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OHomemdas Galochas
OHomemdas Galochas
Black-out.
Som em off - com eco suficiente para parecer distante - de uma voz de
mulher que chama várias e espaçadas vezes: Hans! Hans! Hans!
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O velho se aproxima.
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Entra música. Mais propriamente um “som” criando tensão e
suspense.
Mãe - Acaso não viste a Morte passar por aqui, carregando uma
criança no colo?
Arb. - Sim. Eu bem a vi. Passou apressada feito um instante de
alegria!
Mãe - E que rumo tomou?
Arb. - Ah! sinto tanto frio...
Mãe - Responde-me com urgência, por caridade! Sou a mãe...
Arv. - Tenho o tronco gelado, os galhos secos e tão fria a alma...
Mãe - Só tu podes me ajudar!
Arb. - Dir-te-ei se em troca me aqueceres com o calor do teu
coração magoado.
(Conforme solução de Direção, a voz do arbusto poderá ser
microfonada ou com eco ou coisa semelhante.)
Entra música muito suave, apenas dois violões que podem ser
executados ao vivo, preferencialmente.
O Barqueiro larga a Mãe e sai. Ela, agora cega, caminha a esmo pelo
local sem saber ao certo onde se encontra.
Caminha alguns passos e pára ao pressentir a presença da Velha.
Dizendo isso a Velha sai. Dá alguns passos, pára e volta-se para a Mãe.
A Mãe olha para um, depois para o outro, fica confusa. Percebendo
isso, e enquanto fala, ele embaralha os vasos por várias vezes,
confundindo-a mais ainda.
Velho - Cuido das flores e das árvores desta estufa... e quando chega o
momento determinado, transplanto-as para o grande Jardim do
Paraíso, na terra desconhecida. Não ouso, porém, dizer-te
como crescem ali e o que lá se passa...
Mãe - Quero meu filho de volta! Tenha misericórdia!
Ela cai em si, larga as plantas e, sem saber o que fazer, chorando,
aproxima-se e abaixa-se perto dele novamente.
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Velho - Ah! bondosa mãe... Mereces recompensa por tão heróico
trajeto. Vou presentear-te com uma dádiva, nunca antes a
alguém ofertada: terás o direito da escolha!
Velho - Sabes me dizer, com certeza, qual destas duas flores representa
o destino do filho que vieste resgatar?
Mãe - (olhando-as) São iguais...
Velho - Aparentemente...
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Quando a Mãe segura o vaso, novamente a luz altera-se e entra música.
Desta vez, porém, uma música muito triste, enquanto no fundo do
palco desenrola-se outra pequena e breve história sem palavras.
Dizendo isso, ele se levanta com as duas flores nas mãos e, enquanto
fala calmamente, caminha em torno da Mãe.
Entra música.
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A Mãe, que ficou inerte por alguns instantes, vai saindo misturando-se
entre os muitos personagens que passam.
Entre eles uma mulher humilde - trouxa de roupas nas mãos e lenço
amarrando os longos cabelos - procura pelo filho, sempre chamando:
Hans! Hans! Hans!
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Riem e se divertem muito.
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Entra música, provocando um clima de estranhamento. O poeta
aparece caminhando no fundo do palco seguido de um outro ator que
faz a sua sombra.
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O poeta mexe-se e a sombra também. Faz alguns gestos brincando
com a sombra, que está agora onde ele gostaria de estar, e ela repete os
gestos como se respondesse “sim, estou aqui!”
Outra luz.
O moço caminha com as bagagens, dando uma volta pelo palco todo.
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Homem - Vejo que já não me reconhece mais...
Poeta - ...
Homem - Devia tê-lo previsto. Afinal, foi há tanto tempo...
Poeta - ...
Homem - Não imaginou sequer que um dia eu pudesse voltar...?
Poeta - ... (Compreendendo, aos poucos, com muito espanto)
Homem - Sim... sou eu mesma. Sua velha sombra, senhor! (faz
reverência)
Poeta - Como estás bonita... Pareces...
Homem - Um homem...? Pois é o que sou! Progredi muito nesses
anos todos; fiz fortuna e voltei para saldar minha dívida.
Quanto lhe devo?
Poeta - Então de fato és tu...?
Homem - Em carne-e-osso, jóias e roupas caras!
Poeta - Estou espantado...
Homem - (tirando um saco de moedas do bolso) Diga-me quanto
tenho que lhe pagar pela minha liberdade.
Poeta - Não me deves nada, estás livre! Tua felicidade só pode me
fazer feliz também. Agora senta-te, velho amigo, e conta-me tudo
o que se passou....
Homem - Primeiro prometa não dizer a quem quer que seja, nunca, em
lugar algum, que já fui sua sombra.
Poeta - Palavra de homem! (estende a mão )
Homem - Palavra de sombra! (dão-se as mãos e riem)
Poeta - Diga-me: o que viste na casa misteriosa das terras quentes?
Homem - A mais linda de todas as criaturas.
Poeta - A Poesia...?!
Homem - (faz que sim com a cabeça)
Poeta - Ah! suponho que brilhava como brilha a aurora boreal!
Homem - Mais ainda.
Poeta - Oh! a poesia...
Homem - Enquanto lá estive, foi como se eu tivesse vivido, num
instante apenas, três mil anos. Como se tivesse lido todos os
livros já escritos, em prosa ou verso. Por isso lhe digo que
tudo vi e tudo sei!
Poeta - E depois...? Conte-me mais!
Homem - Conheci profundamente minha própria natureza.
Mas quando de lá saí, o senhor já não se encontrava mais
nas terras quentes. Fiquei então perambulando pelas
ruas feito sombra sem dono. Espiei através das janelas,
para dentro das casas, por sobre os telhados. E vi coisas
que ninguém podia ver. Coisas terríveis que ninguém
gostaria de ver.
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Descobri a hipocrisia, a inveja, a ganância: todo o mal que
habita o homem. Ah! como é repugnante a humanidade!
Poeta - Por que te tornaste homem, então...?
Homem - Diga-me com toda a sinceridade: ser homem não é, como
dizem, realmente algo muito importante?
Poeta - É o que há de mais importante!
Homem - Pois, então...?!
Poeta - Chocam-me tuas palavras...
Homem - As palavras pertencem ao meu ofício. Tornei-me um
escritor.
Poeta - Fruto de nossa longa convivência, talvez...
Homem - Escrevi, porém, somente sobre as coisas feias, a mentira e a
maldade. E, por isso, tornei-me respeitado. Rico. E
temido!
Poeta - ...
Homem - Bem... agora me despeço. Aqui está o meu cartão.
(entrega o cartão, faz uma pequena reverência e vai saindo)
Ah! (voltando-se) Se porventura tornarmos a nos ver um
dia... lembre-se, sou hoje um homem de posses, famoso,
recebido com honras por toda a aristocracia... preferia
ser tratado por “senhor”.
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Dizendo isso a sombra oferece ao poeta a velha capa larga que antes
usara e um pote de maquiagem branca.
Os dois dão uma volta pelo palco. A sombra na frente e o poeta atrás,
refletindo todos os seus movimentos.
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Homem - E, nas ocasiões em que estivermos na sacada do
palácio acenando para o povo, bastará que te deites no
chão, aos meus pés, como faz uma humilde sombra!
Poeta - Podes iludir uma princesa, mas não tens o direito de
enganar o povo de um reino inteiro!
Homem - Teus valores estão ultrapassados...
Poeta - Direi a todos que és um impostor!
Homem - Não te acreditarão!
Poeta - Contarei que não passas de uma sombra vestida de
gente!
Homem - És mesmo um homem: tens inveja!
Poeta - Revelarei que tu és uma mentira!
Homem - Rirão de tudo que disseres...
Poeta - Provarei que não tens alma!
Homem - GUARDAS!!! GUARDAS!!!
Homem - Prendam-no!!!
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Homem - Que triste desenlace para quem sempre foi tão boa
companheira!
Princesa - Tens mesmo um nobre caráter, meu amado senhor!
Um de cada vez vai tirando uma moça, até todos estarem rodopiando
pelo palco todo. Tudo vira um grande baile.
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O menino (Hans) também caminha entre eles. Carrega um par de
galochas nas mãos.
Mãe de Hans - Por onde andavas, criança...? Procurei-te por toda parte.
Hans - Brincava nos campos, mãezinha...
Mãe de Hans - Sumiste por muitas horas, não faças mais isso!
Hans - Me entreti com as histórias das plantas. O enterro foi
longo, cheio de cerimônias e despedidas...
Mãe de Hans - Enterro?!
Hans - Morreram as margaridas que beiravam o rio... Inda ontem
estavam tão bonitas, precisavas ver! Mas hoje cedo acor-
daram pendentes e murchas...
Mãe de Hans - Ah! que susto me destes...
Han - Todas as flores da redondeza vieram ao velório. Fizeram
um cortejo sem fim! Chi! foram tantas as visitas...!
(noutro tom, como em segredo, sussurando)
Elas pediram para serem enterradas ao lado do canário
que perdeu as asas...
Mãe de Hans - (idem, entrando na fantasia dele) E ficaste muito triste?
Hans - Não... porque no Verão elas nascerão de novo e serão
ainda mais belas!
Mãe de Hans - Ah! é? E como sabes...?
Hans - O estranho visitante falou. Disse que a morte é apenas
uma passagem. Depois a gente torna a nascer numa outra vida
ainda melhor...
Mãe de Hans - Quem disse isso, Hans...?
Hans - O homem das galochas... (pega as galochas ao seu lado e
ergue-as, mostrando-as à mãe)
Caminha pelo palco como que admirando suas personagens (os atores
que permaneceram no fundo em “fotografia”).
Música termina.
Dizendo isso abre a trouxa que traz consigo, tira algumas peças de
roupa e começa a lavá-las.
Hans - Tão pobrezinha era ela que fazia dó... Numa noite gelada
de Inverno, a neve caia e ela não tinha onde se abrigar;
nem casa tinha pra voltar...! Encostou-se no canto de
uma rica parede toda envidraçada e, tremendo de fome e
de frio, começou a riscar os fósforos para se aquecer. Um
por um, foi acendendo, acendendo... até amanhecer.
E era como se cada luzinha daquelas pudesse iluminar,
por um breve momento, seus doces sonhos de menina.
Reagem como quem procura saber de onde vem som tão misterioso e
fascinante.
Os sinos terminam.
Começa a nevar.
Música termina.
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Hans - Mas... “eu” sou Hans Christian Andersen !!! “Eu” sou
Hans Christian Andersen !!! (abrindo os braços, gritando,
como que compreendendo o incompreensível encontro)
EU SOU HANS CHRISTIAN ANDERSEN !!!
A música cresce ao máximo, junto com o som dos sinos, e a luz vai
caindo lentamente até o black-out final.
vladi
18.Fev.1996
Domingo de Carnaval
13 hs e 45 min.
segunda versão
Quarta-feira/23.Abr.1997
11 hs e 05 min.
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APETESP: Melhor atriz: Debora Duboc, melhor ator coadjuvante:
Gustavo Haddad.
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