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PRESENÇA

PRESENÇA

1 RECENSÃO

A CATEGORIA presença/ausência pertence de direito, para co-


meçar, ao discurso filosófico sobre a existência (em geral
oposta à essência). Neste, ela funciona quase sempre como uma
categoria “impura”, cujo termo complexo presença + ausência
parece mais facilmente atualizável e mais produtivo do que os
outros. Assim, no mito platônico da caverna, a presença sensível
é construída como uma “ausência presentificada”, uma espécie
de simulacro da “Idéia” obtido por apresentação indireta e
deceptiva. A reformulação mais recente de tal categoria pela
fenomenologia, culminando, em Merleau-Ponty, na noção de
“campo de presença”1 , assenta numa interpretação do par pre-
sença/ausência em termos de operações (aparecimento/desapare-
cimento) pelas quais os “entes” sensíveis se destacam do “ser”
subjacente, e depois retornam a ele. O interesse dessa
reformulação, de um ponto de vista semiótico, reside no fato de
estar a presença aí definida em termos dêiticos, ou seja, em suma,
a partir de uma espécie de presente lingüístico; além disso, para
a própria fenomenologia, a presença é o primeiro modo de exis-
tência da significação, cuja plenitude estaria sempre por ser con-
quistada.

2 DEFINIÇÕES

Para a semiótica, na medida em que esta se filia a Hjelmslev,


a elucidação da presença, noção já em si particularmente delica-

1
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1983, p. 29-30.

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da, depara, por assim dizer, com uma proibição, visto que o autor
dos Prolegômenos declara:

“Estas definições baseiam-se em conceitos não específicos e


indefiníveis: presença, necessidade, condição, bem como nas defi-
nições de função e funtivo”2

Sem tratar a questão a fundo, se os indefiníveis são real-


mente assim, tomados cada um separadamente, parece-nos que,
do grupo que eles formam – aos que acabamos de indicar é pre-
ciso acrescentar ainda “descrição, objeto, dependência,
homogeneidade”3 –, e de sua aproximação, destacam-se índices
de correlação que permitem vislumbrar uma interdefinição.

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Só se pode conceber a existência semiótica como presença


se se supõe, como fazem os autores do Dicionário de semiótica,
que essa existência é um objeto de saber para um sujeito cognitivo.
Mas haveria que dar um passo a mais e reconhecer, em tal relação
cognitiva, a base perceptiva da apreensão de toda significação.
Consideradas como parte integrante de uma configuração
perceptiva que seria constitutiva tanto da semiose quanto da
enunciação, a ausência e a presença, logicamente anteriores à
categorização, prefiguram contudo, como veremos, o aparecimen-
to desta última.
Atrelando assim, logo de saída, a problemática da presença
à da enunciação, estamos aptos a introduzir as “variedades”
enunciativas da presença, controladas pela instância trinitária
da enunciação: actante, espaço, tempo. Nosso ponto de partida

2
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 40.
3
Op. cit., p. 34.

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estará constituído pela pressuposição recíproca entre, por um lado,


o “campo de presença”, considerado como o domínio espácio-
temporal em que se exerce a percepção, e, por outro, as entradas,
as estadas, as saídas e os retornos que, ao mesmo tempo, a ele
devem seu valor e lhe dão corpo. Isolemos cada uma das três
dimensões da dêixis enunciativa e consideremo-la como catego-
ria tensiva.
Para o actante, que concebemos, como a fenomenologia,
em sua relação com um objeto de valor, propomos distinguir uma
orientação quer para o sujeito, quer para o objeto, sem prejuízo
da junção sujeito-objeto. Do ponto de vista do sujeito, a presen-
ça é – de maneira quase unânime – apreendida como espanto;
admitiremos que estamos diante da presença realizada. Mas sen-
do o súbito, por definição, efêmero, sua virtualização inevitável
dá lugar ao hábito. Do ponto de vista do objeto, a oposição
canônica, homóloga à precedente, conjunge e disjunge o novo e
o antigo. A semiótica não tem outra pretensão que a de compre-
ender a prevalência de tais “vivenciados de significação” (Cassirer);
por relação ao campo de presença, o espanto e a novidade carre-
gam um valor de irrupção, o hábito e a antigüidade, um valor de
estada.
No que tange à dêixis espacial, a categoria tensiva de primei-
ra ordem é obviamente a profundidade, cuja melhor formulação
fenomenológica foi proposta por Merleau-Ponty em L’oeil et
l’esprit:

“Da profundidade assim compreendida, não se pode mais dizer que


seja ‘terceira dimensão’. Para já, se ela fosse uma dimensão, seria
antes a primeira: não há formas, planos definidos a não ser que se
estipule a que distância de mim se encontram suas diferentes par-
tes. Mas uma dimensão primeira e que contém as demais não é uma
dimensão, pelo menos no sentido corriqueiro de uma certa proporção
segundo a qual se mede. A profundidade, assim entendida, é antes a
experiência da reversibilidade das dimensões, de uma ‘localidade’

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global em que tudo é ao mesmo tempo, e de que altura, largura e


distância estão abstraídas, de uma voluminosidade que se exprime
numa palavra dizendo que uma coisa está aí.”4

A articulação semiótica mínima é a que confronta o próxi-


mo, para a presença realizada, e o distante, para a presença vir-
tualizada.
Quando a profundidade se projeta na competência do sujei-
to da percepção, ela dá lugar à dialética dos “pontos de vista”: aos
intervalos inerentes à distância correspondem morfologias percep-
tivas, ora apenas distintas, ora irredutíveis umas às outras, como
nas páginas que Proust dedica ao chafariz do pintor Hubert Robert
em Sodome et Gomorrhe5. A morfologia dos pontos de vista deve
considerar-se, na sua relação com a profundidade, como uma “fun-
ção descontínua de certa variável contínua”6.
No que concerne à última dimensão, o agora, a mnésia,
versão despsicologizada da memória, está para a temporalidade
assim como a profundidade está para a espacialidade. Admitire-
mos que o atual manifesta a presença realizada, e o ultrapassado,
forma intensiva do passado, a presença virtualizada. A estrutura
elementar da temporalidade parece-nos antes dual que ternária:
com efeito, numerosas são as línguas, entre outras o latim, em
que as formas do futuro são dadas como “tardias”.
Antes de seguir adiante, gostaríamos de fazer duas obser-
vações: (i) se se admite que a dimensão própria do ego não é
outra que a do afeto, isto é, o estado – ou mesmo a “temperatu-
ra” – da relação do sujeito a seus entornos, a relação da profundi-
dade e da mnesia ao afeto é da ordem da catálise, na medida em
que o próximo e o atual só valem se forem “afetantes”. Em razão

4
MERLEAU-PONTY, M. L’ Œil et l’esprit, op. cit., p. 65.
5
PROUST, M. A la recherche du temps perdu, tome 2. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954,
p. 656-7.
6
VALÉRY, P. Cahiers, tome 1. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1973, p. 789.

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de sua dependência comum por relação ao afeto, a profundidade


e a mnesia tendem a “metaforizar-se” uma à outra, o que nem as
línguas nem os discursos deixam de fazer: pode-se, assim, falar
na “profundidade” temporal da lembrança. (ii) A práxis enunciativa
pode sofrer ou reagir: ela sofre se a consecução [realizado →
virtualizado] prevalecer; em contrapartida, reage, se esse conteú-
do for avaliado como conteúdo invertido a reclamar sua inversão
em conteúdo posto. A título de exemplo imediato, o empreendi-
mento de Péguy, a partir da oposição entre o “já feito” – o ultra-
passado, em nossa abordagem – e o “fazendo-se” – o atual –,
esforça-se por barrar o que ele chama de “amortecimento”:

“Pois a madeira morta é a madeira invadida pelo já feito, inteiramente


ocupada, inteiramente dedicada ao já feito, inteiramente devorada
pelo já feito, inteiramente consumida, por assim dizer, pela invasão do
já feito. Ressequida por completo, mumificada por completo; plena de
seu hábito e de sua memória. É uma madeira que chegou ao limite de
tal amortecimento. É uma madeira cuja matéria foi sendo toda tomada,
pouco a pouco, por esse envelhecimento. É uma madeira cuja flexibi-
lidade foi sendo toda ela, aos poucos, carcomida por esse enrijecer, e
cujo ser foi inteiramente esclerosado por um tal endurecimento. É
uma madeira que não tem mais um átomo de espaço, nem de matéria,
para o fazendo-se. Para fazer um fazendo-se. Logo, ela não o forma
mais, ela não o faz mais.”7

O seguinte quadro expõe a projeção dos modos de presen-


ça nas categorias enunciativas:

7
PÉGUY, C. Œuvres en prose, 1909-1914. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1961, p. 1402.

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Presença Presença
realizada virtualizada
EGO PdV do sujeito espantado habituado

PdV do objeto novo antigo


AQUI próximo distante
AGORA atual ultrapassado

Em segundo lugar, o “eu” semiótico não se reduz ao “eu”


lingüístico: o “eu” semiótico é um “eu” sensível, afetado, muitas
vezes atônito, quer dizer, comovido pelos êxtases que o assal-
tam, um “eu” mais oscilatório do que identitário. A presença se
torna, por isso, uma variável, como já mostrava Descartes ao
tratar da “admiração”:

“Quando o primeiro encontro com algum objeto nos surpreende,


julgamo-lo novo, ou bem diferente do que conhecíamos antes [...];
isso pode nos acontecer antes de sabermos minimamente se tal
objeto nos é conveniente [...]; ele não tem contrário, uma vez que, se
o objeto que se apresenta nada tiver em si para nos surpreender [...],
consideramo-lo sem paixão.”8

O “eu” semiótico habita um espaço tensivo, ou seja, um


espaço em cujo âmago a intensidade e a profundidade estão as-
sociadas, enquanto o sujeito se esforça, a exemplo de qualquer
vivente, por tornar esse nicho habitável, isto é, por ajustar e re-
gular as tensões, organizando as morfologias que o condicio-
nam.
Se aceitarmos ver, por um lado, na duração e no espaço,
possibilidades de desdobramento, e, por outro lado, na intensi-
dade o operador capaz de efetuar, mas também, quando for o

8
DESCARTES, R. Traité des passions. Paris, Gallimard, La Pléiade.

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caso, de inibir esses desdobramentos, o campo de presença será


determinado, do ponto de vista morfológico, de um lado pelo
centro dêitico que lhe serve de referente, e do outro pelos hori-
zontes de aparecimento e desaparecimento que constituem suas
primeiras modalizações e aspectualizações. A profundidade
espácio-temporal proporciona à presença um devir e uma exten-
são; ela permite além disso, na medida em que é sempre passível
de se contrair ou se estender, de recuar ou avançar os horizontes,
uma perspectivização da presença ou da ausência, uma em rela-
ção à outra, de sorte que o campo de presença aparece como
modulado, mais do que recortado, por diversas combinações de
ausência e presença, isto é, por correlações de gradientes da pre-
sença e da ausência. Gostaríamos de mostrar mais precisamente
como os termos do par presença/ausência são articulados por sua
imersão no espaço tensivo.
A categoria que procuramos construir baseia-se, de fato, na
co-presença, num mesmo domínio – ou campo de presença –, de
pelo menos duas grandezas: a presença semiótica não pode ser
senão relacional e tensiva, e deve compreender-se como uma “pre-
sença de x a y”. Na perspectiva que nos interessa aqui, as duas
grandezas em foco são os dois resultantes da função “percep-
ção”, um sujeito e um objeto. A partir disso, o domínio conside-
rado é aquele determinado pelo alcance espácio-temporal do ato
perceptivo, que pode ser expresso tanto em termos de extensão
dos objetos percebidos, quanto em termos de intensidade das
percepções.
Esse domínio tem portanto um interior e um exterior (o
“campo” e o “extracampo”), cujos correlatos respectivos são a
tonicidade e a atonia das percepções. Pode, além disso, ser trata-
do como aberto ou como fechado; no primeiro caso, a percepção
é considerada como um foco, e, no segundo, como uma apreen-
são. O foco se firma, em suma, na intensidade da tensão que ins-
taura entre seus dois resultantes, o sujeito e o objeto, ao passo

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que a apreensão procede por delimitação de uma extensão, e


demarca o domínio para aí circunscrever o objeto. Nessa perspec-
tiva, “apreender” é fazer coincidir a extensão de um domínio fe-
chado com o campo em que se exerce a intensidade ótima da
percepção. No campo assim circunscrito, a intensidade e a
extensidade perceptivas evoluem de maneira conversa: quanto
maior o número de objetos apreendidos, mais se admite que
seja intensa a percepção. Em contrapartida, “focalizar” é selecio-
nar, numa extensão aberta, a zona em que se exercerá a percep-
ção mais intensa; é renunciar à extensão e ao número dos obje-
tos, em prol da saliência perceptiva de alguns, ou de um único.
Por conseguinte, no foco, a intensidade e a extensidade perceptivas
evoluem de maneira inversa: quanto menos objetos se visam de
uma só vez, mais bem estes são visados. A profundidade do foco
e da apreensão, avaliada a partir do centro dêitico, será portanto
função da tonicidade de um e outra, tonicidade essa considerada
como um complexo de intensidade e extensidade perceptivas.
As definições respectivas do foco e da apreensão são
homólogas das definições respectivas dos valores de absoluto (cor-
relação inversa entre intensidade e extensidade) e dos valores de
universo (correlação conversa), tais como aparecem no capítulo
“Valor”. Poder-se-ia, então, indagar, com razão: de que intensidade
e de que extensão se tratava? Em que medida esses dois tipos
axiológicos se fundavam nas duas grandes direções do espaço
tensivo? A resposta se encontra em nossa definição da presença:
os valores de absoluto, associados às operações de triagem
axiológica, firmam-se no tipo perceptivo do foco; os valores de
universo, associados às operações de mistura e totalização
axiológicas, firmam-se no tipo perceptivo da apreensão.
Nessa primeira fase de elaboração da categoria, dispomos
de dois gradientes da “tonicidade” perceptiva: o da apreensão e
o do foco. Admitiremos que a categoria presença/ausência repou-
sa sobre a correlação entre esses dois gradientes, na medida em

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que suas diferentes configurações resultam da associação entre


um foco e uma apreensão, da tensão entre a abertura e o fecha-
mento do campo. Semelhantes tensões podem ser organizadas
em rede:

Foco tônico Foco átono


Apreensão tônica Plenitude Inanidade
Apreensão átona Falta Vacuidade

ou então, organizadas em quadrado homogêneo, mas não


canônico:
Plenitude Vacuidade

Dêixis da Dêixis da
PRESENÇA
{ } AUSÊNCIA

Falta Inanidade

As modulações da presença e da ausência fornecem, em


suma, a primeira modalização das relações entre o sujeito e o
objeto tensivos, a modalização existencial: a plenitude é realizante,
a falta é atualizante, a vacuidade é virtualizante e a inanidade é
potencializante. Tal sugestão supõe, de fato, (i) que as modaliza-
ções existenciais possam ser engendradas a partir das modula-
ções da presença/ausência, e (ii) que possamos generalizar as ar-
ticulações da base perceptiva ao conjunto da modalização exis-
tencial no discurso.
No que toca ao primeiro ponto, é fácil perceber que a cate-
goria da presença procede de uma análise tensiva, perceptiva, e
preocupada em articular as formas complexas, dos mesmos fenô-
menos que são analisados, por outro lado – numa perspectiva dis-
creta, estritamente narrativa, e limitada aos termos simples –, gra-

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ças à categoria da junção. Ora, a categoria da junção já foi utiliza-


da por Greimas para fundar a tipologia dos modos de existência
(cf. na presente obra, o capítulo “Modalidade”), e isso em dois
tempos. Primeiro, de um ponto de vista epistemológico:

“A teoria semiótica se coloca o problema da presença, isto é, da


‘realidade’ dos objetos cognoscíveis, problema comum – é verdade –
à epistemologia científica no conjunto.”9

Segue-se a apresentação dos três modos de existência en-


tão reconhecidos: o virtualizado, o atualizado e o realizado. Em
seguida, os mesmos modos de existência são atribuídos ao per-
curso do sujeito discursivo, a partir do seguinte raciocínio:

“[...] uma definição existencial, de ordem propriamente semiótica,


dos sujeitos e dos objetos encontrados e identificados no discur-
so, é absolutamente necessária. Dir-se-á que um sujeito semiótico
não existe enquanto sujeito senão na medida em que se lhe pode
reconhecer pelo menos uma determinação; ou seja, que ele está
com um objeto-valor qualquer. Da mesma forma, um objeto [...] só o
é enquanto esteja em relação com um sujeito, enquanto é ‘visado’
por um sujeito. É a junção que é a condição necessária tanto à exis-
tência do sujeito quanto à dos objetos[...]”10

Vê-se bem como foi que, da questão epistemológica da


presença, passamos à categoria discursiva da junção: por inter-
médio dos modos de existência que lhes são comuns. Parece-
nos, todavia, que, a partir do momento em que recebe, como
aqui, uma definição discursiva e tensiva firmada nas correlações
entre o foco e a apreensão, a categoria presença/ausência substitui
facilmente, e não sem proveito, a da junção, cujas operações ló-
gico-narrativas constitutivas permanecem, com efeito, um tanto

9
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 172.
10
Op. cit., p. 173.

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distantes das questões inerentes à existência, em particular a


densidade de presença e a tonicidade perceptiva. Verdade que se
a junção fosse tratada como uma grandeza complexa, associan-
do, por exemplo, os avatares da intencionalidade (i. e.: o foco) e
as vicissitudes da captura (i. e.: a apreensão), reencontraríamos
então o complexo foco/apreensão e, com ele, toda a espessura,
toda a densidade da existência semiótica.
Quanto ao segundo ponto, é preciso admitir que, em nos-
so procedimento, a tonicidade (esse complexo de intensidade e
extensidade) prevalece sobre as demais grandezas. Para uma se-
miótica da presença, a relação não vai da diferença para a tonici-
dade, mas sim da tonicidade para a diferença; analogamente, a
física, em sua própria ordem, inverteu a relação admitida entre a
matéria e a energia, e pôs a matéria na dependência dos destinos
da energia. A partir disso, se nós erigimos a intensidade/extensi-
dade como dimensões ab quo, a apreensão da presença torna-se
indissociável da avaliação dessa tonicidade: o simulacro semiótico,
a própria semiose, resultaria, sob esse aspecto, de um compro-
misso entre as duas modulações extremas que são, por um lado,
o excesso de presença do mundo natural (o “pleno” da expressão,
a plenitude sensível das tensões) e, por outro, o excesso de au-
sência do mundo interior (o vazio de conteúdo, a ausência de
articulações). Entre esses dois extremos, a significação se nutre
de todos os graus de modulação recíproca da presença e da au-
sência. A generalização da complexidade que propusemos leva a
pensar que a existência semiótica assenta, afinal de contas, na
busca de um equilíbrio tensivo entre os diferentes modos de exis-
tência (a potencialização, a virtualização, a atualização e a reali-
zação), que organizam o campo perceptivo e, transitando através
do percurso gerativo, condicionam a própria semiose discursiva.
Mas o compromisso sensível em que se alicerçam os universos de
sentido está sempre ameaçado pelo não-sentido, que espreita
nas duas extremidades do gradiente da presença.

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Com base nisso, e retomando a sugestão de Semiótica das


paixões, que introduz um quarto modo de existência11 , propo-
mos a seguinte homologação:

Plenitude Vacuidade
realizante virtualizanter
li t

Falta Inanidade
atualizante potencializante12

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

O conteúdo das definições sintagmáticas não é autôno-


mo; deve concordar com as definições paradigmáticas que aca-
bamos de mencionar, e obedecer às seguintes exigências: (i) a
pertença a um espaço tensivo; (ii) a divisibilidade da foria, cujo
corolário é a solidariedade entre os gradientes da intensidade e
da extensidade, conforme procuramos demonstrar no estudo
dedicado à valência. Globalmente, os percursos sintáxicos se de-
duzem das definições paradigmáticas, como diminuições ou au-
mentos da intensidade do foco e da extensão da apreensão, e a
“presença viva” é nesse caso um produto das tensões máximas.

11
GREIMAS, A. J. et FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 128-36.
12
Como já mencionamos e justificamos no capítulo “Valor”, não retomamos nem a
formulação de Semiótica das paixões nem a do Dicionário de semiótica: na realidade,
considerar a atualização como disjuntiva no discurso, é se servir de um emprego
contra-intuitivo desse termo e colidir com sua significação epistemológica (cf. Greimas
& Courtés: “a existência atual, própria do eixo sitagmático, oferece ao analista os
objetos semióticos in praesentia, parecendo, com isso, mais ‘concreta’. ”, Dicionário de
semiótica, p. 172). Se as palavras possuem um sentido, a atualização está a um passo da
realização, ou seja, situa-se, como termo complementar, na mesma dêixis que esta e
nunca em posição contrária.

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2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Não há necessidade de imaginar as definições sintagmáti-


cas: a foria, considerada como o princípio sintáxico do espaço
tensivo, é precisamente aquilo cujo devir se modula pelas varia-
ções da tonicidade perceptiva. A presença perceptiva deve por-
tanto ser confrontada à “foria” que a carrega, sendo esta da or-
dem do puro “vivenciado”, isto é, do sentir. Desse ponto de vista,
a presença é o correlato perceptivo de uma grandeza puramente
sensível, identificável à “lebendige Strömung der Gegenwart” segun-
do Husserl, ao “fluxo inapreensível” segundo Cassirer.
Os modos de existência, ou modalizações existenciais, forne-
cem-nos desde já uma sintaxe canônica, que cruza dois percursos,
como no quadrado semiótico: a inanidade (a potencialização) cons-
titui uma “perda” de densidade existencial, provocada pela anu-
lação do foco, perda que conduz da presença (realizante) à ausên-
cia (virtualizante); inversamente, a perda (atualizante) proporcio-
na um ganho de densidade existencial, devido à intensidade do
foco, no caminho que leva da ausência à presença. Assim, os dois
percursos podem ser representados, respectivamente, como a saída
e a entrada por relação ao domínio perceptivo:

Inanidade
(Potencialização)

Vacuidade
(Virtualização) Plenitude
(Realização)

Falta
(Atualização)

Gostaríamos de evocar o que sucede quando essa estrutura


sintáxico-prosódica, cujo plano de fundo permanece constituído
pelas transformações da tonicidade perceptiva (intensidade/exten-

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sidade), incide sobre as três dimensões constitutivas da enunciação,


a actancialidade, a temporalidade e a espacialidade:

1. No que concerne ao actante, podemos considerá-lo, quer na


perspectiva da intensidade, quer na da extensidade. Assim se ar-
ticula a intensidade:

compacto ⇔ difuso

Segundo a extensidade, ego recebe a quantificação:

uno ⇔ numeroso

As duas dimensões constitutivas da tonicidade perceptiva


e da densidade de presença, a intensidade e a extensidade, po-
dem então adotar os seguintes estilos ou regimes:

Int.: Int.: difuso


compacto Ext.: numeroso
Ext.: uno (virtualizado)
(realizado)

INDIVISÃO {
Dêixis da
}
Dêixis da
DIVISÃO

(atualizado) (potencializado)
Int.: concentrado Int.: distribuído
Ext.: massivo Ext.: dividido

A pergunta a que estamos tentando responder está motiva-


da pela projeção da definição de estrutura, “entidade autônoma
de dependências internas”, sobre a tensividade (intensidade e
extensidade). A dependência diz respeito, neste caso, à solidez
do liame entre intensidade e extensidade: uma estrutura pode
ser postulada se uma morfologia diferencial estiver associada, de
maneira recorrente, a um determinado grau de intensidade. Para
simplificar, só examinamos aqui a correlação inversa entre a inten-
sidade e a extensidade:

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a) Com o compacto, estamos diante do que gostaríamos de cha-


mar de presença viva: a intensidade está no auge, e a morfologia
associada é a do uno, do singular.
b) Com o distribuído, reencontramos essa disposição que liga a
diminuição das tensões a seu fracionamento, e a morfologia as-
sociada é a que resulta da cisão, geradora do dividido, e até mes-
mo do discreto e do serial. Como já indicamos no estudo dedica-
do à valência, toda articulação, na medida em que contraria a
fusão, vale como distensão, levando à potencialização e afinal à
virtualização da própria intensidade.
c) Com o difuso, do ponto de vista da intensidade, e o numeroso,
do ponto de vista da extensidade, a distensão se manifesta pela
distância estabelecida e mantida entre o sujeito e o objeto, ain-
da quando benéfico. A máxima difusão da cisão culmina, agora,
na pluralização, que é a morfologia mais distensa. Para ilustrar,
lembremos que, segundo H. Wölfflin, tal distensão era a catego-
ria diretriz do estilo do Renascimento, tendo como correlato uma
lassidão crescente, ou seja, uma felicidade:

“O Renascimento é a arte da beleza plácida. Ele nos oferece essa


beleza libertadora que sentimos como um bem-estar geral e um
crescimento regular de nossa força vital”13

Os paradoxos comuns denunciados acerca dos valores to-


mados dois a dois encontram resolução nos ajustes e concordân-
cias de valências.
d) Com o concentrado, a reconstituição da intensidade, graças à
atualização, terá como correlato morfológico e quantitativo o
massivo; sob essa denominação emprestada da lingüística, reco-
nhecemos grupos indissociáveis, massas pouco articuladas po-
rém individualizadas; o ritmo faz amplo uso destas, já que uma

13
WÖLFFLIN, H. Renaissance et baroque. Paris, Le Livre de Poche, 1989, p. 81.

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das virtudes do ritmo consiste em reunir as grandezas numero-


sas em grupos, ou células rítmicas, resistentes à dispersão; a re-
tomada da intensidade (“concentrado”) e o déficit morfológico
(“massivo”) são solidários um do outro. Prolongando o exemplo
anterior, lembremos que Wölfflin insiste na dissolução dos con-
tornos e dos limites em que se empenhou, em sua opinião, a arte
barroca:

“O contorno é destruído por princípio, a plácida linha contínua cede


lugar a uma zona terminal, as massas não podem ser delimitadas por
linhas nítidas, mas ‘perdem-se’.”14

2. Para a temporalidade, a aplicação da distinção proposta por


G. Guillaume entre “tempo ascendente” e “tempo decadente”15
leva a opor, para o primeiro:

iminente ⇔ futuro

e, para o segundo:

recente ⇔ antigo

A tensão entre “iminente” e “futuro”, por sua vez, é


analisável a partir do momento em que a supusermos variável
em tensão e lassidão, de tal forma que o pólo tenso, o iminente,
possa ser relaxado, e, ao contrário, o pólo distenso, o futuro,
possa ser tensionado:

14
Op. cit., p. 69.
15
GUILLAUME, G. Temps et verbe – théorie des aspects, des modes et des temps. Paris, Champion,
1968, p. 52 e ss.

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PRESENÇA

Iminente Futuro

Dêixis da Dêixis da
impaciência
{ } paciência

Antecipado Adiado

A tensão própria do tempo decadente, a saber, recente/anti-


go, também pode ser enriquecida:

Recente Antigo

Dêixis da { } Dêixis da
permanência precariedade

Reminiscente Esquecido

Notemos ainda que, se os esquemas contrastam por suas


respectivas direções, eles contrastam principalmente por sua di-
ferença de tempo: a transformação da paciência em impaciência
pode ser considerada como uma aceleração, e a transformação
inversa, como uma desaceleração. Do mesmo modo, para o tem-
po decadente, a reminiscência é, em maior ou menor medida,
súbita, ao passo que o apagamento das recordações está marca-
do pela progressividade.
3. Enfim, quanto à espacialidade, a tensão entre o “próximo” e o
“distante” também pode ser desenvolvida graças às variações
tensivas:

139
PRESENÇA

Próximo Distante

Dêixis da
integração
{ } expulsão
Dêixis da

Familiar Estranho

Neste estudo, como em outros, o leitor terá observado: pelo


menos duas dimensões são necessárias para evidenciar os valo-
res em cada sistema. Assim, no que tange à espacialidade, a dis-
tância métrica deve se entrosar com uma distância afetiva, da
mesma maneira como, na temporalidade, uma distância cronoló-
gica deve se entrosar com uma distância mnésica. Tal bivalência
repropõe, mais uma vez, a questão da passagem de uma correla-
ção de valências tensivas para um quadrado semiótico, ou seja, a
questão da somação e da categorização. A esse respeito, o último
caso de figura é particularmente revelador. Com efeito, em ter-
mos de valências, e portanto de correlações tensivas, o gradiente
(métrico) do “próximo” e do “distante” varia de maneira conversa
com o gradiente (afetivo) do “familiar” e do “estranho”; mas a
correlação entre as valências associadas duas a duas homogeneíza
a categoria, de modo que, por contágio, os dois primeiros ter-
mos ficam também carregados afetivamente, e os dois últimos
recebem um valor métrico. Assim é que a “familiarização” se tor-
na uma etapa da aproximação e, reciprocamente, a aproximação
é a culminação do estabelecimento do contato afetivo.
É mediante essa condição que os limites dos gradientes
conjugados tornam-se fronteiras da categoria, e que as correla-
ções tensivas, uma vez estabilizadas, são convertidas em diferen-
ças. Mas o leitor observou, e talvez tenha estranhado, que os
termos simples, que se supõem habitualmente isótopos, ficam
assim estabelecidos logo de saída como complexos figurais
tensivos. Os quadrados construídos para explicar discursos con-

140
PRESENÇA

cretos foram muitas vezes criticados por seu caráter heterogê-


neo: propomos inverter a perspectiva, e considerar que a semió-
tica do discurso lida unicamente com categorias impuras, em que
o valor emerge das tensões entre no mínimo duas dimensões.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Concebemos as definições amplas como estruturas


receptoras para as definições restritas. Estas se obtêm aqui atra-
vés da projeção das definições amplas sobre as categorias ele-
mentares da sintaxe, a saber, as de sujeito e objeto.
Gostaríamos agora de examinar brevemente em que medi-
da esse levantamento de estruturas tensivas pode contribuir, sob
esse ponto de vista apenas, para enriquecer a tipologia dos sujei-
tos. Dado que as estruturas tensivas são impulsionadas
sintaxicamente pelas variações correlatas da intensidade e da
extensidade, é útil comparar o percurso que, no quadrado, leva
da realização à virtualização, passando pela potencialização, à
prótase de um período rítmico, e o percurso que leva da virtuali-
zação à realização, passando pela atualização, à sua apódose. A
tipologia tensiva do sujeito assentaria, portanto, no seguinte prin-
cípio: se admitirmos que, como toda grandeza semiótica consi-
derada do ponto de vista tensivo, a subjetividade pode ser des-
crita como uma relação tensiva consigo mesma, entre “ego” e
“alter-ego”, a tensão interna constitutiva da subjetividade (e da
“empatia”, segundo Kant) poderá ser compreendida pelo menos
de três maneiras: (i) no que toca aos atos perceptivos, como uma
tensão, maior ou menor, entre o foco e a apreensão; (ii) do ponto
de vista do alcance das percepções, como uma tensão entre a
interoceptividade (o noológico, a “consciência”, o “pensamento”,
etc.) e a proprioceptividade (o corpo próprio do sujeito que per-
cebe, sede das correlações entre dimensões); e (iii) no que diz
respeito à identidade modal, como uma tensão entre os papéis
modais que o compõem.

141
PRESENÇA

Em cada caso, o sujeito está clivado em pelo menos duas ins-


tâncias (S’ e S”) – por exemplo, S’, sujeito do foco, e S”, sujeito da
apreensão; entre tais instâncias, a tensão evolui da contração máxi-
ma, por fusão, que é realizante, até a distância máxima, que é
virtualizante. Para cada um deles, o mundo (M) é um fator de coesão
ou dispersão – em caráter de campo de presença, no caso (i), de
exteroceptividade, no caso (ii), e de objeto sintáxico, no caso (iii).
A realização do sujeito S, em face de um mundo M percebido
como único e de presença compacta, consagra-o como contraído,
unificado, na medida em que não há qualquer distância entre o
foco e a apreensão, entre a interoceptividade e a proprioceptivi-
dade: a apropriação do mundo M pelo sujeito S é, de certa manei-
ra, simultânea à sua confrontação.
A potencialização do sujeito S, perante um mundo M percebi-
do como distribuído e dividido, compromete essa apropriação
síncrona de M por S’ e S”, de tal sorte que a tensão interna do sujeito
diminui, distribuindo-se: o sujeito estará, então, distendido.
A virtualização do sujeito S, ante um mundo M percebido
como difuso e numeroso, compromete radicalmente a apropria-
ção paralela de M por S’ e S”: nesse caso, é um ou outro. Em
razão disso, o sujeito será desligado de si mesmo.
A atualização defronta o sujeito S e um mundo M percebi-
do como concentrado e massivo: assim, ela reconstitui em parte
a tensão entre as duas instâncias S’ e S”, e permite, se não uma
sincronização, pelo menos uma superposição parcial de seus atos
e papéis respectivos, de modo que o sujeito poderá ser chama-
do aqui de mobilizado, tal como se diz que o exército “mobiliza”
suas tropas, ou seja, convoca-as ao mesmo tempo em que as reú-
ne.
Obtém-se assim uma tipologia das tensões próprias ao “diá-
logo” do sujeito consigo mesmo; cada “estado de alma” resulta
da interação com as modulações da intensidade e da extensidade
projetadas sobre o mundo M:

142
PRESENÇA

Sujeito contraído Sujeito desligado


(realizado) (virtualizado)

(atualizado) (potencializado)
Sujeito mobilizado Sujeito distendido

Supõe-se que essa tipologia possa explicar a interação


entre, por um lado, a tensão entre as instâncias clivadas do
sujeito – instâncias sensíveis, perceptíveis e modais – e por
outro lado as energias e morfologias que caracterizam seu
mundo-objeto. Pode ser declinada de acordo com os três ca-
sos de figura evocados acima (foco e apreensão, interoceptivi-
dade e proprioceptividade, papéis modais), em especial para
explicitar, neste último caso, os imponderáveis da coesão in-
terna do sujeito apaixonado. Parece, contudo, depreender-se
uma unidade noutro plano, se se considera por exemplo que é
o próprio corpo do sujeito que, em todos os casos, constitui ao
mesmo tempo o lugar e a mola da tentativa de reunião ou sepa-
ração das instâncias S’ e S’’; tal tipologia diria respeito, então, à
comunicação entre a linguagem do corpo e as outras linguagens.
A maior ou menor distância entre o próprio corpo e as outras
instâncias do sujeito dá lugar às variações da tensão emocional,
considerada como dependente dessas “diferenças de potencial”
internas ao sujeito.
Assim é que um sujeito “mobilizado” será arrebatado pela
emoção, vindo a tornar-se até mesmo, quando dotado das com-
petências e dos programas de uso requeridos, “fantasmático”,
conforme demonstra a leitura da fábula de La Fontaine, proposta
em Semiótica das paixões. Da mesma forma, um sujeito “concen-
trado”, cujo corpo próprio carrega consigo todo o ser, poderá ser
considerado exaltado, ou até extático, o que demonstrou M. de

143
PRESENÇA

Certeau em sua análise de “L’absolu du pâtir”16 . A mesma figura,


tensa ao máximo, poderia, mais comumente, ser considerada
como a do sujeito “embevecido”. Em outros contextos, este po-
deria até ser qualificado de “entusiasta”, quase no sentido
etimológico, na medida em que o princípio mesmo de sua ação
ou reação “habita” literalmente seu corpo. Enfim, o sujeito
“distendido”, pela negação da exaltação, estaria então “desilu-
dido”, e o sujeito “desligado”, completando o percurso da
distensão, estaria abatido.
A reformulação “emocional” da tipologia dos sujeitos pode
ser reportada no diagrama anterior:

Sujeito concentrado Sujeito desligado


(exaltado, extático) (abatido)

(arrebatado) (desiludido)
Sujeito mobilizado Sujeito distendido

Se, por jogar com valores e valências, tais estases e fases


tiverem alguma pertinência, torna-se então compreensível que elas
tenham retido a atenção dos escritores afeiçoados à análise. Pedi-
remos a Valéry e a Nietzsche um testemunho em nosso favor.
No diálogo intitulado Eupalinos ou l’Architecte, Valéry de-
monstra claramente que o sujeito arrebatado, evocado por Fedro,
é incompreensível para Sócrates, sujeito desligado:

“Sócrates – Mas dado que os deuses permitem, meu caro Fedro, que
nossas conversas prossigam nestes infernos, [...] devemos saber agora o
que é verdadeiramente belo, o que é feio; o que convém ao homem, o
que deve maravilhá-lo sem confundi-lo, possuí-lo sem embrutecê-lo...

16
“L’absolu du pâtir”, Actes Sémiotiques, Bulletin, 9, “Passions”, Paris, C.N.R.S., 1979.

144
PRESENÇA

Fedro – É aquilo que o eleva sem esforço acima de sua natureza.


Sócrates – Sem esforço? Acima de sua natureza?
Fedro – Sim.
Sócrates – Sem esforço? Como é possível? Acima de sua natureza?
Que quer dizer isso? Penso invencivelmente num homem tentando
subir em seus próprios ombros!... Avesso a essa imagem absurda,
pergunto-te, Fedro, como deixar de ser si próprio e, depois, retornar
a sua essência? E como, sem violência, pode isso acontecer?”17

Mas foi certamente Nietzsche quem mais alimentou o tema


da oposição entre os dois regimes da presença, confrontando o
“dionisíaco” e o “apolíneo” – que vinculamos respectivamente
às dêixis intensiva e extensiva. Se a intenção de Nietzsche é
mostrar que a arte grega tende à complexidade, ou seja, a criar
obras a um tempo “apolíneas” e “dionisíacas”, nosso propósito é
muito mais modesto, pois que desejamos apenas validar dois
tipos de vínculos.
Por um lado, o vínculo entre distensão e estabilidade
morfológica, entre o “sonho” e a “aparência”:

“É o contorno sóbrio, a ausência de impulsões brutais, a calma e a


sabedoria do deus escultor. [...] Ainda quando este exprime a cólera
e o ressentimento, a graça da bela aparência não o deixa.”18

A obra “apolínea” é respeitosa daquilo que Nietzsche deno-


mina “princípio de individuação”, isto é, daquilo que nos permiti-
mos, acerca das estruturas elementares, denominar “o numeroso”:

“Poder-se-ia até dizer de Apolo que a fé inabalável no princípio de


individuação e a tranqüilidade encontraram nele sua expressão sublime.”19

17
VALÉRY, P. Eupalinos ou l’Architecte. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1960, p. 89.
18
NIETZSCHE, F. La naissance de la tragédie. Paris, Gallimard, Idées, 1970, p. 24.
19
Op. cit.

145
PRESENÇA

Pouco mais adiante, Nietzsche falará de “natureza desmem-


brada em indivíduos”.
Por outro lado, o vínculo entre intensidade e divagação
morfológica, entre a “embriaguez” e a “harmonia universal”:

“[...] [o homem] sente-se deus, marcha extasiado e alçado acima de si


mesmo, como aqueles deuses que ele viu marchar em sonho.”20

Consideremos agora os regimes de presença do objeto. Tam-


bém aí as direções mutuamente inversas da potencialização e da
atualização parecem fundar as morfologias elementares do obje-
to, as quais poderiam ser aproximadamente circunscritas graças
às seguintes denominações:

Moderno Clássico

Novo Antigo

Não é sobre as significações objetivas – pois, nesse caso, as


denominações propostas pareceriam evasivas ou muito arbitrá-
rias – que versam nossas declarações, e sim sobre as valências
que subjazem a elas. As significações dependem da enciclopédia,
que estabelece por debreagem a antiguidade dos começos nesta
ou naquela data. Mas temos em vista o comércio dos valores, ou
seja, o percurso dos objetos que potencializa sua modernidade e
atualiza sua antiguidade. Aí, a presença se afasta mais uma vez
do “estado” propriamente dito, e parece ligada a uma proble-
mática das fases tensivas: (i) a conversão de um objeto “moderno”
em objeto “clássico” é grosso modo distensiva, mas, se o processo

20
Op. cit. p. 26.

146
PRESENÇA

for examinado de perto, a “antiguidade”, que corresponde em


princípio a um limiar, pode converter-se num limite: nem tudo
que é antigo se torna clássico, e essa parada pode avivar a tensão;
(ii) também a transferência inversa deve apreciar o peso das valên-
cias respectivas do clássico e do moderno; mais precisamente, os
sujeitos têm que medir, com efeito, a resistência a uma “novidade”
que lhes parece, em maior ou menor medida, “agressiva”, e que
pode, por isso, comportar-se também, quer como limiar, quer como
limite. Também aqui, a consagração da novidade em modernidade
está na dependência do tempo, muito embora a época contempo-
rânea, ávida, como se sabe, de velocidade “pura”, tenda a abreviar
o intervalo que os distingue.

3 CONFRONTAÇÕES

Nesta seção, gostaríamos de examinar se a problemática


dos modos de presença, proposta pelo Dicionário de Sémiótica e
Semiótica das paixões, é exclusiva ou não. A revelar-se exclusiva,
ela induzirá uma ruptura, para não dizer uma “mudança de
paradigma”; ao contrário, se se admitir a diversidade de “estilos
de presença”, são apenas novas perspectivas que se abrem.
No terceiro volume de La philosophie des formes symboliques,
E. Cassirer admite que existe uma região em que as distinções
entre “objeto” e “propriedades”, entre “ser” e “parecer”, são ain-
da desprovidas de prioridade, e essa região é o mito:

“Todo fenômeno ocasional [no mito] mostra um caráter de presença


autêntica, e não de mera representação substitutiva: cada ente real
ergue-se em plena presença, em vez de se ‘representar’ somente
pela mediação do fenômeno.”21

21
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, op. cit., tome 3, p. 83.

147
PRESENÇA

As clivagens entre o “signo” e a “coisa”, entre a “parte” e o


“todo”, tidas por indispensáveis pela conduta objetivante, ainda
não são nem operantes, nem exclusivas, e a própria conversão da
diferença em precedência é peculiar à conduta objetivante, mas
de modo algum à consciência mítica: para que esta última se
reconheça na conduta objetivante, seria necessário que ela se
comparasse ao procedimento científico, e que essa comparação
trouxesse à tona uma falta, mas sabe-se que é o contrário que se
admite, em geral, quando a comparação é efetuada a posteriori.
Há “mais”, e até “melhor”, no mito, do que no inventário “de-
sencantado” do mundo ao qual a conduta objetivante se dedica,
sob a denominação de “ciências”.
No entanto, o conhecimento dito científico e a consciência
mítica possuem, pelo menos, duas categorias em comum, as de
“presença” e “eficiência”, a primeira sob a insígnia do objeto e a
segunda, sob a do sujeito:

“Pois toda realidade efetiva que apreendemos é menos, em sua


forma primitiva, a de um mundo preciso de coisas, erigido diante
de nós, do que a certeza de uma eficiência viva sentida por nós.”22

O sujeito e o objeto tensivos da eficiência e da presença


podem ser afetados pela intensidade, em especial pela categoria
“tônico vs átono”. O actante sujeito aparece então como o emissor
de certo grau de intensidade, e o actante objeto como o receptor.
Se o emissor for tônico, sua ação aparecerá como um golpe, e pro-
duzirá no receptor um “efeito”; se o emissor for átono, sua ação
aparecerá apenas como “eficiência”, e o receptor contentar-se-á em
senti-la como “presença”. Para o observador, o “efeito” e a “presen-
ça” manifestam pois, respectivamente, a “ação” e a “eficiência” do
emissor. Ou seja, a rede:

22
Op. cit., p. 90.

148
PRESENÇA

tônico átono
emissor ação eficiência
receptor efeito presença

Equivaleria isso a pôr em xeque a semiótica greimasiana?


Não e sim, somos tentados a responder. Em Semântica estrutural,
Greimas defendia, acerca das categorias modais e actanciais, uma
concepção antes “materialista” da emergência e interação dos
actantes, arriscando-se a confiá-la ao imaginário:

“Dizer que uma categoria modal engloba o conteúdo das mensa-


gens e o organiza, estabelecendo um tipo determinado de relação
entre os objetos lingüísticos constituídos, quer dizer, que se reco-
nhece que a estrutura da mensagem impõe uma certa visão do
mundo. Assim, a categoria da “transitividade” nos força, por assim
dizer, a conceber certo tipo de relação entre os actantes, coloca
diante de nós um actante como investido de um poder de agir e
um outro actante investido de uma inércia. O mesmo ocorre com a
relação entre destinador e destinatário, que parece não apenas
fundar a troca, mas também instituir, face a face, objetos dos quais
um será a causa e o outro o efeito.”23

Entretanto, Greimas entreabre uma porta que em seguida


se apressará em fechar para não contradizer as premissas “fono-
logizantes” e “logicizantes” adotadas para fundar as estruturas
elementares da significação.
Uma segunda razão pode explicar o relativo desinteresse
da semiótica pela categoria da presença. O privilégio concedido
pela semiótica greimasiana à narratividade proppiana conser-
vou-se ambíguo: que a narratividade proppiana detenha um grau
elevado de pertinência, certamente – mas dentro de que limi-
tes? De acordo com Propp, o conto era um avatar do mito, mas

23
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural, op. cit., p. 175.

149
PRESENÇA

tal degradação permaneceu impensada e, para evitar a espinho-


sa questão que esta induzia, bastava fazer como se não houves-
se nada de “mais” no mito do que na narrativa, e nada de “me-
nos” na narrativa do que no mito. Semelhante redução do mito
à narrativa permite compreender, até certo ponto, que a semió-
tica tenha tido alguma dificuldade para tratar da presença, uma
vez que, para uma importante tradição da antropologia, o mito
lidava precisamente com a presença!
No discurso semiótico propriamente dito, essa dificulda-
de induziu uma distorção entre, por um lado, uma metalingua-
gem privilegiadora da divisão, da diairesis e da articulação – e,
para além disso, das forças dispersivas –, e, por outro, uma lin-
guagem-objeto mais sensível à indivisão, à sunagôgê – e, para
além, às forças coesivas –, como no caso do discurso mítico.
A homogeneidade da conceptualização semiótica supu-
nha uma solução de continuidade entre a esfera do sensível e a
do inteligível, e, pelo mesmo gesto, a suficiência do inteligível,
mas a ruptura não pôde ser operada nem de direito, nem de
fato. Para começar, de direito: como nota Hjelmslev, distinguir
não é separar, e é só aparentemente que o reconhecimento do
inteligível se efetua à custa do sensível:

“Mas nenhuma abstração, por aprofundada que seja, pode descartar


e eliminar essa camada [fundamental e primitiva da percepção] en-
quanto tal; [...] Essa abstração é plenamente legítima para a intenção
puramente teórica de construir a ordem objetiva da natureza e apre-
ender-lhe a legalidade; não pode, porém, dissipar o mundo dos fenô-
menos expressivos enquanto tal.”24

O dualismo do afeto e da forma estabelece, por meio de um


tenaz positivismo, que a forma se impõe por si própria, ao passo
que a semiótica da presença, já adotada por E. Cassirer, propõe,

24
CASSIRER, E., op. cit., p. 89.

150
PRESENÇA

com convicção, que o impacto da presença deve atribuir-se ao afe-


to, ou seja, em seus próprios termos, à “expressão”:

“Da percepção, tomada como mera percepção de coisas, nunca se


poderia inferir um ser real se este já não estivesse incluído nela, de
uma maneira ou de outra, graças à percepção de expressão, e se
este não se manifestasse nela de modo inteiramente original.”25

Se examinarmos agora a questão de fato, as coisas ficam


talvez ainda mais claras. O percurso próprio da semiótica con-
sistiu, de nosso ponto de vista, em reintroduzir progressivamen-
te os pressupostos da presença como grandezas cardeais das
linguagens-objeto: a foria, indispensável para fazer “rodar” ou
“avançar” o modelo transformacional; a “massa tímica” a permi-
tir a conversão dos “valores virtuais” do saussurismo em “valo-
res axiológicos” ou intencionais; as paixões, para imprimir aos
actantes e atores as dinâmicas tensivas internas; o “espaço
tensivo”, proposto em Semiótica das paixões como “pré-condição”
da busca pelo sentido; enfim, determinadas propostas recentes
que visam a aprofundar tanto quanto possível a hipótese de uma
prosodização do conteúdo. Tomada em separado, cada uma des-
sas hipóteses aparece como a adição de um simples toque inca-
paz de pôr em xeque a economia global do projeto semiótico;
postas em conjunto, porém, elas conferem à semiótica uma
“fisionomia” sensivelmente diversa da que prevaleceu num pri-
meiro momento.

25
Op. cit., p. 90.

151

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