve à validade; a sua falta
determina anulabilidade do negócio jurídico. Por onde se vê que, fora do

tradição, pelo que não tem poder de disposição, é nula; a venda, a troca, ou outro contrato sobre o bem móvel,
pelo não-proprietário, ou por pessoa que não tem o direito de disposição, é ineficaz para a alienação.” (PONTES
DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 251, item 4. p. 11-12)
82
Marcos Bernardes de Mello, ao dispor sobre o elemento subjetivo do suporte fático – o sujeito de direito,
assim enuncia: “Os fatos jurídicos pressupõem uma necessária referibilidade a sujeitos de direito, porque sua
eficácia (jurídica) se liga, essencialmente, a alguém ou a algum ente, inclusive a conjunto patrimonial, a que o
ordenamento jurídico outorga capacidade de direito. A eficácia jurídica, seja qual for sua natureza —
constitutiva, modificativa, extintiva, qualificante —, diz respeito a algum sujeito de direito. Mesmo as normas
jurídicas que não criam direitos, pretensões, ações e exceções, mas, apenas, dispõem sobre possibilidades de
titularidade de direitos, pretensões, ações e exceções (e. g., art. 1.263 do Código Civil), têm como pressuposto
sujeito que lhes venha a ser titular. Seria sem sentido fato jurídico que não se referisse a algum sujeito de direito.
Por esse motivo, os suportes fácticos são integrados, sempre, por elemento subjetivo (indicação de certo sujeito
de direito), mesmo quando não esteja explícito, caso em que deve ser pressuposto. Na configuração de cada
suporte fáctico, portanto, é necessário considerar, como dado completante de seu núcleo, o elemento
subjetivo que o compõe, não se podendo tê-lo concretizado se o sujeito não existir ou, se existir, não for
aquele previsto pela norma.” (MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 50-51, grifo nosso).
35

núcleo, tudo que aparece no suporte fáctico só interessa à validade ou


eficácia do negócio jurídico, não à sua existência. Se complementante do
núcleo, há nulidade, se falta. Se complementante do elemento, a falta
acarreta anulabilidade. Surge, aqui, o problema da capacidade de direito.
Onde está ela no suporte fáctico? A capacidade de direito (no direito
processual. capacidade de ser parte) é outro nome para a qualidade de
pessoa (personalidade). Sem ela, a declaração-núcleo ou
manifestação-núcleo de vontade não é elemento suficiente; o suporte
fáctico é insuficiente, e não só deficiente. Não pode haver suporte fáctico
suficiente para regras jurídicas — regras que são interpersonais — se a
declaração-núcleo ou a manifestação-núcleo não é vontade “de pessoa”.
Quando se fala de declaração ou de manifestação de vontade,
necessariamente se entende feita por aquêles que têm capacidade de direito.
Em consequência, se não há capacidade de direito (= personalidade),
não há suporte fáctico suficiente, não pode haver negócio jurídico. Há o
nada. É o caso de animal ou do homem incapaz de ter certo direito ou
pretensão83.

Vale mencionar ainda que, na atualidade, alguns doutrinadores84 tratam de um dos

elementos do plano da existência, com notável fundamento em Pontes de Miranda, como a

denominação “agente”. Poder-se-ia dizer que capacidade de direito é sinônimo de agente?

Acredita-se que sim. Por razões já expostas, capacidade de direito é aptidão oriunda da

personalidade, isto é, da pessoa, e desta forma, pode-se concordar em denominar a pessoa que

expressa a vontade negocial como “agente”.

3.3 Da forma

O terceiro elemento que integra o núcleo do suporte fático do negócio jurídico

enunciado por Pontes de Miranda é a forma. Para ele, as exigências de forma especial são de

suma relevância. Esta pode ser elemento do suporte fático, sendo pressuposto de existência e,

sem ela, não existir o negócio jurídico; ainda, a forma pode também ser elemento

complementar, e sua falta resultar nulidade, se for da substância do negócio, ou resultar

anulabilidade; bem como, pode ser elemento complementar para a eficácia; ou até mesmo

83
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 251, item 5. p. 12-13, grifo nosso.
84
Flávio Tartuce, Antônio Junqueira de Azevedo, Fábio de Oliveira Azevedo, entre outros.
36

apenas complementar. Para ilustrar, tem-se o exemplo do casamento: se não foi celebrado, não

existe85.

A forma pode ser elemento necessário ao suporte fático para que entre no
mundo jurídico, ou para que o ato jurídico valha, ou para que o ato jurídico
tenha certo efeito, ou certos efeitos86.

No que tange à forma como elemento de existência do negócio, Pontes de Miranda

explica que a forma é a expressão da vontade. A vontade, enquanto íntima, não exteriorizada,

não é relevante ao direito. Aduz o autor que todos os fatos jurídicos têm forma. Mas, a forma

só é importante para os atos – aqueles fatos jurídicos que envolvem uma conduta humana

volitiva, na esteira do autor –, e, portanto, elemento essencial ao suporte fático dos negócios

jurídicos. Vale transcrever:

Todos os fatos jurídicos têm conteúdo e forma. Mas só a forma dos atos
jurídicos é relevante para o direito. Qualquer que seja a forma com que se
morre, o que importa é o fato da morte, como só importa o fato do
nascimento ou o ato-fato da tomada de posse ou do pagamento. Enquanto a
vontade permanece íntima, não exteriorizada, não interessa ao direito.
(...) A expressão é a forma; só se levam em conta as vontades que se
enformaram. A forma é a da vontade e dos outros elementos do suporte
fático, que precisem exteriorizar-se, como fatos da psique. A forma mesma
é elemento do suporte fático, razão para se preferir falar de forma da
manifestação de vontade, de conhecimento ou de sentimento, em vez de
forma do ato jurídico (DRAGOLJUB ARANGJELOWITSCH, Die
formellen Willenserklärungen, 11). Antes de ter forma, o ato não é, para o
direito; não existe (O. VON VÖLDERNDORFF, Die Form des
Rechtsgeschäfts. 14 s.). Mas, em se tratando de forma especial, pública,
legal ou voluntariamente exigida, ou de forma escrita, legal, a sanção é a
nulidade, e não a inexistência87.

No que tange à exigência de forma especial, esta se encontra no plano da validade. Se

a forma exigida não é satisfeita, o negócio existe, sendo, porém, defeituoso, imperfeito. Tal é

o que explica o autor no final do trecho supra. Forma especial é aquela forma que o sistema

85
Idem. Ibidem. tomo III, § 251, item 5. p. 20-23.
86
Idem. Ibidem. tomo III, § 332, item 2. p. 347.
87
Idem. Ibidem. tomo III, § 332, item 1. p. 346, grifo nosso.
37

jurídico exige para determinado ato, ou quando se trate de alguma pessoa, ou coisa. Só a lei a

especifica. A sanção à falta de preenchimento da forma adequada será a nulidade ou a

anulabilidade, em regra:

Quando se fala de forma especial, em geral, entende-se a forma sem a qual não
valeria o ato jurídico. Às vezes, porém, a lei exige forma especial para que o ato
exista; e outras, para que o ato jurídico válido produza ou se preste a algum efeito. Já
não se está no plano da validade, e sim no plano da eficácia88.

Não obstante o defeito de forma exigida gere a nulidade – absoluta ou relativa – ,

deve-se atentar aos casos excepcionais, em que o defeito de forma gera a inexistência. Pontes

de Miranda aduz que são raros os casos89.

As regras que concernem à forma especial como elemento de existência ou de

validade do negócio devem estar expressas em lei90. O autor explica que se a lei exige forma

especial, sem dar sanção, infere-se que é a de nulidade – sendo então a forma especial

concernente ao plano da validade –; porém, se a faz elemento para que o suporte fático seja

suficiente, na falta da forma exigida não haverá negócio – não se atenderá ao plano da

existência, isto é, não estará formado o negócio. Enuncia Pontes de Miranda:

Se a lei exige ao ato jurídico a forma escrita, tem-se de perguntar se a exigiu


como pressuposto necessário, caso em que a falta da forma escrita é óbice à
entrada da manifestação de vontade no mundo jurídico e a defeituosidade
causa de nulidade, ou se apenas estabeleceu regra jurídica de prova. O
testamento oral fora dos casos em que a lei o permite é nenhum; o
testamento particular em que não haja algum requisito da forma é nulo91.

Ainda, a não obediência à forma especial pode-se ferir a eficácia do ato de autonomia

privada. A respeito da forma como parte da eficácia, Pontes ensina que ela – a forma especial

– será reforço à produção de efeitos. O negócio existe e vale, mas, sem a forma adequada, não

88
Idem. Ibidem. tomo III, § 334, item 2. p. 351.
89
Idem. Ibidem. tomo III, § 332, item 1. p. 347.
90
Idem. Ibidem. tomo III, § 332, item 2. p. 347-348.
91
Idem. Ibidem. tomo III, § 334, item 1. p. 351.
38

produz certa eficácia. Por exemplo, o contrato de compra e venda de imóvel por instrumento

particular não basta para que se entenda transferida a propriedade; para ter eficácia, a

transferência deve ser levada a registro no órgão competente92.

Em sequência, a forma dos negócios jurídicos pode ser oral, escrita ou por atos. Em

regra, quem vai praticá-lo é que escolhe a forma. Deve-se somente bastar à expressão da

manifestação da vontade, ou à comunicação de conhecimento, ou de sentimento, sendo

correspondente à integridade (da manifestação, da comunicação, etc.). Todos os elementos

essenciais da manifestação de vontade hão de estar no instrumento. Um exemplo de forma por

atos é a revogação do testamento quando o testador o destrói93.

O autor cita também a forma tácita, ou fática. Esta consiste na forma não escrita, nem

impressa, nem gravada ou pintada, nem por qualquer outro modo fixada. A forma tácita ou

fática caberá naquelas hipóteses em que não se exige a forma em palavras, que fiquem, ou em

sinais, que se possam reproduzir. Como exemplo, a aceitação da oferta pelo consumo da coisa

remetida pelo oferente é uma forma fática94.

Sobre a possibilidade da forma voluntária ser em instrumento público, não há

nenhuma vedação para a ocorrência, de modo que, se um contrato, que não tenha previsão de

obrigatoriedade de forma especial, for realizado em forma especial pela vontade das partes,

será válido95: “Toda forma pública, comum, pode ser adotada em vez da forma particular. A

92
Idem. Ibidem. tomo III, § 334, item 2. p. 351-352.
93
Idem. Ibidem. tomo III, § 333, item 1. p. 348-349. “Os instrumentos ou são públicos lato sensu (= scripturae
authenticae, instrumenta authentica) ou privados (scripturae privatae, instrumenta primata). Escritura pública,
instrumento público stricto sensu, é o que é feito pelo oficial público, de acôrdo com as regras jurídicas de
competência e de pressupostos formais, para efeitos de existência, validade e eficácia dos atos jurídicos
(SILVESTRE GOMES DE MORAIS, Tractatus de Executionibus, IV, 64: ‘Publica scriptura est solennis, et rite
ordinata seriptura per authenticae personae manum publicae memoriae causa facta.’)” (Idem. Ibidem. tomo III, §
336, item 3. p. 355)
94
Idem. Ibidem. tomo III, § 333, item 4. p. 350-351.
95
“Diz-se voluntária a forma quando foi exigida por negócio jurídico unilateral ou bilateral. É princípio geral de
direito que se pode estabelecer determinada forma para ato jurídico a ser feito ou para atos jurídicos a serem
feitos, de modo que da falta de observância resulte a ineficácia, ou a nulidade, ou apenas para que se previnam os
figurantes com o fito de melhor segurança da prova. A técnica legislativa tem três atitudes, dentre as quais pode
escolher a que melhor lhe pareça: adotar a sanção da ineficácia da determinação privada de forma, para que
possa quem o exigiu atribuir-lhe, ou não, eficácia; adotar a sanção de nulidade, naturalmente com caráter de
regra jurídica dispositiva; entender que tôda determinação foi apenas com intuito de segurança da prova de
convenção futura. O princípio geral existe no sistema jurídico brasileiro. Qualquer pessoa pode exigir que todos
39

forma especial é que não pode ser substituída, se a lei, por si mesma, não o permitiu”96.

3.4 Do objeto

O quarto elemento que constitui o suporte fático do negócio jurídico é o objeto.

Pontes de Miranda não trata de forma extensa sobre este elemento, citando-o apenas em

alguns trechos. Traz-se um deles:

Sempre que a regra jurídica não exclui o negócio jurídico (= não no diz
não-existente ou não o diz negócio extrajurídico), negócio jurídico há, ainda
que deficiente o suporte fáctico. A deficiência pode concernir aos sujeitos
(deficiência subjetiva), ou ao objeto, ou às vontades, ou a outro elemento
do suporte fático, como a forma e o assentimento de terceiro97.

Os autores, como já explicitado, que seguem a doutrina de Pontes de Miranda,

adotando os planos de existência, validade e eficácia, comumente citam o objeto como sendo

um dos elementos do plano da existência, ao lado da vontade, do agente e da forma98.

Sobretudo no Tomo IV de sua obra Tratado de Direito Privado, Pontes cita o objeto

inúmeras vezes como componente da existência do negócio. Logo em seu prelúdio:

Para que o ato jurídico possa valer, é preciso que o mundo jurídico, em que
se lhe deu entrada, o tenha por apto a nele atuar e permanecer. É aqui que se
lhe vai exigir a eficiência, quer dizer — o não-ser deficiente; porque aqui é

ou alguns negócios jurídicos, em que figure, observem forma especial (escritura pública, forma escrita). Nada se
disse, porém, quanto à sanção, exceto quando se trate da cláusula de não valer sem instrumento público (art.
133).” (Ibidem. tomo III, § 342, item 1. p. 386-387) A forma voluntária, uma vez acordada, vincula a existência
do negócio, segundo Pontes de Miranda, salvo se for com a finalidade de conservação ou consistência da prova:
“No direito brasileiro, a forma voluntária, quando não se trate de instrumento público, tem de ser observada, para
que o ato entre no mundo jurídico, salvo se foi estabelecido que apenas se quis dar mais consistência a prova
futura, caso em que o ato entra no mundo jurídico, é válido e eficaz, mas a inobservância da forma fêz difícil a
prova.” (Idem. Ibidem. tomo III, § 342, item 2. p. 389)
96
Idem. Ibidem. tomo III, § 334, item 2. p. 351-352.
97
Idem. Ibidem. tomo III, § 255, item 2. p. 56-57, grifo nosso.
98
Entre eles, Flávio Tartuce, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, e Fábio de Oliveira Azevedo, que
seguem os ensinamentos de Pontes de Miranda sobre o assunto. (TARTUCE, Flávio. Op. Cit., p. 228;
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodoldo Pamplona. Op. Cit., p. 360; AZEVEDO, Fábio de Oliveira de. Op.
Cit., p. 355)
40

que os seus efeitos se terão de irradiar (eficácia). A sua eficiência é a


afirmação de que o seu suporte tático não foi deficiente, — satisfez todos os
pressupostos de que fala o art. 82: “A validade do ato jurídico requer agente
capaz (art. 145, no 1), objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei
(mis. 129, 130, 145).” A regra jurídica seria mais exata se tivesse dito
“objeto licito e possível” e houvesse aludido a pressupostos materiais
essenciais, além daqueles dois primeiros (capacidade e objeto)99.

Na leitura da obra, percebe-se que os pressupostos de validade estão sempre ligados

aos elementos de existência: ao sujeito ou sujeitos do negócio, ao objeto, à forma e à

declaração ou manifestação de vontade100.

Pablo Stolze e Rofolfo Pamplona discorrem sobre o objeto da seguinte forma:

(...) todo negócio jurídico pressupõe a existência de um objeto – utilidade


física ou ideal –, em razão do qual giram os interesses das partes. Assim, se a
intenção é celebrar um contrato de mútuo, a manifestação da vontade deverá
recair sobre coisa fungível, sem a qual o negócio, simplesmente, não se
concretizará. Da mesma forma, em um contrato de prestação de serviços, a
atividade do devedor em benefício do tomador (prestação) é o objeto da
avença”101.

Insta esclarecer a diferença entre fungibilidade e infungibilidade. Bens fungíveis são

aqueles que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade,

como, por exemplo, o dinheiro. Já os bens infungíveis são aqueles que não podem ser

substituídos, têm natureza insubstituível, por exemplo, uma obra de arte. A infungibilidade

pode decorrer da natureza do bem ou da vontade das partes102.

3.5 Dos elementos ou pressupostos especiais exigidos para determinados negócios

99
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo IV, § 356, item 1. p. 3.
100
“Os pressupostos de validade concernem: a) ao sujeito ou sujeitos do ato jurídico, que consentem ou devem
assentir; b) ao objeto do ato jurídico; c) a elementos do ato juridico relativos ao gestum (forma + o que é
essencial em ato, sem ser a forma em sentido estrito): forma externa (mi. 145, 111) e interna (art. 145, IV).”
(Idem. Ibidem. tomo IV, § 356, item 2. p. 4) “Tomemos, por exemplo, a declaração de vontade. Ou ela foi feita,
ou não foi feita. Não se pode dizer que a declaração de vontade pelo que estava coagido, ou ameaçado, não foi
feita; foi-o, embora atingida pelo defeito. Defeito não é falta. O que falta não foi feito. O que foi feito, mas tem
defeito, existe. O que não foi feito não existe, e, pois, não pode ter defeito.” (Idem. Ibidem. tomo IV, § 358, item
7. p. 13)
101
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodoldo Pamplona. Op. Cit., p. 362-363.
102
Idem. Ibidem. p. 304-305.
41

jurídicos

O que se tratou acima se detém aos elementos essenciais comuns dos negócios

jurídicos. Não é objeto do presente trabalho ser ater aos elementos presentes em contratos

específicos, como se verá adiante.

Destaca-se que Pontes de Miranda estabelece a existência de elementos volitivos e

não-volitivos.

Os elementos volitivos, sem os quais seria insuficiente o suporte fático, são


os essentialia negotii. Na venda-e-compra, por exemplo, os dois acôrdos
sôbre a coisa e o preço; na troca, os dois acôrdos sôbre a coisa a prestar-se e
a coisa a contraprestar-se; na instituição de herdeiro, a vontade do testador
quanto a receber o beneficiado todo ou parte de todo o patrimônio103.

Os essentialia e os accidentalia negotii consistem em elementos volitivos.

Correspondem ao que integra, como necessário, o negócio. O que vem a mais do que o é

essencial, ou necessário, seria natural, ou, como Pontes denomina, naturalia negotii, este

pertinente ao campo da eficácia104.

Sempre com um tom objetivista, Pontes assevera ainda sobre os elementos volitivos:

O que rege a formação dos elementos volitivos do negócio jurídico é o


princípio da vontade manifestada. Não se desce ao campo de elaboração
psíquica, em que os motivos põem em direção social, através das suas
manifestações, a vontade (...) O princípio geral da irrelevância dos motivos
domina todo o direito. Tôda vontade é resultado de algo que se passa dentro
do homem; mas os sistemas jurídicos abstêm-se de descer ao determinismo

103
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit., tomo III, § 258, item 1. p. 65.
104
Idem. Ibidem. tomo III, § 258, item 1. p. 65. Sobre o tema, discorre Pontes de Miranda: “Algumas vêzes tem o
intérprete de apurar se algum elemento acidental passou a ter tal importância que, sem êle, não teria o
manifestante da vontade querido o negócio jurídico. (...) A vontade-cerne, de que acima se fala, não importa em
tornar essencial o acidental. A distinção entre essentialia negotii e accidentalia negotii é objetiva, no sentido de
diferença entre o que a lei faz cogente ou dispositivo e o que a lei deixa à vontade dos manifestantes de vontade,
de jeito que não há vontade se não foi manifestada. O determinar o que é vontade principal ou vontade anexa
cabe aos manifestantes delas, na arrumação dos elementos do suporte fáctico do negócio jurídico. O modus pode
ser principalizado; na compra-e-venda, pode haver a cláusula de reserva de servidão, o pactum de retroemendo, o
de retrovendendo, o de non praestanda evictione (E. REGELSBERGER, Pandekten, 1, 602). A condição é
sempre cerne, pôsto que accidentale negotii”. (Idem. Ibidem. tomo III, § 260, item 1. p. 70)
42

interno105.

Para arrematar o raciocínio, trazemos à baila o pensamento de Marcos Bernardes de

Mello. Este explica que a estrutura do suporte fático é composta por elementos nucleares e

elementos complementares. Os elementos nucleares são o cerne e os elementos completantes.

Cerne é fato que determina a configuração final do suporte fático e fixa, no tempo, sua

concreção, e os elementos completantes são os demais fatos essenciais à existência do fato

jurídico, mas que não constituem o cerne. Os completantes podem ser, por exemplo forma do

negócio solene, ou a tradição, em contratos que envolvem coisas móveis: não são o que define

o negócio, mas sem eles este não existe.

Há de se fazer uma ressalva aos negócios jurídicos reais e à algumas espécies de

contratos. Os elementos tratados acima estão inseridos no suporte fático como elementos

nucleares, ou seja, necessários à configuração de todo e qualquer negócio, de modo que sua

falta implica na inexistência do mesmo106. O que se deve acautelar aqui é sobre os elementos

do suporte fático que devem estar presentes em alguns tipos de negócios, ou alguns contratos.

3.5.1 Dos negócios jurídicos reais

Pontes assevera que “o suporte fáctico do negócio jurídico pode conter declaração ou

manifestação de vontade, ou declarações ou manifestações, ou uma e outra, ou umas e outras,

mais ato real (ato-fato). São os negócios jurídicos ditos, por isso, reais (L. ENNECCERUS,

Rechtsgeschäft, Bedingungen und Anfangstermin, 489 s.)”107. O elemento real, na concepção

105
Idem. Ibidem. tomo III, § 260, item 2. p. 70-71.
106
“Os elementos nucleares do suporte fáctico têm sua influência diretamente sobre a existência do fato jurídico,
de modo que a sua falta não permite que se considerem os fatos concretizados como suporte fáctico suficiente à
incidência da norma jurídica. Nos negócios jurídicos, por exemplo, em que a manifestação da vontade,
consciente é o cerne do suporte fáctico, a sua ausência implica não existir o negócio.” (MELLO, Marcos
Bernardes de. Op. Cit., p. 53)
107
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit. tomo III, §251, item 5. p.16.
43

do autor, é componente do suporte fático do negócio jurídico real, isto é, aqueles que

dependem da transmissão do objeto para se perfazerem.

Na lição do Professor Silvio de Salvo Venosa, “são reais os contratos que só se

aperfeiçoam com a entrega da coisa que constitui seu objeto.”. O mero consentimento das

partes não é suficiente para ter o contrato como existente. Os contratos reais opõem-se aos

contratos consensuais, que “se aperfeiçoam pelo mero consentimento, manifestação de

vontade contratual, seja esta formal ou não”108.

Como a tradição da coisa é essencial no contrato real, integra a existência do negócio.

Este é o raciocínio exposto em Pontes de Miranda, bem como em Venosa109.

Como contratos reais, podemos destacar a doação e o mútuo. No contrato de doação

de bens imóveis, contrato real, contém a transmissão, sendo este elemento do núcleo. “O

núcleo do suporte fáctico da doação é composto pela convenção sôbre a gratuidade e pela

transmissão”. Ainda, sobre o mútuo: “O núcleo do suporte fático do mútuo é composto pela

convenção sôbre o reembôlso e pela transmissão”110.

Nos contratos consensuais, a transmissão, elemento real, é simples efeito. Por

exemplo, na locação, ou a compra e venda. Nesta, Pontes afirma que o ato estatal de registro,

que consubstancia a transmissão da propriedade, integra a eficácia do negócio111.

3.5.2 Da compra e venda

108
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 14. ed. São
Paulo: Atlas, 2014. p. 453.
109
Idem. Ibidem. p. 454.
110
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit. tomo III, § 251, item 5. p. 18.
111
“A transmissão da propriedade imóvel e a constituição de direitos reais só se operam pelo registro
(transcrição, inscrição). Tal ato estatal é posterior á perfeição do contrato consensual e integrativo da eficácia do
acôrdo, que não é contrato juri-real dependente do ato de registro, conforme demonstraremos ao tratarmos da
classificação dos negócios juridicos. O acôrdo (“transmito a A... e A aceita”) é negócio jurídico; não é contrato
real. Aqui, nem se deve considerar o acôrdo mais a transcrição contrato real (certo, E. BRODMANN, em G.
PLANCK, Kommentar, III, 4. ed., 363, para quem a transmissão é efeito), nem se lhe há negar o ser negócio
jurídico per se, pôsto que lhe falte, para o efeito real, o registro.” (Idem. Ibidem. tomo III, § 251, item 8. p. 26)
44

Ainda sobre contratos que necessitam de elementos especiais em seu núcleo do

suporte fático, Marcos Bernardes de Mello esclarece sobre a formação do suporte fático por

outros fatos jurídicos, como a compra e venda que, em sua formação, deve dispor da proposta

e da aceitação:

“Mas, apesar de serem mais freqüentes esses casos, há hipóteses em que são os
próprios fatos jurídicos que constituem o suporte fáctico de outros fatos jurídicos.
O suporte fáctico dos contratos tem como elementos dois fatos jurídicos (negócios
jurídicos unilaterais): a proposta (oferta) e a aceitação”112.

3.5.3 Dos negócios jurídicos mortis causa

Vale ainda a observação sobre os negócios mortis causa, ou a causa de morte, em que,

somente ao ocorrer a morte começa a eficácia do negócio jurídico. O negócio se perfaz, sendo

válido e eficaz, antes da morte. A partir desta começará ele a irradiar efeitos. Como exemplo,

Pontes de Miranda cita o testamento e a doação mortis causa. “A morte é espécie típica de

elemento fáctico eficacial, como o advento do último dia do prazo ou o advento do têrmo”113.

3.5.4 Dos negócios jurídicos causais

Na acepção de Pontes de Miranda, a causa está presente nos negócios jurídicos

causais. Em contrapartida, os negócios jurídicos abstratos não têm a causa em seu suporte

fático.

A causa é a função, que o sistema jurídico reconhece a determinado tipo de ato


jurídico, função que o situa no mundo jurídico, traçando-lhe e precisando-lhe a
eficácia. A causa fixa, na vida jurídica, o ato. (...) De certo modo, sintetiza os
efeitos essenciais do ato jurídico, porque os prefigura, os esquematiza, os debuxa

112
MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., p. 47.
113
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit. tomo III, § 251, item 5. p. 20.
45

em traços gerais, típicos. A causa refere-se à atribuição. Tantos tipos de


atribuições, tantas as causas114.

Para o autor, a causa seria a atribuição dada ao negócio causal pelo ordenamento

jurídico. Por exemplo, a transferência de um patrimônio a outro seria causa da compra e

venda.

Pontes chama atenção à distinção entre causa e motivo, causa e motivo relevante, e

causa e fim.

A regra é a causalidade dos negócios jurídicos 115.

A causa importa, quando se tem de saber qual o ato jurídico de que é efeito a
atribuição. Sabendo-se qual foi a causa, sabe-se qual foi a atribuição, e a tal tipo de
atribuições correspondem regras jurídicas comuns, — junto a regras jurídicas à
parte, peculiares ao tipo de ato jurídico, ou à espécie de ato jurídico, e não
concernentes à atribuição em si. Por exemplo, a regra jurídica do art. 134, II,
relativa à transmissão de direitos reais sôbre imóveis, não diz respeito à causa, mas
à transmissão imobiliária em si116.
4 DA ESTRUTURAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO PELA TEORIA DE

EMÍLIO BETTI

A segunda concepção acerca da formação do negócio a ser estudada no presente

trabalho é do jurista italiano Emílio Betti, precursor da teoria preceptiva do negócio, como já

mencionado. A concepção deste autor é bastante diferente da concepção abordada no capítulo

anterior, isto é, a de Pontes de Miranda. Os dois autores estruturam de forma distinta o

negócio.

Para Emílio Betti, a estrutura do negócio jurídico compreende a forma e o conteúdo117.

A forma seria o modo como o negócio é, ou seja, como ele se apresenta em face dos outros.

Em contrapartida, o conteúdo é aquilo que o negócio é, intrinsicamente considerado. Aduz o

114
Idem. Ibidem. tomo III, § 262, item 1, p. 78-79.
115
Idem. Ibidem. tomo III, § 262, item 1, p. 80.
116
Idem. Ibidem. tomo III, § 262, item 3, p. 81-82.
117
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 243-244.
46

autor que, “na vida de relação, um ato só é reconhecido pelos outros através de sua forma”118.

Por esta razão, a vontade, enquanto puro fenômeno psíquico, não tem relevância social e

jurídica, se não se traduz em atos.

Uma vez que os atos só podem ser identificáveis pelo outro através de sua forma,

necessariamente, esta deve partir de uma determinação exclusiva da ordem jurídica.

Trazendo à tona a classificação corrente entre negócios formais e não formais, isto é,

de forma vinculada ou livre, Betti faz enfoque à errônea crença de que existam negócios nos

quais seja possível prescindir de toda e qualquer forma: “Na realidade, um acto, como facto

socialmente eficaz, não existe sem uma forma de comportamento, através da qual se torne

reconhecível para os outros”119.

Vale dizer, a referida distinção entre negócios formais ou não formais, tem como

critério que o direito pode, ou prescrever à autonomia privada o modo do ato, ou então

deixa-la livre. Se assim prescrever, o negócio será formal, considerando irrelevante qualquer

outro modo de o realizar. Quando deixa livre à escolha das partes negociais, estes optam pelo

meio mais adequado, desde que sejam admissíveis e idôneos para tornar o ato exteriormente

reconhecível aos outros. Os negócios, portanto, de forma livre são aqueles que o ordenamento

não determina previamente sua forma, deixando ao particular; e, os negócios formais – ou

solenes120 – são aqueles que pressupõem uma forma determinada de realização do negócio, de

como este será feito.

O que Betti chama atenção é que, independente do negócio classificar-se como formal

ou livre (não formal) ele sempre terá forma. Esta é um elemento da estrutura de todo e

qualquer negócio jurídico, que o torna reconhecível à coletividade. Até mesmo nas chamadas

atitudes omissivas, que constituem declaração apta a produzir o negócio, há o elemento da

forma. Assim enuncia o autor:


118
Idem. Ibidem. p. 244.
119
Idem. Ibidem. p. 245.
120
A doutrina também os intitula os negócios formais de solenes, como faz Betti (Idem. Ibidem. p. 245).
47

A referida distinção parte do critério de que o direito pode, ou prescrever à


autonomia privada o modo do acto, considerando irrelevante qualquer outro
modo, ou então deixa-la livre de escolher os meios mais adequados, desde
que sejam admissíveis (quanto à sua referibilidade do autor) e idôneos, para
tornar o acto exteriormente reconhecível pelos outros. Segundo este critério,
distinguem-se actos com forma taxativa ou solene, e actos com forma livre,
ou seja, não determinada previamente, embora determinável. Mas uma
forma que satisfaça, ainda que de maneira mínima, a exigência
fundamental da recognoscibilidade por parte de outros, é elemento de
que nunca pode prescindir-se: exige-se em todos os casos, e também na
chamada atitude omissiva. Nos actos com forma livre, o modo de ser desta,
resultará, por via indirecta, do que seja o conteúdo típico do acto121.

No que tange à causa, esta consiste, de acordo com a teoria de Emílio Betti, na função

do negócio jurídico. Não é elemento constitutivo como a forma e o conteúdo, mas sim a

função do ato de autonomia privada122.

Vale, portanto, analisar cada elemento trazido por Emílio Betti – Forma e Conteúdo –

particularmente, o que se faz nos capítulos que se seguem.

Antes de se adentrar nas considerações acerca da forma, insta trazer à baila,

previamente, a concepção oposta de Betti em relação à terminologia corrente do dogma da

vontade, que identifica a forma como a manifestação de vontade, e, distinguindo esta da

declaração em sentido estrito, reconhece na vontade o mínimo indispensável de qualquer

negócio. Para Betti,

(...) a forma não é mais que a possibilidade objectiva de reconhecer a


conduta, dentro do ambiente social em que se produziu, na medida em que se
revela – mesmo sem que o seu autor disso tenha consciência – ter-se tomado
determinada posição em relação aos interesses em jogo: ao passo que a
manifestação é qualquer coisa mais, porque exige, conceitualmente, da parte

121
Idem. Ibidem. p. 245-246, grifo nosso.
122
“Repudiados estes diversos modos de identificar a causa com elementos especiais do negócio, como que
devidos a perspectivas unilaterais e, por isso, erróneas, é fácil concluir que a causa ou razão do negócio se
identifica com a função económico-social de todo o negócio, considerado despojado da tutela jurídica, na síntese
dos seus elementos essenciais, como totalidade e unidade funcional, em que se manifesta a autonomia privada. A
causa é, em resumo, a função de interesse social da autonomia privada. Os elementos necessários para a
existência do negócio, são também elementos indispensáveis da função típica que é sua característica. A sua
síntese, assim como representa o tipo do negócio, na medida em que é negócio causal, também lhe representa,
igualmente, a função típica.” (Idem. Ibidem. p. 350-351)
48

do seu autor, uma orientação, mais ou menos consciente, para outros


membros da sociedade, e portanto, substancialmente não se distingue da
declaração123.

4.1 Da forma: da declaração e do comportamento

A forma, segundo Emílio Betti, é aquela através da qual o negócio jurídico se torna

reconhecível aos outros, podendo ser a de uma declaração ou a de um comportamento puro e

simples, sem valor de declaração124. Deste modo, constata-se que o autor divide o gênero

forma nas espécies declaração e comportamento.

No que tange à definição de declaração, esta se apresenta como “o de uma saída do

pensamento do íntimo de cada um, para se tornar expressão objectiva, dotada de vida própria,

perceptível e apreciável no mundo social”125. A declaração, na esteira do autor, é, em sua

natureza, um ato consciente destinado a ser conhecido por outros, para dar conhecimento de

um determinado conteúdo. Consiste, portanto, num ato que se dirige, necessariamente, aos

outros. A consequência desta afirmação é de que não existe declaração sem um destinatário,

que em algum momento – mais cedo ou mais tarde – deva a vir conhece-la. O que se pode

diferir é que o destinatário poderá ser determinado e fungível, bem como indeterminado e

infungível, podendo ser o conhecimento tanto imediato, tanto retardado. Um exemplo citado

por Betti de um conhecimento retardado é de uma garrafa lançada ao mar, o que ilustra

satisfatoriamente a explanação. O conhecimento, portanto, à outra parte não pode faltar, sob

pena de perder sua relevância social: por exemplo, uma voz clamada no deserto126. Não

havendo destinatário desta declaração, que exprime certo conteúdo, não há relevância social

do ato, não formará um negócio.

Por outro lado, diferindo da declaração, “o comportamento puro e simples não pode

123
Idem. Ibidem. p. 246-247.
124
Idem. Ibidem. p. 247.
125
Idem. Ibidem. p. 248.
126
Idem. Ibidem. p. 249.
49

contar com a colaboração psíquica alheia, representando uma exigência a satisfazer numa

relação com os demais; não apela para a consciência ou para a vontade das pessoas em cuja

esfera deverão desenvolver-se os efeitos do negócio”127. O comportamento se caracteriza pelo

fato de esgotar o seu resultado numa modificação objetiva, socialmente reconhecível e

relevante, da situação de fato preexistente. Ele efetua e realiza uma regulamentação de

interesses privados, porém, não pretende torná-la conhecida aos outros, apesar de, por se

configurar numa modificação no mundo exterior, ser reconhecível no ambiente social.

Para ilustrar, Betti traz exemplos um tanto razoáveis do Código Civil Italiano, bem

como uma síntese acerca do tema:

Simples comportamentos podem configurar, por. Ex., negócios como a


ocupação e o abandono (art. 923.º do Cód. Civ.), que realizam,
respectivamente, o abandono e a tomada de posse, com os consequentes
efeitos da perda ou da aquisição da propriedade, sem que para tanto, seja
necessário um conhecimento por parte de outros, e, portanto, ainda que se
tenha agido em segredo. Também aqui, naturalmente, se mostra certo que
não pode haver um acto relevante no ambiente social sem uma forma de
conduta, através da qual ele seja reconhecível pelos demais indivíduos
(§10º); mas aqui, a recognoscibilidade é uma qualidade objectiva do ato, e
não uma condição de evento, que não é destinado a produzir-se na mente
alheia, mas puramente no mundo dos factos. O que, por outro lado, não
impede que o acto seja operante no mundo social, no sentido de regular
interesses do autor em relação aos outros128.

Do fato do comportamento não se destinar a noticiar de si e não ter destinatários, Betti

estabelece uma diferença, ainda, quanto aos critérios de interpretação, entre ele e a

declaração: enquanto a declaração vincula o autor, segundo seu significado objetivo, e se

coloca à sua conta e risco um modo inexato de se exprimir, o comportamento não vincula o

agente, de acordo com seu objetivo significado social, senão na medida em que ele seja,

concretamente, de acordo com a sua intenção efetiva. Essa diferença existe quanto a ser

concludente ou não o comportamento, e se funda na diferente natureza das duas categorias de

127
Idem. Ibidem. p. 249.
128
Idem. Ibidem. p. 250.
50

ato129.

O que se destaca é que não existe negócio sem uma forma que o torne socialmente

reconhecível, e, a forma do ato obriga, em regra, o agente, segundo o seu objetivo significado

social. Posto que o valor vinculativo é diferente se o negócio possui destinatários – sendo uma

declaração – e, como tal, gere nestes uma confiança, ou não se tenha destinatário – sendo um

comportamento. Ocorre que, quando o ato não é dirigido a ninguém (não há destinatários), no

caso do comportamento, não produz nos outros uma confiança, mas, segundo Betti, apenas

justifica ilações pode parte deles130. “Ilações” são deduções, inferências, induções.

Betti atenta para a natureza objetiva do comportamento:

Além disso, o negócio que consista num comportamento não dirigido a


qualquer destinatário, é construído, não já como <<indício>> de uma
vontade hipotética, eventualmente averiguável por outro modo, e que pode
deduzir-se de outros indícios, mas também como expressão objectiva da
autonomia privada, por meio da qual se toma posição e se dá vida a uma
regulamentação de interesses privados. Também aqui, e não menos que nos
negócios declarativos, o comportamento tem uma função constitutiva
insubstituível, não meramente probatória, mas reveladora. O carácter
concludente que se requer no comportamento, não é já entendido como
referido a um indício, para permitir uma dedução segura acerca de um acto
que não tem, por si, função comunicativa de uma incontrolável vontade
puramente interna, mas é entendido como uma univocidade da manifestação
de autonomia, tomada no seu significado social, a avaliar, não segundo a
existência subjectiva de uma consciente <<manifestação>>, mas segundo a
necessidade objetiva da sua recognoscibilidade por parte dos outros131.

Tendo em vista a genérica necessidade de uma forma para que os outros possam

reconhecer o negócio, Betti compreende que a vontade da parte, quando não seja expressa de

forma adequada, não tem valor jurídico. Nos negócios declarativos, a parte é livre, até certo

ponto, quanto à escolha das palavras, e, desta forma, tem o ônus de escolher a expressão

adequada àquilo que lhe interessa, e, por conseguinte, a ela cabe o risco de uma expressão

129
Mais uma vez Betti critica o dogma da vontade: “Seria, porém, um erro explicar essa diferença, recorrendo à
ideia de que nos negócios que consistam num simples comportamento, a <<vontade>> se encontra no estado
puro, sem necessidade de uma forma”. Idem. Ibidem. p. 251.
130
Idem. Ibidem. p. 252.
131
Idem. Ibidem. p. 253.
51

inadequada, obscura ou ambígua. Em outras palavras, a intenção de regular certos interesses

só tem eficácia na medida em que é exprimida, de modo que, das palavras empregadas deve

resultar o conteúdo essencial do negócio jurídico. O autor ainda complementa que: “E quando

a lei (ex.: Cód. Civ., arts. 466.º, 1230.º, parág.; 1937.º, 2879.º, 1), ou a consciência social o

exijam, ele deve resultar de um modo explícito ou completo, sem ser permitida a remissão ou

referência a dados ou factos extrínsecos ao negócio”132.

No que tange ao processo formativo da declaração, Betti ensina que este só está

propriamente concluído quando a expressão se separa de seu autor. A emissão consiste no

“acto com que o autor da expressão desprende esta de si, desapossando-se dela e tornando-a

uma coisa independente, estranha a ele e idónea para chegar ao conhecimento do destinatário,

determinado ou não, fazendo dela uma declaração irrevogável propriamente dita (...)”133. O

ato pelo qual a declaração se separa de seu autor, então, denomina-se emissão, segundo

Emílio Betti.

O momento da separação será diferente a depender se a declaração for imediata ou

mediata, ou seja, se alcança o destinatário imediatamente ou se chegue até ele através de um

meio de comunicação (geralmente escrita). Tratando-se de declaração imediata, feita

diretamente ao destinatário, presente ou em comunicação (exemplo, por telefone), o momento

e o ato da separação se confundem com o momento e o ato da expressão. Neste caso, emissão

e expressão são uma só coisa e, imediatamente recolhidas pelo destinatário, tem caráter

irrevogável. Por outro lado, tratando-se de declaração mediata, feita através de escrita, ou

outro meio de comunicação ou documento, a expressão precede e adquire existência com a

formação da escrita ou de outro meio, enquanto a emissão, dirigida ao destinatário, consiste

em por em ação o processo por meio de qual a escrita deve chegar ao conhecimento do

destinatário ou ao menos ao conhecimento de terceiros – Betti exemplifica pelo lançamento

132
Idem. Ibidem. p. 255.
133
Idem. Ibidem. p. 256.
52

da carta no marco do correio134.

Esse mesmo lapso entre a expressão e a emissão pode também ser observada nas

chamadas declarações não receptícias. Não há declaração sem destinatário, mas existem

aquelas que devem ser emitidas e dirigidas a um determinado destinatário infungível, a quem

são comunicadas, em razão do interesse que ele tem no conteúdo da declaração, sendo

denominadas receptícias. Contrariamente, existem outras que não necessitam de ser dirigidas

a um destinatário determinado, pois, na realidade, não o têm, a não ser de caráter fungível,

sendo estas denominadas não receptícias.

Vale dizer, as declarações receptícias só são eficazes a partir do momento em que

também se haja realizado por inteiro o processo de comunicação, isto é, quando a declaração

tenha chego ao destinatário. É necessária, portanto, a recepção por parte deste135.

Ainda sobre a declaração, pode ocorrer que, para garantir seu efeito – o conhecimento

alheio – a expressão destinada a ser conhecida pelos outros tenha que ser representada em um

documento. Betti, citando Carnelluti, recorda a noção de documento, que consiste em “uma

coisa que, formada em presença de um facto, é destinada a fixar, de modo permanente, a sua

representação verbal ou figurativa, de modo a fazê-lo conhecer a distância, no tempo”136. O

documento assume, em relação à declaração documentada, uma função que varia conforme

sirva para formar essa declaração, ou sirva para garantir e preservar a declaração já formada.

No primeiro caso, em que o documento serve para formar a declaração, é confiado a ele uma

função constitutiva, quer como instrumento de comunicação entre ausentes, quer como

requisito necessário à existência do tipo de negócio, tendo, portanto, função essencial. Em


134
Idem. Ibidem. p. 255-256.
135
“Ao passo que, para estas (declarações não receptícias), basta um acto de emissão, que se esgota com o
simples facto do declarante, para as declarações com destinatário certo e infungível, é necessária uma
transmissão ou comunicação dirigida a ele, que, quando não possa fazer-se diretamente, em conjunto com a
emissão, requer o emprego de meios de comunicação estranhos ao declarante, e acarreta o risco de uma
notificação inexacta. Nas declarações receptícias, pode perfeitamente encontrar-se um participação passiva por
parte do destinatário, no sentido de uma sua colaboração interpretativa para o êxito psíquico da declaração: pode,
portanto, admitir-se, da sua parte, um poder, que é ao mesmo tempo um ónus, de provocar uma oportuna
classificação ou rectificação por parte do declarante.” (Idem. Ibidem. p. 260)
136
Idem. Ibidem. p. 262.
53

contrapartida, no segundo caso, atribui-se ao documento uma função meramente

representativa ou probatória, sendo, portanto, facultativo.

Superado este ponto, vale trazer a baila algumas considerações adicionais sobre o

comportamento.

Um determinado modo de se comportar, embora não sendo destinado a comunicar

certo conteúdo preceptivo a quem interessa, pode, entretanto, adquirir no ambiente social um

significado e valor de declaração, na medida em que torna reconhecível, de acordo com as

experiências comuns, uma posição e respeito de algum interesse que afeta a esfera jurídica

alheia. No comportamento concludente – assim como denomina Emílio Betti – que se

consente e impõe, por lógica coerência, semelhante dedução, há uma manifestação que, não

sendo direta ou explícita, se qualifica como indireta, ou implícita (ou tácita). Assim difere o

autor sobre o comportamento, enquanto manifestação explícita ou implícita:

É directa a recognoscibilidade, e explícita a manifestação, quando se produz


– não importa se intencionalmente ou não – por meio de sinais que, na
prática social ou por convenção das partes, desempenham a função de dar a
conhecer um determinado conteúdo preceptivo àqueles a quem interessa (a
linguagem falada ou escrita é o meio principal, mas não exclusivo, podendo,
também, bastar, para essa missão, sinais, gestos e atitudes silenciosas). É,
pelo contrário, indirecta a recognoscibilidade e implícita a manifestação,
quando se produz por meio de uma conduta que, tomada em si mesma, não
tem a função de fazer conhecer aos interessados o conteúdo em questão, mas
que, por ilação necessária e unívoca, permite deduzir e torna reconhecível
uma tomada de posição vinculativa, a respeito de certos interesses alheios. O
comportamento qualifica-se como concludente, quando impõe uma
conclusão, uma ilação lógica, que não se fundamenta na consciência do
agente (que até poderia nem dar conta da concludência da sua conduta), mas
sobre o espírito de coerência que, segundo os pontos de vista comuns, deve
informar qualquer comportamento entre membros da sociedade, e sobre a
auto-responsabilidade que se liga, por uma exigência social, ao ónus de
conhecimento (...)137.

Todavia, alerta Betti, há relações nas quais não é admitida uma conduta concludente,

pelas dificuldades de interpretação que poderia trazer, e, portanto, exigem da parte um ônus

137
Idem. Ibidem. p. 269.
54

de declaração explícita138. O autor cita alguns exemplos de negócios os quais não se poderia

admitir uma conduta concludente. Entre eles, o art. 1230 do Código Civil Italiano, que

disciplina a novação objetiva139.

Em suma, trata-se, o valor concludente, não de inferir da atitude exterior a existência

de uma vontade meramente interna, mas de inferir da conduta, enquadrada no conjunto de

circunstâncias, o significado objetivo do negócio jurídico, que não está explícito, sendo

reconhecível de forma implícita e indireta140.

Nesta esteira, vale ainda citar algumas considerações sobre o silêncio na formação do

negócio jurídico.

Betti investiga em sua obra até que ponto a inércia consciente – assim denomina o

silêncio – na presença de certas circunstâncias e situações, por parte de quem tenha a concreta

possibilidade de agir e de reagir, será suficiente para dar formação a um ato de autonomia

privada e revestir o significado de negócio jurídico. Isto é, até quando a conduta omissiva

poderia estruturar o negócio. O autor enfatiza que não se pode considerar a existência de um

negócio sem manifestação alguma. Betti conclui pela possibilidade do silêncio – a inércia

consciente – poder tornar reconhecível ato a outros de um certo conteúdo preceptivo,

formando, então, um negócio, sobretudo em razão dos costumes negociais ou das

circunstâncias:

Se ao comportamento andam ligados efeitos jurídicos, em consideração da


sua conformidade com a intenção normal que o determina, deverá
reconhecer-se-lhe o valor de negócio, quer ele configure uma verdadeira
declaração, ainda que silenciosa, ou se concretize numa conduta
concludente. (...) Aliás, para que o silêncio adquira significado de negócio, é
suficiente uma apreciação, que é contingente e variável, conforme o

138
Idem. Ibidem. p. 269-270.
139
Art. 1230. Novazione oggettiva. L'obbligazione si estingue quando le parti sostituiscono all'obbligazione
originaria una nuova obbligazione con oggetto o titolo diverso. La volontà di estinguere l'obbligazione
precedente deve risultare in modo non equivoco. Disponível em:
<http://www.altalex.com/documents/news/2015/01/08/delle-obbligazioni-in-generale>. Acesso em 28 de outubro
de 2017.
140
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 270.
55

ambiente histórico, os usos e a consciência social, bem como segundo a


qualidade das pessoas (por ex. comerciantes acostumados com aquele gênero
de contratações) e conforme as circunstâncias em que elas actuam, no
caminho da objectivação, segundo as concepções do comércio. O silêncio
pode ser tornado significativo, objectivamente, por um costume prevalente
num determinado sector social, ou então, subjectivamente, por uma prática
introduzida (é o caso dos chamados usos interpretativos), ou por um acordo
estabelecido entre os interessados. Costumes, práticas e acordos desse
género, têm, sobretudo, razão de ser em matéria contratual, na qual a conduta
do destinatário de uma proposta, que se abstenha de responder a ela
negativamente, é por vezes, interpretável como uma aceitação141.

O efeito vinculativo do silêncio encontra a sua justificação, portanto, no conjunto das

relações e circunstâncias em que ele se enquadra. Ainda, se o comportamento silencioso é

relevante como manifestação receptícia, deve ser reconhecível aos interessados a tomada de

posição que atinge a sua esfera de interesse. Betti exemplifica com a aceitação da herança.

Insta destacar ainda que, como já explicitado, a declaração – na concepção de Emílio

Betti – é um ato cujo evento se concretiza sempre no espírito alheio, ora apelando só para a

consciência, ora também para a vontade do destinatário, conforme tenda apenas a informar, a

dar conhecimento de um fato (declaração de ciência), ou pretenda apontar uma orientação de

uma conduta (declaração de vontade)142.

O autor faz a diferenciação entre declarações dispositivas (preceptivas) e declarações

enunciativas (meramente representavivas) nos seguintes termos:

(...) conforme o conteúdo seja socialmente destinado apenas a informar ou a


esclarecer (docere), ou a estatuir ou regulamentar (iubere), isto é, seja
destinado, no primeiro caso, a enunciar algo existente ou, no segundo, a
dispor um dever ser para o futuro, a declaração deverá qualificar-se como
enunciativa ou puramente representativa, quando docet, ou, respectivamente,
como dispositiva, preceptiva ou ordenativa, quando iubet143.

A função útil a que se destinam a declarações representativas na elaboração do

141
Idem. Ibidem. p. 275.
142
Idem. Ibidem. p. 289.
143
Idem. Ibidem. p. 291.
56

contrato – conforme os ditames da boa-fé144 – é a de informar a outra parte contratante sobre

elementos da situação fática, que costumam ter importância na avaliação da conveniência da

proposta regulamentadora de interesses. Outras vezes, também, as declarações enunciativas

ou descritivas desempenham, no negócio, função esclarecedora e de precisão sobre o

regulamento prescrito no seu conteúdo preceptivo. A declaração de reconhecimento adquire o

valor de negócio, instrumento da autonomia privada, quando traz certo conteúdo preceptivo,

ainda que enunciativa. Esta é a conclusão que se pode chegar a partir da obra de Emílio Betti,

acerca da classificação destrinchada.

Finalmente, o autor ainda aduz que nas declarações enunciativas, tendo o conteúdo

caráter meramente representativo, também a forma terá, normalmente, apenas função

comunicativa acerca desse conteúdo, cujo reconhecimento é relevante. Para ilustrar, destaca o

art. 1396, que trata da modificação ou extinção da procuração145, bem como o art. 1260, que

versa sobre a cessão de crédito146. Em contrapartida, na declaração preceptiva, em que o

conteúdo reveste um caráter normativo, a forma tem também, normalmente, uma função

constitutiva insubstituível, na medida em que o conteúdo não será relevante e válido, se a

forma for diferente.

A diferenciação entre declarações enunciativas e declarações preceptivas tem grande

144
“A boa-fé objetiva é, em sua versão original germânica, uma cláusula geral que, assumindo diferentes feições,
impõe às partes o dever de colaborarem mutuamente para a consecução dos fins perseguidos com a
celebração do contrato.” (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A Boa-Fé Objetiva no Código
de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). A Parte Geral do
Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 32)
145
“Art. 1396. Modificazione ed estinzione della procura. Le modificazioni e la revoca della procura devono
essere portate a conoscenza dei terzi con mezzi idonei. In mancanza, esse non sono opponibili ai terzi, se non si
prova che questi le conoscevano al momento della conclusione del contratto. Le altre cause di estinzione del
potere di rappresentanza conferito dall'interessato non sono opponibili ai terzi che le hanno senza colpa
ignorate.” Disponível em:
<http://www.altalex.com/documents/news/2014/10/29/delle-obbligazioni-dei-contratti-in-generale>. Acesso em:
29 de outubro de 2017.
146
“Art. 1260. Cedibilità dei crediti. Il creditore può trasferire a titolo oneroso o gratuito il suo credito, anche
senza il consenso del debitore, purché il credito non abbia carattere strettamente personale o il trasferimento non
sia vietato dalla legge. Le parti possono escludere la cedibilità del credito; ma il patto non è opponibile al
cessionario, se non si prova che egli lo conosceva al tempo della cessione.” Disponível em:
<http://www.altalex.com/documents/news/2014/10/29/delle-obbligazioni-dei-contratti-in-generale>. Acesso em:
29 de outubro de 2017.
57

relevo na análise do conteúdo do negócio jurídico, o segundo elemento formador que enuncia

Emílio Betti, a ser tratado no capítulo a seguir.

4.2 Do conteúdo

O segundo elemento que estrutura o negócio jurídico na doutrina de Emílio Betti é o

conteúdo, sendo este o elemento central e propriamente característico do negócio, isto é, o

conteúdo da declaração ou do comportamento.

(...) a declaração ou o comportamento só deve qualificar-se como negócio


jurídico, quando tenha um conteúdo preceptivo relativo a uma matéria de
autonomia privada, e a respeito desse conteúdo assuma função constitutiva
insubstituível, no sentido de que o preceito só por essa forma pode atingir os
efeitos jurídicos correspondentes147.

Deve-se destacar que o conteúdo preceptivo encontra fundamento na recepção que o

ordenamento jurídico dá ao preceito de autonomia privada. O direito acolhe e sanciona os

interesses nas relações entre os sujeitos, vale dizer, regulamenta um suporte fático que

visualiza nele certa importância, e o transforma em um fato jurídico148.

Assim, o preceito de autonomia privada, expresso na forma de declaração ou

comportamento, produz os efeitos jurídicos correspondentes à sua função econômica e social.

Enuncia o autor:

147
BETTI, Emílio. Op. Cit., p. 300.
148
“Na realidade, o que o indivíduo declara ou faz com o negócio, é sempre uma regulamentação dos próprios
interesses nas relações com outros sujeitos: regulamentação, da qual ele compreende o valor socialmente
vinculante, mesmo antes de sobrevir a sanção do direito. É característica do negócio que a sua fatispécie, ainda
mais que o seu efeito, prescreva uma regulamentação obrigatória, a qual, uma vez reforçada pela sanção do
direito, está destinada a elevar-se a preceito jurídico. Não quer isto dizer – com tantas vezes se repete – que a
vontade privada possa, só por si, por virtude própria, ser causa imediata do efeito jurídico, já que sem uma ordem
jurídica que estabeleça o nexo <<causal>>, esse efeito nem sequer é concebível. Acontece, porém, que, aqui, a
previsão a que está ligado o efeito jurídico, contém em si mesma um preceito de autonomia privada, cujo
reconhecimento por parte da ordem jurídica representa, na sua essência, um fenómeno de recepção. A ordem
estabelecida pelas partes para os seus interesses, é valorada pelo direito de acordo com os seus pontos de vista
gerais, tornada própria com as oportunas modificações e traduzida nos termos de uma relação jurídica.” (Idem.
Ibidem. p. 300-301)
58

(...) no reconhecimento da autonomia privada, procede-se a uma recepção e,


ao mesmo tempo, a uma correlação, mercê da qual o ser ideal da relação
jurídica consequente é, logicamente, congruente (segundo a apreciação do
direito positivo), precisamente com o dever ser do preceito em que consiste o
negócio, como manifestação daquela autonomia na vida social. Dessa
maneira, o auto-regulamento de interesses adquire relevância jurídica: o
preceito da autonomia privada, sem perder esta sua natureza,
transformando-se, ele próprio, em preceito jurídico, torna-se juridicamente
relevante em vista das situações e das relações a que o negócio se destina a
dar vida149.

Dito isto, indaga-se como se determinaria e se delimitaria o conteúdo do negócio,

preceito de autonomia privada, isto é, o que deve ser declarado ou que espécie de

comportamento deve ser observado para que tenha um negócio. Betti responde à indagação de

forma que a determinação do conteúdo do negócio escapa à iniciativa individual e ingressa na

competência da consciência social e da ordem jurídica150. O conteúdo se estenderá a tudo

aquilo cuja expressão ou execução seja necessária, de acordo com a consciência social e a

ordem jurídica, para que a declaração ou o comportamento possa desempenhar sua função

econômico-social, tipicamente designada, como exemplo, a venda, o mútuo, a aceitação da

herança. Assim, uma típica regulamentação de interesses privados e o preceito de autonomia

privada poderão considerar-se identificados e expressos, por forma socialmente suficiente151.

Tal preceito de autonomia privada, que constitui o conteúdo do negócio jurídico, tem

característica que, se faltantes, pode determinar-lhe a inexistência ou a nulidade.

Segundo Betti, um preceito é, primeiramente, concreto, ou seja, “concernente a

interesses determinados, sujeitos ao poder dos particulares e suscetíveis de passar de um para

o outro”152. Segunda característica, o preceito é “atinente à vida de relação e, neste sentido,

social, e socialmente reconhecível (mas não jurídico), e portanto de tal sorte, que considera

149
Idem. Ibidem. p. 303-304.
150
Idem. Ibidem. p. 304.
151
Idem. Ibidem. p. 305.
152
Idem. Ibidem. p. 310-311.
59

aqueles interesses em relação com os outros consociados”153, isto é, o vínculo jurídico não

consiste no conteúdo, mas o efeito do negócio, pressupondo já uma valoração de relevância

por parte da ordem jurídica. Finalmente, o preceito é “vinculativo para quem o estabelece e

dotado de uma eficácia legitimante para outros, mais ainda no terreno social, que no terreno

jurídico: como tal, idóneo para se elevar a facto juridicamente relevante, em virtude de uma

valoração e recepção por parte do direito”154.

O preceito é o que dá conteúdo ao negócio, devendo ser visto de forma independente

da vontade interna e psíquica que o gerou, bem como da pessoa que o exprimiu. Somente o

preceito pode ser objetivamente considerado para posterior alteração. Assim traz Betti:

Só o preceito, como entidade socialmente apreciável, destacado de quem lhe


dá vida, é objeto possível de uma subsequente modificação, revogação,
confirmação, interpretação autêntica (...), assim como de uma contextual
suspensão, ou de uma posterior resolução ou vicissitude extintiva155.

Vale dizer, no que tange ao efeito vinculativo do negócio, normativo, que o ato de

autonomia privada possui socialmente e juridicamente natureza na auto responsabilidade e na

liberdade.

O negócio é um acto humano de importância social, e portanto fruto de


liberdade, de iniciativa consciente. É um acto a cujas consequências, ainda
que onerosas, o autor deve submeter-se no mundo social, e, por conseguinte,
é fonte de auto-responsabilidade. Liberdade e auto-responsabilidade são
termos correlativos, que no mundo social se pressupõem e se evocam
alternadamente. Liberdade, ou seja iniciativa consciente, antes do acto;
auto-responsabilidade, ou seja, necessidade de suportar as consequências,
depois de realizado o acto vinculativo, sem outro limite e correctivo além da
boa-fé. (...) liberdade de criar um regulamento de interesses próprios, nas
relações com outros, pondo em acção os mecanismos e os instrumentos que
o direito põe à disposição dos indivíduos para esse fim. Por outro lado, uma
vez que esses mecanismos e instrumentos hajam sido usados e, por assim

153
Idem. Ibidem. p. 311.
154
Idem. Ibidem. p. 311.
155
Idem. Ibidem. p. 314.
60

dizer, postos em movimento, o indivíduo já não é livre de se subtrair às


consequências, boas ou más para ele, do seu funcionamento156.

De tal trecho pode-se destacar ainda, de certa forma, a independência do preceito

constante no conteúdo do negócio em relação à pessoa e a vontade psíquica que o gerou157. A

responsabilidade pela emissão do preceito é tal que não se requer uma análise psíquica do

agente, subjetiva, e sim uma análise objetiva do comportamento ou da declaração, que

servirão como limitadores desta responsabilidade, sob uma perspectiva social e legal, isto é,

dos costumes negociais como também da disposição normativa que embasa o negócio.

Tratar-se-á, em diante, dos elementos subjetivos do negócio quanto à forma e ao

conteúdo. Já foi visto que o negócio se constitui pela forma e pelo conteúdo, segundo Emílio

Betti. A forma pode consistir numa declaração ou num comportamento. O conteúdo, por sua

vez, consiste no preceito de autonomia privada, expresso pelas partes, recepcionado pelo

ordenamento jurídico158.

Nas palavras do autor:

O conteúdo preceptivo do negócio está sujeito à competência dispositiva dos


indivíduos, na órbita em que é admitida e circunscrita pela lei; os efeitos
jurídicos, pelo contrário, submetidos exclusivamente à disciplina da lei, são
reservados à competência normativa desta. Enquanto às partes incumbe a
tarefa de organizar o conteúdo do negócio, configurando-lhe e
orientando-lhe o objeto do modo mais conveniente, segundo a sua
apreciação, é função da ordem jurídica, e só dela, não das partes, determinar
os efeitos jurídicos a atribuir ao negócio159.

Vale dizer, há limitações ao poder dispositivo das partes. Os elementos essenciais –

necessários à existência do negócio - e os pressupostos de validade escapam à disposição

156
Idem. Ibidem. p. 316.
157
Assim enuncia Betti: “O fenómeno que se nos apresenta na declaração, pode caracterizar-se como uma evasão
do pensamento de dentro de nós, uma objectivação, para se tornar expressão dotada de vida própria, comunicável
e apreciável no mundo social.” (Idem. Ibidem. p. 36)
158
“(...) através de um processo de recepção, o conteúdo do negócio é elevado a preceito jurídico, coisa que ele,
por si mesmo, não é.” (Idem. Ibidem. p. 169)
159
Idem. Ibidem. p. 168-169.
61

privada, bem como o tratamento do negócio validamente efetuado. Estes são de competência

normativa de lei. Não poderiam, por exemplo, as partes dispensarem elementos da estrutura

do negócio e contarem com os efeitos jurídicos da fatispécie legal160.

Betti enuncia que o elemento subjetivo do negócio compreende aqueles aspectos da

atitude do sujeito que são relevantes juridicamente, e se correspondem com a forma, com o

conteúdo, e com a causa do negócio161.

Primeiramente, à forma corresponde um ato de vontade, e este deve ser voluntário.

Deve haver vontade de declaração ou vontade de comportamento. Nas palavras do autor “não

basta (...) que o acto seja materialmente realizado: ele deve, também, ser querido como

declaração daquela espécie ou como comportamento socialmente relevante perante outros”162.

Em segundo lugar, em relação ao conteúdo, ao preceito de autonomia privada, este

deve corresponder, no agente, a consciência do seu significado e valor. “É preciso que o autor

esteja consciente do significado objetivo da declaração emitida, no seu conteúdo total e nos

vários elementos de que conta, e se dê conta do específico valor social do comportamento que

tem (...)”163. Essa consciência, é, inclusive, fundamento da auto responsabilidade164 do agente.

Terceira consideração, à causa corresponde, no agente, a orientação da vontade para

um escopo prático, que é uma tomada de posição vinculativa a respeito de certos interesses.

Esta se identifica, na maioria das vezes, com a realização da função típica – causa – do

negócio no caso concreto.

Betti, a partir do conceito de negócio que constrói, aduz ainda:

160
Idem. Ibidem. p. 200-201.
161
Idem. Ibidem. p. 318-319.
162
Idem. Ibidem. p. 319.
163
Idem. Ibidem. p. 319.
164
“Quando a nossa conduta seja idónea para suscitar nos outros, com quem estamos em relações, a impressão
razoável de uma vinculação da nossa parte, e portanto baste para justificar uma expectativa, não é relevante para
a tutela desta que exista ou não, em nós, a consciência efectiva desse valor vinculativo: o lugar do saber é
ocupado pelo dever saber, e a este ónus está ligada, no caso de negligência, uma auto-responsabilidade
correlativa, que corresponde à imputação da conduta.” (Idem. Ibidem. p. 322-323)
62

Do conceito de negócio como regulamento autónomo de interesses privados,


extraiu-se, desta forma, o duplo corolário de que nem a parte se identifica
com a pessoa do declarante (podendo ser única, e todavia constituída por
várias pessoas ou, pelo contrário, dupla e representada por um pessoa só),
nem o negócio se identifica, nem sequer sob o aspecto formal, com a
declaração, pois que se mantém único, ainda que esta seja múltiplice, nem a
multiplicidade dos sujeitos exclui que as várias declarações seja, referíveis a
uma só parte165.

Assim, a parte não é, necessariamente, a pessoa do declarante, uma vez que aquela

pode ser constituída por várias destas, bem como o negócio e a declaração de vontade – no

aspecto formal, como enuncia Betti – não são sinônimos. Para a formação do negócio, podem

haver várias declarações de vontade, e não haverá, ainda, de forma obrigatória, multiplicidade

de partes.

CONCLUSÕES

1) O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de como a formação

do negócio é explicada pela doutrina pátria e estrangeira, uma reflexão sobre os elementos

que estruturam as convenções negociais, e o dissenso presente acerca do tema. Para tanto,

além de uma revisão teórica da teoria de Pontes de Miranda, que encontrou ampla recepção na

civilística brasileira, procurou-se uma altenativa explicativa na doutrina italiana de Emílio

Betti. Permitiu explorar, além da teoria de Pontes de Miranda, aceita amplamente na

civilística brasileira, a teoria de Emílio Betti, autor de destaque na doutrina civil italiana.

2) A teoria de Pontes de Miranda é marcada pela distinção dos planos que o autor faz do

negócio jurídico: plano da existência, da validade e da eficácia. O negócio passa

sucessivamente, de forma cumulativa, por tais planos. A tricotomia é adotada fortemente pela

doutrina civil brasileira, como exposto. Tendo em vista o presente trabalho ter como objeto os

elementos que estruturam o negócio, o estudo se concentrou no plano da existência.

165
Idem. Ibidem. p. 163-164.
63

O primeiro elemento do plano da existência na teoria de Pontes de Miranda é a

manifestação de vontade. Esta pode se dar por declaração – que pode ser tácita ou expressa –

ou ainda por um ato volitivo adeclarativo. A vontade tem, no negócio, finalidade negocial;

deve-se ter vontade de realizar o ato jurídico. Ainda, deve ser consciente, atendendo a teoria

do autorregramento da vontade. Se não houver vontade negocial ou consciência, o negócio

não existe. O autor enfatiza, ainda, a importância da vontade declarada em detrimento da

vontade interna. O segundo elemento do plano da existência é a capacidade de direito, aptidão

oriunda da personalidade, adquirida por todos ao nascerem com vida. A capacidade de direito

pode ser denominada por “agente”, pois qualquer pessoa a possui. Vale dizer, o que concerne

à capacidade civil – de exercício – ou à legitimação, estas estão fora do plano da existência de

Pontes de Miranda, pertencendo ao plano da validade. O terceiro elemento que integra o plano

da existência, isto é, que faz parte do suporte fático do negócio jurídico é a forma. Todo

negócio tem forma, sendo esta a expressão da vontade. A exigência de forma especial pode se

referir à existência ou à validade, a depender do sistema jurídico, sendo em regra concernente

ao plano da validade. O quarto e último elemento que determina a existência do negócio é o

objeto. Pontes de Miranda não discorre sobre este de forma extensa, mas apenas o cita em

alguns trechos como parte integrante do plano da existência. Sem tais elementos citados o

negócio não se forma, não existe. Eles se referem à todas as convenções negocias, de forma

que, em alguns negócios específicos, o suporte fático integra, além destes, outros elementos

necessários à existência. Os pressupostos especiais exigidos em alguns negócios não foi

objeto de ampla abordagem no presente trabalho, que se dedicou aos elementos gerais, isto é,

que abarcam todo e qualquer negócio.

3) A teoria de Emílio Betti, por sua vez, estrutura o negócio jurídico de forma distinta. A

lógica dos planos não tem abordagem na teoria de tal autor, que não se estrutura em torno dos

planos consecutivos, mas sim em elementos fundantes que são a forma e o conteúdo. Todo e
64

qualquer ato dispõe de forma e conteúdo. Independente do negócio ser formal ou não, a forma

existe para qualquer negócio – ponto em que se pode fazer uma aproximação das duas teorias.

A forma torna o negócio reconhecível à coletividade, podendo se dar através de uma

declaração ou de um comportamento. A declaração é ato consciente destinado a ser conhecido

por outros. Por outro lado, o comportamento esgota seu resultado numa modificação objetiva,

no mundo exterior, socialmente reconhecível e relevante. Apesar das diferenças entre

declaração e comportamento, não existe negócio sem uma forma que o torne socialmente

reconhecível. No que tange ao conteúdo, este se refere ao conteúdo preceptivo da declaração

ou do comportamento. Este encontra fundamento na recepção que o ordenamento jurídico dá

ao preceito de autonomia privada, produzindo os efeitos jurídicos correspondentes à sua

função econômica e social. O conteúdo preceptivo é delimitado pela consciência social e pela

ordem jurídica: se estende a tudo aquilo cuja expressão ou execução seja necessária, de

acordo com a consciência social e a ordem jurídica, para que a declaração ou o

comportamento – a forma – possa desempenhar sua função econômico-social, tipicamente

designada. O preceito ainda, é independente da vontade interna que o gerou, bem como da

pessoa que o exprimiu. É, desse modo, considerado de forma plenamente objetiva. Sem forma

e conteúdo, na teoria de Emílio Betti, o negócio, portanto, não existe.

4) O trabalho pôde analisar, desta forma, as citadas teorias acerca da estruturação do

negócio jurídico, as quais divergem de modo significativo entre si, bem como os elementos

que estruturam o negócio jurídico pelas mesmas. A teoria de Pontes de Miranda, como

exposto, é adotada fortemente pela doutrina brasileira. Porém, falta a esta a análise de outras

concepções, como a de Emílio Betti, plenamente apta a explicar também a formação do

negócio de forma razoável.

Conclui-se, portanto, pela importância de explorar-se outras teorias acerca da

formação do negócio, que, no presente trabalho, foi efetuada na de Emílio Betti, assim como
65

pela relevância do esclarecimento das teorias já adotadas, que, neste, foi trabalhada na de

Pontes de Miranda, cuja civilística brasileira se perfilhou amplamente.

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