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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

LUCIANO MAGNONI TOCAIA

LINGUAGEM E ENSINO: IDENTIDADE E DIVERSIDADE DISCURSIVA EM


LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS E FRANCESES

São Paulo
2014
LUCIANO MAGNONI TOCAIA

LINGUAGEM E ENSINO: IDENTIDADE E DIVERSIDADE DISCURSIVA EM


LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS E FRANCESES

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial à obtenção do grau de
Doutor em Letras.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros

São Paulo
2014
LUCIANO MAGNONI TOCAIA

LINGUAGEM E ENSINO: IDENTIDADE E DIVERSIDADE DISCURSIVA EM


LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS E FRANCESES

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor
em Letras.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros - Orientadora


Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Prof. Dr. José Gaston Hilgert


Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Prof. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos


Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM

Profa. Dra. Norma Discini de Campos


Universidade de São Paulo- USP

Profa. Dra. Sylvie Archaimbault


Université Paris Diderot - Paris 7 associée à l´Université Sorbonne Nouvelle
T631L Tocaia, Luciano Magnoni.
Linguagem e ensino : identidade e diversidade discursiva em livros didáticos
brasileiros e franceses / Luciano Magnoni Tocaia. – 2014.
311 f. : il. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, 2014.
Referências bibliográficas: f. 227-236.
1. Semiótica discursiva. 2. Ator da enunciação. 3. Manipulação. 4.
Tematização. 5. Figurativização. 6. Livro didático para o ensino de língua materna.
I. Título.
CDD 371.32
A meus professores que, cada qual a sua
maneira, me apresentaram o instigante
mundo dos discursos.
AGRADECIMENTOS

À Sabedoria superior, que me permitiu deixar rastros firmes no caminho percorrido.

À Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros, pela orientação meticulosa, cuidadosa,
paciente e, sobretudo, exigente, o que demonstra sua generosidade.

À Profa. Dra. Norma Discini e ao Prof. Dr. José Gaston Hilgert, pelas preciosas
colaborações no exame de qualificação desta tese.

À Profa. Dra. Norma Discini que, no decorrer de suas aulas ainda na graduação, me
apresentou o mundo dos discursos.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade


Presbiteriana Mackenzie, pelas aulas enriquecedoras que muito contribuíram para o
desenvolvimento das reflexões desenvolvidas neste trabalho.

Ao Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista, pela amizade, pelos conselhos, pelas boas
risadas e, sobretudo, por ser interlocutor constante das ideias aqui trazidas.

À Profa. Dra. Lilian Cristina Corrêa, grande amiga, meu muito obrigado por estar
sempre presente em todos os momentos da execução deste trabalho e também da minha
vida.

Ao Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães, diretor do Centro de Comunicação e


Letras, meu muito obrigado pela facilitação de todo o processo para a realização do
estágio de doutoramento na França.

Ao Prof. Ms. Mauricio Demichelli, por toda a ajuda prestada durante a execução do
trabalho.

À Profa. Dra. Eliane Gouvêa Lousada, pelos inúmeros ensinamentos durante boa parte
da minha vida profissional.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelas inúmeras possibilidades concedidas
para o aperfeiçoamento deste trabalho.

Ao Mack Pesquisa, pela bolsa de estudos concedida para a realização deste trabalho.

A Capes, pela bolsa concedida para o estágio de doutoramento na França.

À Profa. Dra. Sylvie Archaimbault, pelo acolhimento caloroso, pela disponibilidade e


pela orientação impecável durante o estágio de doutoramento na França.

À Martine Kapp, France de Bonnault e Guy Stoeckle, professores do colégio Louise


Weiss, em Estrasburgo, França, escola onde parte das observações para a pesquisa
puderam se realizar.

Aos professores do Laboratoire d´histoire des théories linguistiques, por toda ajuda
durante o estágio de doutoramento na França.

A meus alunos, pois sem eles o trabalho aqui desenvolvido teria certamente menos
serventia.
Hors du texte, point de salut. (Greimas)
RESUMO

Esta tese pretende estudar o livro didático para o ensino de língua materna como um
discurso, no Brasil e na França, e analisar os diferentes tipos de estratégias discursivas
utilizadas pelo enunciador para persuadir o enunciatário, para fazê-lo crer em seu
discurso. Entre essas estratégias, visamos a depreender nos discursos analisados temas e
figuras que reproduzem nos textos o imaginário social, além de ajudarem a construir a
imagem do ator da enunciação, imagem concreta a que se destina o discurso e que
orienta o modo de presença do sujeito no mundo. O quadro teórico-metodológico desse
estudo é o da semiótica discursiva de linha francesa, tal como proposta por Greimas
(1983, 1994), Greimas &Courtés (2011), Barros (2002a, 2008), Fiorin (2008a, 2008b,
2009), e também a noção de gênero discursivo discutida por Bakhtin (2006). Juntam-se
a esse quadro teórico principal, noções advindas da Análise do discurso de linha
francesa (Maingueneau, 1995, 1997a, 1997b, 2001, 2008), da História das ideias
linguísticas (Barros, 2007, 2010, 2011; Leite, 2005) e da Didática de língua materna
(Simard, Dufays, Dolz, Garcia-Leblanc, 2010). A escolha dos livros didáticos
analisados se deu mediante o critério de vendas de acordo com dados fornecidos, no
Brasil, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, e na França, por
editoras. Analisou-se, neste trabalho, em um primeiro momento, para as questões de
sintaxe discursiva, uma unidade de cada livro didático, verificando em que medida essa
unidade contém as demais; em um segundo momento, para questões de semântica
discursiva, voltou-se um olhar às obras em sua totalidade. No cotejo dos livros didáticos
analisados, os resultados apontam tanto para duas formas distintas de conceber o
discurso do livro didático, no Brasil e na França, quanto para a construção de
paradigmas distintos de cultura.

Palavras-chave: Semiótica discursiva. Ator da enunciação. Manipulação. Tematização e


Figurativização. Livro didático para o ensino de língua materna.
ABSTRACT

This thesis aims at studying, as a discourse, the Brazilian and French primary language-
teaching textbook. It will observe different kinds of strategies used by the utterer to
persuade the reader and make the latter believe in the former’s discourse. Among these
strategies, we intend to understand, in the analyzed discourse, themes and figures that
reproduce the social imaginary and help in the creation of an image of the actor of
enunciation. The concrete image to which the discourse aims traces the way the subject
is conceived in the world. The theoretical and methodological bases for this study are
grounded in the French discourse semiotics as presented by Greimas (1983, 1994),
Greimas & Courtés (2011), Barros (2002a, 2008), Fiorin (2008a, 2008b, 2009) and also
the concept of discursive genre as presented by Bakhtin (2006). In addition, it will be
taken concepts from French Discourse Analysis (Maingueneau, 1995, 1997a, 1997b,
2001, 2008), History of Linguistic Ideas (Barros, 2007, 2010, 2011; Leite, 2005) and
Mother Tongue Didactic (Simard, Dufays, Dolz, Garcia-Leblanc, 2010). The analyzed
textbooks were chosen according to a selling criteria provided in Brazil by Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (National Education Development Fund),
and by the publishers in France. In the development of this thesis, firstly, we analyzed
questions of discursive syntax using a specific chapter in each book, and verifying later
if that chapter contains all the others. Secondly, we turned our attention to the whole
book observing questions of discursive semantics. In the range of the analyzed books,
the results point to two distinct possibilities to conceive textbooks discourse in Brazil
and France, as well as the construction of two different paradigms of culture.

Keywords: Discursive Semiotics, Actor of Enunciation, Manipulation, Theme and


Images, Primary language textbooks.
RÉSUMÉ

L’objectif de cette thèse est d’étudier le manuel scolaire pour l’enseignement de la


langue maternelle en tant qu’un discours, au Brésil et en France, et d’analyser les
différents types de stratégies discursives employées par l’énonciateur pour persuader
l’énonciataire et le faire croire à son discours. Parmi ces stratégies, nous avons pour but
de relever dans les discours analysés les thèmes et les figures qui reproduisent dans le
texte l’imaginaire social, en plus d’aider à construire l’image de l’acteur de
l’énonciation : l’image concrète à laquelle s’adresse le discours et qui oriente le sujet en
ce qui concerne sa façon d’être présente dans le monde. Le cadre théorique-
méthodologique de cette étude est celui de la Sémiotique discursive de tradition
française, telle que celle présentée par Greimas (1983, 1994), Greimas & Courtés
(2011), Barros (2002a, 2008), Fiorin (2008a, 2008b, 2009) et sur la notion de Genre
discursif telle qu’elle est proposée par Bakhtine (2006). A ce cadre s´ajoutent des
notions de l´Analyse du discours de tradition française (Maingueneau, 1995, 1997a,
1997b, 2001, 2008), de l´Histoire des idées linguistiques (Barros, 2007, 2010, 2011;
Leite, 2005) et de la Didactique de la langue maternelle (Simard, Dufays, Dolz, Garcia-
Leblanc, 2010). Le choix des manuels scolaires analysés s´est fondé sur le critère de
ventes selon des données fournies, au Brésil, par le Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (Fond national de développement de l’éducation), et en
France, par des maisons d’édition. Dans un premier temps, en ce qui concerne les
questions de syntaxe discursive, on a analysé dans ce travail une unité de chaque livre
didactique, tout en vérifiant dans quelle mesure cette unité contient les autres ; dans un
deuxième temps, en ce qui concerne la sémantique discursive, on a tourné le regard sur
les œuvres dans leur totalité. Dans la comparaison des manuels scolaires analysés, les
résultats indiquent soit deux façons distinctes de concevoir le discours du manuel
scolaire, au Brésil et en France, soit la construction de paradigmes de culture distincts.

Mots clés: Sémiotique discursive. Acteur de l´énonciation. Manipulation. Thématisation


et Figurativisation. Manuel scolaire pour l´enseignement de la langue maternelle.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Percurso gerativo de sentido .......................................................................... 14


Quadro 2: Estrutura elementar ........................................................................................ 15
Quadro 3: Quadrado semiótico ....................................................................................... 16
Quadro 4: Classes de manipulação, modalização e valores ............................................ 18
Quadro 5: Modalidades veridictórias .............................................................................. 25
Quadro 6: Instâncias da enunciação ................................................................................ 29
Quadro 7: Quadrado semiótico ....................................................................................... 97
Quadro 8: Mecanismos de manipulação ....................................................................... 182
Quadro 9: Resumo da análise........................................................................................ 210
LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Filme Contracorriente ................................................................................... 15


Imagem 2: Jogo Brasil X Cuba voleibol feminino - Olimpíadas de Atlanta 1996 ......... 18
Imagem 3: Ronaldinho e a Turma da Mônica ................................................................. 21
Imagem 4: Publicidade seguro de vida Itaú .................................................................... 31
Imagem 5: Pirâmide do Museu do Louvre - Paris .......................................................... 34
Imagem 6: Caderno Esportes/Cidades ............................................................................ 36
Imagem 7: Frases populares de Fernando Henrique Cardoso ......................................... 37
Imagem 8: Publicidade Banco Itaú ................................................................................. 40
Imagem 9: Texto de apresentação – Português Linguagens 9º ano .............................. 104
Imagem 10: Sumário: Fleurs d´encre 3e ....................................................................... 140
Imagem 11: Sumário: Fleurs d´encre 3e ....................................................................... 141
Imagem 12: Sumário: Fleurs d´encre 3e ....................................................................... 142
Imagem 13: Sumário Fleurs d´encre 3e ........................................................................ 143
Imagem 14: Atividade de leitura – Fleurs d´encre 3e ................................................... 171
Imagem 15: Atividade de leitura: Português Linguagens 9º ano .................................. 184
Imagem 16: Atividade de leitura - Fleurs d´encre 3e .................................................... 186
Imagem 17: Seção Intervalo.......................................................................................... 193
Imagem 18: Semântica e discurso ................................................................................. 194
Imagem 19: Atividade de leitura - Fleurs d´encre 3e .................................................... 196
Imagem 20: Atividade de leitura - Fleurs d´encre 3e .................................................... 197
Imagem 21: Memento gramatical ................................................................................. 199
Imagem 22: Seção Língua em foco ............................................................................... 200
Imagem 23: Atividades de produção de texto - Fleurs d´encre 3e ................................ 204
Imagem 24: Atividade de produção textual - Português Linguagens 9º ano ................ 207
Imagem 25: Atividade de produção oral - Fleurs d´encre 3e ........................................ 211
Imagem 26: Trocando ideias ......................................................................................... 213
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 1

1. Considerações iniciais ................................................................................................ 1

2. Teoria do discurso e do texto...................................................................................... 2

3. Escolha de corpus, justificativa e objetivos da tese ................................................... 5

4. Fundamentação teórica e questões metodológicas ..................................................... 7

5. Organização da tese .................................................................................................... 9

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................... 11

1.1 A semiótica discursiva de linha francesa .............................................................. 11


1.1.1 O percurso gerativo de sentido ........................................................................... 13

2. O LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL E NA FRANÇA: PANORAMA


HISTÓRICO.................................................................................................................. 44

2.1 O livro didático de língua portuguesa no Brasil................................................... 44


2.1.1 Século XIX: Advento do livro didático “nacional” ............................................ 50
2.1.2 Livro didático e projeto autoral no século XIX .................................................. 54
2.1.3 O século XX: reavivamento do livro didático no Brasil ..................................... 57
2.1.4 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) no final do século XX e início
do século XXI .............................................................................................................. 66
2.1.5 Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) .................................................. 68
2.1.6 O livro didático Português Linguagens e sua recepção pelo PNLD 2011 ......... 71

2.2 O livro didático na França: panorama histórico .................................................. 72


2.2.1 O livro didático francês nos séculos XV, XVI e XVII ....................................... 73
2.2.2 O livro didático francês no Século XVIII ........................................................... 74
2.2.3 A gramática francesa na sala de aula .................................................................. 76
2.2.4 A gramática escolar de Lhomond: o grau zero ................................................... 77
2.2.5 Livros didáticos e gramáticas escolares no século XIX ..................................... 79
2.2.6 A primeira e a segunda gramáticas escolares francesas: a constituição de
vulgatas ........................................................................................................................ 80
2.2.7 O livro didático no século XX: a terceira gramática escolar .............................. 82
2.2.8 A quarta gramática escolar: frase, texto, discurso e enunciação ........................ 84
2.2.9 O Socle Commun de connaissances et de compétences ..................................... 86
2.2.10 Os documentos oficiais franceses: Les Programmes ........................................ 87
2.2.11 O brevet des collèges ........................................................................................ 92

3. OS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA


FRANCESA: ANÁLISE DE CORPORA .................................................................... 94

3.1 Organização fundamental e narrativa geral do livro didático para o ensino de


língua materna ............................................................................................................... 95
3.2 O livro didático Português Linguagens 9º ano (2010a): apresentação geral ...... 98

3.3 Estratégias de manipulação no livro didático Português Linguagens 9º ano


(2010a) .......................................................................................................................... 101
3.3.1 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por sedução e tentação ... 102
3.3.2 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por intimidação .............. 117
3.3.3 Tematização e figurativização como estratégias do Saber ............................... 122

3.4 Ator da enunciação e éthos ................................................................................... 131

3.5. O livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a): apresentação geral........................ 135

3.6 Estratégias de manipulação no livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a) .......... 137
3.6.1 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por sedução e tentação ... 138
3.6.2 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por intimidação .............. 160
3.6.3 Tematização e figurativização como estratégias do Saber ............................... 164

3.7 Ator da enunciação e éthos ................................................................................... 172

4. PORTUGUÊS LINGUAGENS 9º ANO (2010A) E FLEURS D´ENCRE 3E


(2012A): ANÁLISE CONTRASTIVA ....................................................................... 176

CONCLUSÃO ............................................................................................................. 216

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 227

ANEXO 1: LIVRO DIDÁTICO PORTUGUÊS LINGUAGENS 9º ANO (2010A) 237

ANEXO 2: LIVRO DIDÁTICO FLEURS D´ENCRE 3E (2012A).......................... 262

ANEXO 3: VENDAS DE LIVROS DIDÁTICOS NO BRASIL ............................. 295

ANEXO 4: VENDAS DE LIVROS DIDÁTICOS NA FRANÇA ........................... 296


INTRODUÇÃO

O livro é corpo que vive. Morre muitas vezes e ainda continua espírito.
João Scortecci

1. Considerações iniciais

“Um país se faz com homens e livros”. É dessa forma que Monteiro Lobato, em
meados dos anos 1920, já previa o peso considerável desse objeto de valor intrínseco
utilizado pelo homem nas mais diferentes épocas e nos mais diferentes tipos de
materiais para registrar e difundir seus conhecimentos e experiências. Na esteira do que
pensava Lobato, estendemos seu pensamento e ousamos afirmar que um país se faz
também com livros didáticos, afinal, os entendemos como artefatos culturais que
participam da organização cognitiva e social do saber em uma dada comunidade
linguística. Não se reduzem, portanto, à simples aplicação, mais ou menos homogênea,
de um programa oficial ou de conteúdos didáticos que devam ser transmitidos aos
alunos, mas se constituem, a priori, como objetos multifacetados (cf. CHOPPIN, 1992),
ou seja, podem se caracterizar como objeto de estudo, ao mesmo tempo, de questões
discursivas, ideológicas, linguísticas, políticas, econômicas, didático-pedagógicas,
sociológicas, religiosas, entre outras.
Nesse quadro, definiremos de antemão nossa perspectiva de trabalho. Nesta tese,
partiremos do princípio de que o livro didático é um discurso, já que o discurso é a
unidade de análise da teoria semiótica de linha francesa, ou semiótica greimasiana,
quadro epistemológico escolhido para conduzir nossas análises. Noutros termos,
consideramos que o homem percebe o mundo por meio dos discursos e, assim, de
discurso em discurso, investigaremos as astúcias da enunciação, inscritas num tempo
real e num espaço histórico, e faladas por seres situados nesse tempo e nesse espaço.
Nesse sentido, duas teses centrais instituem-se: a primeira diz que o discurso, embora
obedeça às regras da estrutura, é da ordem do acontecimento, isto é, da História; a
segunda revela que não há acontecimentos que não estejam vinculados aos quadros de
pessoa, tempo e espaço, tomando conceitos de Fiorin (2008a, p. 15).

1
Adotar a premissa anterior é, portanto, acreditar que o discurso é tanto o lugar da
instabilidade das estruturas, onde se dão efeitos de sentido, quanto compreender que os
mecanismos de actorialização, temporalização e espacialização são fundamentais para o
processo de discursivização.
É preciso, no entanto, discutir um pouco mais a questão do que é discurso, para
que possamos compreender de que forma sua produção, isto é, a enunciação, não pode
estar dissociada de seu produto, o enunciado. Para tanto, comecemos por rever a
tradição dos estudos do discurso e, consequentemente, do texto.

2. Teoria do discurso e do texto

A partir das ideias de Saussure, a Linguística ganha um objeto específico: a


língua, sistema abstrato, fato social, geral e virtual. Nessa concepção, destaca-se a
organização interna da língua, que Saussure denomina sistema, e seus sucessores
estrutura. Assim, a Linguística foi durante muito tempo uma teoria da língua que não
ultrapassava os limites da frase, até que mudanças de posicionamento frente aos fatos da
linguagem trouxeram à luz outras propostas teóricas que, então, passaram a considerar o
discurso, e não mais a frase, como unidade de sentido.
Nesse quadro de teorias que se preocupam com o discurso, surge, então, a
semiótica discursiva de linha francesa, proposta pelo lexicólogo lituano Algirdas Julien
Greimas. Trata-se de um novo projeto de ciência, cuja principal investigação recairia
sobre o sentido construído no âmbito do texto, e não mais da palavra e da frase, a que se
chamou, inicialmente de “semântica estrutural” (cf. Greimas, 1973) e, logo em seguida,
“semiótica”.
A Semiótica francesa é, portanto, uma teoria do discurso. Ocupa-se, também do
texto, manifestação do discurso. É necessário, contudo, antes de caracterizá-la,
determinar, em primeiro lugar, o que se entende por discurso e qual seu objeto de
estudo.
Saussure, em seu Curso de Linguística Geral, propõe um grupo de dicotomias,
ou seja, divisões lógicas de um conceito em dois, de modo que se obtenha um par
opositivo. Embora conheçamos outras dicotomias propostas pelo linguista, como, por
exemplo, sincronia e diacronia, paradigma e sintagma, significante e significado, etc.,

2
falaremos, aqui, de maneira sintética, apenas da dicotomia língua e fala, entre o que é
virtual e o que é realizado.
Para Saussure, a linguagem deve ser tomada como um objeto duplo, já que “o
fenômeno linguístico apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem e das
quais uma não vale senão pela outra” (Saussure, 1995, p. 15). Assim sendo, a linguagem
possui um lado social, a língua (ou langue, nos termos saussureanos) e um lado
individual, a fala (ou parole, nos termos saussureanos), sendo impossível a concepção
de um sem o outro.
Para o linguista, cada indivíduo realizaria, em seus atos de fala, as virtualidades
do sistema. A língua, nesse caso, é o elemento social da linguagem e a fala, individual, é
o reino da variabilidade, do caos, da liberdade e da criação. De acordo com Saussure, a
língua é condição da fala, uma vez que ao falarmos, estamos submetidos ao sistema
estabelecido de regras que corresponde à língua. Para ele, portanto, o objeto de estudo
específico da linguística é a língua, e não a fala. Isso não significa, entretanto, que se
possa estudar a língua independentemente da fala, visto que, entre os dois objetos, há
uma estreita ligação.
Nosso marco inicial para os estudos discursivos dar-se-á nos trabalhos de
Benveniste (1974), que, em uma perspectiva diferente do império de estabilidades
saussuriano, se interroga como se passa da língua à fala. Na verdade, a fala em
Benveniste é, se assim se pode dizer, ampliada, revolucionada em relação a Saussure.
Para o linguista francês, o exercício da linguagem não é somente uma virtualidade, mas
uma realização. Dessa forma, para ele, o que permite a passagem da língua à fala, do
virtual ao realizado, é a “colocação em funcionamento da língua por um ato individual
de utilização” (Benveniste, 1974, p.80).
A enunciação, portanto, é a instância que permite a passagem da língua à fala,
instância de mediação entre a língua e a fala. (cf. FIORIN & DISCINI, 2013, p. 183). É
a categoria central na constituição do discurso. Entende-se por instância um conjunto de
categorias que cria um dado domínio, a saber: a categoria de pessoa (actancial), a
categoria de tempo (temporal) e a categoria de espaço (espacial). Essas categorias são
aquelas que só têm sentido no ato de dizer, ou seja, na enunciação, já que o eu só se
constitui quando toma a palavra, o tu é aquele a quem ele se dirige, o aqui é o lugar de
onde o eu fala, e o agora é o momento da fala. Voltaremos a essas questões
posteriormente, no capítulo 2, destinado à fundamentação teórica desta tese.

3
Ao deixar claro que o produto do ato de dizer, o enunciado, é regrado
socialmente quando produzido, quando o sujeito toma a palavra, Benveniste está, na
verdade, indo além da teoria saussuriana, mostrando que o discurso é um produto social,
resultante da enunciação. Ao mostrar que a fala tem algo de regular, ele cria um novo
objeto para a Linguística: o discurso. (cf. FIORIN & DISCINI, 2013, p. 184). Até o
momento, a Linguística se ocupava, como já dito, da dimensão da frase. A partir de
então, a Linguística incorpora também os estudos do texto, manifestação do discurso.
Nos anos 1960, Greimas lança o que ele denomina um projeto de ciência, a
Semiótica, que tem por objetivo o estudo da significação, independentemente da forma
como ela se manifesta. Esse novo projeto não trata apenas da linguagem verbal, mas
também de outras linguagens, como as visuais, as gestuais, as sincréticas, etc. Na obra
Prolegômenos a uma teoria da linguagem, o linguista Louis Hjelmslev declara logo a
princípio: “a teoria da linguagem se interessa pelo texto, e seu objetivo é indicar um
procedimento que permita o reconhecimento de um dado texto por meio de uma
descrição não contraditória e exaustiva do mesmo”. (Hjelmslev, 2003, p.19).
Como antecipado, a Semiótica não se ocupa apenas da linguagem verbal, mas
também de outras linguagens. Não se ocupa, então, apenas de textos verbais, orais ou
escritos, como uma sinopse de filme, um editorial de jornal, uma crítica, uma aula etc.,
mas também de outros textos em outras expressões, como um quadro, uma aquarela,
uma dança, ou ainda, e mais frequentemente, de um texto sincrético, ou seja, aquele em
que se misturam duas linguagens, como uma história em quadrinhos, um filme, um
canção popular, entre outros.
A Semiótica tem por objeto, dessa maneira, o texto, isto é, procura descrever e
explicar “o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”, nas palavras de Barros
(2008a, p. 07). O texto é, portanto, aquilo que se dá a apreender, o conjunto de fatos e
dos fenômenos que ele se presta a analisar. É necessário, porém, que entendamos de que
noção de texto trata a teoria semiótica em seu quadro epistemológico. Tomemos, de
uma forma geral, as propostas de Barros (2008a).
Um texto define-se, no quadro da semiótica, pela organização e estruturação que
faz dele um “todo de sentido”, um objeto de comunicação entre um destinador e um
destinatário. Define-se, portanto, como um objeto de significação, que se presta a um
estudo de sua análise interna ou estrutural. Acusada de reducionista, por cuidar apenas
da análise interna, a Semiótica passa, então, em um segundo momento, a conciliar, com

4
o mesmo aparato teórico-metodológico, as análises ditas “interna” e “externa” do texto.
Busca, então, para explicar “o que o texto diz” e “como o diz”, examinar os
procedimentos de organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos
de produção e de recepção do texto.
Ciente das dificuldades de estabelecer uma teoria geral do texto, a Semiótica, na
esteira de L. Hjelmslev, propõe, como simulacro metodológico, em que se faça a
abstração das diferentes manifestações – verbais, visuais, sincréticas, gestuais – e que se
examine, em um primeiro momento, apenas seu plano do conteúdo. Assim, só serão
tratadas as especificidades da expressão num segundo momento, se forem importantes
para completar o entendimento da significação, o que se dá de maneira frequente
quando se analisa, por exemplo, um quadro, um poema, uma dança, etc.
Especificado o que entendemos por discurso e texto, propomos, dessa forma,
neste trabalho, o uso de uma semiótica dos processos de significação que ultrapassa e
engloba a semiótica das unidades mínimas, os signos.

3. Escolha de corpus, justificativa e objetivos da tese

O interesse por uma investigação científica sobre livros didáticos surgiu de uma
inquietação – e até mesmo de uma insatisfação – com o material didático adotado por
uma escola destinada ao ensino de francês língua estrangeira (FLE) na cidade de São
Paulo e, consequentemente, com as práticas didático-pedagógicas que assumíamos
enquanto professores utilizadores do material.
Dessa maneira, vários eram os grupos de estudo que se formavam com o
objetivo de elaborar um material didático mais apropriado e próximo da realidade do
aluno e que servisse para complementar os livros didáticos então adotados pela escola.
Começavam, ali, as primeiras pesquisas, descompromissadas, na verdade, porém,
preocupadas em estabelecer a relação entre questões teóricas e práticas às quais
tínhamos acesso em um curso de didática da língua estrangeira ministrado na própria
escola por uma equipe especializada na formação de professores.
Ao iniciarmos a prática docente na universidade, mais especificamente no curso
de Letras, coube-nos uma disciplina nomeada “Didática do ensino de línguas”, na qual
um dos conteúdos era, justamente, a análise de livros didáticos e materiais didáticos de
diversas línguas, além do francês, como o inglês, o espanhol, o alemão e o italiano.
5
Dali, migramos nossa pesquisa para outro curso, de Pedagogia, dessa vez em uma
disciplina intitulada Metodologia de ensino da Língua Portuguesa, na qual passamos a
analisar livros didáticos para o ensino de língua portuguesa nos ensinos fundamentais I
e II, além do ensino médio.
A mudança de foco, ou seja, a passagem do ensino de língua estrangeira para o
ensino de língua materna trouxe à tona novas inquietações de ordem prática e de ordem
científica, pois fomos levados a pensar no livro didático não apenas como material de
apoio ao professor, mas também a compreendê-lo como material de investigação
complexo e multifacetado. Multifacetado porque, como já dissemos, apresenta
possibilidades diversas de pesquisa que apontam tanto para questões pedagógicas,
quanto para questões históricas, linguísticas, culturais e sociais.
Assim, em nosso curso de pós-graduação, em contato com teorias do discurso,
vislumbramos um novo panorama para esse objeto de investigação complexo: concebê-
lo como um discurso em que, no seu interior, podemos diferenciar uma sintaxe e uma
semântica discursivas. Em uma generalização apressada, visto que retomaremos essas
questões adiante, a semântica é responsável pelos conteúdos que são investidos em
moldes sintáticos abstratos; cabe-lhe, também, estabelecer a maneira de ver o mundo de
uma dada formação social em uma dada época. A sintaxe compreende os processos de
estruturação do discurso e seus respectivos efeitos de sentido. (cf. FIORIN, 2001).
Resolvemos, então, seguir nossos estudos no âmbito da língua materna e
optamos pela realização de um trabalho de comparação entre os livros didáticos de
língua portuguesa e os livros didáticos de língua francesa, ambos para o ensino de
língua materna, pois isso se revelava um novo desafio na tentativa de compreender
como nos dois países se constroem os discursos desses livros e que tipos de valores são
disseminados nas duas culturas.
Constatamos, contudo, a escassez de trabalhos que têm por objetivo estabelecer
uma análise comparada entre livros didáticos para o ensino de língua materna de
diferentes países. Dessa maneira, justificamos nossa pesquisa pela crença de que um
trabalho de cunho transnacional com os livros didáticos seria válido, na medida em que
se possam analisar as influências de cada sistema político, cultural e ideológico nos
materiais produzidos, e também a imagem de um sujeito depreensível das obras
analisadas - possivelmente, de uma totalidade - além do quê, para quê e como os alunos
aprendem nos respectivos sistemas escolares do Brasil e da França.

6
Partimos, então, da hipótese de que trabalhar com livros didáticos para o ensino
de língua materna em países diferentes orienta-nos para uma reflexão sobre a educação,
sobre a cultura, sobre as metodologias de ensino e também sobre os valores
concretizados pelos temas, o que nos possibilita falar em uma identidade e uma
diversidade discursiva dos livros didáticos analisados.
Dessa forma, nesta tese, o objetivo geral é examinar discursivamente dois livros
didáticos para o ensino de língua materna, um brasileiro e um francês, ambos destinados
à última etapa do ensino fundamental, para:

1. Examinar os diferentes tipos de estratégias discursivas utilizadas pelo


enunciador para persuadir o enunciatário no discurso do livro didático para o
ensino de língua materna.
2. Depreender temas e figuras no discurso e observar como esses componentes da
semântica discursiva reproduzem nos textos o imaginário social.
3. Construir nos discursos analisados, em função dos valores característicos de
cada cultura, o éthos do enunciador e o páthos do enunciatário, que orientam o
modo de presença do sujeito no mundo.
4. Analisar a partir de qual concepção de língua são tratadas as questões
enunciativas e linguísticas pelos livros didáticos do Brasil e da França.
5. Verificar as influências diretas e indiretas das concepções de língua adotadas
pelos livros didáticos na formação e no perfil do aluno no final do ensino
fundamental no Brasil e na França.
6. Verificar como os elementos analisados nos objetivos anteriores permitem
comparar o livro didático para o ensino de língua materna no Brasil com o livro
didático para o ensino de língua materna na França, apontar suas semelhanças e
diferenças e construir, com isso, paradigmas de cultura.

4. Fundamentação teórica e questões metodológicas

Nesta tese, para atingir nosso objetivo principal, apoiamo-nos em um quadro


teórico que contempla três vertentes. Ao considerarmos o livro didático como um
discurso e a partir dele fazermos nossas análises, recorreremos, como modelo teórico de
base, à semiótica discursiva de linha francesa, também conhecida como semiótica
7
greimasiana (Greimas & Courtés, 2011; Barros, 2002a, 2008, Fiorin, 2009). Embora
saibamos que a teoria semiótica postula um percurso gerativo de sentido que vai do
mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, num processo de enriquecimento
semântico, trataremos, sem abandonar completamente o nível fundamental, do nível
narrativo e, principalmente, do nível discursivo, por sabermos que é “nele que a
enunciação mais se revela e onde mais facilmente se apreendem os valores sobre os
quais ou para os quais o texto foi construído”, como nos explica Barros (2008a, p. 54).
Um segundo quadro teórico utilizado será aquele que tem por base investigações
sobre a noção de gêneros discursivos, tal qual preconizada por Bakhtin (2006),
semiotizando-a. Além disso, recorremos também à aplicação de elementos teóricos
tratados no quadro dos estudos situados no campo da Análise do discurso de linha
francesa (Maingueneau, 1995, 1997a, 1997b, 2001, 2008), no campo da história das
ideias linguísticas (Barros, 2007, 2010, 2011; Leite, 2005) e no âmbito da didática da
língua materna (Simard, Dufays, Dolz, Garcia-Deblanc, 2010).
No que diz respeito à metodologia utilizada para alcançar os objetivos propostos,
em um primeiro momento foram escolhidos para exame os livros didáticos adotados por
um maior número de estabelecimentos de ensino no Brasil e na França: Português
Linguagens 9º ano (2010) e Fleurs d´encre 3e (2012), respectivamente. No caso
brasileiro, foram usados os dados estatísticos fornecidos pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento (FNDE) no ano de 20111. No caso francês, fez-se igualmente o uso de
dados estatísticos, porém, daqueles cedidos gentilmente pela editora Hatier-Didier,
também do ano de 2011, uma vez que o governo francês não é responsável direto pela
compra de livros didáticos e nem por sua distribuição2. Ressalta-se que a editora em
questão não é a responsável pela publicação da obra mais adotada nas escolas francesas,
o que, a nosso ver, torna mais confiável nossa coleta de dados.
Os livros didáticos são analisados em dois momentos distintos, que são
apresentados no mesmo capítulo. Em um primeiro momento, para as questões de
sintaxe discursiva, analisou-se uma unidade de cada livro didático, verificando em que
medida essa unidade contém as demais; em um segundo momento, para questões de
semântica discursiva, voltou-se um olhar às obras em sua totalidade. Estabelecemos, por

1
Vide anexo 3.
2
Vide anexo 4.

8
fim, uma comparação entre as obras para compreendermos como o livro didático se
constrói enquanto discurso nos dois países.

5. Organização da tese

A tese está organizada em quatro capítulos, além desta introdução e das


considerações finais. Haverá, também, um apêndice, cujo objetivo é ilustrar as obras
analisadas durante o trabalho, e propor os índices de vendas dos livros didáticos
analisados.
O primeiro capítulo destina-se à fundamentação teórica.
O segundo capítulo busca delinear um percurso histórico do livro didático no
Brasil e na França. Tomando como ponto de partida, prioritariamente, o século XIX,
embora não abandone acontecimentos anteriores, procura apresentar um estudo
histórico, ou seja, levanta as transformações pelas quais passou o livro didático de
língua portuguesa e de língua francesa ao longo do tempo. No caso francês, o ponto de
partida se dá no século XV, dada a complexidade desse objeto de estudo no país. Não
nos furtaremos, também, de analisar os documentos de base governamental, tais quais
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), e as diretivas governamentais para o ensino do francês trazidas pelos
Programmes franceses, bem como sua integração ao Socle commun des connaissances
et des compétences, que define os conteúdos de ensino da escolaridade obrigatória na
França.
O terceiro capítulo busca, em cada um dos livros didáticos selecionados,
apresentar uma análise em dois momentos distintos: uma referente à apresentação geral
das obras e outra referente às questões de sintaxe e de semântica, sobretudo, discursivas,
nelas desenvolvidas. Trabalham-se também questões referentes à sintaxe e à semântica
narrativas, além de breves referências ao nível fundamental do percurso gerativo de
sentido proposto pela teoria semiótica do discurso.
O quarto capítulo apresenta uma análise comparativa entre os livros didáticos
para o ensino da língua materna do Brasil e da França. Seu objetivo é verificar a
concepção de linguagem e suas relações diretas e indiretas com as questões didático-
pedagógicas para o ensino de língua portuguesa ou língua francesa, analisar as
metodologias de ensino que vigoram nos dois sistemas de ensino e suas influências em

9
atividades de leitura, produção textual e ensino de gramática, e, por fim, definir o éthos
do enunciador e o páthos do enunciatário, ou seja, a imagem do ator da enunciação nos
livros didáticos analisados.

10
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

La sémiotique s´intéresse au “paraître du


sens” appréhendé à travers les formes du
langage, et plus concrètement, à travers le
discours qui le manifestent, le rendent
communicable et en assurent l´incertain
passage. (BERTRAND, 2000, p. 07).

Este capítulo pretende apresentar os fundamentos da teoria semiótica escolhida


para este trabalho. Por teoria semiótica, entende-se aqui a teoria desenvolvida por A. J.
Greimas e pelo Grupo de Investigações Semio-linguísticas da Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais, em Paris, na França.
A semiótica greimasiana, também denominada semiótica discursiva de linha
francesa, é uma das teorias do discurso e tem por objetivo mostrar os princípios sobre os
quais repousam sua caminhada no estabelecimento do percurso gerativo de sentido, em
que três patamares, no plano do conteúdo, se sobrepõem: o nível fundamental, o nível
narrativo e o nível discursivo. Cada etapa desse percurso é dotada de uma gramática
autônoma, com uma sintaxe e uma semântica, embora o sentido do texto dependa da
relação entre os três níveis.
Completam o quadro epistemológico desta tese, algumas contribuições trazidas
por Bakhtin para as análises de textos e de discursos, especificamente a questão dos
gêneros discursivos, além da aplicação de elementos teóricos tratados no quadro dos
estudos situados no campo da Análise do discurso de linha francesa (Maingueneau,
1995, 1997a, 1997b, 2001, 2008), no âmbito da Didática da língua materna (Simard,
Dufays, Dolz, Garcia-Deblanc, 2010) e no campo da História das ideias linguísticas.
(Barros, 2007, 2010, 2011; Leite, 2005).
Neste capítulo apresentaremos uma síntese da teoria semiótica. As outras
contribuições teóricas, complementares ao trabalho, serão tratadas no corpo da tese.

1.1 A semiótica discursiva de linha francesa

A semiótica discursiva de linha francesa, ou semiótica greimasiana, filia-se à


tradição saussuriana. A linguística, a partir de Sausurre, escolhe a língua como seu
11
objeto, normalmente sem ultrapassar a dimensão da frase, seja por adotarem a frase
como a unidade linguística por excelência, seja pela dificuldade de reconhecerem
unidades maiores do que a frase. As gramáticas que tratam das construções frasais não
desenvolvem adequadamente a descrição da combinação dessas unidades em contexto
mais amplo. Embora não se negue que a frase é parte integrante do texto, uma
perspectiva que aborde apenas a frase pouco contribui para a compreeensão global do
texto.
A partir dos anos 60, com a mudança de posicionamento diante aos fatos de
linguagem, ou seja, pelo fato de se passar a considerar o texto3 e não mais a frase como
unidade de sentido, tornou-se necessário o aparecimento de uma linguística do texto ou
do discurso, que mostrasse, então, que o sentido da frase depende do sentido do texto.
Surgem, assim, diferentes teorias do discurso, entre as quais, a Semiótica greimasiana,
fundada como novo projeto de ciência pelo lexicólogo lituano radicado na França
Algirdas Julien Greimas, que concebe o texto (e não mais a palavra ou a frase) como
objeto de significação e se preocupa em estudar os mecanismos de significação desses
textos. Inspirando-se, sobretudo, nos trabalhos de Saussure e Hjelmslev e em uma
proposta do linguista Lucien Tesnière, para quem a estrutura de um enunciado simples
poderia ser comparada a um espetáculo, além de retomar o modelo de análise do conto
maravilhoso russo formulado por Vladimir Propp (1983), Greimas, após sucessivas
adaptações, lança sua própria teoria, estendendo as perspectivas gramaticais à dimensão
do texto e mostrando que não estava mais trabalhando com unidades linguísticas.
A semiótica discursiva apresenta-se como uma teoria sintagmática, geral e
gerativa, tomando conceitos de Fiorin (2008b). Sintagmática porque tem por objetivo
explicar não as unidades lexicais mínimas, mas a produção e interpretação do discurso.
Sua totalidade não abarca o plano do conteúdo das línguas naturais, mas o texto. Geral,
pois se interessa por qualquer texto, independentemente de sua manifestação; o conceito
de texto para a semiótica discursiva é bastante amplo, abrangendo desde o texto verbal
(um editorial, uma entrevista) até o texto não verbal (um quadro, uma escultura),
passando pelo texto sincrético (uma novela, um filme), no qual duas ou mais linguagens
se articulam (verbal, visual, sonora, etc.). A semiótica discursiva postula que o conteúdo
pode ser analisado separadamente da expressão, visto que um mesmo conteúdo pode ser
expresso por diferentes meios de expressão (um sim em uma situação específica pode

12
ser expresso por meio da linguagem verbal, um gesto em que se levanta o polegar, um
sorriso ou um gesto da cabeça, por exemplo).
De acordo com Barros (2008), a semiótica discursiva, na esteira de Hjelmslev,
propõe que, num primeiro momento de análise, se faça a abstração das diferentes
manifestações – visuais, gestuais, verbais ou sincréticas – e que se examine o plano do
conteúdo, para em um segundo momento, estudar as especificidades da expressão bem
como sua relação com o significado: “a semiótica deve ser assim entendida como a
teoria que procura explicar o ou os sentidos do texto pelo exame, em primeiro lugar, de
seu plano do conteúdo”. (Barros, 2008, p. 08).
Um terceiro aspecto da semiótica é ser uma teoria gerativa, isto é, conceber o
processo de produção do texto como um percurso gerativo, que “vê o texto como um
conjunto de níveis de invariância crescente, cada um dos qual suscetível de uma
representação metalinguística adequada”, como explica Fiorin (2008b, p. 18). É
importante lembrar que esse percurso gerativo de sentido não tem um estatuto
ontológico, ou seja, não se tem a pretensão de ensinar o falante a produzir um texto a
partir desse modelo gerativo. Ao contrário, trata-se, sobretudo, de um simulacro
metodológico, que visa a levar o leitor a compreender o texto, a fazer abstrações a partir
da superfície do texto para poder entendê-lo.
Discorreremos no próximo item a respeito do percurso gerativo de sentido,
conceito fundamental para a teoria semiótica.

1.1.1 O percurso gerativo de sentido

O percurso gerativo de sentido é um simulacro metodológico do qual se serve a


teoria semiótica para a construção dos discursos. A semiótica discursiva é levada a
conceber o discurso:

como um dispositivo em forma de “massa folheada”, constituído de um certo


número de níveis de profundidade superpostos, dos quais somente o último ,
o mais superficial , poderá receber uma representação semântica comparável,
grosso modo, às estruturas linguísticas profundas [...] (GREIMAS &
COURTÉS, 2011, p. 145).

Ao conceber o seu plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo, a


teoria semiótica prevê o entendimento do texto em diferentes instâncias de abstração,
13
cada qual passível de uma descrição autônoma de cada um dos patamares estabelecidos
no percurso gerativo. Por isso queremos dizer que a semiótica discursiva prevê para
cada um dos níveis do percurso uma gramática composta de uma sintaxe e de uma
semântica, ou seja, a sintaxe opõe-se à semântica: esta trata dos conteúdos investidos
nos arranjos sintáticos; aquela, se define pelo conjunto de mecanismos que ordena o
conteúdo. (cf. FIORIN, 2008b). A distinção entre esses dois componentes reside no fato
de que a semântica possui uma autonomia maior que a sintaxe, o que nos faz entender
que se podem investir variados conteúdos semânticos na mesma estrutura sintática. O
quadro abaixo, inspirado de Greimas & Courtés (2011, p. 235) permite ilustrar a
descrição do percurso gerativo de sentido:

percurso componente componente


gerativo sintático semântico
(+) simples, (+) abstrato Sintaxe fundamental Semântica fundamental

nível intermediário / actante Sintaxe narrativa Semântica narrativa

Sintaxe discursiva Semântica discursiva

 actorialização  tematização
(+) complexo, (+) concreto / ator  temporalização  figurativização
 espacialização
Quadro 1: Percurso gerativo de sentido

Trataremos, agora, de cada um dos níveis do percurso gerativo de sentido. O


nível fundamental (sintaxe e semântica fundamental) compreende a oposição ou as
oposições semânticas que ordenam de maneira mais geral os diferentes conteúdos. As
categorias semânticas são dadas na semiótica discursiva por uma oposição a vs. b. Por
exemplo, no filme Titanic, a oposição fundamental do texto é vida vs. morte. Cada um
dos termos dessa oposição pode ser negado, resultando em outra oposição: não a vs.
não b. Disso resulta que os termos a e b mantém entre si uma relação de contrariedade,
o mesmo ocorrendo para a relação não a vs. não b. Entre a /não a e entre b/ não b há
uma relação de contratidoriedade. Além disso, o termo não a mantém com b uma

14
relação de implicação, assim como não b com a. O quadro a seguir permite visualizar o
que explicamos:

Quadro 2: Estrutura elementar

Fonte: Barros (2002a)

Para a análise do nível fundamental proposto pelo percurso gerativo de sentido,


faremos alusão ao filme Contracorrente, dirigido por Javier Fuentes-Léon, em 2009,
representado pelo cartaz abaixo. O filme, que não será aqui analisado em toda a sua
complexidade, conta a história de Miguel (Cristian Mercado), um pescador respeitado
na vila onde mora e trabalha. Casado com Mariela (Tatiana Astengo), o pescador está
prestes a ganhar o primeiro filho, mas ele vive um romance com Santiago (Manolo
Cardona), artista chamado pelos moradores de Príncipe Encantado. Com o passar do
tempo, Mariela começa a questionar Miguel, que precisará decidir sobre sua
sexualidade.

Imagem 1: Filme Contracorriente

Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-176369>. Acesso em 09 fev. 2014


15
O texto é construído sobre as categorias do nível fundamental natureza vs.
cultura. A natureza é o lugar no qual se exacerbam a sexualidade e os instintos. A
cultura é o lugar das convenções sociais, daquilo que pode ser controlado.
Compreendidas tais questões, podemos dizer que o nível fundamental do texto
acima pode ser expresso pela oposição natureza X cultura. Os termos dessas categorias
se encadeiam da seguinte forma: afirmação da cultura, negação da cultura (quando os
homens se beijam na praia deserta), afirmação da natureza (a relação afetiva entre os
homens). Há, então, uma negação da natureza (quando Miguel se nega a abandonar sua
esposa para viver com Santiago, o artista), e uma afirmação da cultura (a continuidade
do casamento de Miguel e o nascimento de seu filho).
A seguir, propomos a representação da estrutura elementar do filme comentado:

Natureza -------------------------------------Cultura

Não-cultura --------------------------------------- Não-natureza


Quadro 3: Quadrado semiótico

Essas categorias fundamentais do texto podem ser determinadas como positivas


ou eufóricas e negativas ou disfóricas. No filme examinado, a natureza é eufórica, a
cultura, disfórica. O filme Contracorrente tem, portanto, como conteúdo mínimo
fundamental a negação da cultura, sentida como negativa, e a afirmação da natureza,
vista como eufórica.
Pontuaremos ainda duas considerações a respeito do nível fundamental do
percurso gerativo de sentido:

a) ao se servir do percurso gerativo de sentido como simulacro


metodológico para a análise de textos, não se inicia a análise pelo
nível fundamental, mas se chega até ele;
b) a maior parte dos textos em nossas culturas possui como categorias
universais semânticas as oposições vida vs. morte ou natureza vs.
16
cultura, estando as duas categorias aptas a servir de ponto de partida
para a análise de universos semânticos. (cf. GREIMAS & COURTÉS,
2011, p.522).

Vejamos agora o segundo patamar do percurso gerativo de sentido: o nível das


estruturas narrativas. Neste nível, “os elementos das oposições semânticas fundamentais
são assumidos como valores por um sujeito e circulam entre sujeitos, graças à ação
também de sujeitos”, explica Barros (2008, p. 11). No nível narrativo, as narrativas
mínimas definem-se como uma transformação de estado, ou seja, passa-se de um estado
de conjunção para um estado de disjunção, ou de um estado de disjunção para um
estado de conjunção, com um objeto. Dessa forma, há dois tipos de estados: um
conjunto e um disjunto. Quando dizemos Vitor é milionário, temos um sujeito Vitor que
entra em conjunção com o objeto riqueza. Quando dizemos Vitor não é milionário,
temos um sujeito Vitor em disjunção com o objeto riqueza. A transformação se dá
justamente na mudança da relação entre o sujeito e o objeto.
Cada uma das narrativas desdobradas possui uma articulação canônica em que
três percursos se sobrepõem: o percurso da manipulação, o da ação e o da sanção.
Tratararemos desses percursos de forma separada, embora os três estejam
obrigatoriamente presentes no simulacro da ação do homem sobre as coisas do mundo
(fazer ser) ou do homem sobre o homem (fazer fazer), que é a narrativa. Isso não quer
dizer, no entanto, que eles estejam sempre explicitados no texto, porém se não forem
examinados fazem com que a narrativa perca seu sentido.
No primeiro percurso, da manipulação, um sujeito propõe um contrato ao
destinador e busca persuadi-lo, a partir de diferentes estratégias, a aceitar o contrato e a
fazer o que ele, destinador, deseja que o outro faça. Há, portanto, um sujeito que
transmite a outro um querer e/ou um dever. Ao destinatário cabe a interpretação da
persuasão do destinador (fazer crer) e a decisão de nela acreditar (fazer fazer) ou não
(não-fazer) e aceitar ou não os valores que lhe são propostos. (cf. BARROS, 2002a).
Concretizada por um pedido, uma ordem, uma súplica, o percurso da manipulação
compreende quatro classes, segundo a teoria semiótica:
 sedução: o destinador enaltece e faz uma imagem positiva do
destinatário, oferecendo-lhe valores que julga ser desejados;

17
 tentação: o destinador oferece ao destinatário um valor descritivo que é
de algum modo irrecusável.
 intimidação: o destinador oferece ao destinatário um valor negativo,
temível e ameaçador, que este pode querer evitar;
 provocação: o destinador faz uma imagem negativa do destinatário,
depreciando-o.

Visualiza-se o que foi explicado na representação abaixo, na qual se busca aliar


às grandes classes da manipulação, também os enunciados modais que modificam um
enunciado dito descritivo.

MODALIDADES IMAGEM
MANIPULAÇÃO VALORES DO
destinador destinatário
DESTINATÁRIO
sedução saber-fazer querer-fazer - positiva
tentação poder-fazer querer-fazer positivos -
intimidação poder-fazer dever-fazer negativos -
provocação saber-fazer dever-fazer - negativa
Quadro 4: Classes de manipulação, modalização e valores

Um exemplo das classes de manipulação pode ser encontrado na fotografia a


seguir, que captura cena ocorrida durante os Jogos Olímpicos de Atlanta no jogo de
semifinal de voleibol feminino entre Brasil e Cuba.

Imagem 2: Jogo Brasil X Cuba voleibol feminino - Olimpíadas de Atlanta 1996

Disponível em: <http://olimpiadas.uol.com.br>. Acesso em 13 jan. 2014.

18
Aparentemente, misturam-se no texto as estratégias de provocação e de
intimidação. As cubanas, ganhadoras do confronto, fazem uma imagem negativa do
destinatário (saber fazer) e levam as brasileiras a agir (dever fazer) como única forma
de refutar a depreciação que lhes é imposta. A manipulação imposta pelas cubanas surte
o efeito desejado quando as brasileiras perdem a razão e se dirigem em direção à rede
que separa as duas quadras para um “acerto de contas”. A cena mostra nitidamente a
jogadora brasileira Ana Moser tirando satisfações com as cubanas no final do jogo,
como forma de preservar a integridade tanto sua quanto da equipe nacional. Cumpre
ressaltar que a manipulação por provocação, que parece funcionar melhor no domínio
público, é uma estratégia muito comum no esporte.
Além da provocação, as jogadoras cubanas também fizeram uso, aparentemente,
da estratégia de intimidação, ou seja, ofereceram às jogadoras brasileiras um valor
negativo que elas (brasileiras) certamente temiam e queriam evitar: a derrota. As
cubanas valeram-se de um poder-fazer (normalmente extradiscursivo), adquirido,
provavelmente, do retrospecto de vitórias frente à equipe brasileira e, por meio de gritos
e deboches, ameaçaram a vitória brasileira que, como se sabe, realmente não aconteceu.
A manipulação cubana só teve êxito nesse jogo de voleibol porque estavam em jogo um
sistema de valores compartilhado pelo manipulador e pelo manipulado (brasileiras): no
caso, a vitória e a passagem à disputa da medalha de ouro.
Como está em Barros (2002a), em qualquer dos tipos de manipulação, o
destinatário é colocado em uma situação de obediência e falta de liberdade, pois só tem
duas opções: aceita e faz o que o destinador propõe, recebendo, por isso, os valores
desejados ou evitando valores temidos; não aceita e não faz o que o destinador propõe,
não recebendo, assim, os valores desejados ou ainda sofrendo as consequências dos
valores temidos.
O destinatário-manipulado, porém, não fica passívo diante do processo de
manipulação. Cabe a ele julgar se o manipulador parece e é confiável, se ele parece,
mas não é, não parece, mas é ou nem parece e nem é. A mesma coisa ocorrerá com os
valores que lhe são oferecidos: serão considerados verdadeiros (parecem e são
desejados ou temidos), falsos (nem parecem nem são), mentirosos (parecem, mas não
são) e secretos (não parecem, mas são). As modalidades do ser e do parecer são ditas
modalidades veridictórias, isto é, que definem os sujeitos, suas ações e seus valores
como verdadeiros ou não. (cf. BARROS, 2002a). Examinaremos detalhadamente as

19
modalidades veridictórias quando tratarmos, posteriormente, da modalização do ser, na
semântica discursiva.
No percurso da manipulação, o destinatário, que teve a competência
transformada pelo destinador, torna-se sujeito transformador no percurso da ação. Nesse
percurso, aparecem dois programas narrativos: um programa narrativo de competência e
um programa narrativo de performance. No programa de competência, um sujeito
confere ao outro um saber e um poder fazer. Esse sujeito transformador é realizado por
um ator diferente daquele do sujeto de estado e o valor do objeto é um valor modal.
Quando, num conto de fadas, uma fada dá a uma princesa um objeto mágico, com o
qual esta poderá realizar uma ação extraordinária, a fada está, na verdade, habilitando a
princesa para um poder fazer, figurativizado no referido objeto. Do ponto de vista do
percurso da manipulação, o sujeito transformador do programa de competência é o
destinador, e o sujeito cujo estado modal é transformado é o destinatário.
O programa de performance, por sua vez, é aquele no qual ocorre a
transformação principal da narrativa. Trata-se, como define Barros (2002a), de uma
transformação de um estado de disjunção em um estado de conjunção, operada por um
sujeito transformador que é realizado pelo mesmo ator do sujeito que tem seu estado
transformado, diferentemente do programa de competência. Nesse programa, o valor do
objeto é um valor descritivo final, ou seja, o valor último a que visa o sujeito da
narrativa. Um exemplo bastante simples desse programa seria, ainda no conto de fadas,
quando uma princesa é raptada pela bruxa, a performance será a libertação da princesa
por outro sujeito. Destaca-se que todo programa narrativo de performance pressupõe
um programa narrativo de competência.
O último percurso da narrativa é o percurso da sanção. Nele, o destinador dá ao
destinatário o reconhecimento pelo cumprimento ou não do acordo e, com isso, a
retribuição ou a punição que disso recorrem. Existem dois tipos de sanção: a cognitiva e
a pragmática. A primeira trata do reconhecimento por um sujeito de que a performance
realmente ocorreu. Normalmente, essa fase é muito importante no texto, visto que nela
temos acesso a mentiras, segredos, revelações, etc. O outro tipo, pragmático, pode ou
não ocorrer e, como já dito, pode ser tanto um prêmio (retribuição) quanto um castigo
(punição). Na maior parte das narrativas, quando os bons são premiados e os maus
castigados, estamos diante de uma sanção pragmática.

20
No pôster da Turma da Mônica sobre a vitória do Atlético Mineiro na Taça
Libertadores da América de Futebol em 2013, tem-se claramente um percurso de sanção
explicitado:

Imagem 3: Ronaldinho e a Turma da Mônica

Disponível em: <http://esporte.band.uol.com.br>. Acesso em 11 jan. 2014.

Nesse pôster, a equipe de futebol do Atlético Mineiro está sendo reconhecida


como cumpridora de seu contrato com os torcedores atleticanos, uma vez que a equipe
de futebol do clube mineiro se consagrou campeã da Taça Libertadores da América
2013 e, recebe, como recompensa, uma homenagem alegre e festiva de todos os
torcedores da equipe, representados pela Turma da Mônica. Há de se considerar que o
principal atleta da equipe, o jogador Ronaldinho Gaúcho, aparece figurativizado - e
homenageado - como personagem da Turma pelo cartunista Mauricio de Souza. A fase
da sanção cognitiva encontra-se bem marcada no pôster, já que a equipe é reconhecida –
e homenageada – por um sujeito de que a performance realmente ocorreu. Nesse caso, o
sujeito foi sancionado positivamente.
Os aspectos que comentamos anteriormente pertencem, na teoria semiótica, à
esfera da sintaxe narrativa. Passaremos, a seguir, a alguns aspectos da semântica
narrativa, sobretudo, às questões de modalização.

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Diz Barros (2008, p.42) que “no percurso gerativo, a semântica narrativa é o
momento em que os elementos semânticos são selecionados e relacionados com os
sujeitos”. As relações dos sujeitos com os valores podem ser modificadas por
determinações modais, assim como a relação do sujeito com o seu fazer sofre
qualificações modais.
Há dois tipos de modalizações previstos no quadro teórico da semiótica
discursiva: uma que atribui existência modal ao sujeito de estado, chamada de
modalização do ser; outra responsável pela competência modal do sujeito do fazer, por
sua qualificação para a ação, denominada modalização do fazer. Tanto em uma quanto
em outra, há dois tipos de objetos buscados pelos sujeitos: os objetos modais, previstos
pela teoria semiótica como o querer, o dever, o poder e o saber, e os objetos de valor,
tais quais a riqueza, o prazer, o reconhecimento, etc. Os primeiros são os objetos
necessários para a obtenção dos segundos, objetivos últimos da ação narrativa. Segundo
Fiorin (1999):

É exatamente nos conteúdos investidos nos objetos que se dá a articulação


entre o nível fundamental e o nível narrativo. Os conteúdos do nível
fundamental são concretizados nos objetos do nível narrativo. Quando se
narra a história da compra de um apartamento, o dinheiro que se juntou não
constitui um objeto de valor, mas um objeto modal, porque ele é o poder
comprar. (FIORIN, 1999, p. 87).

Neste trabalho, consideraremos, prioritariamente, os objetos modais.


Trataremos de forma separada da modalização do fazer e da modalização do ser.
A modalização do fazer se dá por dois tipos: ser-fazer e o fazer-fazer. Aquele
caracteriza a organização modal da competência do sujeito. Este representa o fazer do
destinador que comunica valores modais ao destinatário-sujeito, para que ele faça.
Como está em Barros (2002a):

Para fazer-fazer, o modalizador precisa, em primeiro lugar, alterar a


competência do sujeito e, só assim, criando a predisposição para o fazer,
estabelece, indiretamente, o percurso do sujeito e modaliza a performance. A
relação entre o primeiro fazer (o do manipulador) e o segundo (a
performance do sujeito) é sempre indireta, mediatizada pela transformação
da competência modal do sujeito. (BARROS, 2002a, p. 51).

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Como já adiantado, a semiótica trabalha essencialmente com quatro modalidades
(querer, dever, poder, saber) e esses valores modais determinam tanto o ser
(enunciados de estado) quanto o fazer (enunciados de fazer). Comecemos pelos valores
modais que determinam o fazer.
Na organização modal da competência do sujeito, combinam-se, segundo Barros
(2008), dois tipos de modalidades: as virtualizantes, que instauram o sujeito, e as
atualizantes, que qualificam o sujeito para a ação. O dever-fazer e o querer-fazer são
modalidades virtualizantes, enquanto o saber-fazer e o poder-fazer são modalidades
atualizantes. As primeiras, que dão ao sujeito condições mínimas para fazer, foram
projetadas no quadrado semiótico (cf. GREIMAS & COURTÉS, 2011) da seguinte
forma:

Modalidade do querer:

querer-fazer querer-não-fazer
(vontade / volição) (abulia)

não-querer-não-fazer não-querer-fazer
(vontade passiva) (má vontade / nolição)

Modalidade do dever:

dever-fazer dever-não-fazer
(prescrição) (interdição)

não-dever-não-fazer não-dever-fazer
(permissividade) (facultatividade)

As modalidades atualizantes do poder-fazer e do saber-fazer foram estruturadas no


quadrado semiótico da seguinte forma:

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Modalidade do poder:

poder-fazer poder-não-fazer
(liberdade) (independência)

não-poder-não-fazer não-poder-fazer
(obediência) (impotência)

Modalidade do saber:

saber-fazer saber-não-fazer
(competência) (habilidade)

não-saber-não-fazer não-saber-fazer
(inabilidade) (incompetência)

Apresentados os valores que modalizam os enunciados do fazer, passemos à


modalização dos enunciados de estado, ou seja, os enunciados do ser. Tomando para
nós o que explica Barros (2002a), a modalização do ser decorre da regência tanto por
um enunciado do fazer (fazer-ser), quanto por um enunciado de estado (ser-ser). O
fazer-ser relaciona-se à performance do sujeito e ocorre obrigatoriamente no percurso
dele; o ser-ser é determinador da sanção, no percurso do destinador. Assim, o ser que
modaliza o ser é denominado, na teoria semiótica, como modalidade veridictória e
articula-se, como categoria modal, no binômio /ser/ vs. /parecer/. Lembramos que a
modalização veridictória relaciona-se ao fazer interpretativo do destinatário, examinado
anteriormente no item sobre a manipulação.
As modalidades veridictórias se articulam como categoria modal em um
diagrama:

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Quadro 5: Modalidades veridictórias

Fonte: Greimas & Courtés, 2011, p. 532

De acordo com Barros (2008), dois pontos devem ser observados na


modalização do ser: o primeiro diz respeito à relação do sujeito com o objeto,
denominando-a verdadeira, falsa, mentirosa ou secreta; o segundo trata da modalização
pelo querer, dever, poder e saber, que recai especificamente sobre os valores investidos
nos objetos.
A partir das modalizações veridictórias, a semiótica começa a se interessar não
mais pela questão da verdade, mas pela veridicção, ou o dizer verdadeiro. Dessa forma,
um estado será considerado verdadeiro quando um sujeito, que não é o sujeito
modalizado, o diz verdadeiro. Dessa maneira, a semiótica não trabalha com a verdade
vista de forma “pura”, mas com um efeito de verdade. O sujeito manipulador quer levar
seu destinatário a crer que o estado que é apresentado parece e é verdadeiro, ou falso,
etc. Disso resulta, então, uma performance cognitiva.
Da mesma forma que a modalização do fazer, a modalização do ser também é
determinada pelas modalidades do querer, saber, dever, poder. Esse tipo de
modalização altras a existência modal do sujeito. Essas modalizações também podem
ser expressas no quadro semiótico (cf. GREIMAS & COURTÉS, 2011) da seguinte
forma:

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Modalidade do querer

querer-ser querer-não-ser
(desejável) (prejudicial)

não-querer-não-ser não-querer-ser
(não prejudicial) (indesejável)

Modalidade do dever

dever-ser dever-não-ser
(indispensável) (irrealizável)

não-dever-não-ser não-dever-ser
(realizável) (fortuito/ocasional)

Modalidade do poder

poder-ser poder-não-ser
(possível) (prescindível/evitável)

não-poder-não-ser não-poder-ser
(imprescindível/inevitável) (impossível)

Modalidade do saber

saber-ser saber-não-ser
(verdadeiro) (ilusório)

não-saber-não-ser não-saber-ser
(?) (?)

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São de Barros (2002) as últimas considerações a respeito da modalização do ser:

um objeto de valor será, assim, desejável, indispensável, possível, verdadeiro,


quando seu valor for determinado pelo querer, dever, poder, saber-ser. Essas
estruturas modais modificam quaisquer valores, descritivos e modais, pois
são dispositivos permanentes e independentes de investimento semântico,
além do mínimo semântico já determinado na conversão das estruturas
fundamentais em estruturas narrativas. (BARROS, 2002a, p. 59-60).

Resta-nos tratar do último patamar do percurso gerativo de sentido proposto pela


teoria semiótica: o nível discursivo.
O nível discursivo é, no percurso gerativo de sentido, o mais superficial e
próximo da manifestação textual. As estruturas discursivas são mais específicas e
complexas do que as estruturas dos níveis narrativo e fundamental. Da mesma forma
que as outras duas fases do percurso gerativo, o nível discursivo também contém uma
sintaxe e uma semântica, sobre as quais falaremos a seguir. Comecemos pela sintaxe.
As estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas quando
assumidas pelo sujeito da enunciação. Esse sujeito, ao contar a narrativa, faz uma série
de escolhas de pessoa, de espaço, de tempo, de figuras, transformando a narrativa em
discurso. De acordo com Barros (2008, p. 53), “o discurso nada mais é, portanto, que a
narrativa enriquecida por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os
diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia”. A
enunciação é, segundo a autora, o elo entre as estruturas narrativas e as discursivas,
podendo ser reconstruída, então, sobretudo, a partir de “marcas” espalhadas pelo
enunciador em seu discurso.
Assumimos também a posição de Benveniste (1974), para quem a enunciação,
instância discursiva pressuposta, é o processo de colocar a linguagem em
funcionamento, o ato de produção do discurso que se caracteriza pelo uso da linguagem
nas interações, isto é, na realização das práticas sociais. É por meio da enunciação que a
língua deixa de ser possibilidade e passa a ser discurso, envolvendo enunciadores,
enunciatários e transmitindo sentidos.
Por enunciado, compreendemos o produto da enunciação, ou o estado que dela
resulta, independentemente de suas dimensões sintagmáticas. (cf. GREIMAS &
CORTÉS, 2011). Tomando para nós as palavras de Maingueneau (2001, p. 56), “o
enunciado é a marca verbal do acontecimento que é a enunciação”. O enunciado
apresenta também possibilidade de inserção de elementos que dizem respeito à instância
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da enunciação, tais como: adjetivos e advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e
temporais, pronomes pessoais e possessivos, elementos cuja eliminação gera os textos
enuncivos, ou seja, aqueles que buscam apagar as marcas da enunciação.
Serão considerados fatos enunciativos todos os traços linguísticos que remetem à
presença do locutor no seio de seu enunciado. Benveniste os descreve como as
projeções da enunciação, em suas categorias de pessoa, espaço e tempo, no enunciado,
denominando-os como o “aparelho formal da enunciação” (1974, p. 79-88). Trata-se do
que se denomina a “enunciação enunciada”, isto é, as marcas deixadas pela enunciação
no enunciado. A enunciação, por sua vez, é da ordem do inefável e só pode ser
depreendida quando se enuncia, ou como diz Fiorin (2008b, p. 24): “a enunciação é
sempre, por definição, enunciação enunciada”.
A enunciação, vista na semiótica como instância de mediação, ‘assegura a
discursivização da língua e que permite a passagem da competência à performance, ou
seja, das estruturas virtuais às estruturas realizadas sob a forma de discurso. (cf.
GREIMAS & COURTÉS, 2011). Dessa forma, a enunciação é constitutiva do
enunciado, já que comporta seus traços e suas marcas. Percebemos, no entanto, nas
palavras de Hilgert (2007), uma determinada hierarquia no tratamento dos dois termos,
o que nos demanda um tratamento particular:

Entendemos por enunciação o ato de um sujeito-destinador interagir, em


situação de comunicação, com um sujeito-destinatário, implicando essa
interação uma manipulação em que ao destinador cabe, em sentido amplo,
um fazer persuasivo e ao destinatário um fazer interpretativo. O produto do
ato da enunciação, falado ou escrito, é o enunciado. (HILGERT, 2007, p. 70).

Para Hilgert (2007), todo processo de enunciação estabelece três dimensões


enunciativas que mantêm indissociável a relação eu e tu. O primeiro processo define-se
pela relação enunciador-enunciatário, no qual a instância da enunciação propriamente
dita ocorre num aqui e num agora de maneira única e irrepetível. “A enunciação é,
portanto, o lugar do ego, hic, nunc. (Fiorin, 2008b, p. 24). O tempo da enunciação é, por
excelência, o tempo presente. Tal instância é pressuposta pelo enunciado, pois só há
enunciado se anteriormente tiver ocorrido a enunciação. A enunciação, portanto, não se
realiza no enunciado, mas pode estar nele projetada.

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Ao se instalar a enunciação no enunciado, realiza-se a segunda instância da
enunciação: a relação narrador-narratário. Aqui, o enunciador se faz representar no
enunciado delegando a voz ao narrador, constituindo-o, de certa forma, como seu porta-
voz no texto. Concluímos, por conseguinte, que no texto-enunciado não há a presença
do enunciador, já que sua existência é pressuposta ao enunciado. A terceira e última
instância também pressupõe uma delegação de voz, desta vez do narrador para o
interlocutor, constituindo, assim, a relação interlocutor- interlocutário. “É o que ocorre
nas manifestações do discurso direto”, valendo-nos de Hilgert (2007, p.70). O esquema
proposto por Barros (2002a) representa essas relações:

Quadro 6: Instâncias da enunciação

Fonte: Barros, 2002a, p. 75

A semiótica examina as relações entre enunciação e discurso a partir de


diferentes projeções da enunciação com as quais o discurso se fabrica. Em outras
palavras, o sujeito da enunciação projeta seu discurso de maneiras diferentes, tendo em
vista efeitos de sentido diferentes que queira produzir. De acordo com Barros (2008, p.
54), “estudar as projeções da enunciação é verificar quais os procedimentos utilizados
para constituir o discurso e quais os efeitos de sentido fabricados pelos mecanismos
escolhidos”. São dois os principais mecanismos discursivos que, na tentativa de
persuadir o enunciatário de sua verdade (ou falsidade), criam a ilusão de verdade: a
debreagem enunciativa e a debreagem enunciva, como veremos posteriormente. A
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introdução das noções de pessoa, tempo e espaço no enunciado se dá, portanto, por
meio desses dois mecanismos. Falemos sobre os casos.
Como já visto, a enunciação pode ser analisada como a instância de instauração
do sujeito no enunciado. Para a semiótica discursiva, o sujeito da enunciação é
constituído tanto pelo enunciador quanto pelo enunciatário, posição que permite analisar
o papel do leitor na produção de sentido do texto. A categoria de pessoa é, dessa
maneira, fundamental para que a linguagem se torne discurso, pois, como diz
Benveniste (1974, p. 259), é “na e pela linguagem que o homem se constitui como
sujeito, uma vez que, na verdade, só a linguagem funda, na sua realidade, que é a do ser,
o conceito de ego”. Dessa forma, não há nenhuma referência ao eu que não seja
exclusivamente linguística; nesse quadro teórico, não pode o eu se referir nem a um
indivíduo, nem a um conceito, mas somente ao ato de discurso individual, em que o eu é
pronunciado e designa seu locutor.
Como é a pessoa que enuncia num dado espaço e num determinado tempo, ela
se torna o ponto de referência a partir do qual se organizam as relações temporais e
espaciais da enunciação. Isso posto, concluímos que todo espaço e todo tempo
organizam-se, dessa forma, em torno de um “sujeito”, tomado como ponto de partida
para a enunciação.
Explica Fiorin (2008b) que são dois os mecanismos de instauração de pessoas,
espaços e tempos no enunciado: a debreagem e a embreagem. Para Greimas & Courtés
(2011), a debreagem é uma operação em que a instância da enunciação projeta para fora
de si, no momento da discursivização, certos termos ligados a sua estrutura de base,
tendo por objetivo constituir os elementos fundadores no enunciado, ou seja, a pessoa, o
espaço e o tempo. A debreagem é a operação pela qual a instância da enunciação projeta
no enunciado as noções de pessoa, de espaço, de tempo, havendo, pois, uma debreagem
actancial, uma debreagem espacial e uma debreagem temporal. Explicam Greimas e
Courtés (ibid.) que a debreagem consiste, num primeiro momento, em projetar no
enunciado um não eu, um não aqui e um não agora. No entanto, como nenhum eu,
aqui, agora do enunciado são realmente os mesmos da enunciação, já que a enunciação
é sempre pressuposta, a projeção de pessoa, espaço e tempo da enunciação no
enunciado é sempre uma debreagem.
Existem, como adiantado, dois tipos de debreagem: a enunciativa e a enunciva.
Aquela é o mecanismo no qual se instalam no enunciado os actantes da enunciação:

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eu/tu, aqui, agora, ou seja, aquela em que um não eu, um não aqui e um não agora são
enunciados como eu,aqui, agora. (cf. GREIMAS & COURTÉS, 2011).
Exemplifiquemos a debreagem enunciativa a partir do texto publicitário abaixo:

Imagem 4: Publicidade seguro de vida Itaú

Disponível em: <http://quasepublicitarios.wordpress.com/2011/02/26/seguro-itau-vida-


dm9ddb/>. Acesso em: 22 dez. 2013

Nesse caso, há a projeção por parte do enunciador de um eu que utiliza o tempo


da enunciação, ou seja, o agora. O espaço (aqui) pode ser pressuposto pela instalação
das marcas anteriores. A instalação do eu não de dá de forma direta, por meio do uso do
pronome pessoal, mas pode ser depreendida pela presença do você (tu), afinal, ao
adquirir o status de narrador e dizer eu, instaura uma relação direta com um tu, já que o
eu só tem existência no tu e este só existe na composição daquele. Como aparecem, no
enunciado acima, uma relação eu/tu com noções de tempo e de espaço semelhantes às
da enunciação, dizemos que se trata de uma debreagem enunciativa. É típico da
debreagem enunciativa um discurso em primeira pessoa, definindo a já dita enunciação
enunciada.

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Fiorin lembra que a debreagem é um mecanismo que não pertence somente à
linguagem verbal, mas à linguagem puramente simples. Dessa forma, a imagem do
anúncio também pode ser considerada produtora de sentido e caminhar ao encontro do
que analisamos para o texto verbal. “Todas as línguas e todas as linguagens possuem as
categorias de pessoa, espaço e tempo, que, no entanto, podem expressar-se
diferentemente de uma língua para outra, de uma linguagem para outra”. (Fiorin, 2008b,
p. 31). Nessa direção, a imagem do anúncio pode ser considerada uma imagem
enunciativa, visto que o olhar do narrador ao narratário constitui a marca de
enuncitividade, o “olho no olho”, típico da relação eu/tu (você). O próprio sorriso pode
ser interpretado, nessa publicidade, como um gesto enunciativo, pois pressupõe o tu.
O texto verbal a seguir, passagem de uma coluna escrita por Walter Ceneviva no
jornal Folha de S. Paulo, também representa um caso de debreagem enunciativa:

Octavio Frias de Oliveira, saudoso amigo, me convidou há muitos anos para


escrever a coluna semanal "Letras Jurídicas" nesta Folha. Seu redator,
Theofilo Cavalcanti Filho, advogado e jornalista dos melhores, havia
falecido. Não estava em meus planos de advogado voltar ao jornalismo, mas
a insistência do amigo me venceu. A opção foi ótima. Gerou alegria e
realização em área especializada do trabalho jornalístico. […] Comecei a
vida profissional em 1947, como locutor de rádio. Depois passei a jornalista.
Imagine o leitor que escrevi, na antiga "Gazeta Esportiva", a descrição do
quinto gol do Brasil no campeonato mundial em 1958, na Suécia. Traduzi
quadrinhos do Pato Donald, no início da editora Abril. Habituei-me à
variedade até formar-me em direito, em 1954, no largo São Francisco. (Folha
de S. Paulo, 30 nov. 2013, Cotidiano, p. 2).

A coluna se organiza em torno do espaço enunciativo do agora. Embora os fatos


estejam relatados no pretérito perfeito, trata-se de de um passado do presente, nomeado
por Fiorin (2008a) de pretérito perfeito 1, ou seja, aquele que expressa uma
anterioridade em relação ao tempo presente, tempo enunciativo. O pretérito perfeito 1
distingue-se do pretérito perfeito 2 (cf. FIORIN, 2008a), justamente por ser um tempo
verbal enunciativo, referente ao marco referencial presente. Outra marca de
enunciatividade é o fato de o texto ser narrado em primeira pessoa. O espaço, implícito,
é o aqui do narrador.

A debreagem admite, também, uma segunda classificação, denominada


enunciva. Na debreagem enunciva, instauram-se no enunciado os actantes do
enunciado, um ele, lá, então, respectivamente, os actantes do enunciado, o espaço do

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enunciado e o tempo do enunciado. Vejamos um exemplo de debreagem enunciva
obtido no editorial do jornal Folha de S. Paulo:

[...] O prefeito Fernando Haddad (PT) contava com a renegociação. Diminuir


a dívida é condição necessária, por lei, para a cidade poder fazer novos
empréstimos. Pelos termos da proposta, haveria espaço para R$ 5 bilhões.
O dinheiro sem dúvida fará falta. A prefeitura prevê desembolsar R$ 25
bilhões em investimentos até 2016: gastos com mobilidade urbana
representam 43% desse montante; moradia absorve 26%.
Diante da realidade orçamentária, o valor é descomunal. Pela proposta da
prefeitura para 2014, o Orçamento será de R$ 50,7 bilhões, 20% maior que
neste ano. (Folha de S. Paulo, 30 nov. 2013, p. A2)

No texto, fabrica-se, pelo jornalista, a ilusão de distanciamento, procedimento


que visa a manter a enunciação afastada do discurso, como garantia de sua
imparcialidade e, por conseguinte, da tão almejada “objetividade” buscada pelo
jornalismo. O principal procedimento é o fato de se construir o discurso em 3a pessoa,
no tempo do “então” e no espaço do “lá”. Os dados numéricos também corroboram esse
efeito de verdade buscado pelo texto jornalístico, visto que se caracterizam como dados
incontestáveis, de considerável exatidão.
A fotografia abaixo também pode exemplificar a debreagem enunciva, porém
em um discurso não verbal:

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Imagem 5: Pirâmide do Museu do Louvre - Paris

Disponível em: <http://www.tourist-destinations.com/2011/05/paris.html>. Acesso em: 22 dez.


2013.

Nessa imagem, o enunciador decide por não projetar no enunciado as marcas da


enunciação, estando aparentemente apagadas as marcas enunciativas, porém
recuperáveis pela situação enunciativa. A imagem, diferentemente da anterior (vide
imagem 4), não se comunica com o tu, criando um efeito de sentido de afastamento da
cena enunciativa.
Definir o texto-enunciado como produto da enunciação ajuda-nos a revelar as
diferentes estratégias enunciativas utilizadas pelo enunciador e seus correspondentes
efeitos de sentido. As debreagens enunciativa e enunciva são responsáveis, em
princípio, pela criação de dois grandes efeitos de sentido: o de subjetividade e o de
objetividade. Efeitos de subjetividade e de objetividade são, portanto, decorrentes de
modos diferenciados de projeção da enunciação no texto-enunciado.
As estratégias enunciativas produzem basicamente dois tipos de enunciados
diferentemente marcados no que diz respeito aos efeitos de sentido:

a) enunciados enunciativos (enunciação enunciada): projeção no enunciado da


ilusão da enunciação; efeitos de sentido de proximidade e subjetividade;

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apresentam-se como simulacro da enunciação; predominam os efeitos
sensoriais e emocionais;

b) enunciados enuncivos (enunciado enunciado): há um apagamento das


marcas da enunciação; ilusão de um enunciado que fala por si; efeitos de
sentidos de distanciamento da enunciação e de objetividade; discurso das
verdades universais e “únicas”; predominam os efeitos de racionalidade e
intelectualidade;

Ao contrário da debreagem, que é a colocação fora da instância de enunciação


das categorias de pessoa, espaço e tempo, a embreagem é, segundo Fiorin (2008a,
p.179), “o efeito de retorno à enunciação, produzido pela neutralização das categorias
de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, pela denegação, assim, da instância do enunciado”.
Assim como a debreagem, também o mecanismo de embreagem concerne as três
categorias da enunciação, ou seja, há a embreagem actancial, a embreagem temporal e a
embreagem espacial.
Toda embreagem pressupõe uma debreagem anterior. Quando uma mãe diz a
seu filho: “Não faça isso que a mamãe não vai gostar”, temos manifestamente uma
debreagem enunciva actancial (um ela / a mamãe). Porém, o termo mamãe (ela)
significa, na verdade, um eu. Assim, a instalação desse eu caracteriza uma debreagem
enunciativa que precede a embreagem.
A embreagem também pode ser tanto enunciativa quanto enunciva. Na
substituição de um enunciado enuncivo por um enunciado enunciativo, passamos do
conceito de generalização para o conceito de individualização, o que implica um efeito
de proximidade e de dinamicidade na relação comunicativa. Imaginemos o enunciado:
“Quando você está de férias, você só quer saber de aproveitar.” Emprega-se, aqui, a
segunda pessoa você com valor de terceira, no caso a forma impessoal se (Quando se
está de férias, só se quer saber de aproveitar). Segundo Hilgert (2007:71), “produz-se a
ilusão de um destinatário específico e singular que é posto aqui e agora, em relação
simétrica com o destinador”. Há, portanto, um efeito de enunciatividade, já que estão
marcadas as relações eu/tu no aqui e agora da enunciação.
Normalmente, capas de jornal ou de revista fazem uso do mecanismo de
embreagem, como se pode ver a seguir, com um exemplo de embreagem temporal:

35
Imagem 6: Caderno Esportes/Cidades

Disponível em: <http://www.estadao.com.br>. Acesso em: 23 dez. 2013

Na manchete anterior, há um efeito de sentido de presentificação. À primeira


vista, uma análise menos criteriosa diria que o verbo empatar está no presente, porém,
quando se leva em conta o fato de que o jogo não ocorreu naquele momento, mas
anteriormente ao momento enunciado, vê-se que se trata de um mecanismo da
linguagem que cria uma neutralização do tempo passado pelo tempo presente. Dessa
forma, o enunciado, na verdade, seria: “Brasil, irregular, empatou com a França”.
Assim, presentifica-se o acontecimento para mostrar que ele tem relevância no presente,
que tem mais valor que o passado da ação. Para Fiorin (2008a, p. 197) “essa
neutralização presente vs. pretérito perfeito 1 engendra, pois, uma ampliação do
presente em direção ao passado”.
Um segundo exemplo de embreagem temporal pode ser encontrado, também, na
seguinte frase proferida pelo ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso:

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Imagem 7: Frases populares de Fernando Henrique Cardoso

Disponível em: <http://kdfrases.com>. Acesso em: 22 dez. 2013.

Na frase anterior, o enunciador debreia a posterioridade enunciativa e ao mesmo


tempo nega-a, em benefício da última. Trata-se de uma embreagem enunciativa4,
porque é um elemento enunciativo que resta no enunciado.
Segundo Fiorin (2008b), com o conceito de embreagem, podem-se explicar as
instabilidades nas categorias de pessoa, espaço e tempo. São do autor as seguintes
palavras:

Com as debreagens enunciativas e enunciavas, criamos a ilusão de que as


pessoas, os espaços e os tempos inscritos na linguagem são decalques das
pessoas, dos tempos e dos espaços do mundo. No entanto, a embreagem
desfaz essa ilusão, pois patenteia que eles são criações da linguagem.
(FIORIN, 2008b, p. 31).

Passemos, por fim, aos valores assumidos pelo sujeito da narrativa que, no nível
discursivo, são disseminados sob a forma de percursos temáticos e percursos
figurativos. Disseminar temas e figuras é, portanto, tarefas do sujeito da enunciação.
Diz Barros (2008) que graças aos percursos temáticos e figurativos, cria-se a coerência
semântica do discurso que, por sua vez, a partir da concretização figurativa do
conteúdo, estabelece efeitos de sentido sobretudo de realidade. Existem, assim, na
semântica do discurso, dois procedimentos que serão definidos e explicados nesta tese:
a tematização e a figurativização.

37
Para Fiorin (2008b, p. 32), “tematização e figurativização manifestam os valores
do enunciador e, por conseguinte, estão relacionadas à instância da enunciação. São
operações enunciativas, que desvelam os valores, as crenças, as posições do sujeito”.
De acordo com Barros (2008, p. 68), “tematizar um discurso é formular os
valores de modo abstrato e organizá-los em percursos”. Assim, para examinar os
percursos, constituídos pela recorrência de traços semânticos (semas), devem-se
determinar esses traços que se repetem no discurso e o fazem coerente.
A tematização garante a transformação da semântica narrativa em semântica
discursiva. A partir disso, pode-se pensar, então, em discursos puramente temáticos ou
não figurativos, como o discurso da ciência, por exemplo. Alerta Barros (2002a),
contudo, que a análise de textos tem mostrado haver discursos em que há uma
figurativização esparsa, que não chega a constituir um percurso figurativo completo. A
coerência de dos discursos de figurativização esparsa é garantida pela recorrência
temática. Daí, podermos concluir que todo texto é, em princípio, temático. Uma fábula,
considerada figurativa, por exemplo, diferencia-se de um artigo acadêmico, não
figurativo, por graus de figurativização que devem ser examinados nos procedimentos
de figurativização semântica.
Nos discursos temáticos, enfatizam-se efeitos de sentido de aproximação
subjetiva ou de distanciamento objetivo da enunciação em detrimento dos efeitos de
realidade, que dependem mais fortemente dos procedimentos de figurativização. Os
discursos temáticos têm, portanto, como objetivo, produzir textos mais abstratos, cuja
principal função é explicar o mundo. O Manifesto Antropofágico de Oswald de
Andrade exemplifica a manifestação ideológica que se dá com essa operação
enunciativa:

Só a ANT OPOFAG A nos une. Socialmente. Economicamente.


Filosoficamente.
nica lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a
mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do
antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitos
postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da
psicologia impressa. (ANDRADE, O. Revista de Antropofagia, Ano I, No. I,
maio de 1928)

38
Diz Fiorin (2001, p. 32) que “a cada formação ideológica corresponde uma
formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada
visão de mundo”. Dessa maneira, o manifesto de Andrade tematiza a criação de uma
poesia brasileira de exportação. Ao afirmar que “só a antropofagia nos une”, o escritor
propõe repensar a dependência cultural brasileira, digerir o legado cultural europeu,
transformando-o em arte tipicamente brasileira.
Vejamos agora o processo de figurativização5. “Pelo procedimento de
figurativização, figuras do conteúdo recobrem os percursos temáticos abstratos e
atribuem-lhes traços de revestimento sensorial”, explica Barros (2008, p. 72). A
figurativização pode assumir duas direções no discurso: de um lado, junto aos temas, as
figuras são frutos de determinações sociohistóricas insconscientes do discurso ou, como
já dito, lugar da determinação ideológica propriamente dita; por outro, as figuras
concretizam e dão sensorialidade aos temas, podendo resultar de certas escolhas
enunciativas do discurso, possuindo certa autonomia em relação às formações sociais.
(cf. BARROS, 2002a).
Na figurativização, constroem-se textos concretos, cuja principal finalidade é,
por meio de figuras, criar um simulacro do mundo, um efeito de realidade. Lembra-nos
Fiorin (1999) a respeito da definição do termo concreto:

A tradição escolar ensina que concreto/abstrato é uma categoria


classificatória que se aplica aos substantivos. Na verdade, ela refere-se a
todos os lexemas, pois abstrato é o termo que não remete a algo considerado
existente no mundo natural, mas a uma categoria explicativa dos existentes,
enquanto concreto é o termo que se refere a elementos existentes no mundo
natural. É preciso entender bem o que significa mundo natural neste contexto,
não é aquele mundo que os sentidos dão por natural, mas são os mundos que
o discurso dá como existentes. Então, fada é concreto, porque é considerado
um ser existente no mundo natural criado pelo universo discursivo do conto
maravilhoso. Já orgulho é uma categoria explicativa de uma série de atitudes
concretas tomadas por seres efetivamente existentes em mundos naturais
criados por universos de discurso. Da mesma forma, branco é um adjetivo
concreto, enquanto terno é abstrato. (FIORIN, 1999, p. 532).

Dessa maneira, as figuras servem para cobrir os temas, dando-lhes


“corporalidade”. Cobrem-se, portanto, os temas abstratos com traços semânticos
sensoriais de sons, forma, cheiro, cor, etc. A imagem a seguir auxilia-nos a
compreender a figurativização:

5
Para estudo das diferentes etapas da figurativização, cf. BARROS (2002a, 2008).
39
Imagem 8: Publicidade Banco Itaú

Disponível em: <http://propmark.uol.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2013.

No anúncio publicitário do Banco Itaú, a apresentadora Palmirinha Onofre


corporifica a figura do idoso em plena atividade e rejuvenescido. A velhice, geralmente
considerada disfórica na sociedade, é tratada no anúncio de maneira eufórica, uma vez
que para o banco, o idoso é competente o suficiente para fazer uso de um telefone
celular e da internet. Fazer uso desses objetos faz do idoso um sujeito do querer e do
fazer, capaz de realizar as atividades dos mais jovens. A figura de uma pessoa mais
velha, nesse caso, investe o tema da competência e da experiência, depreendido de
forma abstrata. A cor predominante do anúncio, laranja, sugere, ainda, alegria, energia e
estímulo da mente, é uma cor “quente”, que sugere também intensidade de emoções,
ações ou pensamentos.

A tematização e a figurativização são dois procedimentos da semântica


discursiva que conferem corporalidade à figura do enunciador e, ao mesmo tempo,
àquela do enunciatário: elas “lhes dão corpo textualmente”, nas palavras de Discini
(2005, p. 288). Segundo a autora, retomando estudos de Dominique Maingueneau, a
seleção de temas e figuras “subsidia a definição de um ideal de entonação que
acompanha seus lugares de enunciação”. (Discini, 2005, p. 288).

Com o tratamento da tematização e figurativização na semântica do discurso,


poderemos discutir as imagens do enunciador, o éthos, de que falaremos adiante.
40
Quando falamos em eu e tu, falamos em actantes da enunciação, ou seja, aquele
que fala e aquele com quem se fala. Dentro dos textos, contudo, concretizam-se esses
actantes e eles tornam-se atores da enunciação. O ator da enunciação é, portanto, uma
concretização temático-figurativa do actante. Por exemplo: o enunciador é sempre um
eu, mas em O Primo Basílio, esse eu é concretizado no ator Eça de Queirós. Vale
sempre lembrar de que não se trata do escritor real, em carne e osso, mas de uma
imagem de Eça produzida no texto. (cf. FIORIN, 2008b).

A questão é ver, então, como se constrói a imagem do ator da enunciação, ou


seja, do enunciador. Essa imagem do ator é o que se denomina éthos, não do ator real,
mas do ator discursivo, implícito. Segundo Maingueneau (1995), o éthos compreende
três componentes: o caráter, conjunto de características psíquicas relativas ao
enunciador; o corpo, ou seja, as características físicas que o enunciador apresenta; o
tom, a dimensão vocal do enunciador desvelada pelo discurso.
Falar do éthos, então, é falar do ator da enunciação. Um ator é:

O lugar de conversão e de investimento dos dois componentes: sintático e


semântico. Para ser chamado de ator, um lexema deve ser portador de pelo
menos um papel actancial e de no mínimo um papel temático. Acrescentamos
que o ator não é somente lugar de investimentos desses papeis, mas também,
de suas transformações, consistindo o discurso, essencialmente, em um jogo
de aquisições e de perdas sucessivas de valores. (Greimas & Courtés, 2011,
p. 45).

É importante ressaltar que a análise do éthos se dá, não apenas em relação ao


enunciador, mas também aos outros níveis enunciativos: narrador e interlocutor.
Analisar o éthos do interlocutor é tarefa mais simples, já que se trata de uma
personagem construída na obra. O problema é analisar a diferença existente entre o
éthos do enunciador e o éthos do narrador. É em Greimas (1994) que encontramos a
resposta ao problema:

Do ponto de vista da produção do discurso, poder-se-á distinguir o actante da


enunciação, que é um actante logicamente implícito, logicamente pressuposto
pelo enunciado, do ator da enunciação; nesse último caso, o ator será, por
exemplo, “Baudelaire”, na medida em que se define pela totalidade de seus
discursos. (Greimas, 1994, p.10).

41
Compreende-se, a partir das palavras de Greimas, que o enunciador visto como
ator da enunciação se define pela totalidade de sua obra. Se analisarmos apenas uma
obra singular dessa totalidade, não saberemos se se trata, portanto, dos traços do
enunciador ou dos traços do narrador. Para que possamos depreender o éthos do
enunciador, faz-se necessário um estudo de uma totalidade de produção de um autor.
Lembra-nos Fiorin (2008b, p. 141) que “podemos, ao final da análise, encontrar uma
identidade ou uma diferença entre o caráter do enunciador e o do narrador duma obra
singular”.
É de Discini a explicação sobre a descrição do éthos em um discurso:

Descrever o ethos é examinar moralizações dadas discursivamente; é


recuperar o sujeito no exame da relação do enunciado com a enunciação; é
dar atenção a um sujeito não constituído previamente ao discurso, mas dado
pelo modo de dizer. Descrever o ethos é viabilizar a identificação dos temas e
figuras do discurso, em função de valorização de valores, próprias a
determinadas formações sociais, que orientam o modo de presença do sujeito
no mundo. (Discini, 2005, p. 284).

A imagem do enunciador vem acompanhada da imagem do enunciatário, esse


ator da enunciação que não é uma instância abstrata e universal, mas um tu, pressuposto
pela existência do enunciado. De antemão, é preciso dizer que não é esse enunciatário
um ser passivo, que apenas recebe as informações transmitidas pelo enunciador, mas
um produtor de sentido – tanto quanto o enunciador, que interpreta, avalia, julga,
compartilha ou rejeita significações.
O enunciador não faz a produção de um texto sem pensar em seu enunciatário.
Dessa forma, essa imagem que o enunciador cria de seu enunciatário é definida pela
retórica aristotélica de páthos. Trata-se de um papel temático, composto por uma rede
complexa de significações. Essa imagem, logo, é responsável pelo estabelecimento de
uma série de coerções para o discurso; por exemplo, um autor renomado da literatura
brasileira, se convidado a transformar sua obra para um público infantil, certamente,
deverá adaptar sua linguagem para que possa se fazer entender. O fato de ser levado em
conta pelo enunciador no momento da produção do texto faz do enunciatário um co-
enunciador, pois também cabe a ele a produção de sentido. Evidentemente, muitas das
escolhas do enunciador não são necessariamente conscientes.

42
Fiorin (2008b) comenta que a eficácia do discurso está diretamente relacionada à
adesão do enunciatário ao discurso. O enunciatário não adere ao discurso apenas porque
se sente atraído ou interessado por ele, mas, sobretudo, porque se identifica com o
sujeito da enunciação, e automaticamente, como seu caráter, corpo e tom, seu éthos, em
suma. Não se revela o discurso apenas em conteúdo, mas também por seu modo de
dizer, que constrói os sujeitos da enunciação. “O discurso, ao construir um enunciador,
também constrói seu correlato, o enunciatário”, diz Fiorin (2008b, p. 157).
Da mesma maneira que se procede para a análise do éthos do enunciador no que
diz respeito à diferenciação da imagem dos níveis enunciativos, também se faz em
relação ao páthos do enunciatário, ou seja, num texto singular, encontra-se a imagem do
narratário, seja ele explícito ou implícito, enquanto que na totalidade discursiva,
constrói-se a imagem do enunciatário. Há, assim como para o éthos, possibilidades de
distinção entre as duas imagens (enunciatário/narratário) para o páthos.
Fiorin (2008b) explica que as marcas do páthos do enunciatário podem ser
depreendidas, dentro da totalidade discursiva, a partir de recorrências em elementos
composicionais do discurso, tais quais: a modalização, a seleção de temas, a norma
linguística6 escolhida, a reiteração de traços semânticos, as projeções da enunciação no
enunciado, na mancha da página, nas fontes usadas, etc. São marcas que não se
encontram no enunciado (dito), mas na enunciação enunciada, ou seja, nas marcas
deixadas pela enunciação no ato de dizer.
Por fim, reiteramos que os atores da enunciação, imagens do enunciador e do
enunciatário, constituem simulacros do autor e do leitor criados no texto. A partir desses
simulacros, determinam-se todas as escolhas enunciativas, conscientes ou inconscientes,
na produção do discurso. Para que se compreenda de maneira adequada o conjunto de
opções enunciativas produtoras de um discurso e para compreender sua eficácia, é
necessário depreender as imagens do enunciador e do enunciatário criadas
discursivamente.

6
Segundo Leite (2005, p. 188), a norma tem índole consultiva. Trata-se de um conjunto estruturado de
entidades reais e prescritivas. È também a realização coletuiva do sistema, o quese disse e
tradicionalmente se diz em uma comunidade. Uma de suas características é não ser estática, porém é
conservadora por excelência. Oriunda da teoria de Coseriu (1987), que acrescentou a noção de norma à
dicotomia sausuriana línguaXfala, a norma linguística é “um sistema de realizações obrigadas de
imposições sociais e culturais, e varia segundo a comunidade”. Nas palavras de Leite (2005, p. 188), “a
norma é aquilo que já se realizou e, teoricamente, sempre se realizará no grupo social; é a tradição à qual
todos estão submetidos e obedecem, sem sentir. A qualquer tentativa de ruptura dessa tradição, há
reação”.
43
2. O LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL E NA FRANÇA: PANORAMA
HISTÓRICO

Je hais les livres. Ils n´apprennent qu´à parler de ce qu´on ne sait pas.
(Jean-Jacques ROUSSEAU, Emile : livre III, 1761)

O presente capítulo objetiva construir um breve panorama histórico do livro


didático de língua portuguesa no Brasil e de língua francesa na França, ambos para o
ensino de língua materna.
Para tanto, propomos um olhar histórico a esse objeto complexo que se revela,
por vezes, sob uma aparente trivialidade e uma familiaridade ilusória. O livro didático
define-se como um produto cultural, um instrumento de ensino e aprendizagem, no qual
valores ideológicos, culturais e linguísticos convivem com valores econômicos, visto
que esse produto manufaturado, demasiadamente divulgado em todo o mundo, insere-se
também em uma lógica comercial e industrial.
Não deixaremos, neste percurso, de observar os documentos de base
governamental, tais quais os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) no caso brasileiro, e os Nouveaux Programmes no
contexto francês, bem como as propostas didático-pedagógicas que delineiam o(s)
percurso(s) teórico-metodológico(s) dos saberes veiculados nos livros escolares dos dois
países.
Apresentaremos, em primeiro lugar, um panorama histórico do livro didático
brasileiro para, em seguida, procedermos da mesma forma em relação ao livro didático
francês.

2.1 O livro didático de língua portuguesa no Brasil

Neste item, faremos um breve relato sobre a chegada dos primeiros livros
didáticos de língua portuguesa no Brasil, no final do século XV. Mostraremos, ainda, de
forma sucinta, um panorama histórico dos manuais escolares e das gramáticas utilizados
nas escolas brasileiras nos séculos XVI, XVII e XVIII. Os séculos XIX e XX serão
tratados posteriormente.

44
As informações disponíveis sobre os primeiros livros usados no Brasil para o
ensino de leitura e escrita são demasiadamente escassas. Sabe-se, contudo, que datam
do final do século XV, em Portugal, as primeiras cartinhas, posteriormente
denominadas cartilhas, pequenos livros que apresentavam o abecedário, o silabário e
rudimentos do catecismo. Um dos mais antigos livros didáticos publicados em língua
portuguesa é a cartinha de Aprender a Ler de João de Barros, impressa em 1539 em
Lisboa. Embora haja notícias de remessas de livros escolares para ensinar a ler e a
escrever de Portugal para algumas de suas colônias, como Guiné (1488) e Congo
(1490), não se tem com exatidão a data em que tais livros possam ter chegado no Brasil.
Ainda que as informações disponíveis sobre os primeiros livros usados no Brasil sejam
ainda de natureza escassa, a História nos leva a crer que o manual escolar de Barros
tenha sido o primeiro livro escolar usado no Brasil: “além de ensinar as primeiras letras,
(a cartinha) reunia os preceitos e mandamentos da Santa Madre greja.” (PF OMM
NETTO et al., 1974, p. 155). O ensino inicial da leitura estava atrelado,
invariavelmente, ao estudo da religião.
Nesse contexto religioso, o século XVI descortinou um panorama histórico
voltado, em parte, à missão jesuítica, iniciada em 1534 por Inácio de Loyola.
Conhecidos também pelo trabalho missionário, os jesuítas tiveram uma participação
importante tanto no sistema social e escolar da metrópole quanto na vida colonial
brasileira, especialmente na catequização dos índios. Ao longo da história da formação
da sociedade colonial, a Companhia de Jesus exerceu um papel essencial na composição
de políticas linguísticas preconizadas pelos reis portugueses e pelo Vaticano.
Desde que chegaram ao Brasil, os missionários estabeleceram escolas - como a
primeira escola brasileira de leitura, escrita e religião, na Bahia - e começaram a ensinar
a ler e a escrever (cf. PAIVA, 2007). Após o estabelecimento da escola pioneira, há
relatos de que, por correspondência jesuítica, alguns livros foram enviados aos meninos
educados pelos jesuítas. Para Pfroom Netto (1974), a menção a esses livros, que teriam
sido enviados à escola da Bahia pelo rei de Portugal D. João III, teria sido a mais antiga
referência que exista sobre livros escolares no Brasil.
Tal como ocorria na Europa, inicia-se no século XVI e continua durante todo o
século XVII, no Brasil, o ensino do latim, que serviu para afirmar o processo de
implementação e normatização da língua portuguesa. No século XVI, o ensino da língua
vernácula passa a existir paralelamente ao ensino da língua latina. No entanto, como o

45
português ainda não tinha bases sistematizadas de estudo, cabia às aulas de latim,
ministradas nos colégios jesuítas, a preparação dos alunos para a aprendizagem da
língua portuguesa.
Além do início do ensino da língua vernácula, outro fator importante do século
XVI foi a elaboração de duas gramática, fato que foi, nas palavras de Casagrande e
Bastos (2002, p.61), “um feito de grande importância para a consolidação da
mentalidade portuguesa, que se viu refletida no espelho das conquistas do Império
omano”. Além disso, lembra Barros (2010) que as relações da gramática com outros
discursos sócio-históricos, em vários momentos, mostram que os diferentes discursos
gramaticais constroem laços entre língua e nação, criando impérios coloniais e
identidades nacionais, além de relações entre língua e sociedade, o que faz estabelecer,
por meio do ensino gramatical da língua, a ordem social. Ainda segundo a autora (ibid.),
mesmo que se mudem os discursos gramaticais, alterando modos de ver e de explicar o
funcionamento da língua, as gramáticas sempre asseguram seu papel na produção das
relações políticas, históricas e sociais.
Destacam-se nesse período, entre as primeiras gramáticas da língua, a gramática
de Fernão de Oliveira e de João de Barros. Segundo Barros (2007), a gramática de
Oliveira preconizava uma língua homogênea e regulamentada por uma norma “natural”
e única, em que pouca atenção é dada às variantes linguísticas de uso. O autor também
considera negativa a excessiva aproximação entre a língua portuguesa e o latim, visto
que as diferenças entre as línguas são grandes, o que o faz, portanto, valorizar usos mais
modernos em sua gramática em detrimento aos usos “envelhecidos” propostos em
gramáticas próximas do latim. Já a gramática de João de Barros segue exatamente o
caminho contrário, visto obedecer aos esquemas da gramática latina. Contrariamente à
gramática de Oliveira, na gramática de João de Barros a aproximação com o latim é
considerada positiva e mesmo sinal de superioridade do português em relação às outras
línguas românicas. Nessa concepção, as mudanças ocorridas na língua são consideradas
“faltas” e as soluções para essa correção são sempre copiadas dos latinos. (cf.
BARROS, 2007).
O ensino da língua latina continua a ser a grande questão durante todo o século
XVII, uma vez que se acreditava que ela era essencial na formação dos estudantes. No
entanto, em uma análise da obra Methodo Grammatical para todas as línguas, de
Amaro de Reboredo, escrita em 1619, percebe-se também o objetivo de ensinar a língua

46
materna, tanto para preservá-la, quanto para impô-la aos colonizados. Ensina-se, na obra
de Reboredo, a escrever com a língua portuguesa com correção e elegância, imitando os
escritores de prestígio portugueses, preservando, assim, o patrimônio linguístico da
língua. A obra de Reboredo propõe um método de ensino de línguas – incluindo o latim
e o português- dividido em gramática, cópia e frase. São dois os objetivos principais
encontrados na obra: o saber que uma nação necessita possuir para ensinar à elite e o
dever de produzir uma gramática que servirá como documento de um determinado
padrão da língua, o que fortalece a conservação do idioma falado na época. (cf.
CASAGRANDE & BASTOS, 2002).
Tanto no século XVI quanto no XVII, o ensino do latim ajudou a implementar e
normatizar a língua portuguesa no Brasil. A contribuição das gramáticas de João de
Barros, Fernão de Oliveira e Amado de Reboredo serviu para consolidar a mentalidade
portuguesa no que se refere às políticas linguísticas.
Já no século XVIII, após a expulsão dos jesuítas e a política imposta pelo
Marquês de Pombal, o ensino no Brasil sofreu uma transformação. A reforma efetuada
por Pombal7 implantou uma nova orientação no que diz respeito ao ensino em Portugal
e suas colônias, substituindo as até então prescritas orientações pedagógicas da
Companhia de Jesus e determinando a implantação do Novo Método por meio de um
conjunto de medidas que buscavam, entre outras, instituir novas práticas culturais e
pedagógicas nas instituições e no cotidiano da população.
Em 1772, a Coroa Portuguesa propôs, após o fechamento de escolas elementares
e colégios, um projeto que instituía em Portugal e em suas colônias as Aulas Régias8 de
ler e escrever, de Latim, de Grego, de Retórica e de Filosofia. Os decretos baixados por
Pombal, além de organizarem estatutos e enviarem instruções variadas quanto à
importância dos livros, também davam ênfase ao que é nacional, pois se objetivava
construir, na época, o moderno império português. Daí a importância dada ao estudo da
gramática da língua portuguesa, que passa a ser ensinada também nas aulas de latim.
Tal medida implicou, para o Brasil, a proibição de se falar a língua geral, o tupi.

7
As repercussões das reformas pombalinas no ensino geram controvérsias; enquanto Fernando de
Azevedo considera que a expulsão dos jesuítas acarretou a extinção de uma organização escolar, Telmo
Verdelho prefere ressaltar os trunfos obtidos com a reforma pombalina, como a geração de um público
alfabetizado, leitor de obras filosóficas enciclopedistas e que, mais tarde, produziria e consumiria os
abundantes jornais publicados no início do século XIX. (cf. SOARES, 2002, p.160)
8
Para maiores detalhes sobre as Aulas Régias, que ideologicamente representam a separação entre o
Estado e a Igreja, cf. STEPHANOU & BASTOS, 2004.
47
A reforma pombalina, para sua efetivação, pressupunha a constituição de um
novo quadro docente, visto que se baseava no movimento iluminista, evidentemente
contrário ao currículo medieval e escolástico tradicional preconizado pelos jesuítas9.
Havia a necessidade de se formular um novo saber escolar que substituiria o Ratio
Studiorum, minucioso método contendo regras pormenorizadas dos jesuítas e das
ordens religiosas que os seguiam (cf. BITTENCOURT, 2008). Para que esse trabalho
fosse realizado, a escolha e a impressão de livros didáticos tornaram-se pontos
essenciais da reforma, tendo havido, inclusive, instruções para que se queimassem todos
os livros que tinham por objetivo ensinar a Gramática Latina pelo método antigo,
reprovado por Sua Majestade. (cf. ANDRADE, 1978).
Outra medida tomada por Portugal para a implementação da reforma pombalina
foi a circulação e distribuição do texto Memória dos livros Aconselháveis e Permitidos
para o Novo Método, no qual havia uma lista completa das obras que poderiam ser
adotadas nas escolas régias bem como a quantidade de livros novos a ser impressos.
Segundo Andrade (1978), houve ordens régias para que o ensino elementar dos
meninos, mesmo não sendo prioridade dos governantes da época, fosse feito mediante
“impressos ou manuscritos de diferente natureza, especialmente pelo Catecismo
pequeno do Bispo de Montpellier, de Carlos Joaquim Colbert, mandado traduzir pelo
arcebispo de Évora”. (AND ADE, 1978, p. 23, grifo nosso)10.
O livro escolar surgiu no final do século XVIII como a principal ferramenta na
formação do professor ao difundir, ao mesmo tempo, a veiculação de conteúdo e o
método pregado pelo poder estabelecido. Segundo Bittencourt (2008, p.28), a questão
maior não residia no papel desempenhado pelo livro no ensino, mas na criação de novos
textos pedagógicos de acordo com uma visão educacional secularizada. Na ótica da
autora, o discurso pombalino apresentava algumas questões que iam além dos
conteúdos escolares e a orientação dos manuais.

9
Ao reformar em 1761 o Colégio das Artes de Coimbra, que dava acesso aos cursos da Universidade e
era controlado pelos jesuítas e ao transformá-lo em Colégio dos Nobres, Pombal contrata professores
italianos para lecionarem disciplinas clássicas e científicas, evitando, portanto, as ameaças de uma
influência de certa forma “revolucionária”, caso fossem contratados professores franceses. (Cf.
HILSDORF, 2003, p. 21, grifo nosso).
10
Bittencourt (2008) nos fala também sobre os problemas encontrados pelos professores para que os
livros chegassem em suas mãos. Segundo a autora, uma das maiores dificuldades encontradas para a
substituição do antigo método jesuítico no Brasil fora a ausência de novos livros, já que se tornava difícil
conseguir livros apropriados e professores preparados que estivessem dispostos a seguir, com convicção,
as novas ordens impostas. Segundo Andrade (1978), as primeiras edições dos compêndios praticamente
se esgotaram em Lisboa e na província, cabendo ao Brasil receber uma parcela muito pequena das obras,
até que se procedesse a uma nova impressão.
48
No que se refere ao vernáculo, a reforma de Pombal seguiu a proposta de
11
Verney . O estudo da gramática durava três anos e passou a ser componente curricular,
ao lado do latim e da retórica. Até o final do século XIX, prevaleceu a visão da
gramática cuja finalidade era dar preceitos e regras para falar, escrever e ler
corretamente12. Também a retórica continuou fazendo parte do componente curricular
do século XVI ao XIX. Lembra-nos Soares (2002) que, contrariamente ao sistema
jesuítico, no qual se estudavam, prioritariamente, os autores latinos para fins
eclesiásticos, a retórica passou a ser estudada também em obras de autores portugueses
e não mais apenas para fins eclesiásticos, visando, inclusive, à prática social.
Inicialmente, a retórica – arte da palavra, do bem argumentar, da eloquência - incluía
também a poética – estudo das normas versificatórias dos textos, estudo da poesia e
composição poética; posteriormente, o estudo da retórica separa-se da poética,
tornando-se um componente curricular autônomo.
Nesse período, a educação era destinada somente aos membros da elite,
geralmente no seio de suas famílias e em estruturas próprias. A escola não tinha ainda
seu lugar bem estabelecido na sociedade e ainda não abria suas portas aos escravos, às
mulheres e aos pobres. As crianças originárias das camadas populares foram,
posteriormente, acolhidas pelo sistema escolar, embora o ensino destinado a elas nem
sempre fosse em um padrão de qualidade equivalente.
Ressalta-se que até o final do século XVIII e início do XIX, os livros didáticos
que circulavam no Brasil eram produzidos no continente europeu, já que a produção de
livros impressos era proibida no Brasil-Colônia. Num primeiro momento, logo após a
proclamação da República, recorreu-se a traduções que pudessem circular no mercado
local; as obras eram normalmente produzidas na França ou em Portugal. (cf. LAJOLO
& ZILBERMAN, 1996), como veremos posteriormente.
Concluído esse breve percurso, vejamos a seguir como se constrói a história do
livro didático no Brasil a partir do século XIX.

11
Alguns anos antes da reforma de Pombal, Luis Antonio Verney publica, em 1746, O Verdadeiro
Método de Estudar, propondo um programa de estudos de língua portuguesa diferente do programa dos
jesuítas, ainda dominante. Já se defendia, ali, além da alfabetização em português, o estudo da gramática
do português precedendo o estudo da gramática do latim. (Cf. SOARES, 2002, p. 161).
12
Para conhecer os estudos relativos às gramáticas de Língua Portuguesa escritas do século XVI ao XIX,
consulte-se: BASTOS, N.B.; PALMA, D.V. História Entrelaçada – A construção de gramáticas e o
ensino de Língua Portuguesa do século XVI ao XIX. São Paulo: IP-PUC-SP/Rio de Janeiro: Lucerna,
2004 e BARROS, D.L.P. O papel histórico, social e político do discurso da gramática. In: MOURA
NEVES, M.H (org). As interfaces da gramática. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2010.
49
2.1.1 Século XIX: Advento do livro didático “nacional”

O século XIX foi um marcado por uma série de acontecimentos históricos no


Brasil, como a vinda da família real portuguesa, em 1808, a independência do Brasil em
1822 e a proclamação da República em 1889, acontecimentos históricos que
provocaram uma grande mudança em relação às questões de educação, ensino e,
consequentemente, livros didáticos no País.
A escolarização no Brasil tornou-se obrigatória nesse período. Assim, o século
XIX é marcado por dois momentos distintos no que diz respeito ao surgimento dos
livros didáticos considerados “nacionais” e sua adoção pelas escolas. niciaremos por
compreender qual é a política cultural e social do Brasil na primeira metade do século
XIX para, posteriormente, averiguarmos qual a formação cultural que se pretendia
oferecer aos alunos e sua influência no material escolar utilizado.
Sabe-se, também, que até 1808, era praticamente inexistente a prática de
impressão no Brasil13. Com a vinda da família real portuguesa ao Brasil e o surgimento
da Imprensa Régia, um novo horizonte abriu-se e, por conseguinte, houve um aumento
significativo da publicação e circulação de jornais, sermões, folhetos, periódicos
literários e livros didáticos. Obras didáticas, aliás, constituíram parte muito importante
do catálogo da Imprensa Régia, conforme atesta Lajolo & Zilberman (1996)14. Apesar
desse início agitado de produção de obras no Brasil, é comum observar que os livros
escolares brasileiros ficaram restritos a um mercado de circulação muito pequeno e os
“métodos de ensino dispensavam inteiramente o uso de livros” (HALLEWELL, 2005,
p. 144). Relatórios oficiais de escolarização nas primeiras décadas do Império mostram
que as várias escolas não dispunham em suas aulas de um material didático impresso
que ensinasse a ler e a escrever, já que a prática mais comum na época era a utilização
de textos manuscritos como cartilhas.

13
Segundo Lajolo & Zilberman (1996, p.122), “o alvará de 20 de março de 1720, impedindo a instalação,
na colônia, de manufaturas, inclusive as dedicadas às ‘letras impressas’, retardou o desenvolvimento da
imprensa por aqui”.
14
No campo das ciências humanas e línguas, reeditou-se, em 1812, a Arte de gramática da Língua
Portuguesa, de Antônio José dos Reis Lobato. Imprimiram-se, também, entre 1813 e 1820, vários
volumes das Preleções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a estética, a diceósina e a
cosmologia, de Silvestre Pinheiro Ferreira. Do padre Inácio Felizardo Fortes, publicaram-se, em 1816,
Arte de gramática portuguesa e, em 1818, Breve exame de pregadores. De 1818, o livro Leituras para
meninos, de José Saturnino da Costa Pereira pode ser considerado o primeiro livro brasileiro de literatura
infantil e, de 1820, o Compêndio da gramática inglesa e portuguesa, composto por Manuel José de
Freitas, a primeira gramática inglesa feita no Brasil. (cf. LAJOLO & ZILBERMAN, 1996, p. 126-127).
50
O nascimento do livro didático no Brasil e também da imprensa se fez sob a
tutela do Estado e a ele se sujeitou, no primeiro decênio do século XIX. A especial
atenção dedicada pela Imprensa Régia ao livro didático tinha por objetivo suprir a
carência das instituições de ensino superior, então criadas por d. João após o
estabelecimento da Família eal no país. “Os manuais didáticos foram tema de debates
dos parlamentares que decidiam sobre a criação e a organização do sistema educacional
do novo Estado que se formava e permaneceu durante todo o século XIX”, explica
Bittencourt (2008, p.24).
Os primeiros livros didáticos elaborados no país revelam fases distintas no que
tange à sua produção. A primeira fase, na primeira metade do século XIX, consistia na
produção de obras voltadas aos padrões e modelos estrangeiros, sobretudo franceses e
alemães. Herdeira da concepção oitocentista anterior, a nova geração de intelectuais
determinou que os livros didáticos fossem adaptados de obras estrangeiras, chegando
até mesmo à tradução de algumas obras, podendo-se “mesmo traduzir-se alguns, que há
nas outras nações cultas, particularmente a alemã, que mais se tem assinalado nesta
espécie de instrução”, como relata ANDRADA (1945, p.104)15.
Nas décadas finais do século XIX - 1870 e 1880 - houve um considerável
aumento das críticas em relação ao material em uso, nascendo daí o desejo de
16
construção de obras didáticas que fossem legitimamente “nacionais” . Essa segunda
fase, de cunho mais “nacionalista”, foi oriunda de incentivos vindos dos textos oficiais.
Houve uma dose de preocupação com a linguagem adotada e uma crítica feroz aos
livros estrangeiros, sobretudo portugueses, que continham termos de uso raro pelo povo
brasileiro. Insistia-se, ainda, na inadequação de conteúdos estrangeiros à realidade
brasileira, cabendo uma produção didática voltada aos temas do país, sua natureza e
costumes. O objetivo de compor uma produção didática genuinamente nacional foi
concomitante ao crescimento da rede escolar brasileira no século XIX , fator resultante
das mudanças sociais oriundas da urbanização, imigração e, sobretudo, de
modernizações tecnológicas nos meios de comunicação.

15
O texto de Andrada foi escrito provavelmente em 1815 e foi indicado pela Assembleia Constituinte de
1823 para servir de guia para projetos educacionais posteriores. (cf. BITTENCOURT, 2008).
16
Gonçalves Dias apresenta, em 1852, um relatório contendo indicadores da fase de elaboração dos
manuais escolares nas províncias do Norte e Nordeste do Brasil. Há críticas quanto aos Conselhos de
Instrução preferir gramáticas como a de Monteverde, quando havia melhores na Bahia. (cf. DIAS, 1989,
p. 363).
51
Nesse contexto, a questão da língua se evidencia: materializam-se várias
instâncias institucionais, dentre elas, a construção da unidade da língua e um saber sobre
ela. A gramática assume, então, enquanto objeto histórico disponível para a sociedade, o
lugar de construção e representação da unidade da Língua/Nação. (cf. ORLANDI,
1997). Desse período, resultam, assim, as gramáticas ditas “nacionais”, como a
Grammatica Portugueza de Júlio Ribeiro (1881) e a Grammatica da Língua Portugueza
de Pacheco Silva e Lameira de Andrade (1887).
Para Orlandi (1997), a produção de gramáticas pelos brasileiros é “um grande
movimento de tomada em mãos de nossa história, da configuração da nossa sociedade”.
Segundo a autora, ao se assinar uma gramática, os autores brasileiros transferem seu
saber sobre a língua e o torna disponível para uma grande parcela da sociedade. O
advento da República favorece o desenvolvimento de um novo paradigma escolar
(elaboração de um saber sobre a língua, sobre aspectos do Brasil, entre outros) e a
criação de projetos de ensino, dicionários, gramáticas, antologias, etc.
Essa nova configuração social refletiu-se na preocupação constante das classes
dominantes com o processo de construção do “novo” livro didático brasileiro.
Intelectuais que se encarregavam da elaboração de novos projetos educacionais
preconizavam que as obras didáticas deveriam condicionar o leitor e frear possíveis
interpretações mais livres diante da palavra impressa. Recorria-se, então,
17
ideologicamente a Condorcet que, em plena fase revolucionária na França, concebeu
dois tipos de livros didáticos: um para o professor e outro para os alunos. Existiriam,
assim, manuais escolares dos alunos e livros dos mestres ou dos professores. Para
Condorcet (1791/2005), confeccionar um livro exclusivamente ao professor seria
interessante na medida em que poderia conter notas sobre como ensinar, além de
considerações que permitissem ao professor responder às questões das crianças ou que
tratassem ainda das definições das palavras difíceis18.

17
Ideia proposta por Condorcet em Cinq Mémoires sur l´Instruction Publique (1791), obra na qual o
filosófo e matemático francês apresenta suas reflexões em relação às instituições escolares e sua
complexidade. Atribui-se a Condorcet a teoria mais completa e mais moderna da escola republicana na
França.
18
« Il y aurait en même temps un livre correspondant, composé pour l'instruction du maître. Les livres de
cette espèce doivent accompagner ceux qui sont destinés aux enfants, tant que l'enseignement se borne à
des connaissances élémentaires. Ils doivent renfermer : 1˚ des remarques sur la méthode d'enseigner ; 2˚
les éclaircissements nécessaires pour que les maîtres soient en état de répondre aux difficultés que les
enfants peuvent proposer, aux questions qu'ils peuvent faire ; 3˚ des définitions, ou plutôt des analyses de
quelques mots employés dans les livres mis entre les mains des enfants, et dont il est important de leur
donner des idées précises ». (CONDORCET, 1791/2005, p. 61).
52
As obras didáticas produzidas para o sistema escolar do século XIX parecem,
em tese, preconizar a concepção de educação formal do século anterior, tendo as
seguintes obrigações: permitir que o professor tenha um domínio do conteúdo básico
que será posteriormente transferido aos alunos e reforçar a ideologia exaltada pelo
sistema de ensino.
As autoridades brasileiras, nas primeiras décadas do século XIX, pensaram
sobre os livros de que os professores fariam uso nas salas de aula de duas formas. Em
primeiro lugar, pela raridade e pelo custo das obras verdadeiramente didáticas,
propunha-se aos professores livros de autores já consagrados, principalmente obras
religiosas. Por meio da prática do ditado, os alunos copiariam trechos ou ouviriam
preleções sobre as aulas. “As propostas de produção de livros escolares concentram-se,
primordialmente, na elaboração de textos didáticos para uso exclusivo de professores,
dando-se preferência às traduções”. (B TTENCOU T, 2008, p.29).
Na metade do século XIX, um segundo tipo de livro didático destinado a
professores surgiu com o aparecimento das Escolas Normais para a formação dos
professores de níveis elementares. Foi nesse momento que novas concepções didático-
pedagógicas foram pensadas, não correspondendo apenas aos livros que seriam usados
em sala de aula. Almeida (1989, p.157) salienta que a reforma de 1872 do ministro João
Alfredo classificou os livros dos professores em três grupos principais: a) livros que
eram destinados aos professores para a sua formação; b) livros destinados aos alunos; c)
livros administrativos que fariam recordar aos mestres as leis e os regulamentos que
regem a matéria. O livro didático visava, portanto, em seus primórdios, a atender o
professor. No entanto, os livros destinados aos professores circulavam em número
reduzido e pecavam pela qualidade. Segundo Almeida (ibid.), os autores dessas obras
falavam de assuntos de que pouco sabiam e a influência desses escritos revelava-se
enfraquecida.
Inicialmente, o livro didático brasileiro adotou como modelo os livros didáticos
franceses que, por sua vez, estabeleciam diferenças entre os chamados abrégés e o livre
élémentaire, termos que foram, por muitas vezes, traduzidos para o português como
“compêndios” e “livros populares”. Um compêndio deveria, assim

apresentar um quadro exato, resumido e preciso de uma ciência, ou de uma


arte, tal qual existe no momento em que o autor escreve. Mas um livro
elementar é um sistema de ensino; ele abrange um plano dirigido de

53
instrução. O autor se propõe não a compilar todos os fatos, todas as verdades
conhecidas, mas a realizar uma escolha satisfatória de coisas que, estando
ligadas, apresentem novas articulações, relações verdadeiras e essenciais. Ele
serve então para desenvolver o espírito, fazer germinar as ideias, supondo
que seu autor considere quais sejam os conhecimentos mais importantes,
assim como quais sejam os exercícios, e a constituição da ciência ou da arte
que ele pretende que seja conhecida. O compêndio serve para a memória, um
livro elementar atinge mais diretamente o espírito e a inteligência. (JULIA,
apud BITTENCOURT, 2008, p. 29-30)19.

Ressalta-se que o Colégio Pedro II20, criado em 1837, na época do período


regencial brasileiro, representou a primeira tentativa do governo imperial de estabelecer
o ensino secundário público ao abandonar a concepção de aprendizagem lusitana e
adotar aquela praticada nos colégios da França. Para garantir a qualidade do ensino, os
Estatutos do Colégio foram organizados com base nos liceus franceses, sendo que
algumas das disposições não passavam de cópias literais dos regulamentos e estatutos
vigentes na França. No que diz respeito aos livros adquiridos para o estudo das
disciplinas no colégio, a maioria era adotada na França, como o De viris illustribus de
Lhomond, para o latim, gramática reconhecida no contexto escolar francês, e o Manuel
du Baccalauréat, para a história.
Junto a essa concepção de livros didáticos, os políticos encarregados dos
projetos educacionais estabeleceram formas para a elaboração dos textos que
constariam nas obras assim como propuseram diretivas sobre quem deveria escrevê-las,
como apontaremos a seguir.

2.1.2 Livro didático e projeto autoral no século XIX

O discurso político do início do século XIX estava imbuído de ideias


iluministas, que conferiam aos “sábios” a realização de tarefas que assegurassem a
tranquilidade das gerações futuras. Partindo do pressuposto de que uma obra didática
deveria difundir a “verdadeira ciência”, os políticos incentivaram amplamente os mais
notórios intelectuais da época à elaboração de obras didáticas. A confecção de uma obra
19
A concepção de compêndio escolar e livro elementar foi expressa na sessão de 16 de fevereiro de 1799
pelo ministro da Instrução Pública da França.
20
A fundação do Colégio Pedro II tinha por objetivo educar a elite intelectual, econômica e religiosa
brasileira. A escola foi criada para ser o centro difusor das ideias educacionais brasileiras relativas ao
ensino secundário. Tratava-se de uma espécie de “escola padrão” a ser seguida pelos congêneres em todo
o país. (cf. STEPHANOU & BASTOS, 2005, p.83)
54
didática seria, portanto, uma tarefa de cunho patriótico, honrada e digna das mais altas
personalidades da nação. (cf. BITTENCOURT, 2008).
Muitas pessoas reconhecidas da elite cultural brasileira e representantes do
poder assumiram a tarefa de serem as precursoras na produção de obras didáticas no
início do século XIX. O livro Escola brasileira ou instrução útil a todas as classes
extraída da Sagrada Escritura para uso da mocidade (1827) de José da Silva Lisboa,
conhecido como Visconde de Cairu, é um dos compêndios21. Segundo Zilberman
(1998), o mais célebre autor de livros didáticos do período imperial foi o pedagogo
baiano Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas. Seus livros começaram a ser
produzidos na década de 60 e sua influência alastrou-se até o final do século,
ultrapassando, inclusive, a proclamação da República em 1889. Sua obra preocupava-
se com a “boa leitura” e o “ler bem” que, em sua visão pedagógica, consistiam no ato de
ler em voz alta. Enfatizar a natureza oral da leitura com o objetivo de bem dizer o texto,
segundo a autora, foi prática corriqueira no século XIX, sendo estimulada por outros
autores de obras didáticas, tais como Arnaldo de Oliveira Barreto em sua obra Vários
estilos, coletânea que exibia textos variados de autores reconhecidos da literatura
brasileira: Euclides da Cunha, Fagundes Varela, Machado de Assis, Gonçalves Dias,
entre outros.
Com o decorrer do tempo, os autores de obras didáticas deixaram de ser pessoas
atreladas ao poder, substituídas pouco a pouco na produção de obras didáticas, e
passaram a ser escritores consagrados, sobretudo na literatura brasileira. Nessa época,
chegava-se a oferecer até mesmo prêmios - honrarias ou quantias em dinheiro a
professores ou quaisquer outras pessoas que compusessem obras didáticas para uso na
escola ou que traduzissem obras de línguas estrangeiras que, depois de aprovadas,
poderiam ser utilizadas nas salas de aula. (cf. BITTENCOURT, 2008, p.31).
Outra classe de livros didáticos expoente no século XIX foi a dos tratados e
manuais de retórica, por meio dos quais se ensinava a literatura nas escolas de ensino
médio. Normalmente, essas obras traziam junto ao título as representações “postilas”,
“sinopses” ou “tese”, como a de Fernandes Pinheiro (1877): Postilas de Retórica e
Poética ditadas aos alunos do Imperial Colégio Pedro II pelo respectivo professor.
Esses manuais apresentavam ainda uma estrutura centrada nos processos de definição e
repetição, práticas pedagógicas vistas como ideias na época, já que englobavam os dois
21
Bittencourt (2008) faz uma análise apurada da obra de Lisboa, relatando suas preocupações, ambições e
sua interpretação sobre alfabetização e saberes veiculados pela escola.
55
pressupostos básicos de ensino vigente: a positividade dos princípios, o que lhes
conferia existência e autoridade, e a saturação da informação, o que lhes garantia
permanência e comunicação. A “verdade da doutrina”, o “papel pedagógico” da
repetição e a mesmice das atividades didáticas é o que parece representar a concepção
pedagógica preconizada pelos manuais de retórica do século XIX.
Quanto à produção gramatical do Brasil do século XIX, a primeira gramática de
língua portuguesa a qual se dá importância é a “Gramática do Coruja”, de Antonio
Alvaro Pereira Coruja, editada em 1835, e citada por numerosos brasileiros como o
livro no qual aprenderam as primeiras noções de língua portuguesa, conforme nos atesta
Pfroom Netto (1974). Na segunda metade do século, várias outras gramáticas
apareceram como a Gramática Analítica da Língua Portugueza (1865) de Charles O. A.
Grivet, a famosa Gramática Portuguesa de Sotero dos Reis (1865), um dos primeiros
historiadores e críticos da literatura brasileira, o Compêndio de Gramática da Língua
Portuguesa de Laurindo Rabelo (1872), o Compêndio de Gramática da Língua
Portuguesa de Augusto Freire da Silva (1879), Gramática Portugueza de Julio Ribeiro
(1881), Grammatica Portugueza: 3º ano de João Ribeiro (1886), entre outros22.
Segundo Orlandi (1997), “a identidade linguística, a identidade nacional e a
identidade do cidadão na sociedade brasileira trazem entre os componentes de sua
formação a constituição (autoria) de gramáticas brasileiras no século X X”. Para a
autora, a função do sujeito autor de uma gramática também é parte fundamental dessa
história e auxilia na construção dos valores de identidade. Cria-se, portanto, uma
posição sujeito-gramático brasileiro, que se apropria (autoria) de sua língua; o sujeito
que fala o português brasileiro é distinto do sujeito que fala o português de Portugal e
isso é mostrado pela autoria do gramático brasileiro do século XIX.
Cabe ressaltar, por fim, que historiógrafos da língua portuguesa apontam a
Gramática Portuguesa, de Julio Ribeiro (1881), como o livro que renovou
profundamente o estudo da gramática no Brasil. Professor de retórica do Colégio Pedro
II e autoridade em gramática e filologia, Ribeiro trouxe para a gramática brasileira
novos modelos linguísticos e gramaticais norte-americanos e europeus. “Modernizou os
estudos gramaticais, introduzindo na Gramática Portuguesa, em oposição às gramáticas

22
Segundo Pfroom Netto (1974, p.195), não é muito fácil distinguir, a partir do título, as gramáticas que
tinham caráter meramente introdutório, destinando-se, portanto, mais a professores e alunos de escolas
elementares, das gramáticas que se destinavam a cursos secundários e superiores. Algumas delas, no
entanto, traziam a indicação precisa do nível a qual se destinavam, como é o caso do Compêndio de
Grammatica Portuguesa da Primeira Idade, de Cyrillo Silveira (1855).
56
tradicionais, uma linha de objetividade e imparcialidade estritas no estudo da realidade
do idioma”, nas palavras de Pfroom Netto (1974, p.198).
Dado um panorama geral do livro didático e das gramáticas do século XIX,
vejamos como o material didático de língua portuguesa ajudou a satisfazer, durante o
século XX, a necessidade de garantir uma unidade linguística, criando e aperfeiçoando a
língua nacional.

2.1.3 O século XX: reavivamento do livro didático no Brasil

Os trinta primeiros anos do século XX foram marcados por manuais didáticos


organizados sob forma de antologias, seletas, florilégios e crestomatias, todos,
geralmente, acompanhados de uma gramática23, tais quais as produzidas no século
anterior.
Em 1929, o Estado brasileiro criou um órgão específico para legislar sobre
políticas do livro didático, o Instituto Nacional do Livro (INL), que buscava
institucionalizar o livro didático nacional e criar medidas que tratassem do aumento de
sua produção; na verdade, é somente a partir de 1930, em um novo contexto
caracterizado por mudanças políticas, que a vida escolar se organizou e o livro escolar
conferiu outra forma ao ensino tanto da leitura como da literatura. Em 30 de dezembro
de 1938, o então presidente da república Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº
1.006, estabelece as condições de produção e utilização do livro didático no Brasil.
Cumpre ressaltar que os livros eram, em suma, coletâneas de textos que
apresentavam trechos de autores consagrados e não estavam acompanhados de
exercícios, comentários ou explicações pedagógicas. Para Soares, a ausência de um
trabalho didático-pedagógico sobre os textos evidenciava a concepção do professor de
língua portuguesa daquela época: “aquele a quem bastava que o manual didático lhe
fornecesse o texto, cabendo a ele, e a ele só, comentá-lo, discuti-lo, analisá-lo, e propor
questões e exercícios aos alunos”. (SOA ES, 2002, p. 166).

23
Datam desse período as Gramáticas Expositivas de Eduardo Carlos Pereira, publicadas em 1907 e O
Idioma nacional (gramática para o ginásio e para o colégio) de Antenor Nascentes, de 1944; desse mesmo
ano a Gramática normativa da Língua Portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno; ainda na década de
1940, O Português prático, de José Marques da Cruz e a Gramática metódica da Língua Portuguesa, de
Napoleão Mendes de Almeida. (cf. SOARES, 2002).
57
Alguns livros didáticos que estiveram presentes nas salas de aula brasileiras do
final do século XIX e início do século XX foram a Selecta Nacional do português
Carlos Aulete, professor do Liceu Nacional de Lisboa e a Anthologia Nacional de
Fausto Barreto e Carlos de Laet, esta tendo dominado por mais de 70 anos o ensino do
português: a primeira publicação data de 1895 e a última edição, a 43ª, de 1969. A
primeira, embora denominada “nacional” (no âmbito português), incluía autores tanto
portugueses quanto brasileiros e aparecia indicada na lista de “livros para a aula” de
1877 do Colégio Pedro II. A segunda, cujo título completo é Anthologia nacional ou
Collecção de Excerptos dos principaes escriptores de Língua Portugueza do 20º ao 16º
século, estendeu-se no ensino de língua portuguesa por um período considerável se
levarmos em conta que, atualmente, um livro didático tem vida útil de cinco ou seis
anos. Parece-nos revelador que o ensino brasileiro tenha ficado uma parte do século XX
baseado, sobretudo, nas coletâneas de textos para leitura escolar propostos pela
Anthologia de Barreto e Laet, pois sugere a persistência de uma concepção de leitura
apoiada no professor-leitor e na formação do leitor.
Os critérios para a adoção de textos e de autores que figuravam na obra didática
no início do século XX eram basicamente de quatro tipos. O primeiro critério,
considerado essencial, era o da representatividade e legitimidade dos escritores no
campo literário, ou seja, os autores da Anthologia, conforme preconizado no Prefácio da
1ª edição, deveriam contemplar o apogeu das obras literárias. O segundo critério foi o
de não incluir escritores vivos na obra para que se evitasse intensificar “às dificuldades
da escolha o receio de magoarmos vaidosos melindres. Irritabile genus”. (ibid.,
Prefácio da 1a edição). O terceiro critério adotado pelos autores no que tange à seleção
dos textos foi a escolha de autores brasileiros e portugueses. Agindo da mesma forma
que Aulete em Portugal (que nomeava a sua Seleta de “nacional”, porém recorria a
autores portugueses e brasileiros), Fausto Barreto e Carlos de Laet chamaram Nacional
a sua Anthologia, embora também apresentassem autores portugueses ao lado de autores
brasileiros. Ao se ler o prefácio da 1ª edição, presume-se que os autores não viam
distinção entre as duas literaturas, a não ser na fase contemporânea; no final deste
mesmo prefácio, os autores explicam que sua Anthologia se intitulava “nacional”, já que
conferiam a obra “à mocidade de ambos os países onde se fala o português”; nacional
não seria, dessa forma, uma referência aos países, mas à língua comum das duas nações.
(cf. SOARES, 2002).

58
Um quarto e último critério que orientou a seleção de textos para a Anthologia
Nacional é a questão dos temas privilegiados e o modo como esse temas foram
trabalhados. Analisando o prefácio da 1ª edição, nota-se que os autores optaram por
temas voltados às questões brasileiras: “na escolha dos assuntos, optamos por aqueles
que entendessem com a nossa terra (...)”. (Prefácio da 1ª edição). Esse critério estendeu-
se também para seleção dos textos de autores portugueses, uma vez que “ouvir da Pátria
por boca estrangeira e imparcial é sempre uma delícia para todo o coração bem nascido”
(Prefácio da 1ª edição).
Outro fator relevante da Anthologia diz respeito ao seu número de páginas. A
obra possuía, na 16ª edição, 546 páginas, o que décadas depois viria a ser considerado
inverossímil para livros didáticos. Embora no prefácio da 6ª edição, os autores
considerem a obra “econômica e portátil”, a partir dos anos 30 e 40 os livros didáticos
começaram a se alterar e as obras, passaram, então, a fragmentar-se em volumes para as
diferentes séries. Interessante atentar para um retorno, atualmente, do livro didático em
apenas um volume. Livros didáticos propostos, sobretudo, para o Ensino Médio,
ganham novamente as publicações únicas de 100 anos atrás e com isso, certamente,
redefinem padrões de publicação, objetivos, contextos de utilização e natureza dos
conteúdos veiculados pelas obras.
Nos anos 50, houve uma notória modificação nos conteúdos da disciplina
Língua Portuguesa no Brasil, o que acarretou mudanças também nos materiais
didáticos. Teve início uma progressiva transformação das condições sociais e culturais,
com a democratização e a massificação do sistema escolar, que atingiria seu ápice nos
anos 60, fato que exigiu a reformulação das funções e dos objetivos da escola e
mudanças nas disciplinas escolares. Novas possibilidades de acesso à escola24 exigiram
um reposicionamento das funções e objetivos dessa instituição, o que acarretou visíveis
mudanças nas disciplinas escolares. Os livros didáticos da época tiveram de responder a
novas exigências, mas não mudaram duas concepções básicas: a primeira dizia respeito
à noção de que a leitura, que sempre partindo do texto literário, formava a base do
ensino e aparecia em disciplinas relacionadas à aprendizagem da língua materna; nos
livros didáticos da época, a divisão dos temas em unidades (o que parece continuar até

24
Datam dos anos 50 modificações no alunado das escolas brasileiras. Camadas populares reivindicavam
o direito à escolarização, o que, de certa forma, contribuiu para a democratização da escola. Já não eram
mais apenas os filhos da burguesia que frequentavam as salas de aula, mas também os filhos dos
trabalhadores. Nos anos 1960, o número de alunos duplicou no ensino primário e quase triplicou no
médio. (cf. SOARES, 2002, p. 167).
59
os dias atuais) tomavam o texto como ponto de partida para todo trabalho pedagógico; a
segunda concepção partia do princípio de que os textos lidos, além de importantes para
a aprendizagem, também serviam como meio para se adquirir uma competência
comunicativa superior, situada fora do manual escolar. (cf. ZILBERMAN, 1998).
Uma inovação que vale ser comentada é que, a partir dos anos 50, os livros
didáticos de português começaram a se pautar por uma metodologia de ensino
vislumbrada nas orientações didático-pedagógicas aos professores e em exercícios a
serem resolvidos pelos alunos. Houve uma frequente didatização dos textos e uma
condução cada vez mais criteriosa da ação do professor e suas práticas na sala de aula.
Até então trabalhados na sala de aula de forma independente, os estudos da gramática e
do texto articularam-se realmente em uma disciplina: desenvolvia-se a visão de que era
a gramática que fornecia ao texto elementos para compreensão e interpretação, e o
texto, por sua vez, fornecia estruturas linguísticas para o aprendizado da gramática.
Essa simbiose gramática-texto não se deu, porém, de maneira imediata, já que
ela viria a alterar uma concepção de linguagem que datava do sistema jesuítico.
Diferentemente das edições publicadas em décadas anteriores, os livros passaram, a
partir dos anos 1950, a constituir um só compêndio que continha lições de gramática e
textos, o que findou, de uma vez por todas, com o trabalho nas salas de aula com dois
manuais separados. A partir de então, os livros didáticos passaram a propor exercícios
de vocabulário, interpretação, redação e gramática.
Os anos 1960 trouxeram um novo panorama para o ensino de língua portuguesa
e, também, para o material didático destinado a essa tarefa. O regime militar instaurado
no país atribuía à escola a incumbência de fornecer recursos humanos para uma relativa
expansão das condições sociopolíticas da época. Esse fato pode, a princípio, explicar o
sentido instrumental que o ensino brasileiro adotou em seus conteúdos programáticos.
Novas condições políticas e sociais trazem uma nova concepção de linguagem:
se a concepção de língua como sistema que vigorava até então nos livros didáticos
brasileiros era pertinente a um determinado alunado oriundo das camadas privilegiadas
da população e que já estava, inclusive, habituado aos estudos do latim, ela tornava-se
praticamente inviável para um estudo dirigido às camadas populares que necessitava,
sobretudo, de um ensino utilitário e instrumental para atuar no âmbito social. Iniciava-
se, então, um olhar ao ensino da língua pelo viés da teoria da comunicação, a língua
encarada como instrumento da comunicação.

60
Analisando o livro Português através de textos – 3ª série (1968) de Magda
Soares, percebemos uma organização dos conteúdos do livro didático em unidades,
sempre nomeadas a partir de tópicos gramaticais, tais como: o período composto, os
termos da oração, a regência verbal, as classes de palavras, entre outros. Há, ainda, no
final da obra, um capítulo nomeado “Antologia Poética”, destinado à apresentação de
textos oriundos de autores exponenciais da literatura brasileira, como Manuel Bandeira,
Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, entre outros. Na
produção didática de Soares, toda unidade apresenta, como ponto de partida para o
trabalho pedagógico, um texto literário a ser interpretado seguido de exercícios que
trabalham o vocabulário, o estilo e a redação. Finalmente, há um momento destinado à
gramática, no qual há uma minuciosa explicação esquemática dedutiva do tópico
explorado que será, por fim, seguido de exercícios de classificação, construção e
reconhecimento de estruturas linguísticas. Os sempre constantes textos literários passam
a ceder espaço a novos domínios discursivos, como o jornalístico, o publicitário, além
de textos não-verbais como cartazes, histórias em quadrinho, símbolos, entre outros.
O novo perfil de alunado que chegou à escola a partir dos anos 50 e 60
acarretou, segundo Bunzen e Rojo (2008), significativas mudanças nos letramentos e
nas variedades dialetais. Isso implicou mudanças acentuadas por parte dos materiais
didáticos, que abandonaram as antologias e gramáticas tidas, até então, como obras de
referência e desenvolveu-se, a partir daí, um novo tipo de material didático de apoio aos
docentes, o que não apenas interferiu em suas práticas didáticas, mas também provocou,
sobretudo, a perda de sua autonomia. Tomando para nós as palavras de Magda Soares:

Já não se remete ao professor, como anteriormente, a responsabilidade e a


tarefa de formular exercícios e propor questões: o autor do livro didático
assume ele mesmo essa responsabilidade e essa tarefa, que os próprios
professores passam a esperar dele. (SOARES, 2001, p.167)

Segundo Batista (2001), este novo tipo de material que denominamos hoje livro
didático é concebido tendo por objetivo facilitar e estruturar o trabalho desse novo
professor (grifo nosso), não tratando apenas dos conteúdos, mas também das atividades
pedagógicas, e organizando-se em função do tempo escolar, ou seja, em séries,
volumes, etc. É importante verificar que ao longo do tempo, os materiais didáticos

61
foram incluindo e ampliando, progressivamente, o apoio ao professor na tarefa de
preparar suas aulas. Uma análise da Anthologia Nacional de Barreto e Laet, nos
sessenta primeiros anos do século XX, evidencia que, conforme as condições sociais e
econômicas dos professores vão se alterando, comentários, notas e explicações que
facilitem e organizem seu trabalho vão sendo acrescidas, até mesmo em um manual que
pretendia ser apenas uma coletânea de textos. (cf. SOARES, 2002).
A democratização do ensino não alterou somente as relações professor/aluno e o
ensino-aprendizagem, mas também trouxe uma alteração significativa nas condições de
trabalho do professor. Pareceu-se estabelecer um novo paradigma de professores:
aqueles que transformavam suas aulas em roteiros dirigidos, atuando, apenas quando
solicitados, como auxiliares dos alunos, que, por sua vez, estudavam por si, liam,
compreendiam e completavam os exercícios. Soares (2002) relata como exemplo desse
contexto a coleção Estudo dirigido de Português de Reinaldo Mathias Ferreira, cujo
objetivo era escrever um livro que pudesse servir tanto para alunos quanto para
professores, independentemente da situação em que se encontrassem. O autor
reconhecia, na obra, as diversidades de situações em que se encontravam professores e
alunos, e também a questão do aumento do número de vagas e de multiplicação das
escolas, causados pela democratização do ensino. Em anos anteriores, essas
preocupações não se encontravam latentes nas obras didáticas, pois elas não existiam. O
corpo docente das décadas anteriores e também o corpo dos alunos eram praticamente
homogêneos, uma vez que a esse nível de ensino chegavam apenas aqueles pertencentes
às elites. (cf. SOARES, 2002, p. 69).
É na década de 60, já durante o regime militar, após vários acordos entre o
governo brasileiro e o americano (MEC/USAID), que se criou a Comissão do Livro
Técnico e do Livro Didático (COLTED), que tinha por objetivo disponibilizar cerca de
51 milhões de livros gratuitos para os estudantes brasileiros num período de três anos.
Inicialmente, o acordo foi interpretado de maneira positiva, uma vez que fora
estabelecido entre as partes brasileira e americana um programa de desenvolvimento, no
qual a instalação de bibliotecas e cursos de treinamento de instrutores e professores em
vários níveis se firmaram. Críticos da educação brasileira viram, contudo, uma política
manipulatória americana, que visava ao controle do mercado livreiro e, especialmente,
do mercado do livro didático no Brasil. Segundo os estudiosos, esse controle
mercadológico levaria ao controle ideológico de uma grande parte do processo

62
educacional brasileiro. Romanelli (1979) sintetiza a denúncia em sua História da
educação no Brasil:

Ao MEC cabe apenas as responsabilidades de execução, mas aos órgãos


técnicos da USAID todo o controle desde os detalhes técnicos de fabricação
do livro até os detalhes de maior importância como: a elaboração, a
ilustração, a editoração e a distribuição de livros, além da orientação das
editoras brasileiras no processo de compra de direitos autorais de editores não
brasileiros, vale dizer, americanos. (ROMANELLI, 1979, p. 213).

Convém lembrar que no final da década de 1960 e início da década de 70,


acompanhando e sendo coerente aos avanços midiáticos de uma época marcada pelo
advento da industrialização e da comunicação de massa, a Lei de Diretrizes e Bases
5692/71 introduziu a qualificação para o trabalho entre os objetivos de ensino25.
Paralelamente, os conteúdos curriculares e seus objetivos ganham um sentido
instrumental e a Língua Portuguesa passa a ter o status de instrumento de comunicação
e expressão da cultura brasileira. A disciplina que até então se denominava Português,
ou Língua Portuguesa, passa a receber o nome no 1º grau de Comunicação e Expressão
nas quatro primeiras séries (1ª a 4ª série, antigo Primário) e Comunicação e Expressão
em Língua Portuguesa nas quatro últimas séries (5ª a 8ª série, antigo Ginásio) e só
mantém a denominação concordante às práticas tradicionais - Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira – no que passou a se denominar 2º grau (antigo Colégio e atual
Ensino Médio).
Ao final dos anos 60 e início dos anos 70 foi lançado pelas editoras um novo
material que consolidaria uma orientação já iniciada nos anos 50: o livro do professor,
com orientações metodológicas, práticas de ensino-aprendizagem e as correções dos
exercícios. Levantamos a hipótese de que com o aparecimento do livro do professor, o
papel do educador mudou bastante. Até os anos 1970, havia uma concepção de
professor relativamente independente do livro didático, um conhecedor da língua e da
literatura, a quem era suficiente que o material lhe oferecesse textos para que ele
soubesse por qual caminho metodológico trilhar. A partir dos anos 1970, o professor
passa a depender quase que exclusivamente do livro didático, que deve, por sua vez, não
apenas ofertar textos para os trabalhos na sala de aula, mas também preocupar-se em

25 Esta lei foi substituída em 1996 pela lei atualmente em vigor (Lei nº 9394/96).
63
“ensinar” ao professor a orientação metodológica a ser desenvolvida, questões didáticas
e até mesmo dar-lhe as respostas aos exercícios sugeridos. Assim se expressa Soares
(2001, p. 75), ao afirmar que “o autor do livro didático passa a assumir essa
responsabilidade e essa tarefa que os próprios professores esperam dele”.
Para o bem ou para o mal, essa transformação na concepção do professorado
explica por que o livro didático ganha, nas décadas seguintes, muito mais autonomia e
independência em relação ao professor e por quais motivos assume, por consequência, a
responsabilidade na formação dos alunos. Data também dessa época um grande
desenvolvimento da indústria gráfica brasileira, o que alterou os projetos gráficos dos
livros didáticos produzidos a partir daquele período: pela primeira vez, viam-se livros
didáticos que deixavam de ser produzidos em preto e branco para que cores fossem
inseridas, o que fez surgir livros didáticos veementemente coloridos e ilustrados.
Nos anos 1980, a então disciplina Comunicação e Expressão recuperou a
denominação de Português por meio de uma medida do então Conselho Federal de
Educação que buscava, na verdade, acolher reivindicações das esferas educacionais.
Entendemos que as tentativas inovadoras que fugiam do ensino tradicional de língua
portuguesa no país, como a modificação do nome da disciplina, talvez tenham
colaborado para a instauração de uma nova concepção de ensino-aprendizagem que não
mais correspondia aos anseios políticos e ideológicos dos anos 1980. Lembremos que a
mudança do nome da disciplina ocorrera em pleno regime militar, visando a regrar a
educação segundo propósitos objetivos e ideológicos ditatoriais. Porém, a década de 80
anunciava uma democratização do país que não mais se apoiava no contexto político e
ideológico dos anos 60; junto a isso, houve também uma mudança de fase em que
outras teorias linguísticas para o ensino de língua materna foram implementadas nos
currículos de formação de professores. Vemos nos livros didáticos, dessa forma, não
mais conceitos relativos apenas à Linguística dos anos 60, mas também o advento da
sociolinguística, da psicolinguística, da linguística textual, da pragmática e, mais
recentemente, da análise do discurso.
Essa multiplicidade de teorias ajudou, a nosso ver, a constituir uma nova
concepção de língua, não mais pautada apenas pela situação de comunicação, mas,
primordialmente, em questões voltadas à enunciação. Naquela, como sugerem

64
Charaudeau e Maingueneau (2004), havia uma preocupação com o contexto26 efetivo do
discurso; nesta, pressupõe-se um sistema de coordenadas abstratas, associadas a todas as
produções verbais. Admitem-se os contextos de uso, porém não se esquece da relação
da língua com seus usuários em determinadas condições sócio-históricas de utilização.
Há, com o advento das teorias da enunciação, uma ampliação da concepção de língua,
visto que o que marca esse período é a visão do fenômeno linguístico como produto e
processo da interação humana, da atividade sócio-cultural. Na concepção enunciativa da
língua, os sentidos transmitidos pelas estruturas da língua têm relação motivada, o que
significa que estas são moldadas em termos daqueles.
Observando as ações políticas em relação ao livro didático, na década de 80 o
governo brasileiro transferiu à Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) a
incumbência de gerenciar o Programa do Livro Didático – Ensino Fundamental
(PLIDEF). Tal proposta gerou alguns problemas, tais como: ordem distribucional dos
livros dentro de prazos, conchavos de empresas e editoras junto a órgãos estatais
responsáveis e tomada de decisões de maneira unilateral pelas equipes responsáveis do
Governo. Para Freitag et al (1993), um dos fatores mais importantes dessa época foi o
grande desenvolvimento da indústria livreira no Brasil. No entanto, vale destacar que a
quantidade até então excepcional de obras produzidas não foi acompanhada de um selo
qualitativo, o que contribuiu para o envio de um número razoável de livros de qualidade
discutível às escolas, fazendo emergir a falta de preparo e de rigor aos quais tais obras
estavam submetidas.
Com o objetivo de (re)definir as bases políticas regulamentais do livro didático
criou-se, então, pelo Governo Federal o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),
que estabeleceu como meta o atendimento a todos os alunos de escolas públicas do País
quanto ao Ensino Fundamental (1ª a 8ª séries). A grande inovação da proposta é a
sugestão de que o professor escolha o livro didático com o qual pretende trabalhar em
sala de aula. Nas palavras do então Ministro da Educação Marco Maciel (apud
FREITAG et al, 2003: 18), vê-se a justificativa de tal medida: “Melhor fazer a escolha
do livro com o professor que contra ou sem ele”27.

26
A noção de contexto, neste caso, parece remeter ao próprio conteúdo referencial da mensagem, ou seja,
às informações que se referem à nossa realidade social e que estão em evidência na mensagem
transmitida.
27
Em 2004, o Fundo Nacional de Desenvolvimento (FNDE), por meio da Resolução 38/2004, criou o
Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Médio (PNLEM), que definiram os parâmetros para a
primeira avaliação de livros didáticos de matemática e de língua portuguesa para esse nível de ensino27.
Essa primeira etapa atingiu apenas um universo restrito de alunos das regiões Norte e Nordeste do Brasil,
65
Vejamos a seguir uma breve caracterização dos anos 1990, durante os quais o
PNLD se estrutura e apresenta suas propostas e ações para o livro didático brasileiro.

2.1.4 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) no final do século XX e


início do século XXI

Conforme apontamos anteriormente, a história do livro didático no Brasil se fez,


no século XX, via uma sucessão de decretos governamentais que se seguiram a partir de
1929. Na década de 1980 há, em nossa leitura, um marco significativo nessa recente
história definida pela esfera governamental brasileira: a já mencionada criação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) pelo Ministério da Educação. Definido
pelo Decreto-Lei nº 91.542 de 1985, o PNLD objetiva adquirir e distribuir
gratuitamente livros didáticos para as escolas públicas do ensino fundamental brasileiro.
De acordo com Batista (2008), o Programa realiza-se pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento (FNDE), autarquia que substitui o antigo Fundo de Assistência ao
Estudante (FAE) e, estando vinculado ao MEC, é diretamente responsável pela busca de
recursos que financiem programas voltados ao ensino fundamental público brasileiro.
Data de 1996 um conjunto de medidas avaliativas executadas pelo MEC no
intuito de repensar as características, as funções e a qualidade dos livros didáticos
produzidos no país. Até então, a preocupação do MEC com o livro didático estava
prioritariamente centrada na aquisição e na distribuição gratuita do livro didático para o
ensino público. Estudos sobre a produção didática vinham sendo feitos, contudo, desde
os anos 1960 e já denunciavam a falta de qualidade dos livros didáticos: impropriedades
conceituais, problemas de discriminação, desatualização e, sobretudo, suas
insuficiências metodológicas.
Diante do panorama inadequado relatado, o governo procurou, num primeiro
momento, (re)pensar os mecanismos que avaliavam pedagogicamente as obras didáticas
visando a assegurar a qualidade dos livros distribuídos; num segundo momento, os
livros foram adquiridos e distribuídos de acordo com as escolhas dos professores e das
escolas das redes públicas do país. Como nos explicam Batista, Rojo & Zúñiga (2008), a

sendo que sua avaliação baseou-se em princípios e critérios que tentaram estabelecer os parâmetros
mínimos de qualidade do material didático comprado e distribuído pelo MEC. Lembramos, entretanto,
que não nos deteremos nos parâmetros curriculares para o Ensino Médio por ele não se configurar como
um documento de base para nossa análise posterior.
66
avaliação dos livros didáticos se orientou desde o início por dois critérios: o primeiro de
natureza conceitual, ou seja, as obras deveriam estar isentas de erros ou de ideias que
induzissem ao erro; o segundo de natureza política, isto é, as obras não deveriam fazer
apologia a preconceitos, estereótipos, discriminação e proselitismo político e religioso.
Segundo os autores, a partir do ano de 1999 um terceiro fator de ordem metodológica
passou a figurar no processo de avaliação: os livros deveriam propiciar situações de
ensino-aprendizagem adequadas, coerentes e que incorporassem às atividades propostas
nos livros o uso de diferentes procedimentos cognitivos, como a análise, a observação, a
memorização e a elaboração de hipóteses.
Desde 2001, o processo de avaliação vem sendo continuamente efetuado por
diferentes instituições universitárias públicas, sob a supervisão da Secretaria do
Ministério. Comenta Costa Val (2009) que cada instituição se encarrega de uma área do
conhecimento que compõe o currículo do ensino fundamental, a saber: ciências,
geografia, história, matemática e língua portuguesa28. No caso da língua portuguesa,
incluindo a área de alfabetização, a análise de obras didáticas vem sendo realizada pelo
Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale/FaE/UFMG) da Faculdade de
Educação da UFMG.
O processo avaliativo ocorre, certamente, antes da aquisição e distribuição dos
livros por parte do MEC/FNDE. Se tomarmos como exemplo a primeira edição do
PNLD, em 1996, as avaliações dos livros de alfabetização e de 1ª a 4ª série do ensino
fundamental29 orientaram os livros que chegariam às escolas em 1997. Assim, os livros
que fizeram parte da lista de aprovados pelo Programa foram avaliados um ano antes de
sua indicação pelo Ministério. A nomeação de cada edição do Programa se faz pela
data do ano em que as obras chegam até as escolas. Tínhamos, então, a partir do
exemplo dado, o PNLD 1997.
Até o ano de 2002, com base nas avaliações efetuadas, os livros aprovados
recebiam menções e eram classificados por categorias: recomendados: livros que
cumprem adequadamente sua função, atendendo não somente a todos os princípios
comuns e específicos, como também aos critérios mais relevantes da área;
recomendados com ressalva: livros que possuem qualidades mínimas que justifiquem
sua recomendação, embora apresentem problemas que não comprometem sua eficácia;
não recomendados: manuais que apresentam dimensão conceitual insuficiente,
28
Este trabalho interessa-se apenas pelos livros didáticos de língua portuguesa.
29
Os anos iniciais do ensino fundamental foram os primeiros a serem avaliados em 1996.
67
apresentando ainda propriedades que comprometem sua eficácia didático-pedagógica;
excluídos: manuais que apresentam erros conceituais e/ou indução a erros, com ideias
preconceituosas, discriminatórias, além de desatualização;
Duas ressalvas devem ser feitas nesse processo: a primeira é que, a partir de
1998, houve a inclusão de uma nova categoria Recomendados com distinção, ou seja,
livros que se destacavam por apresentar propostas pedagógicas inovadoras, criativas e
instigantes, sempre de acordo com a ideologia representada pelos princípios e critérios
adotados nas avaliações pedagógicas; a segunda diz respeito à categoria dos Não
recomendados que, a partir do PNLD 1999, foi eliminada e à categoria Excluídos
acrescentaram-se questões referentes à incorreção e incoerência metodológicas.
Apresentadas as características principais do PNLD, vejamos, a seguir, como se
constituíram, no Brasil, as influências sócio-políticas e metodológicas trazidas com a
implantação dos PCNs no sistema educacional brasileiro.

2.1.5 Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)30 são documentos que foram


publicados pelo Ministério da Educação e Desporto (MEC) em 1998, com o objetivo de
estabelecer diretrizes curriculares para o Ensino Fundamental brasileiro e servir de
suporte ao trabalho do docente em diferentes áreas do ensino31. No organograma dos
documentos, todas as áreas contempladas pelo ensino fundamental estão divididas em
quatro ciclos, sendo que o primeiro e o segundo correspondem às 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries do
ensino fundamental e o terceiro e quarto ciclos às 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries. A organização do
documento não contemplava ainda o ensino fundamental de nove anos, que viria a ser
implantado pelo governo federal em 200632.
Diferente de outras políticas educacionais brasileiras, com objetivos e conteúdos
pré-fixados, os PCNs, de maneira inovadora, definem-se por “diretrizes que nortearão
os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar uma formação básica

30
Neste trabalho, estamos sempre nos referindo, salvo menção explícita, aos PCN de 3º e 4º Ciclos do
Ensino Fundamental.
31
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) estão organizados em 10 volumes, abrangendo diversas
áreas do saber, tais quais: língua portuguesa, ciências naturais, matemática, artes, meio ambiente e saúde,
entre outros. Neste trabalho, voltamo-nos aos volumes 1 e 2, respectivamente: Introdução e Língua
Portuguesa.
32
Lei nº 11.114 de 16 de maio de 2005.
68
comum.” (PCNs, ntrodução, p. 49). Em seu texto inicial, percebe-se o diálogo que os
documentos tentam estabelecer com a formação inicial e continuada dos professores, a
análise de livros e outros materiais didáticos e a avaliação nacional. (cf. PCNs, 1998).
A progressão curricular dos conteúdos encontra-se, nos PCNs de Língua
Portuguesa, organizada em dois eixos de práticas de linguagem distintos: práticas de
reflexão sobre a linguagem/língua e práticas de uso da linguagem. Discute-se, no
documento, a necessidade de se trabalhar práticas linguageiras de leitura, escrita, escuta
e gramática em contexto situado. Os parâmetros revelam-se, ainda, contrários à
perspectiva normativo-prescritiva, já que confere à linguagem um caráter social.
Os conteúdos que levam em conta os aspectos referentes aos usos da linguagem
estão em uma visão enunciativa da linguagem e versam, sobretudo, sobre questões
relativas a: aspectos históricos da linguagem e da língua; aspectos do contexto de
produção dos enunciados em atividades de leitura e produção de textos orais e escritos;
aspectos de organização dos discursos, por meio dos gêneros e seus respectivos
suportes; aspectos que envolvem o processo de significação. Nessa visão, tomam-se os
textos, pertencentes a um gênero discursivo, como unidades de ensino. Os conteúdos
que dizem respeito aos aspectos reflexivos sobre a língua, por sua vez, abordam
questões relativas à variação linguística, à organização estrutural dos enunciados, às
questões lexicais e às redes semânticas.
Os PCNs parecem apontar prioritariamente para uma concepção de língua em
interação social, entre sujeitos sócio-historicamente situados e não mais para a língua,
que isolada do contexto em que é produzida, é concebida como um sistema de regras.
Dessa forma, esse processo interacional levará o ensino da gramática ao encontro de
uma nova discussão, sobretudo no que diz respeito às atividades epilinguísticas e
metalinguísticas, sempre suscitadas quando se fala em questões de ensino nas aulas de
língua portuguesa. Para nós, a opção por um ensino que concebe a linguagem em um
processo de interação exige que reconsideremos os conteúdos que poderíamos ensinar,
de forma a evitar a metalinguagem desnecessária. Sabemos que uma coisa é analisar as
estruturas da língua, suas características estruturais e sua metalinguagem; outra bem
diferente é dominar as habilidades de uso da língua em situações reais de comunicação,
na produção e na compreensão de enunciado. Analisar a linguagem significa, portanto,
transcender as estruturas linguísticas para analisar o sentido de um discurso em um
processo dinâmico, reproduzido em uma situação de enunciação única.

69
No texto que se refere ao ensino da língua portuguesa nos PCNs, outra questão
oriunda da perspectiva linguística assumida pelos organizadores é a dos gêneros, que
pode ser depreendida em vários momentos, como podemos observar:

os homens interagem pela linguagem tanto em uma conversa de bar, entre


amigos, ou ao redigir uma carta pessoal, quanto ao redigir uma crônica, uma
novela, um poema, um relatório profissional (PCN, 1998, p.6) (...) As
situações de ensino da língua precisam ser organizadas, basicamente,
considerando-se o texto como unidade básica de ensino e a diversidade de
textos e gêneros que circulam socialmente, bem como suas características
específicas. (PCN, 1998, p.10).

É daí que provém o conceito de gênero discursivo pelo viés bakhtiniano, embora
não haja no corpo do texto nenhuma referência direta ao autor. Na perspectiva de
trabalho preconizada pelos PCNs, o conceito de gênero discursivo assume um papel
primordial no desenvolvimento das atividades de leitura e produção oral e escrita. Os
gêneros estão agrupados, no documento, em quatro tipos, de acordo com sua circulação
social: literários, de imprensa, publicitários e de divulgação científica. Levam-se em
conta, também, os usos sociais mais frequentes (leitura, produção de textos orais e
escritos e escuta) dos textos, no que diz respeito aos gêneros selecionados.
Os PCNs propõem, finalmente, organizações didáticas especiais que costumam
ser respeitadas pelos livros didáticos que querem ser aprovados pelo PNLD no
momento da elaboração de suas unidades para o trabalho didático-pedagógico. Trata-se
dos projetos, dos módulos e das sequências didáticas. O projeto “tem um objetivo
compartilhado por todos os envolvidos, que se expressa em um produto final em função
do qual todos trabalham e que terá, necessariamente, destinação, divulgação e
circulação social na escola ou fora dela” (PCNs, 1998, p. 87). O texto ainda aponta
algumas vantagens pedagógicas de se organizar projetos em sala de aula, tais como:
flexibilização do tempo; o envolvimento dos alunos com sua própria aprendizagem; a
relação entre as práticas de uso da linguagem e de reflexão sobre a linguagem; a
acentuação do caráter interdisciplinar dos projetos e, por fim, o trabalho sobre os temas
transversais33.
Os módulos didáticos são apresentados como “sequências de atividades de
exercícios, organizados de maneira gradual para permitir que os alunos possam,

33
Os temas transversais abordam a: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual e
trabalho/consumo.
70
progressivamente, apropriar-se das características discursivas e linguísticas dos gêneros
estudados” (PCNs, 1998, p. 88). Embora não cite em nenhum momento os autores
precursores das sequências didáticas (Schneuwly & Dolz)34, os Parâmetros ressaltam
que:

o planejamento dos módulos didáticos parte do diagnóstico das capacidades


iniciais dos alunos, permitindo identificar quais instrumentos de ensino
podem promover a aprendizagem e a superação dos problemas apresentados.
Assim, a organização de sequências didáticas exige elaborar atividades sobre
aspectos discursivos e linguísticos do gênero priorizado [...] programar as
atividades em módulos [...] planejar atividades em duplas ou em pequenos
grupos, para permitir que a troca entre os alunos facilite a apropriação dos
conteúdos, interagir com os alunos para superar as dificuldades [..] avaliar as
transformações produzidas. (PCNs, 1998, p. 88).

Apresentadas as grandes linhas que norteiam os Parâmetros Curriculares


brasileiros, vejamos a seguir como o livro Português Linguagens (2010) foi avaliado
pela equipe que compôs o PNLD 2010, bem como alguns pontos que apresentam e
descrevem didático-pedagogicamente o livro didático.

2.1.6 O livro didático Português Linguagens e sua recepção pelo PNLD 2011

O livro Português Linguagens 9o ano (Cereja & Magalhães, 2010) foi aprovado
pela equipe de avaliadores do PNLD 2010 como sendo um livro didático que apresenta
textos de gêneros variados, com temas diversos como Amor, Juventude, Valores,
Consumo, Ser diferente, entre outros, que, na opinião dos avaliadores, favorecem a
construção da cidadania, estimulam a curiosidade e a imaginação. Os avaliadores
destacam como ponto forte da obra a elaboração de capacidades de leitura e tarefas de
produção de texto, além de projetos coletivos que articulam as atividades de leitura, de
produção textual e de oralidade.
A resenha35 adverte, no entanto, que a obra enfatiza de maneira exagerada os
conteúdos morfossintáticos e que aborda de maneira fugaz o texto literário, visto que as
particularidades do texto literário não são sistematicamente exploradas. Há críticas,

34
A definição de sequência didática encontra-se no capítulo sobre a fundamentação teórica.
35
A resenha do livro pode ser consultada na íntegra em http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guia-do-
livro-didatico/2349-guia-pnld-2011.
71
ainda às questões relativas à oralidade, que é pouco explorada em tarefas que
sistematizam a fala e a escuta de gêneros orais públicos.
A perspectiva adotada no trabalho com os elementos linguísticos é baseada,
sobretudo, na transmissão de conceitos e na perspectiva reflexiva/discursiva, na qual há
ênfase na análise dos conteúdos com observação do uso, em função de aspectos
relevantes aos gêneros em questão. Segundo a crítica, os usos e os efeitos de sentido
propiciados pelas estruturas linguísticas são trabalhados a contento.
Ressalta-se, por fim, a apresentação, pelo manual do professor, da
fundamentação teórica subjacente ao livro didático bem como dos objetivos e sugestões
de avaliação.

2.2 O livro didático na França: panorama histórico

O panorama que traçaremos a seguir busca delinear o percurso histórico do livro


didático na França. Para tanto, nos basearemos em estudos realizados por profissionais
que se dedicaram à pesquisa histórica tanto no que diz respeito à história do ensino da
disciplina “francês”, quanto em relação à história geral do ensino e da educação no país.
Dentre esses estudiosos, concentrar-nos-emos, principalmente, nos trabalhos de
Chevallier, Grosperrin, Maillet (1968), Chervel (1977, 2008), Choppin (1986), Veck,
Brown, Esnault, Fournier, Lancrey-Javal, Rober-Lazes, Robert (1990), Lebrun, Venard,
Quéniart (2003), Mayeur (2005), Amalvi (2006), entre outros.
Conforme orienta Lebrun; Venard; Quéniart (2003), a França conheceu a
invenção de Gutemberg no final do século XV, com duas décadas de atraso em relação
a países vizinhos como a Alemanha e a Itália. Data de 1470, nos pioneiros ateliês
tipográficos de Paris, o primeiro livro impresso no país, fato realizado por tipógrafos
alemães mediante uso de máquinas de impressão instaladas no colégio da Sorbonne. Foi
preciso esperar, contudo, até o século XIX para que o desenvolvimento da instrução, as
melhores condições de impressão e o triunfo do ensino provocassem a proliferação dos
livros usados em salas de aula.
Vejamos como o livro didático, no decorrer dos séculos, caracterizou-se como
um vetor político, ideológico, cultural e, sobretudo, linguageiro na sociedade francesa.

72
2.2.1 O livro didático francês nos séculos XV, XVI e XVII

A história do livro didático na França inicia-se no século XV, por volta de 1470,
com uma coletânea de cartas em latim, “Les lettres de Gasparin de Pergame” 36, escritas
pelo humanista italiano Gasparino de Bergame e utilizadas como modelo aos estudantes
parisienses nas escolas. Há, no país, um consenso de que a obra tenha sido o primeiro
livro escolar francês impresso nos pioneiros ateliês parisienses de tipografia, criados
mais precisamente em 1454.
Essa afirmação não é, no entanto, compartilhada por todos os estudiosos
franceses do livro didático. Para Choppin (1992), as obras que podem ser chamadas de
livros didáticos são aquelas que trazem em seus seios indicações didático-pedagógicas.
Afirma o autor que embora utilizada em sala de aula, uma coletânea de textos não
poderia ser chamada de livro didático, salvo se acompanhada de exercícios, indicações
de leitura e outras diretivas pedagógicas.
Ainda que limitada à produção impressa, a noção de livro escolar permaneceu
complexa nos séculos seguintes. Durante o Antigo Regime37, não havia nenhum termo
genérico que designasse essa categoria de obras. Anteriormente à Revolução Francesa,
em 1789, os títulos dos raros livros em uso nas escolas francesas referiam-se, de certa
forma, ao seu conteúdo - silabários, alfabetos, gramáticas -, à sua natureza – guia,
método –, a um conjunto de textos – florilégio, antologia, selectae – ou a um
condensado de ideias – noções, resumos, etc.
Datam do século XVI, na França, os novos colégios oriundos da Contra-
Reforma. Os conteúdos escolares veiculados nesses estabelecimentos de ensino estavam
normalmente associados a preocupações de cunho moral, visto que o objetivo era
cristianizar os jovens, imponho-lhes os valores clericais do saber e da disciplina. Dessa
maneira, os textos dos autores latinos que constituíam a base do ensino eram escolhidos
em função do valor moral e religioso que se atribuía a eles. Nas selectae, conjunto de
fragmentos escolhidos, o critério de seleção de textos para estudo baseava-se em temas
como a religião, os bons modos e a retórica. (cf. CHERVEL, 1988). O uso quase

36
Gasparini pergamensis clarissimi oratoris epistolarum liber foeliciter incipit. (Brunet, J-Ch. Manuel
du libraire. Vol. 2. Col. 1498. Paris: Didot, 1861.
37
O Antigo Regime refere-se ao sistema social e político aristocrático sob as dinastias de Valois e
Bourbon entre os séculos XVI e XVIII na França. O poder, nessa época, ancorava-se em três pilares: o
clero, a monarquia e a aristocracia. O Antigo Regime iniciou seu declínio, na França, a partir do século
XVII, culminando com a Revolução Francesa no século XVIII (1789).
73
exclusivo do latim se impunha, até então, nas escolas e nas universidades francesas, mas
não era aceito, vale lembrar, de forma passiva pela sociedade, notadamente por uma
parcela de intelectuais que defendia o uso da língua francesa e condenava ao mesmo
tempo o conservadorismo do ensino nos colégios.
No que diz respeito ao ensino da língua francesa, nos séculos XVI e XVII, os
livros escolares continham, tradicionalmente, lições em latim, em virtude das
concepções moralizantes e conservadoras dos saberes transmitidos pelo ensino da
língua clássica. Para Prost (1968), o estudo do latim impunha a “verdadeira palavra”
sobre a palavra primitiva, ordinária e natural que era o francês. Cumpre lembrar que
uma educação em latim representava, naquela sociedade, um sinal de distinção, que
classificava aqueles que haviam recebido e aqueles que não haviam tido acesso à
educação clássica.
Aos gregos, preferiam-se os latinos. Das obras edificantes de Virgílio e Cícero,
passando por Sêneca e Tito Lívio, clássicas histórias compuseram as selectae e os
excerpate, criando-se, assim, uma espécie de pseudo-literatura, que tinha por base uma
moral emprestada de certa forma de uma antiguidade de trechos escolhidos. Essa prática
estendeu-se também pelo século XVIII, como prova o De viris illustribus de Lhomond,
coletânea de extratos de textos em latim selecionados cuidadosamente pelo autor por
sua simplicidade de leitura. Vejamos, então, como isso aconteceu.

2.2.2 O livro didático francês no Século XVIII

No século XVIII, desenvolve-se na França um esforço coletivo para colocar em


prática uma ortografia totalmente liberta da tradição latina, e que constituísse suas bases
somente dentre as possibilidades oferecidas pelo francês. Surge, com isso, uma nova
demanda social de prática escrita via um sistema que não fosse o latino. Havia na
França daquela época um problema social, visto que duas parcelas da nação – as
mulheres e os jovens – encontravam-se sem saberem escrever o idioma. Para Chervel
(1977), como nessa época o conceito de língua deveria ser entendido como ortografia,
para seu aprendizado, nasceram, então, as chamadas “Grammaires des dames”38, que se
multiplicaram na segunda metade do século XVIII.

38
A “grammaire des dames” têm origem na segunda metade do século XV , na França. Nessa época,
filósofos, literatos, mulheres, padres não cessam de contestar a educação frívola recebida pelas jovens
74
Nas escolas da época, os alunos aprendiam a religião, inicialmente, e a leitura,
geralmente em latim. Para aqueles cujos pais aceitavam pagar um pouco mais, a escrita
também era ensinada, visto que os alunos já sabiam ler. Havia alguns livros para essas
crianças, como o “Les vrais principes de la lecture, de l’ortographe et de la
prononciation françoise” de Nicolas-Antoine Viard (1763). Em quarenta páginas, o
autor explicava alguns elementos de gramática, em particular referentes à declinação do
nome. Isso mostra o quão Viard ainda estava apegado à tradição latina, fato que,
curiosamente, não impediu que seu livro fosse reeditado até por volta de 1840 e, como
afirma a capa de certas edições, “généralement adopté dans toutes les écoles de
France”.39
A questão da necessidade do aprendizado da ortografia faz com que o século
XVIII seja também marcado, na França, por uma originalidade do movimento
gramatical que, pela primeira vez, assume uma perspectiva pedagógica, como nos
confirma Jean-Claude Chevalier, em Histoire de la syntaxe (1968, p.633): “ce qui fait
l´originalité du mouvement grammatical au XVIII siècle, c´est qu´il a une visée
pédagogique”. Prolongando a tradição da Grammaire générale et raisonnée de Port-
Royal, publicada no século XVII, gramáticos filósofos se abrem à uma reflexão
linguística e filosófica com novas bases. A tradição da gramática geral 40 ainda
prossegue por algumas décadas, enriquecendo com numerosas contribuições o
pensamento gramatical francês.
Tudo estará, assim, em seu devido lugar para que, no rastro de uma gramática
latinizante, os professores de ortografia possam elaborar as primeiras gramáticas
escolares da língua francesa.

meninas. De acordo com uma ideia muito difundida, a mulher não é capaz de se concentrar muito tempo
em uma mesma tarefa, sendo incapaz de fixar sua atenção em um tema árido, dada a leveza de seu
espírito e a fragilidade de sua constituição. É preciso, portanto, que os manuais a elas destinados de
gramática, de retórica, de cronologia, de aritmética ou de línguas garantam a rapidez e a facilidade no
aprendizado. (cf. REUILLON-BLANQUET, 1994).
39
Cf. PITEL-PRÉFONTAINE, Éducation des enfants, contenant la Grammaire française, la
Géographie, la Chronologie, l’Histoire etc. Paris: 1785. Nesta obra, embora o título afirme, não
encontramos nenhuma palavra que remeta à questão da gramática. Não se pôde consultar Méthode
familière pour les petites écoles (1749), contendo uma gramática, nem os Eléments de la grammaire
française à l’usage des enfants qui apprennent à lire, de François-Dominique Rivard (1760), que não se
encontram na Biblioteca Nacional da França.
40
Embora neste trabalho estejamos tratando prioritariamente das gramáticas escolares na França, não
podemos nos esquecer de que a tradição gramatical francesa com as gramáticas gerais (não escolares)
data do início do século XVI. Dessa maneira, quando as primeiras gramáticas escolares apareceram, no
século XVIII, a França já possuía uma forte tradição na elaboração de gramáticas há aproximadamente
duzentos anos. (cf. CHEVALIER, 1994).
75
2.2.3 A gramática francesa na sala de aula

Nosso interesse pelo estudo da gramática escolar francesa se dá pelo fato de


ainda não haver, na época descrita, livros didáticos para o ensino nas escolas. Dessa
forma, as gramáticas escolares é que cumpriam o papel de manuais escolares nas salas
de aula francesas.
A história do ensino da gramática na França chega até nós graças aos trabalhos
de André Chervel, que examinou a evolução do ensino gramatical desde o século XVIII
até os primeiros anos do século XX, por volta de 1950.
Segundo Chervel (2008), a entrada da gramática como nova disciplina escolar se
dá pela primeira vez nos currículos franceses na segunda metade do século XVIII,
sobretudo no ensino fundamental II (collège). A baixa dos estudos latinos foi uma
constante ao longo desse período e o ensino de gramática na escola pôde ser visto como
uma tentativa de modernização dos estudos na época: língua, literatura e cultura
francesas apressaram-se às portas dos colégios clássicos para terem seus conteúdos
comtemplados. O autor ilustra esse quadro afirmando que a nova disciplina foi,
inicialmente, acolhida como um corpo estranho ao qual era necessário encontrar um
lugar na estrutura curricular. Tratava-se de uma peça totalmente nova em um mosaico
disciplinar estritamente calcado na língua latina. No final do século XVIII, ainda se
acreditava que se o aluno soubesse a gramática, ele estaria também apto, em princípio, a
aplicar todas as regras de ortografia.
Um dado que gostaríamos de destacar é que o crescimento do ensino da
ortografia na França e a propulsão da gramática francesa como propedêutica à
gramática latina coincidem com a expulsão dos jesuítas. Assim como ocorrera no
Brasil, com a saída da Companhia de Jesus do território francês, houve uma renovação
das equipes e das práticas pedagógicas nas escolas por eles deixadas, momento
oportuno para que os sucessores pudessem modernizar os programas, tendo por objetivo
atingir um novo público.
Com a aproximação das grandes agitações trazidas pela Revolução, em 1789, a
necessidade de um ensino dos elementos da língua francesa se impôs fortemente na
opinião pública. Não bastava mais aos alunos apenas o ensino clássico, mas, antes de
tudo, era necessário um ensino que não negligenciasse uma nova formação, tanto
pedagógica quanto ideológica.

76
É nesse quadro que, em 1790, desapareciam os colégios do Antigo Regime,
deixando em seu lugar novos estabelecimentos escolares que colocavam em prática não
apenas seus programas de língua francesa e de ortografia, mas também o ensino da
história, da geografia, de línguas e de outras disciplinas modernas. Houve até mesmo
escolas que interromperam o estudo das tradições humanistas. No entanto, é
essencialmente nesses recém-nascidos limites escolares que a ortografia e a gramática
francesa recebem o tratamento que lhes fora negado nos colégios clássicos.

2.2.4 A gramática escolar de Lhomond: o grau zero

Há uma relativa arbitrariedade ao se afirmar que a primeira gramática escolar41


francesa data de 1780 com os “Éléments de la grammaire françoise”42 do abade,
pedagogo e gramático francês Charles François Lhomond. Essa obra assumirá, embora
tenha surgido no final do século XVIII, um papel primordial na pedagogia da ortografia
durante todo o século XIX43.
A gramática de Lhomond é, na verdade, uma gramática inovadora. Sob o
pretexto da simplicidade, o autor procede a uma reorientação complexa dos estudos
gramaticais da época, visto que começa a abandonar os estudos do latim e passa a se
dedicar, prioritariamente, no seio de sua obra gramatical, à questão da ortografia.
Desde sua primeira edição, o conceito de gramática na obra de Lhomond é
definido, sob os moldes da pedagogia tradicional, como a arte de falar e escrever
corretamente. Em apenas 89 páginas, a gramática apresenta dez capítulos que, por sua
vez, representam as dez classes de palavras (nome, artigo, adjetivo, pronome, verbo,
particípio, preposição, advérbio, conjunção e interjeição) em uma ordem a partir dali

41
Chervel (1977) chama de “gramática escolar” o conjunto de conhecimentos gramaticais que a escola
oferece aos alunos dentro de um programa de estudos da língua francesa.
42
Para a gramática Sophie Piron, a primeira verdadeira gramática escolar francesa foi a obra de Noel e
Chapsal, publicada em 1823 e intitulada: La nouvelle grammaire française sur un plan très méthodique.
43
Se a primeira gramática escolar francesa data do século XVIII, a primeira grande gramática francesa
nasce no século XVI pelas mãos de um inglês, John Palsgrave que, por volta de 1530, publica, em inglês
e em escrita gótica, uma grandiosa obra intitulada em francês Lesclarcissement de la langue francoyse,
cujo manuscrito já circulava há aproximadamente quinze anos. (cf. CHEVALIER, 1996, p. 13). Já a
primeira grande gramática francesa escrita em francês foi a gramática de Maigret, em 1550. Embora
fosse original, a obra não foi satisfatoriamente difundida, visto que fora escrita seguindo um sistema de
ortografia reformada. Isso não a impediu, no entanto, de ser lida em sua época e de ter inspirado, anos
mais tarde, o trabalho de Estienne para a sua gramática de 1557, essa sim, mais acessível e mais lida.
77
considerada como tradicional; vai-se além com uma vintena de páginas de explicações
diversas, sobretudo, em relação à ortografia.
Os Éléments de la grammaire françoise (1780) de Lhomond parecem definir-se,
portanto, como um instrumento de primeira ordem para os professores desejosos de
trabalhar as questões de ortografia. Examinando detalhadamente algumas de suas
passagens, encontramos os enunciados das principais regras gramaticais que permitem,
por sua vez, a resolução da maioria das dificuldades de ortografia gramatical, expostas
de maneira clara, com exemplos simples. Notamos, ainda, o aparecimento das regras do
“bom uso” (oral e escrito), porém para o aluno, sempre o uso da escrita, a conjugação da
maioria dos verbos “difíceis” e, em algumas páginas, a explicação de várias regras
gramaticais, em sua maioria sintáticas. Um olhar sobre a primeira lição dos Éléments
(1780) não nos deixa dúvidas sobre sua finalidade: ensinar aos alunos franceses o
sistema da escrita, apresentando em suas páginas um conjunto de noções gramaticais e
de regras sintáticas necessárias à prática da ortografia francesa que será, aliás,
preocupação explícita durante todo o século XIX.
Considerada como um dos poucos manuais do Antigo Regime a ser adotado com
entusiasmo pela Revolução, a obra vê suas edições multiplicarem-se ao longo do século
XIX, até por volta de 1893. Segundo Chervel (1977), é a partir dela que muitos
gramáticos começaram suas carreiras, seja reeditando-a, seja publicando as conhecidas
“Grammaires d’après Lhomond44” ou os “Exercices sur la grammaire de Lhomond”45,
além dos “Corrigés” de todos esses exercícios. Enfatizando a questão ortográfica,
Lhomond define a fórmula mínima sobre a qual todo o resto será construído. Isso posto,
podemos afirmar que a gramática que vai se impor na escola primária e no ensino
fundamental francês (collège) do século XIX fora abundantemente preparada no século
anterior.
Descritas em linhas gerais as preocupações pedagógicas referentes ao
movimento gramatical no século XVIII, conheceremos a seguir o panorama do livro
didático francês no século XIX.

44
Cf. Éléments de la grammaire latine d’après Lhomond, de Constant Villemeureux (1826) ou Éléments
de Grammaire Latine (d'après Lhomond, de Georges Édon (1886).
45
Cf. Nouveaux exercices français gradués rédigés sur la grammaire de Lhomond ,de J.C. Cocquempot
(1858) ou Exercices variés sur la grammaire française de Lhomond, de A. Campagnol (1854).
78
2.2.5 Livros didáticos e gramáticas escolares no século XIX

O século XIX é um período de plena efervescência para a história do livro


didático na França e para o ensino do francês. No que diz respeito aos livros didáticos
ou, mais especificamente, às gramáticas escolares, o século XIX verá a junção total
entre gramática e ortografia em questões de cunho pedagógico. Dessa forma, na esteira
das ideias trazidas pela gramática escolar do século anterior, o ensino gramatical
continua a ter por objetivo ensinar a se escrever corretamente, segundo a necessidade da
maioria dos alunos e, também, determinada por uma “nova” escola primária que
começava a se preocupar com a oferta de uma visão utilitária da língua. Os novos rumos
tomados pela escola, sobretudo no ensino primário (école maternelle e élémentaire), na
França, serão nosso próximo objeto de discussão.
Para maior precisão sobre a prática pedagógica nas salas de aula do século XIX,
observaremos algumas edições escolares que poderão nos fornecer indícios de como se
davam as práticas de ensino na época.
Pelo sucesso obtido e por ter sido adotado pelos professores até os anos 1950 do
século XX, um dos livros escolhidos que acompanhou todo o desenrolar da Terceira
República francesa46 é o Le Tour de France par deux enfants, de G. Bruno. Publicado
em 1877, esse livro, verdadeiro mascote do ensino primário republicano47, servia, em
sua origem, ao aprendizado da leitura48 nas escolas da Terceira República. Tratava-se,
em princípio, de um livro de cunho patriótico, que já explicita em seu prefácio sua
preocupação com a formação moral, geográfica, científica, cívica e histórica da
juventude. Interessante atentar para o fato de que o livro didático Fleurs d´encre 3e
(2012a), atualmente, concebe o estudo da gramática da mesma forma que a obra de
Bruno, como mostraremos em nossas análises posteriormente.
Olhando, agora, a questão gramatical, no século XIX a produção de gramáticas
escolares desenvolveu-se com uma intensidade jamais vista. Em sua maioria, essas

46
A Terceira República é o regime político da França de 1870 a 1940.
47
A escola republicana na França não é um lugar de enunciação qualquer; trata-se certamente do lugar no
qual a Terceira República se concentra com maior densidade. Não apenas porque a Escola possui a
missão implícita de formar cidadãos, sujeitos necessários à sua reprodução, mas também porque é, por
excelência, o lugar de enunciação a partir do qual o universo todo ganha sentido.
48
Para Prost (1968), o século XIX registra progressos simbólicos quanto ao trabalho com a leitura, a
escrita e o cálculo. No que diz respeito ao aprendizado da leitura, um dos pontos cruciais é a mudança do
método de soletração (alfabético), geralmente feito a partir de textos em latim, para uma alfabetização
por sílabas, por volta de 1831. Dessa forma, a leitura do latim parece ter recebido um golpe fatal. Ela não
encontrará mais lugar na escola primária, fazendo-se presente apenas no ensino superior.
79
obras visavam ao ensino secundário (collège e lycée). Em uma época de escolarização e
alfabetização intensivas, o fenômeno maior era a formação, em algumas dezenas de
anos, de um corpo professoral cuja missão essencial seria fazer penetrar na massa
francesa os princípios da ortografia francesa.
Estreitamente ligada à didática da ortografia, a teoria gramatical da escola torna-
se um espaço fértil, portanto, para a constituição de vulgatas, ou seja, das gramáticas
escolares. Observa-se, no decorrer do século XIX, a constituição de duas vulgatas
sucessivas, das quais trataremos abaixo.

2.2.6 A primeira e a segunda gramáticas escolares francesas: a constituição de


vulgatas

Explicamos, inicialmente, que a denominação desse item está ancorada na


hipótese sugerida por Chevel (1977). Para o autor, as escolas centrais criadas em todos
os departamentos49 franceses são o berço da primeira gramática escolar. Essas escolas
foram inauguradas entre 1796 e 1797, sendo que a maioria delas fecharia suas portas em
180450 - o que, certamente, deixou pouco tempo para que uma teoria gramatical pudesse
vigorar. O impulso dado ao novo ensino da gramática geral de Port-Royal é uma das
esperanças dos ideólogos na formação filosófica da juventude.
Trata-se, portanto, de uma gramática aberta à análise lógica e que traz à tona
ainda novos problemas relativos à ortografia, para os quais as novas teorias e
terminologias gramaticais deverão encontrar uma descrição. Data desse período a obra
La Nouvelle grammaire française, sur un plan très méthodique, publicada em 1823 por
Chapsal e Noël. A recepção da obra em determinadas escolas foi deveras complicada,
visto que os alunos, oriundos de meios populares, rurais em geral, não eram capazes de
fazer um uso adequado do livro, tamanha a complexidade da oposição plano gramatical
(real) versus plano lógico (reconstrução), utilizada pelos autores. Julga Chervel (2008)
que a obra era aparentemente um contrassenso pedagógico em um momento em que a

49
A França se organiza administrativamente de uma forma bastante diferente da organização brasileira.
Sem entrarmos em maiores detalhes, poderíamos afirmar, grosso modo, que um departamento francês
corresponderia a um estado brasileiro, apenas para efeito de compreensão.
50
Em 1795, o novo regime que se sucedeu à Convenção, o Diretório, decide unificar o ensino secundário
na França, criando em cada departamento uma Escola Central. Sua existência, no entanto, será breve, já
que em 1804, Napoleão I criaria uma nova instituição: os liceus (Lycée).

80
instrução primária no país destinava-se a todo cidadão, sobretudo aos da zona rural, que
se misturavam aos alunos do meio urbano.
Por volta de 1830, a obra de Chapsal e Noël começa a perder seu prestígio,
sobretudo pela influência dos inspetores gerais que visitavam as escolas, um tanto
reticentes quanto à verdadeira contribuição do manual ao efetivo aprendizado da
gramática. A edição escolar também parece reagir ao monopólio que Chapsal e Noël
detêm no campo do ensino gramatical e, a partir de 1838, obras como Réfutations de la
grammaire de Noel et Chapsal, Observations critiques, Cent et une erreurs de MM.
Noël et Chapsal, Lettres à M. Chapsal impõem-se frente ao ensino científico e racional
de Chapsal e Noël51.
A segunda gramática escolar francesa, segundo Chervel (1977), não possui nem
lugar nem data de nascimento. Na verdade, ela nasce de uma profunda insatisfação
manifestada no ensino secundário francês: a gramática de Chapsal e Noël e os
numerosos manuais que nela se inspiram são incapazes de responder às demandas da
escola secundária. Dificilmente assimilada até mesmo pelos professores, o obra acabava
por não atingir os alunos. Busca-se refutar não só todas as conversões de enunciados,
como explicado anteriormente, como também um francês “engessado” que seguia a
velha lógica dos colégios a partir do método chapsaliano; buscava-se, nessa fase, afastar
as referências sistemáticas à lógica.
Oportuno dizer que sob as ruínas da primeira gramática escolar de Chapsal e
Noël, a segunda gramática escolar reconstrói, sem perspectiva global, uma teoria
sintática. Seu material de análise é constituído de quadros teóricos diversos, tais quais: a
retórica, os estudos propostos pelos gramáticos do século XVIII, a parte lógica da
primeira gramática chapsaliana e, até mesmo, a gramática latina.
A segunda gramática escolar esteve presente na França até o início dos anos
1970, quando, a nosso ver, entra em voga outra corrente gramatical inspirada nos
diferentes estudos linguísticos estruturais da época, que ganhou rapidamente o ensino
secundário. Vejamos como isso se deu.

51
Chervel, A, Les Grammaires françaises, 1800-1914. Répertoire chronologique. Paris: INRP, 2000.
81
2.2.7 O livro didático no século XX: a terceira gramática escolar

No âmbito didático, o último século viu uma série de alterações no que diz
respeito às conjunturas teóricas e educativas. No tocante ao ensino do francês, que nos
interessa primordialmente neste capítulo, tomaremos, como Halté (1992), os anos 70
como ponto de partida para nossos comentários e o fazemos porque o início dessa
década marca o início de um novo paradigma de ensino.
Em relação à didática do ensino da gramática escolar na França, atribuímos aos
anos 1970 uma espécie de “renovação” no ensino do francês, ocorrida por um desejo de
modificação no campo da didática e uma implementação de novas bases teóricas,
conforme comentado anteriormente. Esse novo panorama se deu devido a um “Plan de
énovation” (“Projet ouchette”52) que, inicialmente, abrangia a escola elementar e
que, em seguida, estendeu-se ao ensino secundário. Como nos explica Combettes
(2004), já havia na França muito antes dos anos 70 um desejo de se afastar de um
ensino de gramática abstrato, excluído da prática da língua53, que valorizava as
atividades de análise em detrimento das atividades de redação. Situando-se em relação a
um método tradicional, que colocava ênfase em atividades de análise e deixava para a
prática individual do aluno a execução das regularidades gramaticais, a “renovação” dos
anos 70 tinha como princípio fundamental justificar o ensino gramatical pela
necessidade de um progresso na expressão escrita e oral e também em relação à
compreensão. A fórmula usada para nomeá-la, “grammaire pour l’expression”, não
deve, no entanto, mascarar o fato de que a gramática era igualmente concebida como
uma ferramenta para a leitura.
Nesse período, instaura-se a distinção entre a gramática intuitiva e a gramática
reflexiva, aquela devendo se constituir pela prática de linguagem antes que uma
observação da língua possa ser colocada em prática. No plano teórico, essa mudança em
relação ao uso da língua encontra o quadro fornecido pelo estruturalismo, no caso, o
distribucionalismo, e pela gramática gerativa e transformacional, de quem são
emprestadas as noções de frase e de transformação. Mesmo que sua aplicação tenha tido

52
O Plano Rouchette tinha por missão colocar um ponto final no fracasso escolar no final dos anos 50.
Para maiores detalhes, Cf. “Projet d’ nstructions”, Revue pédagogique, IPN, n° 38, 1969.
53
Na mesma época, o modelo de ensino do francês como língua estrangeira (FLE) desempenhou um
papel inovador nesse sentido, visto que ao propor aos alunos o desenvolvimento de atividades de
produção, escritas e orais, já havia atribuído ao ensino da gramática uma noção de instrumento a serviço
da comunicação
82
alguns desvios um tanto relevantes, o apoio sobre essas teorias permitiu o afastamento
do paralelismo lógico-gramatical e, mais frequentemente, da corrente psicologista que
caracterizava a gramática escolar. Tratava-se, então, de “construir” uma gramática em
uma perspectiva indutiva que se aproxima daquela preconizada pelas ciências
experimentais. (cf. COMBETTES, 2000). Notaremos que os textos oficiais
(Nomenclatura, Instruções), contudo, introduziram apenas uma parte dessas
“inovações” e mantiveram um bom número de noções da gramática anterior aos anos
70, fato que também se observa até os dias atuais.
A terceira gramática escolar do francês é oriunda desse contexto que acabamos
de descrever. Essa gramática traz marcas profundas das correntes dominantes da
linguística estrutural da época: o distribucionalismo europeu, as análises de constituintes
imediatos de Harris e a gramática gerativa de Chomsky. A aparição da terceira
gramática nos textos oficiais franceses se deu em dezembro de 1972, praticamente no
mesmo período em que ela fez sua entrada, pela primeira vez, nos manuais escolares, a
partir da obra fundadora de E. Genouvier e C. Gruwez intitulada Grammaire pour
enseigner le français à l'école élémentaire , publicada pela Editora Larousse.
A terceira gramática foi rapidamente implementada no ensino secundário francês
e se caracterizava pela escolha do formalismo em suas definições e processos
pedagógicos. Como nos descreve Vargas (2003, p.70), tratava-se de uma gramática de
cunho essencialmente descritivo, época na qual floresciam nos livros e nas aulas as
“árvores” de Chomsky e as “colunas com flechas”, como podemos observar na
gramática de Genouvier e Gruwez (1987).
A terceira gramática francesa insistiu demasiadamente na concepção de língua
caracterizada por meio da linguística estrutural, tratando a língua como um conjunto de
frases abstratas de seu conceito ou, como dizia Saussure em seu Curso de Linguística
Geral (1916/1995), um sistema. Isso gerou, todavia, numerosas resistências, não apenas
dos professores, mas também da sociedade, da mídia e da classe política, devido à sua
complexidade. Reconhecia-se a importância da Linguística e sua profundidade
investigativa no campo da ciência, porém ressaltava-se a dificuldade de uma real
transposição desses saberes em práticas pedagógicas. sso fez com que o “Plan de
énovation” então proposto pela equipe ministerial fosse revisto e, para responder às
diferentes críticas, publicaram-se em setembro de 1972, novas instruções oficiais que
contornaram o texto de origem, mais particularmente no domínio da gramática.

83
Insistindo-se sobre o abuso do uso das teorias linguísticas e de seu vocabulário em sala
de aula, o novo texto acabava por propor um retorno aos conhecimentos mais
tradicionais e as classes de palavras, a começar pelo verbo, reaparecem juntamente a
noções mais gerais como a comunicação e a frase.
A partir de 1980, considerado o fenômeno da falta de letramento da população 54,
o ensino da língua passou a ser uma preocupação governamental, ficando a gramática
em uma posição secundária ou auxiliar ao trabalho da leitura e da escrita, como
afirmarão os diferentes textos oficiais posteriores. Nascia, então, a quarta gramática
escolar na França.

2.2.8 A quarta gramática escolar: frase, texto, discurso e enunciação

A quarta gramática marca uma ruptura com as gramáticas precedentes, visto que
são transcendidos, mas não esquecidos, os limites da frase como unidade linguística
máxima de estudo escolar e atingem-se os limites do texto e do discurso. Nessa nova
gramática, preconizada a partir dos programas oficiais de 1987, época em que já temos
o livro didático tal como o conhecemos atualmente, aparecem, pela primeira vez, as
questões enunciativas, discursivas e informacionais, que se juntam aos conteúdos
sintáticos e semânticos.
Esses mesmos programas oficiais, em seus textos fundadores, retêm, desde a
escola maternal, o conceito do domínio do francês e da linguagem intimamente ligados
à produção de textos. Para o ensino secundário (collège), que nos interessa
particularmente nesse trabalho, a palavra-chave é o domínio do discurso, o que levou à
distinção de três tipos de gramática: a gramática da frase, vista do domínio da
morfossintaxe, a gramática do texto, que privilegiaria o ponto de vista semântico-
referencial e uma gramática do discurso, essencialmente construída a partir do ponto de
vista enunciativo. (cf. VARGAS, 2004).
Respeitando as instruções oficiais e a elas se adequando, os livros didáticos
franceses passaram a apresentar em sua elaboração didático-pedagógica uma teoria da
enunciação, também por eles chamada de linguística da enunciação, que seguia os
trabalhos de Benveniste, Culioli e Ducrot. Se em tempos remotos, o aprendizado dos

54
Cf. Hébrard, J. La scolarisation des savoirs élémentaires à l’époque moderne. Histoire de l’Éducation,
n 38. INRP, maio 1988.
84
alunos nas aulas de gramática se dava mediante a explicação de textos literários e mais
recentemente, na década de 1970, as aplicações escolares da linguística estruturalista
e/ou gerativista fizeram do aprendizado do francês algo próximo à lógica, a quarta
gramática dos anos 1980 apresentou como novidade uma junção entre as produções
(escritas, orais e icônicas) e alguns métodos: renovação da retórica, tanto do lado da
argumentação quanto do lado das figuras, e os estudos da enunciação e de seu aparelho
formal.
Concentrando-nos propriamente nos estudos da enunciação, alguns problemas
são levantados por linguistas franceses, como VARGAS & TCHERKESLIAN-
CARLOTTI (2007), na quarta gramática francesa. Há, de acordo com esses autores,
uma junção equivocada e conflituosa de várias teorias que possuem em seu bojo a
questão da enunciação, visto que os livros didáticos franceses incorporam saberes
oriundos da linguística - sobretudo, da enunciação – de maneira heteróclita e, muitas
vezes, incompatíveis entre eles por pertencerem a correntes teóricas distintas. Segundo
os linguistas franceses (ibid.), falta à quarta gramática francesa um conjunto homogêneo
e coerente de saberes escolares e linguísticos que apresente sua própria lógica de
funcionamento e de potencialidade evolutiva no decorrer da escolaridade, o que
permitiria aos alunos um percurso escolar sem grandes rupturas entre a gramática e a
linguística.
É importante ressaltar que embora busque transcender os limites da frase, a
quarta gramática francesa não abandona tal unidade linguística. Sistematiza-se a análise
de frases propondo um modelo sobre o qual todo o sistema gramatical frástico é
construído. Trata-se de um modelo da frase de base, constituída de dois grupos de
palavras obrigatórios (um grupo nominal e um grupo verbal) e de um grupo facultativo
(complemento nominal, preposicional ou adverbial). Assim, a partir desse modelo,
todas as frases sintáticas podem ser analisadas segundo o modelo da frase de base.
Finalmente, cumpre dizer que, na opinião de Halté (2004), a quarta gramática
francesa e suas noções de Frase, Texto e Discurso ainda não são opções consistentes
para substituir a gramática anterior, amplamente adotada no sistema escolar francês.
Segundo o linguista (ibid.), os conceitos trazidos pela última gramática escolar francesa
ainda balbuciam didaticamente, sendo que sua essência continua, pelo tratamento dessas
noções encontrados nos livros escolares, a aproximar-se do trabalho didático já
desenvolvido pela gramática tradicional. Há, portanto, uma gramática da frase, uma do

85
texto e uma do discurso, porém nenhuma delas muda fundamentalmente a maneira de se
trabalhar em sala : os fatos da língua continuam a ser concebidos somente em
perspectiva estrutural, cujo domínio é importante para a produção de textos coerentes.
Consoante ao pensamento de Halté (2004), julgamos tratar-se de uma concepção
relativamente modular, que decompõe as atividades linguísticas em três níveis distintos,
e busca relacionar as marcas particulares a cada um desses níveis. Para Combettes
(2000, p.222), « ce qui devrait être analysé, c´est l´apport éventuel de certaines
tendances de la recherche théorique, tant du côté des études sur le texte que de celui des
travaux de la syntaxe ».
Isso posto, passemos, então, a uma descrição dos documentos que norteiam as
publicações didáticas na França.

2.2.9 O Socle Commun de connaissances et de compétences

A França possui para questões de ensino, como mostraremos no item a seguir,


um programa governamental – Programmes - que determina, em grades de objetivos e
conteúdos pré-estabelecidos, diretrizes que buscam nortear os currículos e seus
conteúdos mínimos, de modo a assegurar uma formação básica comum.
Paralelamente a esse programa, foi criado em 11 de julho de 2006, fruto do
decreto nº 2006-830, o Socle Commun de connaissances et de compétences, documento
que define os conteúdos de ensino da escolaridade obrigatória na França. A passagem a
seguir ilustra a descrição do documento:

La scolarité obligatoire doit garantir à chaque élève les moyens nécessaires à


l'acquisition d'un socle commun de connaissances, de compétences et de
culture, auquel contribue l'ensemble des enseignements dispensés au cours
de la scolarité. Le socle doit permettre la poursuite d'études, la construction
d'un avenir personnel et professionnel et préparer à l'exercice de la
citoyenneté. Les éléments de ce socle commun et les modalités de son
acquisition progressive sont fixés par décret, après avis du Conseil supérieur
des programmes. (article L. 122-1-1 du code de l'éducation).

Sugerido pelo “Haut Conseil de l’Éducation55” o Socle commun é definido em


torno de sete competências, “ce que nul n´est censé ignorer em fin de scolarité

55
O “Haut Conseil de l’Education (HCE)” é composto de nove membros, dos quais: três designados pelo
presidente da República, dois pelo presidente do Senado, dois pelo presidente da Assembleia Nacional e
86
obligatoire”: o domínio da língua francesa; a prática de uma língua estrangeira viva; as
competências de base em matemática e cultura científica e tecnológica; o domínio das
técnicas usuais da informação e da comunicação; a cultura humanista; as competências
sociais e cívicas; a autonomia/iniciativa.
Ressalta-se que o documento não descreve a ambição máxima do sistema
educativo, além de não estabelecer nenhuma hierarquia entre as disciplinas. Sua
especificidade reside no desejo de dar sentido à cultura escolar fundamental,
constituindo elos indispensáveis entre os saberes.
De acordo com o documento, todas as disciplinas ensinadas na escola devem
estar à disposição da aquisição do Socle Commun já que cada competência demanda a
contribuição de diversas disciplinas e, reciprocamente, uma disciplina contribui à
aquisição de várias competências. A aquisição do Socle Commun trata, ainda, da
educação artística, cultural e esportiva, do percurso individual de informação, da
orientação de descoberta do mundo econômico e profissional e, por fim, da educação à
cidadania.
Para concluir, cabe também ao documento, por meio de seus conteúdos, definir-
se como o centro dos ensinos da escolaridade obrigatória: ele tem o poder de conferir
aos professores, aos alunos e a seus pais a possibilidade de se construir uma perspectiva
que ultrapasse a avaliação seguinte ou que busque outras propostas que superem o
sucesso escolar imediato.

2.2.10 Os documentos oficiais franceses: Les Programmes

Os programas nacionais, denominados Programmes, são um dos elementos mais


simbólicos do sistema educativo francês e de seu caráter centralizador. Sua origem data
de 1850 quando, com a lei Falloux, se definiu na França o programa escolar para a
escola primária. Os programas definem por nível de ensino o que deve ser ensinado em
cada disciplina em todos os estabelecimentos escolares públicos ou privados. Estão,
portanto, muito ligados às disciplinas que são, por sua vez, muito estáveis. Não há
nenhuma lei que fixe os conteúdos para um dado nível, o que faz com que a lista de

dois pelo presidente do Conselho Econômico e Social. Seu presidente e nomeado pelo presidente da
República dentre os nove membros.
87
conteúdos que constituem o corpo essencial do ensino dispensado nos estabelecimentos
escolares se construa de maneira um tanto frágil.
É com a aparição do Socle commun de connaissances et de compétences, este
definido por lei, conforme adiantado, que uma reforma nos Programmes visando a um
ajuste se fez necessária. Dessa maneira, em 28 de agosto de 2008, o Ministério da
Educação Nacional francês publicou uma versão atualizada do antigo programa em
vigor, intitulada Nouveaux Programmes, que não apresentou nenhuma novidade nos
domínios já apresentados (ensino do francês, ensino de matemática, ensino da física e
química, etc.), a não ser uma necessidade de adaptação ao Socle commun, como nos
assegura o boletim do Ministério:

Les programmes de français au collège contribuent à l’acquisition de


plusieurs grandes compétences définies par le socle commun de
connaissances et de compétences, notamment dans « La maîtrise de la langue
française » et « La culture humaniste », mais aussi dans « la maîtrise des
techniques usuelles de l’information et de la communication», « Les
compétences sociales et civiques » et « L’autonomie et l’initiative ».
(Bulletin officiel spécial nº 06 du 28 août 2008, p. 2).

A partir do texto publicado, percebemos que as palavras-chave das novas


diretivas são a interdisciplinaridade, a prática da língua e uma nova proposta de ensino
no que diz respeito à História da arte56.
Voltando um olhar ao programa de ensino do francês, que nos interessa
particularmente neste trabalho, percebemos que a organização dos Nouveaux
Programmes (2012) tem por objetivo satisfazer às exigências do Socle Commun,
estabelecer relações com outras disciplinas e manter uma articulação entre os domínios
de ensino do francês, ou seja, o estudo da língua, a leitura, a expressão escrita e a
expressão oral, além de um trabalho sobre a história da arte e as novas tecnologias da
informação e da comunicação (TIC). O aprendizado dos alunos, nos quatro anos
destinados ao ensino secundário (collège), está organizado a partir de cinco vertentes:

56
A entrada da História da arte nos programas franceses se deu mediante a uma relativa pressão dos
historiadores da arte, constatada a falta de conhecimentos da nova geração francesa no domínio artístico.
No anos 1960, houve uma tentativa frustrada de se criar um exame de agregação na área de História da
arte para o ensino secundário; na mesma época, porém, houve também o desejo de se criar um exame de
agregação na área das Artes plásticas, o que terminou por prevalecer. Há uma década, amparada pelo
diretor geral do Museu do Louvre Pierre Rosenberg, a questão voltou à tona e, em virtude da pressão
exercida, o então ministro da educação Luc Chatel determinou a introdução do estudo da História da arte
no ensino secundário de forma pluridisciplinar, devendo ser trabalhada tanto na disciplina de história
quanto no ensino do francês.
88
um trabalho sobre a língua francesa nos campos da gramática, ortografia e léxico, um
trabalho literário sobre as diferentes épocas, uma iniciação ao estudo dos gêneros e das
formas literárias, um olhar sobre o mundo, sobre si e sobre o outro em relação à história
da arte e uma prática constante, variada e progressiva da escrita. Trataremos aqui das
três primeiras questões, por julgá-las mais adequadas às nossas futuras análises. Não
deixaremos, contudo, de recorrer a algum tópico não explicitado, se a necessidade se
impuser.
A primeira vertente diz respeito à prática, ao domínio e à análise da língua
francesa (gramática, ortografia e léxico). Apresentando aqui apenas a questão
gramatical, embora façamos uso em nossas análises dos outros componentes,
percebemos um retorno robusto da análise gramatical acompanhada de questões
terminológicas, já que a visão global do documento é a de que ensinar a gramática no
ensino secundário é levar o aluno a compreender os mecanismos da língua, a dominar a
terminologia que serve para identificá-los e a analisá-los; os termos gramaticais (sujeito,
verbo, complemento, oração principal, pronome relativo, etc.) constituem índices
comuns na consciência da língua, devendo, por conseguinte, ser cuidadosamente
explicados para que sejam sistematicamente adquiridos.
Segundo o documento, os conhecimentos gramaticais aprendidos em francês
servem também ao aprendizado de outras línguas, o que nos faz pensar que se
perpetuam as mesmas concepções sobre o ensino de língua da época de Lhomond, no
século XVIII, com as primeiras gramáticas latinas que serviam de base ao ensino do
francês: a visão de ensino de língua apoiado na vertente normativa da gramática, e
auxiliado pelo estudo da terminologia ainda aparece nos textos propostos pelos
franceses do século XXI. Outro fator que corrobora nossa ideia é o fato de o documento
prever que as aulas consagradas ao estudo da língua sejam conduzidas segundo uma
progressão metódica que pode, por vezes, não estar intrinsicamente ligada aos outros
componentes do ensino do francês.
Ainda sobre o estudo da gramática, os novos programas determinam que, no
ensino secundário, privilegie-se a aprendizagem da gramática da frase e que, a partir do
8o ano (quatrième), algumas contribuições da linguística sejam introduzidas, desde que
sejam expressas em termos simples e claros e definam fatos da língua nos quais a
compreensão é primordial, como a coerência textual e a enunciação. É assim que
encontramos, portanto, no programa destinado ao 9o ano (troisième), a recomendação de

89
que se faça uma iniciação à gramática do texto (retomada anafórica, tema e rema,
estruturas de ênfase) e à gramática da enunciação (os embreantes 57, os modalizadores,
os implícitos). Combettes (2004, p. 27), ao analisar os novos programas franceses,
conclui que as evoluções sucessivas que o ensino do francês sofreu após o “Plan de
énovation” da década de 70, com a entrada dos estudos do texto e do discurso, não
modificaram em nada o domínio da sintaxe, cujas noções e métodos continuam os
mesmos das gramáticas anteriores, como vemos em suas palavras: “la grammaire de la
phrase, qui ne semble pas affectée par ces innovations, demeure une fois encore sans
changement”. Conclui o autor que as inovações e evoluções teóricas trazidas pelas
ciências da linguagem para a escola (sintaxe, morfologia, semântica, pragmática, etc.)
se encontram normalmente bem integradas à prática escolar, sobretudo quando se trata
de questões sobre o texto ou sobre o discurso, mas a introdução dessas novas noções
parece bloquear, de alguma maneira, qualquer modificação de conteúdo referente à
gramática da frase, limitada a objetivos particulares e considerada como um módulo
independente.
A segunda vertente está relacionada à terceira e trata do ensino literário, que
deverá acompanhar um desenvolvimento histórico claramente definido nos quatro anos
do ensino secundário: na “sixième”( 6o ano do ensino fundamental), o trabalho sobre a
Antiguidade; na “cinquième” ( 7o ano do ensino fundamental), a Idade Média, o
enascimento e o século XV ; na “quatrième” (8o ano do ensino fundamental),
trabalham-se os séculos XV e X X; na “troisième” (9o ano do ensino fundamental),
os olhares se voltam aos séculos XX e XXI. Essa progressão tem por objetivo iniciar os
alunos na história literária e fornecer índices aos alunos sobre a cultura humanista, que
será apresentada posteriormente no ensino médio (lycée). Isso explica o fato de o livro
didático francês, segundo os Nouveaux Programmes (2012), apresentar em todas as suas
lições textos literários como ponto de partida para o trabalho da leitura, da escrita e, por
vezes, da gramática, como poderemos acompanhar nas futuras análises. Pensa-se, ainda,
que o respeito ao quadro apresentado assegura a coerência entre o ensino de francês e de
história, o que torna possível a elaboração de trabalhos e atividades interdisciplinares.
No trabalho sobre a leitura, os programas franceses expressam seu desejo de que
se institua uma cultura humanista, que o meio social e mediático contínuo do aluno não
será capaz de construir. O ensino do francês deverá, dessa maneira, oferecer aos alunos

57
Traduzimos com “embreantes” o conceito da teoria da enunciação chamado embrayeurs.
90
os elementos de uma cultura necessária à compreensão de obras literárias,
cinematográficas, musicais e plásticas. Percebe-se, nesse momento, uma relação
interdiscursiva com o Socle commun, que preconiza que os alunos sejam preparados a
compartilhar uma cultura europeia por meio dos textos mais importantes da
Antiguidade: a Ilíada e a Odisséia, a Bíblia e algumas histórias da fundação de Roma.
Solicita-se aos alunos que leiam e estudem obras literárias, sem, no entanto, estabelecer
um número de obras ou de passagens que devem ser lidas no decorrer de cada etapa.
Segundo o documento, ao entrar em contato com obras literárias, o aluno
aprende, por um lado, a situá-las em um contexto histórico e cultural e, por outro, a
analisá-las em função dos gêneros literários e das formas as quais elas pertencem. Em
nossa opinião, isso serve para que o aluno possa apreender de maneira viva as relações
interdiscursivas e intertextuais que as obras mantêm umas com as outras através dos
tempos. Pede-se, por fim, que a leitura de imagens, fixas ou animadas, seja prática
corrente nas aulas, visto que elas contribuem igualmente à fundação de uma cultura
humanista. As imagens, na ótica do documento, favorecem a compreensão das obras
literárias estudadas, afinando, assim, a percepção dos contextos históricos e culturais.
Por intermédio das atividades de leitura, os alunos franceses são expostos também ao
teatro antigo e contemporâneo (Shakespeare, Sófocles, Ionesco, Anouilh, Camus, etc.).
No centro de todas as preocupações pedagógicas para todos aqueles que ensinam
o francês está a prática da expressão escrita. Segundo os Nouveaux Programmes (2012),
é por meio de uma prática regular, contínua e variada da escrita que os alunos poderão
adquirir uma consciência clara de sua língua, um conhecimento preciso e vivo de seu
funcionamento, de seus modos de produção e de seus efeitos, além de verem
despertados o gosto e o prazer de escrever. De acordo com o texto, toda análise literária
de textos demanda, em seu término, atividades de escrita, que podem vir a ser: um
resumo ou reformulação de um texto lido ou de uma explicação dada, a criação de
começos ou de finais de texto, a continuação de um texto a partir de um começo já
dado, as imitações, as inserções, as transformações a partir de um dado exemplo ou
qualquer outra atividade que permita uma percepção mais fina e pessoal do texto.
Algumas dessas atividades elencadas também podem fazer parte de uma progressão, de
um projeto coletivo ou individual e solicitam, dessa maneira, um trabalho paciente,
continuo e reflexivo, durante o qual algumas correções serão efetudas, sobretudo as que
tratam das questões de coerência, de respeito aos enunciados, da ortografia, da sintaxe e

91
do léxico.
Novidade dos novos programas, um trabalho sobre a história da arte se
apresenta, com vistas a enriquecer a cultura pessoal do aluno. A história da arte está
diretamente relacionada ao estudo de textos. Seu ensino deverá, por conseguinte,
facilitar a leitura e a compreensão de certas obras literárias, uma vez que ele propõe um
tratamento didático específico no que diz respeito às funções, às formas e aos gêneros
dessas obras.
Um último ponto relativo ao trabalho com a história da arte que gostaríamos de
ressaltar é o fato de a disciplina poder se definir como ponto de partida para trabalhos
interdisciplinares, estando o seu ensino articulado às grandes áreas e às temáticas que se
constituem como pontos de encontro e de convergência de muitas disciplinas ao mesmo
tempo. No último ano do ensino secundário (troisième), o aluno deverá ser capaz de
situar uma obra literária em um contexto histórico e cultural, associando, assim, a
literatura ao seu meio estético. Ele deverá também estar apto a perceber as relações
intertextuais que essas obras possuem entre elas em uma determinada época.

2.2.11 O brevet des collèges

O diploma nacional do brevet é um documento que visa a atestar o domínio do


conteúdo proposto pelo Socle commun de connaissances et de compétences pelos alunos
no final do ensino fundamental II, denominado collège na França. Ele não condiciona,
no entanto, o acesso a uma etapa escolar superior, caracterizando-se, portanto, como um
exame essencialmente pedagógico. Criado em 1947, o exame passa por várias
modificações até que, em 1988, sua deliberação passa a ser por um exame em nível
nacional com a criação do diploma nacional do brevet para três segmentos educacionais
diferentes: o ensino fundamental II (collège), o ensino tecnológico e o ensino
profissional.
O exame, anônimo, é corrigido pelos professores que ministram aulas no ensino
fundamental II (collège) da cidade no qual é aplicado, porém é terminantemente
proibido que os professores corrijam as provas aplicadas na escola em que trabalham,
havendo, portanto, um rodízio entre as escolas. O conteúdo avaliado versa sobre sete
disciplinas: francês, matemática, história, geografia, educação cívica e, a partir de 2011,
informática e história da arte.
92
Quatro elementos são levados em conta para a obtenção do diploma: o domínio
das competências sugeridas pelo Socle commun de connaissances et de compétences; as
notas obtidas no próprio exame do brevet, composto de uma prova oral de história da
arte (coeficiente 2) e três provas escritas: francês (coeficiente 2), matemática
(coeficiente 2), história-geografia-educação cívica (coeficiente 2); as notas obtidas ao
longo do último ano escolar (troisième), em todas as disciplinas, salvo história-
geografia-educação cívica; a média das notas de todo percurso escolar do aluno.
Para serem considerados aprovados, os candidatos devem obter uma média geral
igual ou superior a 10, sendo seu valor total igual a 20 pontos. A partir de 2006, o
exame passa a atribuir menções: razoável (média entre 12 e 14), bom (média entre 14 e
16) e muito bom (média acima de 16).
Ressalta-se, por fim, que o exame não é apenas destinado aos alunos do ensino
fundamental II (collège) francês. Um candidato adulto que se interesse também pode se
inscrever para a obtenção do diploma, porém suas provas serão avaliadas com outros
coeficientes58.

58
Para maiores esclarecimentos sobre o diploma nacional francês, consulte:
https://eduscol.education.fr/cid46835/organisation-et-modalites-d-attribution.html
93
3. OS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA
FRANCESA: ANÁLISE DE CORPORA

Nenhum discurso é inocente – Roland Barthes

Neste capítulo, examinaremos os dois livros didáticos que se constituem como


material de análise do presente trabalho: Português Linguagens 9o ano (Cereja &
Magalhães, 2010a) e Fleurs d’encre 3e (Bertagna & Carrier, 2012a). Como já explicado
na Fundamentação Teórica (cf. CAPÍTULO 1), escolhemos como teoria de base para a
análise dos dados a Semiótica discursiva de linha francesa. Recorremos, também, para
tratar de questões como os gêneros discursivos59, às propostas bakhtinianas,
semiotizando-as. Num segundo momento, serão utilizados, também, elementos teóricos
tratados na esteira dos estudos situados no campo da Análise do discurso de linha
francesa (Maingueneau, 1995, 1997a, 1997b, 2001, 2008), no âmbito da Didática da
língua materna (Simard, Dufays, Dolz, Garcia-Deblanc, 2010), e no campo da História
das ideias linguísticas. (Barros, 2007, 2010, 2011; Leite, 2005).
As análises das obras foram efetuadas separadamente, contudo optamos por
apresentá-las em um mesmo capítulo graças à relativa regularidade obtida por meio dos
critérios estabelecidos para o exercício analítico. Dessa maneira, para cada um dos
livros analisados, procedemos de duas maneiras distintas, a saber: em um primeiro
momento, efetuamos uma análise dos aspectos gerais do livro didático em questão.
Nessa etapa, foram avaliados os aspectos que concernem à apresentação geral do
manual didático, que entendemos como organização das unidades, organização dos
capítulos e análise dos aspectos gráfico-editoriais. Em um segundo momento, ao
analisarmos uma unidade de cada uma das obras, trouxemos, à luz das teorias eleitas

59
Na perspectiva bakhtiniana, entende-se por gêneros discursivos “tipos relativamente estáveis de
enunciados que emanam duma ou outra esfera comunicativa” (Bakhtin, 2006, p. 232). Os seres humanos
agem em determinadas esferas de atividades (escola, igreja, política, etc.) e essas esferas implicam a
utilização da linguagem na forma de enunciados. Como não se produzem enunciados fora de uma esfera
de ação, cada esfera elabora seus tipos relativamente de estáveis de enunciados. Os gêneros são, pois,
tipos de enunciados caracterizados por um conteúdo temático (domínio de sentido de que se ocupa o
gênero), uma construção composicional (modo de organizar o texto) e um estilo (seleção de certos meios
lexicais, fraseológicos e gramaticais em função da imagem do interlocutor e de como se presume sua
compreeensão responsiva ativa do enunciado). Bakhtin (2006) divide os gêneros em primários e
secundários. Aqueles são os gêneros da vida cotidiana (e-mail, bilhete, conversa telefônica, etc.). Estes
pertencem à esfera de comunicação mais elaborada (o editorial, o sermão, o romance, etc.). Segundo
Fiorin (2008), a falta de domínio do gênero é a falta de vivência de determinadas atividades de certa
esfera. . Falamos e escrevemos por gêneros, logo, aprender a falar e a escrever é, antes de tudo, aprender
gêneros.
94
para a análise, reflexões situadas no âmbito das práticas de linguagem, com um olhar
voltado aos limites discursivos, enunciativos, históricos e didáticos dos livros escolares
em questão.
Esclarecemos, por fim, que nosso material de análise foi o livro do aluno e que,
quando necessário, fizemos uso do manual do professor, o que será oportunamente
sinalizado.

3.1 Organização fundamental e narrativa geral do livro didático para o ensino de


língua materna

O objetivo deste item é fazer uma apresentação geral do nível narrativo dos
livros didáticos com os quais nos propomos a trabalhar. Posicionamo-nos
metodologicamente dessa maneira, visto que esta apresentação é idêntica tanto para o
livro didático de língua portuguesa, quanto para o livro didático de língua francesa,
ambos destinados ao ensino de língua materna. Ao final dela, trataremos das
especificidades de cada um dos livros didáticos cotejados.
Os discursos analisados foram examinados em três momentos distintos: as
relações entre destinador e destinatário; a análise da narratividade dos discursos; as
estratégias - em boa parte do nível discursivo - utilizadas como mecanismos de
persuasão pelo destinador-manipulador. Optou-se por analisar, neste trabalho, os
discursos-enunciados cuja responsabilidade é dos autores, vistos como
destinadores/enunciadores. Assim, não trataremos da narratividade e da discursividade
dos textos incluídos no livro, mas somente daquela referente às relações entre o
destinador/enunciador e o destinatário/enunciatário.
No entanto, como estamos considerando o livro didático um discurso temático
de figurativização esparsa, os textos incluídos para o desenrolar do processo de ensino-
aprendizagem serão examinados quando necessário, principalmente por se tratarem de
textos figurativos, como os textos literários, o texto publicitário, as histórias em
quadrinhos, etc., o que entendemos como outra estratégia do destinador visando à
persuasão do destinatário.
Não deixaremos também de observar que se os livros didáticos dos dois países
apresentam um mínimo de variações em sua narratividade, o mesmo não se dá em
relação aos saberes e às estratégias discursivas postas no enunciado. Dessa maneira,
95
observaremos tanto como esse saber, tematizado de forma diversa no Brasil e na França,
se constrói, quanto ao uso de estratégias discursivas, das quais se serve o destinador-
manipulador na tentativa de persuadir o destinatário e que trazem consigo valores e
diferenças culturais.
Entende a semiótica que no nível narrativo - concretizado no nível discursivo –
estabelece-se um contrato entre destinador e o destinatário. Nessa relação, ocorre o
percurso da manipulação, ou seja, um saber persuasivo no qual o destinador lança mão
de variados procedimentos persuasivos que podem ser tanto aceitos quanto rejeitados
pelo destinatário, levando em conta sempre o contrato proposto. O que importa é o
esforço empregado pelo destinador na tentativa de convencer o destinatário (fazer-crer)
para, em seguida, levá-lo ao fazer-fazer. O destinador, na tentativa de levar o
destinatário a fazer alguma coisa, tenta persuadi-lo, levando-o a querer ou a dever-fazer,
a poder ou a saber-fazer.
O enunciado elementar da sintaxe narrativa caracteriza-se pela relação entre dois
actantes, o sujeito e o objeto. (cf. BARROS, 2008). Na sintaxe narrativa há dois
enunciados elementares: enunciados de estado e enunciados de fazer. Tratemos desses
casos.
Os enunciados de estado estabelecem uma relação de junção (conjunção ou
disjunção) entre o sujeito e um objeto. O livro didático apresenta, portanto, um
programa narrativo de base em que um destinador leva o destinatário a querer e dever
entrar em conjunção com um objeto de valor, aqui sobremodalizado pelo saber.
Percebemos uma relação inicial de disjunção do destinatário com este saber; essa
situação, no entanto, caminha para um final conjunto, uma vez que o destinatário, ao
fazer o que o destinador propõe no livro didático, deve, por fim, adquirir o valor que lhe
é oferecido. Este é, portanto, o programa narrativo de base, em que se representa esse
espetáculo do fazer didático encontrado nos livros didáticos para o ensino de língua
materna.
Recuperando Fiorin (2009), é preciso lembrar que os textos não são narrativas
mínimas, visto que neles se encadeiam hierarquicamente uma série de enunciados tanto
de fazer quanto de ser (de estado). Assim, essa narrativa complexa está estruturada em
uma sequência canônica, que compreende quatro fases: a manipulação, a competência, a
performance e a sanção. (cf. CAPÍTULO 1). A seguir, apresentaremos como isso se dá
no discurso com o qual trabalhamos.

96
Em um livro didático, um destinador manipula um destinatário e age sobre ele
para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa. Seduzindo-o, tentando-o e até
mesmo intimidando-o, busca fazer com que o destinatário queira e deva entrar em
conjunção com os saberes que lhe são fornecidos e com os modos de construção desses
saberes. Esse destinatário, discursivizado como o aluno, bem como o destinador,
discursivizado como livro didático, constroem, diariamente, uma competência
específica: pelo reconhecimento, compra-se e vende-se o livro didático, interagindo,
pois, destinador e destinatário. Aquele constrói o que deve e pode tornar-se objeto de
desejo, visto que acaba por suprir algo que falta; este, ao entrar em conjunção com tal
objeto, objetiva suprir sua própria falta. Trata-se, a nosso ver, de uma competência
renovada diariamente, pressuposta e trocada nas relações diárias da sala de aula. Um
certo saber é construído, portanto, reforçado por um querer-saber, que, posteriormente,
funde-se num querer-ser, tudo construído nesse enunciado único.
Pressupõe-se, nesse enunciado, a realização plena de um sujeito manipulado,
numa performance aparentemente bem sucedida. Trata-se do aluno que estuda pelo
livro didático e sofre, então, uma sanção cognitivo-pragmática: toma conhecimento do
conteúdo que lhe é transmitido pela obra e recebe, assim, o saber, que lhe torna
competente para passar de um estado de ignorância, estaticidade, continuidade a um
estado de conhecimento, ruptura e dinamicidade. (cf. BARROS, 2002a, p.21).
A narratividade do gênero discursivo livro didático para o ensino de língua
materna dá-se, no nível mais profundo do percurso gerativo de sentido, ou seja, aquele
das relações fundamentais, por uma relação categorial básica. Investindo o quadrado
semiótico com as categorias semânticas do livro didático para o ensino de língua
materna, tem-se uma oposição de significado continuidade vs. ruptura, como ilustra a
imagem a seguir:

Continuidade ---------------------------- Ruptura

Não ruptura ----------------------------Não continuidade

Quadro 7: Quadrado semiótico

97
Analisando o quadrado semiótico exposto, sabemos que os elementos em
oposição transformam-se em valores. Percebemos, então, que a negação da primeira
oposição de significado resulta na sabedoria e que a negação da segunda, na ignorância,
resultando duas dêixis que se opõem: ignorância / não ignorância vs. sabedoria / não
sabedoria. Todos os livros didáticos, invariavelmente, possuem a mesma categoria
semântica: repelem a ignorância e corroboram o conhecimento. Parece-nos um
comportamento inerente a esse gênero discursivo.
Parte-se, dessa forma, do pressuposto que nos livros didáticos brasileiros e
franceses há uma variação do que seja a sabedoria e a ignorância e, automaticamente,
do saber. Entendemos que o que se configura como saber necessário em uma cultura
pode não necessariamente se configurar da mesma forma na outra cultura, o que nos
leva, enfim, a investigar quais são os saberes difundidos pelo livro didático na França e
aqueles que se apresentam no livro didático no Brasil.
Entendidas algumas questões gerais que repousam sobre o nível fundamental e
narrativo do gênero discursivo livro didático para o ensino de língua materna,
vislumbremos, a seguir, uma análise mais detalhada de Português Linguagens 9º ano
(2010a) e de Fleurs d´encre 3e (2012a), sobretudo, das pequenas variações de
narratividade encontradas nos dois livros didáticos, dos diferentes saberes disseminados
pelas obras e das estratégias de persuasão utilizadas pelo destinador (enunciador, no
nível discursivo) na relação que estabelece com o destinatário (enunciatário, no nível
discursivo) durante a situação de interação.

3.2 O livro didático Português Linguagens 9º ano (2010a): apresentação geral

O livro Português Linguagens 9o ano (2010a)60, em sua 6a edição, está


organizado em quatro unidades que, por sua vez, estão subdivididas em quatro
capítulos. Cada unidade da obra apresenta temas preconizados tanto pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), quanto temas transversais, que, segundo o livro do
professor, estão adequados à faixa etária dos alunos. Assim, encontramos os seguintes
temas das unidades: Valores, Amor, Juventude e Nosso tempo. Dentro da unidade
nomeada Valores, os quatro capítulos que a compõem se denominam: O preço de estar

60 Cf. Anexo 1
98
na moda, O olhar dos outros, A dança das gerações e Intervalo. No capítulo Intervalo,
último de cada uma das unidades, se desenvolvem projetos que deverão ser executados
por toda a classe, segundo indicação do livro destinado ao professor. (cf. CEREJA &
MAGALHÃES, 2010b). A unidade Amor desenvolve-se em capítulos intitulados A
conquista do amor impossível, O milagre do amor, O outro: um outro amor. A unidade
Juventude está organizada em capítulos nomeados A permanente descoberta, A
primeira vez e O sentido das coisas. Por fim, a unidade denominada Nosso tempo se
desenrola por dentre os seguintes capítulos: Ciranda da indiferença, Cidade sitiada, De
volta para o presente.
Cada unidade da obra possui duas páginas de abertura que se organizam de dois
modos distintos. A primeira parte contém uma imagem artística (fotografia, pintura,
história em quadrinhos, ilustrações, etc.) e pequenos textos vinculados à imagem de
abertura ou ao tema da unidade. Em seguida, a seção Fique ligado! Pesquise! tem por
objetivo propor atividades que, dentro ou fora da sala de aula, levarão os alunos a
pesquisar, ler, assistir a filmes, navegar pela internet, entre outros. A segunda parte da
abertura apresenta uma seção nomeada De olho na imagem que, segundo o manual do
professor (cf. CEREJA & MAGALHÃES, 2010b), se destina à leitura de linguagens
não verbais com o objetivo de ampliar o horizonte de atuação do aluno nessa
modalidade de linguagem, ampliando, portanto, seus referenciais culturais e sua leitura
de mundo. A atividade parece ter por objetivo a leitura de imagens produzidas em
linguagens variadas como a fotografia, a pintura, a publicidade, o cartum, entre outros.
As unidades fecham-se por um capítulo denominado Intervalo. Esse capítulo
contém um projeto, como por exemplo: realizar uma mostra de livros, confeccionar um
jornal, confeccionar um livro, criar um varal de poesia, representar de forma teatral
textos criados pelos alunos, realizar seminários, debates, exposições, etc. Todas essas
produções devem levar o aluno à retomada e ao aprofundamento do tema trabalhado na
unidade e, segundo Cereja & Magalhães (2010, p.3), o capítulo é “organizado de
maneira a “quebrar” a estrutura do próprio livro e do andamento das aulas”. Segundo os
autores, com essa quebra, busca-se propiciar ao aluno momentos de socialização,
vivência lúdica dos conteúdos e desenvolvimento de outras formas de expressão.
Os capítulos que compõem as unidades estão organizados em seis seções, a
saber: Estudo do texto, Produção de texto, Para escrever com
adequação/coerência/coesão/expressividade, A língua em foco, De olho na escrita e

99
Divirta-se. A seção Estudo do texto, por sua vez, está subdividida em seis partes,
algumas das quais facultativas: Compreensão e Interpretação, A linguagem do texto,
Leitura expressiva do texto, que pode apresentar como subdivisões as partes Cruzando
linguagens, Trocando ideias e Ler é.
A seção destinada à produção de textos subdivide-se em suas partes: uma
primeira que busca tratar o conteúdo do ponto de vista teórico, ou seja, parte-se da
observação de um texto que pertença a determinado gênero e trabalham-se, na
perspectiva dos gêneros discursivos pelo viés bakhtiniano, suas especificidades relativas
ao tema, ao conteúdo composicional (estrutura) e ao estilo. Segue a esse trabalho uma
parte denominada Agora é sua vez, voltada à produção textual do aluno e desenvolvida
conforme uma ou mais propostas que permitam a aplicação dos aspectos teóricos
desenvolvidos.
A seção Para escrever com adequação/coerência/coesão/expressividade, nem
sempre presente em todas as unidades, quando proposta tem por objetivo tratar de
assuntos variados ligados à textualidade e ao discurso. Seu título, na verdade, varia de
acordo com a natureza do objeto estudado, uma vez que pode abordar assuntos como
avaliação apreciativa e recursos gráficos, grau de informatividade, etc. (escrever com
adequação), estudar os aspectos expressivos da língua, como, por exemplo, o discurso
direto, indireto e indireto livre (escrever com expressividade) ou enfocar aspectos da
textualidade, tais quais a coerência, a coesão, a conectividade, entre outros (escrever
com coesão e coerência).
A língua em foco, por sua vez, busca apresentar o conteúdo gramatical
desenvolvido nas unidades. Esta parte apresenta algumas subdivisões: construindo o
conceito, conceituando, na construção do texto e semântica e discurso. O objetivo da
seção é levar o aluno a construir o conceito gramatical por meio de um conjunto de
atividades que envolvem práticas de leitura, observação, comparação, análise e
inferências.
A seção De olho na escrita aborda questões relativas a problemas notacionais da
língua, como a ortografia e a acentuação. Embora não apareça em todos os capítulos,
seu objetivo principal é levar o aluno a desenvolver uma atividade pedagógica sobre um
determinado assunto, inferir regras e colocá-las em prática.
Fechando cada capítulo, a seção Divirta-se propõe atividades lúdicas que
buscam estimular o raciocínio do aluno. Ressalta-se, por fim, que o livro didático

100
Português Linguagens 9º ano (2010a) vem acompanhado de um DVD de gêneros orais,
que pretende apresentar aos alunos gêneros extraídos da mídia ou do meio artístico, tais
como a notícia de rádio, a reportagem televisiva, o anúncio publicitário, o texto teatral,
entre outros. Nessa direção, encontram-se, no livro do professor, sugestões dos autores
sobre como utilizar o DVD em sala de aula.
Apresentada a estrutura geral da obra, passemos a uma análise enunciativo-
discursiva da obra Português linguagens 9º ano (2010a), de acordo com a base teórica
escolhida.

3.3 Estratégias de manipulação no livro didático Português Linguagens 9º ano


(2010a)

Neste item, apresentaremos os resultados das análises do texto de apresentação e


o capítulo 1 da unidade 2 do livro didático Português Linguagens 9º ano (2010a),
segundo a teoria semiótica. Fez-se a escolha da unidade em questão pelo fato de se
procurar unidades, tanto no livro didático brasileiro quanto no livro didático francês, de
conteúdos que fossem similares, no caso, o discurso indireto.
Como já salientado (cf. CAPÍTULO 1), a semiótica greimasiana vê os textos
como narrativas, em que dois tipos de enunciados elementares - de fazer e de ser - estão
organizados de forma hierárquica. Uma narrativa apresenta, portanto, uma sequência
canônica, que compreende quatro fases: a manipulação, a competência, a performance e
a sanção.
Neste trabalho, examinaremos prioritariamente o percurso da manipulação, por
entendermos que o gênero discursivo livro didático para o ensino de língua materna é,
na verdade, um discurso cujo principal objetivo é levar o outro a fazer certas coisas; não
se trata, porém, de qualquer fazer, mas de um fazer explicitado, advindo dos exercícios,
das propostas de trabalho dentro de determinada metodologia de ensino, da reflexão
gramatical, etc. que a obra apresenta. Constrói-se também, nesse caso, o percurso da
ação, ou seja, o que se espera do sujeito para que ele possa adquirir o saber oferecido
pela obra e passar, assim, de um estado de disjunção com o objeto-valor saber para um
estado de conjunção com o mesmo.
O livro didático Português Linguagens 9º ano (2010a) relata, então, no nível
narrativo, a história de um sujeito, figurativizado no nível discursivo tanto pelo aluno
101
quanto pelo professor - é natural no gênero didático essa bipartição do destinatário -
que, por sua vez, é manipulado por outro sujeito, figurativizado pelos autores. O
percurso da manipulação apresenta um destinador que propõe um contrato ao
destinatário, tendo por objetivo alterar sua (do destinatário) competência e levá-lo a
fazer algo. O destinador-manipulador é aquele que determina os valores que serão
visados pelo sujeito, bem como o valor atribuído a esses valores, como está em Barros
(2002a, p. 37). Deve o destinatário, então, exercer seu fazer interpretativo e crer ser
verdadeiro tanto o destinador-manipulador, quanto o discurso apresentado.
Podemos resumir o que dissemos anteriormente da maneira que se segue: existe,
no livro didático para o ensino de língua materna, um núcleo invariante bem abstrato e
super estável que se traduz da seguinte forma: há um destinador que manipula um
destinatário, bipartido em aluno e mestre (mais o aluno do que o mestre) para que estes
queiram e devam entrar em conjunção com o conhecimento sobre o idioma. A priori,
todos conhecem o idioma, porém, o que o aluno vai buscar é o conhecimento, vai
procurar o saber, que, por sua vez, traduz-se por um objeto modal. A semiótica concebe
a narrativa como uma mudança de estados, “operada pelo fazer transformador de um
sujeito que age no e sobre o mundo em busca de valores investidos nos objetos”, explica
Barros (2008, p. 16).
Embora existam, segundo a teoria semiótica, quatro grandes tipos de figuras da
manipulação (provocação, sedução, intimidação, tentação), em Português Linguagens
9º ano (2010a) a manipulação exercida pelo destinador se dá, sobretudo, por meio das
estratégias de sedução, tentação e intimidação, misturando, dessa maneira, uma
manipulação pelo saber, relacionada ao primeiro caso, com uma manipulação pelo
poder, referente ao segundo e terceiro casos. Ressalta-se que as manipulações por
sedução e tentação são consideradas positivas, enquanto a intimidação é uma forma de
manipulação negativa.
Dessa forma, trataremos, em primeiro lugar, das manipulações consideradas
positivas para, em seguida, analisarmos a negativa.

3.3.1 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por sedução e tentação

Neste item, apresentaremos as análises relativas às estratégias de manipulação


propostas pelo destinador/enunciador ao destinatário/enunciatário com vistas a
102
convencê-lo a aceitar a persuasão imposta. Trataremos, por um procedimento
metodológico, primeiramente das estratégias de manipulação por sedução e tentação no
discurso Português Linguagens 9º ano (2010a). Em seguida, analisaremos a
manipulação por intimidação, embora tenhamos plena consciência de que, por vezes, é
praticamente impossível separar as estratégias, visto que os discursos misturam e
confundem os tipos de manipulação, e isso se explica pela organização e encadeamento
do percurso do destinador-manipulador.
Sedução e tentação são estratégias apresentadas pelo quadro aplicativo padrão da
semiótica discursiva para que o destinador-manipulador leve o destinatário-manipulado
a uma situação de não poder deixar de cumprir o contrato estabelecido. Na estratégia de
sedução, o destinador manifesta um saber-fazer e o destinatário um querer-fazer. Por
meio de elogios e de enaltecimento, o destinatário-manipulado se vê numa situação em
que qualquer sinal de recusa à manipulação significaria abrir mão de todas as qualidades
que lhe foram atribuídas. Essa estratégia pode ser claramente depreendida do texto de
apresentação de Português Linguagens 9º ano (2010a), no qual se diz do sujeito-aluno,
de forma explícita, o que se sabe de sua competência, como podemos ver a seguir:

103
Imagem 9: Texto de apresentação – Português Linguagens 9º ano

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 03.

No discurso do manipulador-destinador, por um julgamento de competência


positivo do sujeito-aluno manipulado, estabelece-se uma manipulação por sedução. Por
meio de uma apresentação lisonjeira, exaltam-se, positivamente, as qualidades do
sujeito-aluno que, por sua vez, se deixa ou não manipular. No caso dos livros didáticos,
o primeiro caso parece ser o mais comum. Leva-se, portanto, o aluno ao querer-fazer,
visto que, para manter a imagem que lhe é conferida pelo destinador, o destinatário
realizará o que lhe é proposto.

104
Misturam-se às estratégias de sedução impressas no discurso-enunciado pelo
manipulador-destinador, estratégias de tentação, já que são oferecidos valores desejados
pelo destinatário, como o aprimoramento da capacidade de interagir com as pessoas e
como o mundo em que vive, o livre trânsito entre as linguagens, a imersão no mundo da
internet, a partir do qual se criam possibilidades de se procurar outros saberes, encontrar
jovens de outras terras para conversar, etc. (ibid., p.03). A manipulação por tentação,
embora positiva como aquela por sedução, é o domínio em que o destinador demonstra
um poder-fazer, e o destinatário um querer-fazer. O manipulador mostra seu poder e
propõe ao manipulado uma recompensa de algum modo irrecusável, objetos de valor
cultural positivos, como os anteriormente elencados.
No entanto, o manipulador não vive apenas de saber e de poder, mas também de
ser e de fazer-ser, num jogo de verdade, ou melhor, efeito de verdade, compartilhado,
de maneira cúmplice, pelo aluno e pelo professor. Dessa maneira, o sujeito manipulador
tem por objetivo fazer o outro ser, tornando-o sujeito do conhecimento. Assim, além do
valor primordial – o saber -, oferecem-se ao destinatário-aluno, por sedução e/ou
tentação, outros valores positivos ligados ao saber, por meio de estratégias diferentes.
Além das estratégias puramente narrativas encontradas na relação entre destinador e
destinatário no discurso analisado, outras estratégias que levam o sujeito a querer,
prioritariamente discursivas, também compõem o percurso da manipulação por sedução
e por tentação em Português Linguagens 9º ano (2010a). Um caso desses valores
positivos ligados ao saber é o que descreveremos a seguir; os outros casos serão
descritos adiante quando tratarmos dos temas e das figuras do discurso.
A questão estética, associada, sobretudo, à “beleza” dos textos escritos na
norma-padrão (prescritiva) é um valor oferecido pelo manipulador-destinador que pode
ser considerado como uma das estratégias de manipulação utilizadas no discurso. Se
tomarmos com ponto de partida a modalidade do querer, aquela em que o manipulador
leva o sujeito a querer fazer algo, observaremos que o querer (tanto ser quanto fazer)
cria no destinatário-aluno o desejo de “bem” falar e “bem” escrever a língua portuguesa,
em sua norma-padrão, no entanto, definindo-a como um objeto de desejo (modalizado
pelo querer-ser) e imprescindível (modalizado pelo dever-ser). Trata-se, portanto, de
definir um determinado uso como de prestígio. Lembremos que Leite (2005) explica
que a norma-padrão culta é a variante de maior prestígio social na comunidade e que,

105
dominá-la, portanto, significa inserir-se em um grupo social de pessoas cultas, cujo
padrão cultural é mais elevado.
A competência modal do sujeito pelo querer parece constituir uma condição
prévia virtual da produção de enunciados de estado (ser). É dessa modalidade que
decorrem as paixões simples, como o desejo, anseio, ambição, ao passo que o não quer-
ser desperta paixões de repulsa, medo e desinteresse. (cf. BARROS, 2002a, p. 63).
Encontra-se em Português Linguagens 9º ano (2010a) uma gama de usuários de
prestígio da língua portuguesa, o que ratifica um dado uso. Antes de incorporar esses
usos elaborados pelos usuários de prestígio, o sujeito aluno tem sua existência modal
definida pelo querer-ser e pelo não poder-ser, que modificam os valores descritivos do
“bem” falar e do prestígio. Esses usuários autorizados vão desde autores de textos
jornalísticos atuais, como os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, até
cantores da música popular brasileira, como Chico Buarque, Gilberto Gil, entre outros,
passando, obviamente, pelos autores de literatura nacional, com muitas das obras
situadas em um período mais recente. Retomemos Barros (2011, p. 298) que descreve
esse procedimento da seguinte forma: para se impor um uso e construir o discurso da
norma prescritiva, para dizer que ele deve-ser, é natural que o discurso gramatical se fie
à confirmação da autoridade e dos usuários de prestígio, diferentemente, portanto, da
norma única e natural, pressuposta por uma língua homogênea e sem variação, que não
se serve de exemplos dos usuários da língua, mas dos próprios exemplos criados pelos
gramáticos que escrevem as obras. Em Português Linguagens 9º ano (2010a) há
também exemplos que não são creditados a usuários de prestígios, o que se entende,
portanto, que se trata de frases cunhadas pelos próprios autores.
Atente-se para o fato de que o aluno não é considerado um usuário de prestígio
para o destinador-manipulador de Português Linguagens 9º ano (2010a), como mostra
um exercício encontrado no livro didático:

Leia o texto a seguir, produzido por uma aluna do 1º ano do ensino médio a
propósito do tema cidadania. O texto foi transcrito sem nenhum tipo de
correção. Por isso, é normal que haja desvios gramaticais e inadequação de
alguns termos. (Português Linguagens 9º ano, 2010a, p. 219).

O fato de se considerar o aluno um usuário sem prestígio desperta, portanto, essa


paixão de repulsa, modalizada pelo não querer-ser. Não é, portanto, desejável sua

106
postura de usuário frente à língua. O caráter insuficiente de sua linguagem, no limite da
aceitação ou completamente fora da norma, gera um efeito de sentido de insegurança e
insatisfação, contrário aos estados de satisfação e confiança gerados pelo querer-ser.
(cf. BARROS, 2002a, p. 64-65). Entram em jogo, nesse caso, valores estéticos de
elegância e deselegância da linguagem, produzindo, em decorrência, possibilidades de
punição. (cf. BARROS, 2011, p. 303).
A ordem da manipulação dependerá da relação entre manipulador e manipulado.
Existem os discursos que começam na tentação ou na sedução e terminam na
intimidação e vice-versa. O livro didático brasileiro Português Linguagens 9º ano
(2010a) parece ser um desses: em um primeiro momento, como já adiantado, o
destinador-manipulador “autores” estabelece um contrato com o destinatário-sujeito
“aluno”, em que os autores oferecem aos alunos valores “positivos”, que eles (alunos)
desejam, tais como o saber, a beleza estética de um texto bem construído, a interação
com outras pessoas, etc.
Importa lembrar que para que ocorra a manipulação, por qualquer um de seus
tipos, o destinador precisa convencer o destinatário de duas questões. A primeira, de
que os valores oferecidos pelo manipulador são valores positivos e que interessam,
portanto, ao destinatário. Se esse sistema de valores em que a manipulação está
assentada for compartilhado tanto pelo manipulador quanto pelo manipulado, haverá
entre os pares uma certa cumplicidade e então, a manipulação será bem sucedida. A
segunda diz respeito à imagem de confiança que o destinador-manipulador visa a causar
junto ao destinatário-manipulado. Por meio de estratégias de aproximação,
distanciamento, presentificação, cumplicidade, etc., importa o esforço do destinador no
sentido de despertar a confiança do destinatário (fazer-crer) e, então, completar sua
manipulação (fazer-fazer).
A primeira questão será tratada mais especificamente quando examinarmos a
tematização e a figurativização do saber. A segunda, trataremos a seguir, ao fazermos
uma análise no nível da sintaxe discursiva da obra Português Linguagens 9º ano
(2010a).
Na sintaxe discursiva, responsável por explicar as relações entre o enunciador e
o enunciatário, vejamos, pois, as estratégias de pessoa, de tempo e de espaço que são
utilizadas pelo enunciador para seduzir ou tentar o enunciatário. Para tanto, voltaremos
a analisar o discurso de apresentação e o capítulo 1 da unidade 2 do livro didático.

107
No livro analisado, percebemos que a interação no discurso-enunciado se dá
tanto como enunciação enunciada quanto em enunciado enunciado. Vejamos, em um
primeiro momento, as projeções da enunciação no processo de interação em enunciação
enunciada.
Escolhendo, inicialmente, as projeções de pessoa (actancial) no discurso-
enunciado, encontramos em Português Linguagens 9º ano (2010a) um enunciador que,
por meio de uma debreagem enunciativa de 1º grau, instaura um narrador em primeira
pessoa que se dirige de maneira direta a um narratário e o trata pelo pronome você, em
uma correlação de pessoalidade (eu/tu), como vemos nos exemplos retirados dos
enunciados referentes às atividades didático-pedagógicas as quais se deve submeter o
narratário, aqui no caso, os alunos: Você acha que ela era naturalmente má ou tornou-
se má no convívio com as pessoas; Você acha que algumas pessoas nascem com a
índole má? Você conhece pessoas perversas e ardilosas? Se sim, conte para os colegas
como são essas pessoas. (ibid., p.80). O uso do modo verbal imperativo também é um
recurso utilizado pelo enunciador da obra para instaurar o tu, porém, a questão
prescritiva do imperativo será tratada no item referente à manipulação por intimidação.
Nesse livro didático, o narratário é principalmente marcado na seção intitulada
Trocando ideias, e podemos entender esse procedimento da enunciação, uma vez que
esse tópico tem por objetivo, segundo os autores, desenvolver a capacidade de
expressão e de argumentação oral do aluno. Parece ser, assim, natural que os narratários
sejam interpelados de forma direta, com vistas a transferir suas ideias a sua realidade
concreta e se posicionar diante delas. O narrador, por sua vez, ao se colocar em uma
“troca de ideias”, tal qual sugere o nome da seção, aproxima-se de seu par (narratário) e
aumenta, então, os efeitos de subjetividade, de diálogo e de reciprocidade entre os
sujeitos. Essa intimidade discursiva provoca um equilíbrio entre as relações, pois
narrador e narratário se colocam no mesmo quadro enunciativo. Não estaríamos,
portanto, diante de interações informais, espontâneas e, por que não, íntimas, típicas da
conversação face a face? Estratégias responsáveis por ora criar o simulacro de um
enunciador confiável, ora, por meio da manipulação por sedução, mostrar-se cúmplice
do outro, fazendo, assim, uma imagem positiva dele.
Cumpre lembrar que o narratário se vê interpelado pelo narrador na maioria das
atividades que deve realizar. Vários são os momentos do discurso em que a relação
entre essas duas instâncias enunciativas se dá de forma que um elabora uma questão e o

108
outro responde. Como se trata de perguntas normalmente abertas, que não são
respondidas por uma única palavra e que possibilitam ao narrador extrair mais
informações, cria-se o simulacro de um diálogo, gerando um efeito de cumplicidade
com o outro, pois lhe é dada a chance de responder.
Na análise do texto de apresentação de Português Linguagens 9º ano (2010a),
situado na página 03, a presença do narrador e do narratário é instaurada por meio da
debreagem actancial enunciativa, o que gera, no enunciado, proximidade, intimidade,
reciprocidade e simetria de relações. Recuperemos, novamente, um trecho do texto de
apresentação da obra que representa esse diálogo entre os actantes da enunciação (cf.
IMAGEM 9):

Caro estudante:
Este livro foi escrito para você.
Para você que é curioso, gosta de aprender, de realizar coisas, de trocar ideias
com a turma sobre os mais variados assuntos, que não se intimida a dar uma
opinião... porque tem opinião.
Para você que gosta de trabalhar às vezes individualmente, às vezes em
grupo; para você que leva a sério os estudos, mas gosta de se descontrair,
porque, afinal, ninguém é de ferro [...].
Um abraço,
Os autores. (Cereja & Magalhães, 2010a, p.03)

No texto de apresentação, tudo o que já foi analisado em relação às projeções de


pessoa aparece de forma mais exacerbada. É notório o caráter intimista e sedutor que o
narrador tenta imprimir ao texto ao se dirigir aos alunos. Em primeiro lugar, o texto é
assinado, o que confere ao discurso-enunciado um teor subjetivo e passional, uma
aproximação da enunciação na tentativa de se fazer o narratário (aluno) conhecer o livro
didático. Essa intimidade discursiva é corroborada pelo uso repetitivo do pronome você,
empregado, no discurso de abertura da obra, dez vezes em um texto de 27 linhas. O uso
do pronome “você”, pronome de tratamento usual no ato comunicativo em português,
provoca um efeito de cumplicidade e comprometimento na relação narrador/narratário.
Um segundo mecanismo do qual se serve a enunciação para a instauração de
suas marcas no enunciado é o uso do verbo na primeira pessoa do plural, isto é, o
pronome “nós”. Este pronome pode, segundo Fiorin (2008a, p. 124), assumir três
perspectivas discursivas distintas, a saber: um “nós” inclusivo, que é dêitico, em que ao

109
“eu” acrescenta-se o “tu”; um “nós” exclusivo, em que ao “eu” se juntam “ele” ou
“eles”; um “nós” misto, em que ao “eu” se acrescem o “tu” e o “ele”. No livro didático
analisado, encontramos, principalmente, o nós inclusivo e o misto. Acrescentamos,
ainda, uma quarta perspectiva discursiva frequente nos livros didáticos: o uso do “nós”
em lugar do “eu”, num procedimento de embreagem.
O “nós” inclusivo (eu + tu) é, como os outros casos do uso desse pronome, um
caso de debreagem actancial enunciativa, já que o enunciador se fez representar no
enunciado por meio do pronome “nós”. Este uso parece instaurar no enunciado um tom
didático, visto que o narrador estabelece uma parceria com o narratário, convidando-o a
se juntar a ele e responder o que é proposto, como se o processo fosse realizado pelos
dois conjuntamente, quase em um mesmo momento de interação. Cria-se, aí, a nosso
ver, o simulacro da relação professor/aluno firmado em sala de aula. Os exemplos a
seguir ilustram o que afirmamos: Afinal, quem é que manda em nosso corpo e em
nossas vontades? (Português Linguagens 9º ano, 2010a, p. 14). Esse procedimento do
qual lança mão a enunciação evidencia o efeito de cumplicidade e de integração ou
fusão, que decorre dessa escolha. O narrador cumpre o simulacro de “colega” do aluno
na tentativa de realizar a atividade e se firma como uma voz que não só conduz o
trabalho, mas também reflete junto. Ameniza-se, assim, pela ilusão construída, a relação
naturalmente verticalizada, típica do ato de ensinar em sala de aula.
Um segundo uso do pronome “nós” encontrado na unidade analisada foi o “nós
misto” (eu + tu + ele), ou seja, os usuários da língua. É o que vemos nos exemplo a
seguir: Quando falamos em amor, sempre pensamos no amor à pessoa amada, ou no
amor a pais, irmãos, familiares e amigos. (ibid., p.76). Aqui, não se trata apenas do
narrador e do narratário, mas de todas as pessoas em geral.
Um terceiro uso do pronome “nós” encontrado na obra foi um caso de
embreagem, em que o pronome “nós” é usado no lugar do pronome “eu”. Fiorin (2008a,
p. 96) define esse uso como o “plural majestático, de modéstia, de autor”. O “eu” dilui-
se no anonimato do “nós”. O que distingue um ou outro é o tipo de texto em que o
“nós” é empregado. No caso do livro didático analisado, o “nós”, nesse caso ou se dá
predominantemente pelo plural do autor (Apresentamos a seguir o início de três contos
de escritores brasileiros. Escolha um deles e dê continuidade à narrativa. (Português
Linguagens 9º ano, 2010a, p.81)) ou por um “nós” que inclui o enunciatário no
enunciador, sendo que aquele é, portanto, obrigado por este a assumir o texto com ele:

110
Que valores são esses que quando menos percebemos, começamos a incorporar? (ibid.,
p.14).
Embora no livro didático Português Linguagens 9º ano (2010a), o enunciador
instaure os actantes enunciativos no texto-enunciado pelo mecanismo de debreagem
enunciativa na maior parte do tempo, há momentos em que se optou pela debreagem
enunciva, o que significa que, nesse caso, ocultaram-se os actantes da enunciação.
Como na debreagem enunciativa, trata-se também de um recurso que faz uma imagem
positiva do outro; a diferença está no fato de que, por meio da debreagem enunciva,
guarda-se uma relativa distância do outro, o que sugere um efeito de sentido de
autonomia, respeito e posição própria. Afrouxam-se, no entanto, os laços de simetria de
relações e de subjetividade e firmam-se aqueles de objetividade e individualidade,
menos passionais.
Esses enunciados enunciados, despidos das marcas da enunciação, foram
encontrados, em sua grande maioria, no trato das questões gramaticais, como ilustram
os exemplos a seguir: Orações Subordinadas Temporais: indicam o momento, a época,
o tempo de ocorrência do fato expresso na oração principal. (Português Linguagens 9º
ano, 2010a, p.87); Condicionais: são introduzidas pelas conjunções subordinativas
condicionais: se caso, contanto que, desde que [...] (ibid., p. 87). Outras ocorrências de
enunciado enunciado foram encontradas na seção Para escrever com expressividade, na
qual se busca definir o discurso indireto livre: Nos quatro parágrafos iniciais do texto,
observa-se a presença de mais de um discurso: o do narrador e das personagens. (ibid.,
p. 83); No 5º parágrafo do texto também se nota a presença de mais de um discurso: o
do narrador e o do menino. (ibid., p.84).
Os exemplos elencados, projetados em 3ª pessoa, produzem, como já apontado,
a ilusão de afastamento da enunciação, de objetividade, de assimetria e frouxidão dos
laços interativos, numa espécie de desigualdade entre os interlocutores posicionados
fora do quadro interativo, de um discurso “monológico”, nas palavras de Barros
(2002b). Apaga-se a imagem da conversa íntima face a face até então projetada na
enunciação por meio da enunciação enunciada e constrói-se a de um uso elegante,
neutro e distante, próprios dos discursos gramatical e científico. Aqui, enunciador e
enunciatário cumprem cada qual seu papel, sem misturá-los ou confundi-los e reforçam-
se seus papeis sociais: o discurso gramatical oferece o saber e emprega um conjunto de
procedimentos para levar o enunciatário a acreditar na verdade e na necessidade de

111
certos usos linguísticos; o enunciatário (aluno) deve, então, crer e fazer uso do que lhe é
apresentado se quiser ter êxito em sua vida social e profissional.
Pensando como Barros (2011, p.326), esse jogo de vozes que se aproximam e se
afastam é uma das características do discurso pedagógico, que “mistura efeitos de
cientificidade e de cumplicidade didática de uma interação sempre assimétrica entre
professor e aluno”. O autor pode se apagar um pouco nesse ir-e-vir, mas a 1ª pessoa,
ainda que seja a do plural, garante-lhe relativa individualidade de ponto de vista.
Embora mais fortemente marcada pela questão actancial, a manipulação por
sedução e tentação também faz uso de estratégias temporais e espaciais,
complementares, nesse discurso, às projeções de pessoa, tendo em vista os efeitos de
sentido de aproximação e presentificação, simulacros da relação mais próxima,
dialógica e recíproca proposta pelo enunciador do livro didático.
Vejamos, primeiramente, a noção de tempo (o agora) no discurso-enunciado,
por meio da debreagem enunciativa. A enunciação em Português Linguagens 9º ano
(2010a) faz uso prioritariamente do tempo presente do indicativo em seus enunciados, o
que confere ao texto um efeito de sentido de presentificação, visto termos a impressão
de vivenciar, naquele momento, o que é dito pelo narrador ao narratário, como mostram
os exemplos a seguir: Você concorda com as explicações sobre o preconceito contra a
tatuagem dadas pelo autor? (ibid., p.39); Você acha que quem se tatua faz isso para
impressionar outras pessoas, ou seja, é exibicionista? (ibid., p. 39).
Em Português Linguagens 9º ano (2010a), a maior parte dos tempos
enunciativos é representada pelo que Fiorin (2008a) denomina “presente pontual”, ou
seja, aquele em que coincidem o momento de referência (MR) e o momento da
enunciação (ME). Como os dois momentos se passam no mesmo instante em que o
narrador faz seu relato, tem-se, então, um efeito de sentido de atualidade ou, como já
dito, presentificação. Vejamos os exemplos que elucidam a afirmação: Qual delas ainda
está presa a temas clássicos, da mitologia grega? (Português Linguagens 9º ano,
2010a, p.75); Os textos de Clarice Lispector têm geralmente um estilo surpreendente,
com imagens fortes, construídas muitas vezes a partir de antíteses. (ibid., p.79); Que
tempo verbal predomina no conto? (ibid., p. 81); Há no poema dois tipos de oração
subordinada adverbial. (ibid., p. 88); O anúncio a seguir promove uma máquina de
pagamento com cartões no comércio em geral. (ibid., p. 93).

112
O discurso instaura um agora, momento da enunciação. O tempo presente
indica, portanto, uma contemporaneidade entre o evento narrado e o momento da
narração. Segundo Benveniste (1974, p.74), esse presente não pode ser localizado em
nenhuma divisão do tempo cronológico, ou seja, ele é reinventado a cada vez que o
enunciador enuncia, é a cada ato de fala um tempo novo, ainda não vivido.
O discurso da gramática trazido pelo livro didático Português Linguagens 9º ano
(2010a) também faz uso do tempo presente, já que seu momento de referência é
ilimitado e, portanto, também é o momento do acontecimento. Essa questão, no entanto,
parece não mais estar ligada à manipulação pelo querer, mas àquela pelo dever, da qual
falaremos posteriormente.
Define Fiorin (2008a, p.151) as características desse tempo verbal: “é o presente
utilizado para enunciar as verdades eternas ou que se pretendem como tais”. Por isso é a
forma verbal mais utilizada pela ciência. Como a gramática constrói o seu discurso em
conformidade ao discurso científico, seu repertório de regras, normas e considerações
(dever-fazer) está representado pelo uso do tempo presente, nomeado por Fiorin (2008a,
p. 150), nesse caso, de “omnitemporal ou gnômico”. Seguem os exemplos: O discurso
indireto livre ou semi-indireto consiste na fusão da fala ou do pensamento da
personagem com o discurso do narrador. (Português Linguagens 9º ano, 2010a, p. 84);
Concessivas: são introduzidas pelas conjunções subordinativas concessivas: embora,
conquanto que, ainda que, mesmo que [...] (ibid., p. 86); Oração subordinada adverbial
é aquela que tem valor de advérbio (ou de locução adverbial) e exerce, em relação ao
verbo da oração principal, a função de adjunto adverbial. (ibid., p. 86).
Tomando o último exemplo elencado, vemos que o momento de referência é um
sempre que está, contudo, implícito. Uma vez que o momento do estado (“é”) coincide
com o momento de referência, o presente omnitemporal ou gnômico indica que uma
oração subordinada adverbial é sempre aquela que tem valor de advérbio (ou de locução
adverbial) e sempre exerce, em relação ao verbo da oração principal, a função de
adjunto adverbial.
Encontramos, também, na unidade analisada, ocorrências em que a enunciação
movimenta-se para a realização de um intento futuro, próximo, no entanto, ao agora da
enunciação, o que Fiorin (2008a, p.153) define como futuro do presente: Tenha em
mente que seu conto será lido por colegas, professores, familiares e amigos, pois ele
fará parte do livro que seu grupo irá produzir e expor na mostra Quem conta um conto

113
aumenta um ponto (grifos do autor), proposta no capítulo Intervalo desta unidade.
(Português Linguagens 9º ano, 2010a, p. 82); Antes de escrever, imagine o conflito, ou
seja, a situação problemática que as personagens viverão, e como ocorrerá sua
superação. (ibid., p. 82). O futuro do presente, nesse caso, não apenas expressa uma
ação posterior ao marco referencial presente, mas também parece explicar e indicar uma
ação de ordem prescritiva e metódica, que o narratário não pode deixar de cumprir se
quiser ter êxito na realização da atividade pedagógica proposta.
Há de se considerar também as poucas ocorrências de outros tempos verbais no
livro didático analisado. As questões didático-pedagógicas encontradas na seção Estudo
do texto são das poucas que, na unidade tratada, expressam uma noção de anterioridade
em relação ao agora da enunciação, instaurando, assim, um marco referencial pretérito
no discurso-enunciado. Encontramos, dessa forma, um enunciado em que a enunciação
expressa uma relação de anterioridade ao marco referencial presente, no qual está
cravada: Conforme você pôde observar, o enunciado do anúncio publicitário é formado
por duas orações. (ibid., p.86). Temos, nesse enunciado proferido, o que Fiorin (2008a)
nomeia de passado do presente, ou o Pretérito Perfeito 1, sempre definido em relação ao
momento da enunciação, portanto, também um tempo verbal enunciativo.
O marco referencial pretérito foi também instaurado pela enunciação por meio
de tempos verbais do sistema enuncivo, como o pretérito perfeito 2 (cf. FIORIN, 2008a)
e o pretérito imperfeito, como vemos nos exemplos de Português Linguagens 9º ano
(2010a): Por que, na opinião da narradora, a outra menina tinha talento para a
crueldade?(ibid.,p.78); O que a menina provavelmente imaginou a respeito da
importância do livro para a narradora? (ibid.,p.78); Por que a narradora se submetia a
esse jogo criado pela menina? (ibid.,p.78); A posse do livro As reinações de Narizinho
possibilitou à menina exercer sobre a narradora uma “tortura chinesa”, num jogo
infindável de promessas e mentiras. (ibid.,p.78). No trabalho de interpretação de textos,
esse é um dos poucos momentos em que a enunciação opta por um efeito de sentido de
distanciamento, descolado da enunciação, porém cravado no enunciado. É o que
poderíamos nomear, como o faz Fiorin (2008a), de presente do passado. Vê-se, por aí,
que a concomitância do momento do acontecimento em relação a um momento de
referência pretérito foi expressa tanto pelo pretérito perfeito 2 quanto pelo imperfeito,
ambos do indicativo. Salientamos que a diferença entre os dois tempos reside no fato de
que enquanto o pretérito imperfeito retrata um aspecto não limitado, estático, durativo e

114
inacabado, o pretérito perfeito 2 assinalada um aspecto limitado, dinâmico, pontual e
acabado.
Chega-se, então, ao último recurso de projeção das marcas da enunciação no
enunciado (debreagem) que devemos averiguar: a questão do espaço no qual se
desenrola a enunciação. Uma vez que a enunciação na obra analisada está centrada,
prioritariamente, como já mostrado nas análises efetuadas, na relação eu-tu em um
agora, o espaço do livro didático está ordenado prioritariamente em função de um aqui,
que é também, como as outras categorias elencadas, um espaço enunciativo.
Em relação ao espaço onde se dá o discurso, Português Linguagens 9º ano
(2010a) prioriza os limites do próprio livro que é proposto para o trabalho em sala de
aula. Os recursos linguísticos utilizados pelo narrador, como os pronomes
demonstrativos, por exemplo, auxiliam a aproximar o narratário do espaço enunciativo
ordenado em torno do aqui, o que gera, então, um efeito de sentido de proximidade e de
presentificação dos fatos narrados.
Como já salientado, ordenado em função de um aqui (cf. FIORIN, 2008a, p.
262), o espaço na obra é retratado pelo narrador por meio de três mecanismos,
prioritariamente: os pronomes demonstrativos, os advérbios ou os adjuntos adverbiais
de lugar. Antes de partir à análise propriamente dita, façamos um esclarecimento quanto
aos pronomes demonstrativos.
As gramáticas da língua portuguesa, no que diz respeito à marcação do espaço
com os pronomes demonstrativos, assumem uma posição triádica, ou seja, sempre
partindo de três lugares: este, sendo a forma que corresponde ao espaço da primeira
pessoa (perto de quem fala), esse, sendo o espaço da segunda pessoa (longe da pessoa
que fala e perto da pessoa com quem se fala) e aquele, espaço da terceira pessoa
(distante da primeira e segunda pessoa). No entanto, embora as gramáticas preconizem
esse uso, parece haver, atualmente, uma reorganização do sistema de demonstrativos em
português, a distinção este/esse, ambos pronomes enunciativos, parece estar
desaparecendo, visto que as pessoas usam uma forma pela outra. O que se vê,
atualmente, é a passagem de um espaço triádico para um espaço diádico, marcado,
sobretudo, pelos pronomes esse/este e aquele. A distinção passou a ser, no entanto, para
seus usos como pronomes anafóricos ou catafóricos.
O uso dos pronomes demonstrativos pelo narrador em Português Linguagens 9º
ano (2010a) parece ir ao encontro da distinção entre pronomes anafóricos e catafóricos.

115
Em relação aos catafóricos, temos os exemplos: Observe este painel, constituído de
duas esculturas e duas pinturas. (ibid., p.74); Observe estes trechos do texto. (ibid.,
p.78); Releia este trecho. (ibid., p.78); Ao produzir seu texto, siga estas instruções.
(ibid., p. 82); Compare estes enunciados. (ibid., p. 86). Observamos que as formas de
demonstrativos utilizadas fazem referência a itens que ainda não haviam sido expressos
no texto (pinturas, trechos, instruções, etc.), ou seja, estavam sendo antecipados pelo
narrador.
Encontram-se, também, referências anafóricas no discurso, ou seja, aquelas que
retomam um item já expresso no texto, como vemos nos exemplos a seguir: Os três
primeiros parágrafos formam a introdução do conto lido [...] Identifique, nesse conto o
clímax, isto é, o momento de maior tensão. (ibid., p. 81); Há algum sinal de pontuação
antes de falar desta personagem no conto lido? (ibid., p. 84); Há no poema dois tipos
de oração subordinada adverbial. Identifique essas orações e classifique-as. (ibid., p.
88).
A enunciação em Português Linguagens 9º ano (2010a) também se serve de
adjuntos adverbais de lugar para instaurar o espaço. Esse espaço, entretanto, é
figurativizado tanto pelo espaço em que se encontram as atividades de ensino
aprendizagem, ou seja, o espaço dos textos e das atividades, quanto pelo espaço do
próprio livro didático. São vários os momentos em que isso se dá, como mostram os
enunciados a seguir: Identifique, no texto, expressões que caracterizam
psicologicamente a filha do livreiro. (ibid., p. 80); O texto a seguir é um trecho do
conto “Menino” de Lygia Fagundes Telles (ibid., p. 83); Nos quatro parágrafos iniciais
do texto, observa-se a presença de mais de um discurso: o do narrador e o das
personagens. (ibid., p.83); No 5º parágrafo do texto também se nota a presença de mais
de um discurso: o do narrador e o do menino. (ibid., p. 84); Leia o anúncio publicitário
abaixo. (ibid., p. 85).
Vistas as estratégias de manipulação por sedução e tentação passaremos, a
seguir, à análise das estratégias narrativas e discursivas que compõem o percurso da
manipulação por intimidação no livro didático brasileiro.

116
3.3.2 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por intimidação

Num segundo momento, o manipulador, embora faça uma imagem positiva da


competência e do saber do aluno, lança mão de outra estratégia da manipulação: a
intimidação. Como a intimidação é uma estratégia que nem sempre faz bem à imagem
que o manipulador quer que se dele faça, este recorre a estratégias que possam, de certa
forma, atenuar as alterações que se farão na competência do sujeito-manipulado,
modalizada pelo dever-fazer.
A intimidação define-se por um tipo de manipulação em que o destinador-
manipulador é dotado de um poder-fazer e o destinatário de um dever-fazer. A
valoração na intimidação é negativa, pois o valor cultural oferecido é, normalmente,
uma ameaça. (cf. BARROS, 2002a, p. 38). No caso do discurso do livro didático, as
ameaças seriam justamente a não apropriação de valores positivos oferecidos no
processo de sedução e/ou tentação.
Como já adiantado, as estratégias que levam o sujeito ao dever-fazer estão
associadas, geralmente, aos valores éticos, ou seja, aos valores do certo e do errado, da
“utilidade social”, do “desleixo”, das repercussões nefastas da vida prática e da boa
norma da “civilidade”. (cf. BA OS, 2011, p. 303). A primeira questão que surge na
obra é a da norma prescritiva, que Português Linguagens 9º ano (2010a) chama de
norma-padrão. Trata-se, segundo Barros (2011), de um discurso modalizado pelo
querer, dever e poder-ser e fazer. Apresenta-se a língua de forma heterogênea, com
variantes hierarquizadas: obrigatórias, possíveis e proibidas.
Para isso, modaliza-se o discurso, pelo dever-fazer e a partir disso, um dever-ser,
“de acordo com a norma-padrão, ele deve ser empregado apenas quando acompanha”
(Português Linguagens 9º ano, 2010a, p. 46), “assim são recomendadas as construções”
(ibid., p.46), um dever não-ser, ou seja, uma espécie de proibição daquilo que possa
contrariar essa norma: “de acordo com a norma-padrão da língua, o pronome relativo
onde é empregado somente para indicar um lugar concreto, nunca uma situação”. (ibid.,
p.46); “para isso, elimine as repetições, empregando orações adjetivas, pronomes e
outros elementos que achar adequados”. (ibid., p. 67). Diz Barros (2011, p.295) que
“busca-se, com isso, conservar a “boa norma” e “salvar” a língua, ameaçada pelos maus
usos”. Cria-se, portanto, a imagem de uma língua heterogênea, cuja norma prescritiva,

117
caracterizada sobretudo pela modalização do dever, determina os usos que devem-ser e
outros que devem não-ser, visto que são errados, não têm prestígio ou qualificação.
É cabível apontar que o discurso prescritivo de Português Linguagens 9º ano
(2010a), preocupado com o bom uso, se dá também por outros mecanismos linguísticos,
tais quais:

I. O uso do verbo dever


Exemplo: “O pronome relativo deve ser antecedido de preposição quando o
verbo da 2ª oração a exige”. (ibid., p. 44);

II. O emprego do modo verbal imperativo


Exemplo: “Troque o pronome relativo que introduz a oração adjetiva por o(a)
qual, os(as) quais, junto ou não de preposição”. (ibid., p. 61).

A questão do imperativo será tratada posteriormente no nível discursivo.

III. O uso de alguns substantivos, adjetivos, verbos e advérbios


Exemplos: “De acordo com a norma-padrão, ele deve ser empregado apenas
quando acompanha verbos que [...]” (ibid., p.46, grifo nosso); “Em princípio,
não é obrigatório tomar posição diante do tema” (ibid., p.188, grifo nosso);
“[...]a norma-padrão recomenda outras construções[...]” (ibid., p. 94, grifo
nosso); “Para colocarmos adequadamente os pronomes na frase, devemos antes
de tudo estar atentos ao que soa bem”. (ibid., p. 260, grifo nosso);

Outra forma de normatizar que aparece de modo secundário em Português


Linguagens 9º ano (2010a) é por meio da norma natural, única, em que a modalização
não se dá pelo dever, mas pelo ser, como mostram os casos a seguir:

I. O uso da voz passiva analítica


Exemplo: “[Concessivas] São introduzidas pelas conjunções subordinativas
concessivas: embora, conquanto que, ainda que, mesmo que, se bem que, por
mais que, etc.” (ibid., p. 87);

118
II. O uso da voz passiva sintética
Exemplo: “Emprega-se pode na 3ª pessoa do singular do presente do indicativo e
pôde na mesma pessoa do pretérito perfeito do indicativo”. (ibid., p. 128).

III. O uso do presente atemporal


Exemplo: “O discurso indireto livre ou semi-indireto consite na fusão da fala ou
do pensamento da personagem com o discurso do narrador”. (ibid.,p. 84);

Nesse jogo de manipulação em que um conjunto de procedimentos linguísticos e


lógicos é usado pelo destinador para convencer o destinatário, encontramos um
procedimento argumentativo bastante comum no livro didático para o ensino de língua
materna, o procedimento da argumentação por ilustração (cf. PERELMAN &
OLBRECHTS-TYTECA, 2000). Trata-se de um argumento que reforça a adesão a uma
regra conhecida e aceita, que se inicia pela generalização da regra.
No que diz respeito ao procedimento da ilustração, o livro didático é um
discurso que faz uso constante desse procedimento argumentativo, uma vez que o
enunciador deixa esparsas, no decorrer do discurso, algumas pistas que, na imanência,
constroem todo um dispositivo veridictório que determina como o enunciatário deve
interpretar o discurso e aceitá-lo como “verdade”.
Se retomarmos a seção A língua em foco, veremos que o discurso da gramática
em Português Linguagens 9º ano (2010a), pautado pela norma prescritiva, define-se por
um discurso no qual o enunciador faz uma afirmação geral e dá exemplos com a
finalidade de comprová-la. Vejamos como isso se corporifica no discurso analisado:
Temporais: indicam o momento, a época, o tempo (grifo do autor) de ocorrência do
fato expresso na oração principal: quando você foi embora (grifos do autor), fez-se
noite em meu viver. (Milton Nascimento e Fernando Brandt). (ibid., p. 87);
Concessivas: expressam uma concessão (grifo do autor), um fato contrário ao expresso
na oração principal, porém insuficiente para anulá-lo: quando hoje acordei, ainda
fazia escuro, embora a manhã já estivesse avançada. (Manuel Bandeira). (ibid., p. 87);
Proporcionais: indicam uma proporção (grifo do autor) em relação ao fato expresso na
oração principal: à medida que o tempo passava, mais ansioso eu ficava. (ibid., p. 88).

119
Vê-se, portanto, que toda regra gramatical está invariavelmente acompanhada de
seu exemplo, que tem a finalidade de comprovar o que está sendo enunciado. No caso
desse recurso, o caso particular comprova a verdade geral enunciada. No entanto,
lembra Fiorin (2009, p. 77) que não costuma ser bom utilizar o argumento da ilustração
quando a afirmação geral engloba uma totalidade, já que bastaria mostrar um único
exemplo que caracterize o contrário para se demonstrar que a afirmação não é
verdadeira.
Diz Greimas (1983) que o estudo da modalização do ser permite definir culturas,
ou seja, existem culturas que valorizam mais o dever do que o querer, outras agem de
forma contrária, e assim por diante. Algumas representam de forma mais adequada a
aplicação social de códigos normativos, como as regras de gramática, as regras de
polidez, entre outras, por exemplo. No livro didático brasileiro, misturam-se tanto o
dever quanto o querer. Este pode ser compreendido por meio da manipulação por
sedução e/ou tentação já explicadas. Aquele, por meio da manipulação por intimidação,
ligada sobretudo às questões gramaticais, normativas, entre outras.
A seguir, trataremos das estratégias de manipulação por intimidação que se dão,
sobretudo, no nível discursivo do livro Português Linguagens 9º ano (2010a), agora
entre enunciador e enunciatário. No nível discursivo desse livro didático, a manipulação
por intimidação se deu, sobretudo, por meio da categoria de pessoa. Da mesma maneira
que procedemos em relação à manipulação por sedução e/ou tentação, a questão da
manipulação por intimidação também será vista sob dois prismas: os valores oferecidos
ao enunciatário e de quais estratégias o enunciador se serve para convencer o
enunciatário de que é confiável.
O primeiro mecanismo de intimidação utilizado pela enunciação de Português
Linguagens 9º ano (2010a) é o uso do modo verbal imperativo, a que já nos referimos, o
que determina a instauração do “tu” no enunciado, como ilustram os exemplos a seguir:
Levante hipóteses sobre o tempo de duração dos fatos relatados no conto. (ibid., p. 80);
Reúna-se com seus colegas de grupo e, juntos, concluam: quais as características do
conto? (ibid., p.81); Observe estes trechos do texto. (ibid., p. 78); Depois de ler o boxe,
responda. (ibid., p. 75); Agora compare as duas pinturas (ibid., p. 75). Em português,
do ponto de vista semântico, se expressam pelo uso do imperativo uma ordem, uma
possibilidade ou necessidade e uma volição. Pelo imperativo, o enunciador apresenta ao

120
enunciatário o dito como um estado de coisas necessário, que tem de ser. (cf.
CASTILHO, 2012).
As formas conjugadas do imperativo aparecem em Português Linguagens 9º ano
(2010a) sempre relacionadas ao pronome de tratamento você, pronome discursivamente
de segunda pessoa, porém gramaticalmente de terceira pessoa. Segundo Castilho &
Elias (2012), expressando uma ordem ou um pedido, dirigido ao enunciatário, o
imperativo só deveria ser conjugado na segunda pessoa, visto que nas outras pessoas
verbais, não expressa uma ordem, mas uma volição. Reiteramos que a enunciação,
então, constrói um simulacro de superioridade em relação ao enunciatário, visto que
detém o poder e o saber e está legitimamente habilitada a fazê-lo.
Os mecanismos elencados são responsáveis, a nosso ver, pela construção de uma
intimidade discursiva, um lugar íntimo de onde se fala e de onde se escuta: a sala de
aula, o que ajuda a compor um éthos característico dessa cena enunciativa. Essa
conversa entre enunciador e enunciatário típica da enunciação enunciada remete a
Bourdieu (1979), que, ao comentar o franco-falar, ou o falar sem censura, vê, nessa
conversa, menos elegância, menos distinção e menos polidez. Para nós, a prescrição
acompanhada de intimidade aumenta consideravelmente a prescrição, pois aquele que
está mais próximo pode exigir algo com menos pudor e pode, de certa forma, “mandar”
mais.
Essa enunciação imperativa acaba por se desvelar também no mecanismo de
perguntas e respostas encontrado no texto/enunciado, como já explicitado no item
anterior. No entanto, além de produzir um efeito de sentido de diálogo, como apontado,
em Português Linguagens 9º ano (2010a), a maior parte das atividades didático-
pedagógicas destinadas ao estudo do texto, estudo da gramática, estudo da produção
textual, entre outros se serve do mecanismo de interrogação direta, que chamaremos
aqui de “pergunta aberta”, ou seja, aquela em que no final há um ponto de interrogação
e que, eventualmente, encontramos no lugar sintático ocupado regularmente pelo termo
ignorado um dos pronomes interrogativos a seguir: quem, quando, onde, por que, qual,
etc. Vejamos os exemplos: Qual delas ainda está presa a temas clássicos, da mitologia
grega? (ibid., p.75); Que efeito visual resulta da projeção do manto sobre as flores?
(ibid., p. 75); O que essas palavras têm em comum, quanto ao sentido? (ibid., p. 79);
Por que, na opinião da narradora, a outra menina tinha talento para a crueldade?
(ibid., p. 78); Como é feita a caracterização das personagens? (ibid., p. 78);

121
Parece claro que pelo mecanismo de perguntas e respostas, o narrador enuncia
sua posição em relação ao narratário ao mesmo tempo em que o intima a seguir um
comportamento pré-estabelecido. O narrador, então, age diretamente sobre o narratário
e pelo seu (do narrador) ato de linguagem, espera uma reação determinada: responder
e/ou reagir, em uma relação de influência. Além disso, o narrador de um livro didático
enuncia sempre em posição de “superioridade” discursiva em relação a seu par e se
atribui alguns papéis que têm por objetivo fazer com que o narratário execute a ação
desejada, modalizada pelo fazer-fazer, o fazer-falar, o fazer-escrever, etc. Não deixa de
ser, a nosso ver, uma relação de força e de influência, traduzida pelo uso da forma
injuntiva, sobretudo pelo modo verbal imperativo, ou uma relação de pedido,
personificada pelas formas interrogativas. Do narratário, espera-se que tenha
competência para responder o que lhe é perguntado e que se veja em uma posição de
obrigatoriedade de resposta.
Não nos esqueçamos, por fim, de que o enunciador em Português Linguagens 9º
ano (2010a) também recorre ao mecanismo de debreagem enunciva para manipular o
enunciatário por intimidação, pelo dever-fazer, sobretudo no trato de questões
gramaticais, como já explicado anteriormente (cf. item 3.3.1).
Cabe ao enunciatário, portanto, interpretar toda essa artimanha argumentativa da
qual se serve o enunciador, compará-la a seus conhecimentos e convicções e, por fim,
crer ou não no discurso e aceitá-lo como verdadeiro. Em Barros (2008, p. 64), contudo,
entendemos que o discurso constrói a sua verdade, ou seja, o enunciador não produz
discursos verdadeiros ou falsos, mas sim, discursos que parecem verdadeiros e como
tais são interpretados. É o que se espera, assim, do enunciatário: que o interprete como
verdadeiro e o diga verdadeiro, o que, automaticamente, construirá o “dizer-verdadeiro”
ou “veridicção”.

3.3.3 Tematização e figurativização como estratégias do Saber

Neste item, mostraremos como a disseminação de temas e figuras é tarefa do


sujeito da enunciação e pode ser vista como estratégias de persuasão no discurso. Como
já salientado no nível narrativo, informar é transmitir um objeto cognitivo, ou seja, um
saber. Esse valor acha-se inscrito num enunciado. Os valores, quando assumidos no
nível discurso, são disseminados pelo enunciador por meio de percursos temáticos que
122
podem receber investimentos figurativos. No caso do livro didático, esse investimento
figurativo se dá de forma ocasional e esparsa, como mostraremos no decorrer da análise.
Nesta etapa, então, apresentaremos como se tematizam e figurativizam os variados
saberes que o livro didático busca transmitir como objetos de valor.
Em Português Linguagens 9º ano (2010a), a carta de apresentação, primeiro
contato direto com o estudante, se revela um discurso temático, cujo tema principal
pode ser depreendido pelo encadeamento dos conjuntos organizados, denominados
percursos temáticos. O tema geral desse discurso seria, assim, o saber, ou seja, os
conhecimentos e ensinamentos que a obra transmite, que levam os alunos a aprender
determinados conteúdos e os fazem “transitar livremente entre linguagens” (Cereja &
Magalhães, 2010a, p. 03). Esses saberes podem vir de universos variados, como o da
ciência linguística, o da arte, o da cultura, o do senso comum, entre outros, como
mostraremos adiante. Pressupõe-se que por meio do estudo que se fará a partir do livro
didático, o indivíduo possa usar a língua portuguesa de forma a melhor “interagir com
as pessoas e o mundo em que vive”. (Cereja & Magalhães, 2010a, p. 03), como nos
mostra o trecho a seguir:

E também para você, que “plugado” no mundo, viaja pela palavra, lendo
livros, jornais ou revistas; viaja pelo som, ouvindo música ou tocando um
instrumento; viaja pela imagem, apreciando uma pintura, lendo quadrinhos,
assistindo à tevê ou a um vídeo, ou navega pela Internet, procurando outros
saberes e jovens de outras terras para conversar. (Cereja & Magalhães,
2010a, p. 03).

Esse texto de apresentação é parte integrante da cena genérica do livro didático


de língua portuguesa no Brasil61, fator invariável, portanto, do ritual enunciativo do
gênero discursivo livro didático para o ensino de língua portuguesa. Além de se
constituir um próprio gênero discursivo, ele ganha corpo por meio de outro gênero
discursivo, a carta pessoal ou íntima, em uma configuração híbrida. De cunho pessoal,
essas cartas de apresentação se caracterizam por uma sorte de conversação amena e
culta entre o sujeito enunciador e seus presumíveis enunciatários. Explicita-se, então, o
enunciador, que, remetendo a um modo próprio de dizer, instaura mecanismos
respaldados por temas e figuras circunscritos à esfera de sentido da cotidianidade.
61
Foram analisadas 15 coleções de livros didáticos aprovadas pelo PNLD 2011 e todas apresentaram,
invariavelmente, um texto de apresentação escrito pelos autores e destinado a um primeiro contato com os
alunos.
123
A cena enunciativa prevista para essas cartas se constrói de forma diversa
daquela de uma carta comercial, por exemplo, visto que cobra imperativamente a
presença do outro. Vejamos como essa cumplicidade do tom de voz, que tem por
objetivo seduzir o outro, orientará o modo de combinar temas e figuras.
Ao iniciar a carta com “Caro estudante”, o enunciador instaura, em seu primeiro
contato, um contrato de fala com o enunciatário de atitude intimista, exacerbando a
presença daquele a quem a carta é enviada, o que contribui para o efeito de
cumplicidade da voz. É como se o enunciador se deslocasse de seu lugar enunciativo
altivo, de detentor do saber, e se igualasse a seu enunciatário, em uma relação simétrica
de parceria e de igualdade para o bom desenrolar do aprendizado. A instauração
evidente do enunciatário por meio da designação “caro estudante” confirma sua
figurativização no enunciado e reforça, portanto, o simulacro da conversa principiada na
modalidade escrita, evidenciando uma cena da enunciação que se dá no circuito das
relações familiares: “o espaço enunciativo acaba por se fortalecer, dessa maneira, como
previsão genérica”, como está em Discini (2005).
As cartas pessoais como textos de apresentação dos livros didáticos para o
ensino de língua portuguesa estão estruturalmente organizadas em uma página, na qual
a sequência textual argumentativa é predominante. O enunciatário geralmente é
figurativizado como “estudante”, “aluno” ou “aluna” e, no canto inferior da página, há
sempre uma assinatura dos enunciadores, que pode ser com seus próprios nomes
individualizados, o que gera um efeito de sentido ainda maior de intimidade e de
conversa, ou com “os autores” ou “as autoras”, escolhas que figurativizam o lugar social
que ocupam. Ressalta-se também a fórmula de despedida utilizada em Português
Linguagens 9º ano (2010a) pelo enunciador, “um abraço”, que constrói junto ao
enunciatário uma interação com efeitos sensoriais e emocionais. O discurso parece
deslocar-se segundo uma variedade de sensações, o que remete a uma nova isotopia, ou
posição de leitura: “este livro foi escrito para você [...] que, ouvindo música, tocando
um instrumento, [...] lendo quadrinhos [...]” (ibid., p.03). Ressalta-se na passagem uma
mistura de sensações, dada pelo uso da sinestesia, que associa, no mesmo enunciado,
figuras que representam sensações advindas, nesse caso, da visão, da audição e do tato.
O tema central de uma carta de apresentação é fornecer ao estudante os
conteúdos temáticos que serão tratados na obra bem como a prática pedagógica adotada,
além de mostrar interesse pelo aluno e encorajá-lo, por um processo sobretudo de

124
sedução e tentação, a aceitar os valores que lhe são propostos. Seu estilo parece mais
leve, descontraído, rápido e menos formal, mais passional e subjetivo. Na classificação
proposta por Bakhtin (2006) quanto à diferença essencial entre os gêneros, as cartas
pertenceriam aos gêneros primários, isto é, aqueles que surgem nas condições de
comunicação discursiva imediata.
Como adiantamos, encontram-se na carta de apresentação do livro didático
brasileiro, além do tema geral do discurso – o saber -, outros temas oriundos de
universos variados, como o da ciência linguística, o da arte, o da cultura, o do senso
comum, entre outros. Discorremos sobre esses temas, que denominaremos subtemas,
uma vez que são todos, de certa forma, paralelos ao tema central da obra. Constroem-se,
portanto, outros percursos temáticos que contribuem à manutenção da coerência interna
do texto, isto é: o domínio das linguagens; o desenvolvimento de conhecimentos
comportamentais, sociais, musicais, midiáticos, etc.; o desejo de se formar um aluno
apreciador da arte, capaz de admirá-la, compreendê-la e reproduzi-la; o universo do
jovem; as questões tecnológicas e, por fim, a prática da cidadania. Falemos de cada um
desses subtemas, que, como já dito, são percursos temáticos relacionados a um percurso
temático maior denominado saber.
Trataremos, inicialmente, do subtema do domínio das linguagens. Percorrendo
as unidades do livro didático em questão, encontramos figuras ocasionais que, nesse
discurso temático, participam das estratégias de persuasão argumentativa e concretizam
o subtema das linguagens, produzindo efeitos de sentido de realidade. É o caso, por
exemplo, da seção A língua em foco, que tem por objetivo desenvolver o trabalho
gramatical na obra. Na primeira parte da seção – Construindo o conceito -, o
enunciador, em consideração pedagógica no livro do professor (cf. CEREJA &
MAGALHÃES, 2010b), relembra a proposta do livro de:

levar o aluno a construir o conceito gramatical, por meio de um conjunto de


atividades de leitura, observação, comparação, discussão, análise e
inferências. Normalmente se parte da observação de um fato linguístico em
texto – texto literário ou jornalístico, quadrinho, propaganda, cartum, etc.
(CEREJA & MAGALHÃES, 2010b, p. 06)

Encontram-se, no enunciado anterior, algumas figuras ocasionais que assumem


papel claro na organização persuasiva do discurso, como as atividades de leitura
sugeridas por meio de textos que pertencem aos mais variados gêneros discursivos, as

125
histórias em quadrinhos, os cartuns, os anúncios publicitários, etc. Esses gêneros, na
seção gramatical da obra, produzem um efeito de sentido de corporalidade, uma vez que
vivificam o discurso, pelo reconhecimento de figuras do mundo, e fazem, então, que o
enunciatário do texto interprete o discurso como “real”.
O subtema do domínio das linguagens mantém uma coerência interna no
discurso ao tratar de questões que têm por objetivo explicar os fatos e as coisas do
mundo, buscando classificar, ordenar e interpretar a realidade. Não obstante ser um
texto temático, a cobertura figurativa, esparsa, na verdade, auxilia a dar concretude ao
tema tratado: você que transita livremente entre as linguagens, que usa, como um de
seus donos, a língua portuguesa para emitir opiniões, para expressar dúvidas, desejos,
emoções, ideias, para receber mensagens, você que gosta de ler, de criar, de falar, de
rir, de criticar, de participar, de argumentar, de debater, de escrever. (ibid., p.03).
Outro subtema que pode ser associado ao subtema das linguagens e merece ser
destacado é o relativo à arte. Embora se dê na obra analisada um tratamento à arte, cabe
ressaltar que o trabalho proposto é tímido e pouco explorado. Há, por vezes, quadros de
pintores famosos que são usados, sobretudo, como ponto de partida para o trabalho
desenvolvido na seção De olho na imagem, como vemos no exemplo a seguir:
identifique no quadro, símbolos da riqueza do casal (ibid., p. 13); troque ideias com os
colegas e tente interpretar o que podem simbolizar: as cores vermelho e verde, o cão,
os frutos que estão na janela, a única vela acesa. (ibid.,p. 13). Os quadros de pintores
famosos, quando trabalhados, normalmente se destinam a desenvolver habilidades de
leitura de textos não-verbais. Veem-se, também, no livro didático brasileiro, além de
alguns quadros de pintores famosos, esculturas da época clássica que parecem ter a
finalidade apenas de ilustrar o tema maior da unidade.
O universo do jovem é outra formação discursiva que se concretiza no livro
didático Português Linguagens 9º ano (2010a). O enunciador, dado que se destina a um
público adolescente, busca criar uma imagem positiva do destinatário e valoriza, então,
temas e figuras da juventude, com o objetivo de levar o destinatário ao querer-fazer.
Nesse caso, esse subtema emerge pela figurativização do “mundo” do adolescente, ou
seja, de sua forma de ser e de recortar a realidade: “para você que é pura emoção, às
vezes sentimental, às vezes bem-humorado, às vezes irriquieto, e muitas vezes tudo isso
junto”. (ibid., p.03); “você que é curioso, gosta de aprender, de realizar coisas, de trocar
ideias com a turma sobre os mais variados assuntos” (ibid., p.03); “e também para você

126
que, dinâmico e criativo, não dispensa um trabalho diferente com a turma”. (ibid., p.03);
“para você que gosta de ler, de criar, de falar, de rir, de criticar”. (ibid., p.03). Por meio
da disseminação das figuras elencadas que concretizam o subtema do universo do
jovem, extraímos o simulacro de um mundo vivido intensamente, mais impactuante,
com um recorte mais amplo. Ao jovem também se associam temas como a conquista do
amor impossível, o milagre do amor, o que é ser jovem, ser adolescente, entre outros.
Os temas que permeiam as unidades de Português Linguagens 9º ano (2010a),
parecem estar ligados ao universo do jovem, como diz o enunciador no livro do
professor: “os temas que organizam cada uma das unidades são variados e levam em
conta tanto as recomendações dos Parâmetros curriculares nacionais quanto os temas
transversais, a faixa etária e o grau de interesse dos alunos”. (Cereja & Magalhães,
2010b, p. 03). Encontram-se, nas unidades da obra, os seguintes temas: I. Valores; II.
Amor; III. Juventude; IV. Nosso tempo. Dentro desses temas, que nomeam as unidades,
outros temas também emergem para nomear os capítulos que compõem as unidades, tais
quais: “o preço de estar na moda”; “o olhar dos outros”; “ a conquista do amor
impossível”; “o outro: um outro amor”; “a primeira vez”; “cidade sitiada”; “de volta
para o presente”, entre outros.
Na escolha dos temas que serão tratados em suas unidades, Português
Linguagens 9º ano (2010a) não apresenta os grandes temas da História do Brasil, como
as questões da colonização, do extermínio dos índios, da ditadura militar, das
revoluções ocorridas, etc. Nem tampouco, trata dos grandes temas da História, como as
grandes guerras, o Holocausto, os massacres étnicos, entre outros.
De certa forma, ao se tornar os temas mais leves, o livro parece seguir o
importante caminho aberto por Paulo Freire, na década de 1970, sobre a necessidade de
tornar a escola um ambiente mais motivador e democrático. O percurso temático da
obra parece “proteger” o estudante de temas mais intensos em conteúdo, ao propor,
assim, percursos temáticos relativamente triviais que fazem tanto da escola quanto do
livro um lugar agradável e saudável, num ambiente em que o aluno não se depare com
questões que possam despertar sofrimentos, dor ou suplícios, como textos sobre a morte
na ditadura ou nas revoluções, a tortura militar durante os regimes autoritários, o
massacre dos índios, etc.
Deve-se apontar, inclusive, que os temas desenvolvidos pelos livros didáticos de
língua portuguesa no Brasil são analisados pela equipe de avaliadores do Programa

127
nacional do Livro Didático (PNLD), conforme nos mostra o GUIA DE LIVROS
DIDÁTICOS: PNLD 2011:

Três princípios de organização podem, então, ser observados: tema, gênero


e/ou tipo de textos, projetos. Quase todas as coleções combinam, em seu
arranjo metodológico particular, mais de um desses princípios, dando origem
a diferentes padrões de organização [...] exclusivamente por tema: da seleção
de textos às discussões propostas em leituras, produção e oralidade, as
unidades exploram temas como questões ambientais, esportes, (i)migração,
projetos de vida, relacionamentos amorosos, cidadania, adolescência, vida na
terra, consumo, língua e linguagem, etc. (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS:
PNLD 2011, 2010, p. 29).

É notório, a partir do texto anterior, que a escolha de temas da obra não é,


portanto, tarefa apenas do enunciador, mas há, por detrás, um sistema que impõe as
questões que devem constar no livro didático brasileiro que queira ser aprovado pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Há de se destacar, contudo, que Português Linguagens 9º ano (2010a), embora
não trate dos grandes temas da História geral ou do Brasil, por vezes, traz à tona temas
do dia a dia que também podem ser considerados espinhosos. Esses temas que protegem
menos os alunos estão ligados à formação do aluno jovem, são questões ligadas
sobretudo à adolescência. São temas variados que poderiam até mesmo construir outros
percursos temáticos, porém, optamos por deixá-los agrupados por estarem todos
destinados à formação comportamental do aluno jovem. Assim, há na obra questões que
desenvolvem temas como a bulimia, a anorexia, plásticas na infância, gravidez na
adolescência, o uso de tatuagens, a clonagem, algumas comparações com os anos 60 e
seus reflexos nos dias de hoje, sobretudo no que diz respeito ao cinema, às músicas, aos
protestos marcantes da época, ao uso de drogas, ao fascínio exagerado pela liberdade
sexual, ao começo da era hippie, entre outros.
No entanto, alguns desses temas mais densos são tratados com relativa leveza. É
o caso, por exemplo da questão da anorexia e da bulimia, tratada em um boxe escrito
pelo enunciador. Nesse pequeno texto, o enunciador não explica sobre as doenças e suas
causas, mas pondera apenas que na internet existem blogs que apresentam a anorexia e a
bulimia como estilos de vida e que, nos Estados Unidos, há um movimento com cerca
de 1000 adolescentes contrário a essa difusão ilusória das duas doenças. (cf. Português
Linguagens 9º ano, 2010a, p. 17). O texto que descreve os anos 60 traz um vasto
panorama da época em todo o mundo, porém, ao discutir questões relativas às drogas, às
128
revoluções do período, ao uso de drogas alucinógenas e aos valores tradicionais como a
virgindade e o casamento, o enunciador não se aprofunda nas questões, limitando-se
apenas a pontuar as datas e os lemas da época, descrever brevemente as manifestações
em todo o mundo e citar alguns dos nomes mais importantes da década.
A questão tecnológica é também um subtema presente em Português
Linguagens 9º ano (2010a). Esse subtema é recoberto sensorialmente por figuras que,
em tese, buscam dar “corporalidade” e recobrir os temas por traços semânticos, como
podemos identificar nos exemplos a seguir: “você que é plugado no mundo”; “viaja pela
imagem”; “navega pela nternet”. (ibid., p.03).
As figuras utilizadas, nesse subtema, determinam, a nosso ver, os valores aos
quais estão expostos os alunos na escola atual. Essas imagens que conduzem o sujeito
são resultantes de diferentes formas de se ver, ouvir, sentir e, então, recortar o mundo.
Não pode a escola se furtar, de acordo com o momento histórico e social e conforme as
aspirações sociais de nossos tempos, de considerar pontos de vista que emergem do
contexto da tecnologia digital e que competem em importância, entre as atividades
comunicativas, com outras atividades relativas ao papel ou ao som.
Como lembra Discini (2005, p. 283), “a construção do mundo remete a uma rede
conceitual de relações imanentes, a uma estrutura conceitual, a que se dá o nome de
formação ideológica”. Essa sociedade da informação, da qual o livro didático brasileiro
busca tratar, figurativiza a Internet como uma espécie de protótipo de novas formas de
comportamento comunicativo. Nesse quadro, essa formação ideológica dita ao homem
socializado o que pensar e, ao se materializar por meio das formações discursivas, lança
mão das figuras que, por sua vez, se encadeiam em percursos no texto.
Embora a obra preconize o ensino-aprendizagem sob a perspectiva dos gêneros,
não foram encontrados gêneros discursivos digitais que concretizassem o subtema da
tecnologia. Não obstante a totalidade tratar das questões digitais no livro didático
destinado ao 6º ano, não foi proposto nesse discurso específico - Português Linguagens
9º ano (2010a) - nenhum gênero discursivo digital, sendo que, na unidade nomeada
“Nosso tempo”, um dos momentos da obra destinado à apresentação e discussão da
questão da tecnologia, a produção textual solicitada desenvolve uma proposta
tradicional de redação escolar, que propõe aos alunos a escrita de um texto dissertativo-
argumentativo sobre as redes sociais on-line.

129
O último subtema que discutiremos no livro didático brasileiro é a questão da
cidadania. Em Português Linguagens 9º ano (2010a), o enunciador diz ser
comprometido com as discussões pertinentes para a formação do aluno enquanto
cidadão, em preocupação constante com a construção da cidadania. Esse enunciador vê
o homem de forma socializada, em suas relações nas práticas sociais comunicativas,
como se vê no texto de apresentação da obra: “enfim, este livro foi escrito para você que
deseja aprimorar sua capacidade de interagir com as pessoas e com o mundo em que
vive”. (ibid., p.03).
Espera-se do enunciatário um sujeito capaz de vivenciar a experiência da leitura
e da escrita no convívio com textos reais, ditos “autênticos”, escritos por escritores
verdadeiros e direcionados a leitores verdadeiros, em situações de comunicação
empíricas que os tornem necessários. O ator da enunciação firma a necessidade de se
formar leitores e escritores que ultrapassem os limites de suas práticas exlusivamente
escolares e chegue, dessa maneira, a conhecer e compartilhar a diversidade textual
vivenciada em sala de aula. Figurativiza-se, assim, a questão da cidadania por meio de
outros exemplos: “a primeira passeata de um filho” (ibid., p. 162), “a cidadania
brasileira é inacessível”, texto dissertativo escrito por um aluno do ensino médio (ibid.,
p. 219), texto sobre questões relativas ao trânsito e às mulheres no trânsito (ibid., p.
233), entre outros.
Por fim, salientamos que a manipulação por sedução e tentação em relação aos
temas e figuras no livro didático brasileiro não se dá apenas pela linguagem verbal, tal
como mostramos, mas também pela linguagem sincrética. Basta observarmos como
recurso de figurativização utilizado pela enunciação no discurso Português Linguagens
9º ano (2010a) a escolha da diagramação agradável aos olhos, com letras cuja fonte é
grande, boxes coloridos, várias imagens, ilustrações e quadros, porém tudo se relaciona
de forma misturada.
Os textos distribuídos nos capítulos que compõem as unidades da obra não
costumam respeitar a mesma diagramação (layout) que possuem em seus ambientes
reais de circulação. Embora se enquadrem em gêneros discursivos variados que
circulam em distintas esferas de comunicação, como a cotidiana, a escolar, a literária,
entre outras, os textos acabam assumindo, invariavelmente, o mesmo aspecto visual, o
que certamente dificulta a construção das primeiras impressões (não verbais) sobre o

130
gênero trabalhado, seu local de circulação, o perfil dos enunciatários a quem o texto se
destina, os objetivos da produção daquele texto, etc.
Cumpre, para finalizar, reiterar que todos esses subtemas elencados, que têm por
meta enriquecer semanticamente o discurso, constituem, na verdade, as formações
discursivas que determinam o que pode e o que deve ser dito numa dada conjuntura, já
que concretizam, pela linguagem, a concepção de mundo e – acrescentamos - a visão de
língua que lhes é correspondente.
Vejamos, a seguir, como o corpo da enunciação ganha forma no nível discursivo
ao se concretizar tematica e figurativamente, assumindo o status de ator da enunciação.

3.4 Ator da enunciação e éthos

Discutimos anteriormente (cf. capítulo 1) que os procedimentos de tematização e


figurativização representam, no nível discursivo, os valores assumidos pelo sujeito da
narrativa. Aponta Barros (2008, p. 68) que “a disseminação dos temas e a
figurativização deles são tarefas do sujeito da enunciação”. Ao proceder dessa maneira,
o sujeito da enunciação garante, então, graças aos percursos temáticos e figurativos
instaurados, a coerência semântica do discurso. Conclui a semioticista que a
concretização figurativa do conteúdo cria efeitos de sentido diversos, sobretudo, de
realidade.
Iniciaremos a análise de nosso discurso, o livro didático Português Linguagens
9º ano (2010a), observando, em princípio, como a formação discursiva em questão faz a
escolha de seus temas e subtemas, que reproduzem conceitos dados por meio de
categorizações e reafirmam, no discurso, o imaginário social. Para tanto, tomaremos
como ponto de partida, a instauração do actante-sujeito da enunciação, pressuposta no
enunciado.
Para Discini (2009, p. 38), “esse actante, individualizado no nível discursivo, é o
ator da enunciação, em se tratando de uma totalidade de discursos.” (grifos do autor).
Dessa maneira, como o faz Greimas & Courtés (2011, p. 44) ao distinguirem o sujeito
da enunciação, “actante implícito pressuposto pelo enunciado”, do ator da enunciação,
depreendido pela totalidade dos seus discursos, denominaremos “Cereja & Magalhães”,
individualizados, o ator autônomo desse universo discursivo. As aspas são para
explicar que não se trata, certamente, de indivíduos empíricos, “de carne e osso” e
131
biografados, mas de um efeito de sujeito que, por simulacro, define o eu que fala: todo
ator reúne em si “propriedades estruturais de ordem sintática e semântica, constituindo-
se assim como indivíduo” (Greimas & Courtés, 2011, p. 262).
Depreenderíamos, então, por meio da totalidade de discursos construídos por
esse ator, a construção de um efeito de individualização, dado pela recorrência do uso.
Trata-se de um ator tematizado e figurativizado, na recorrência de um conjunto de
discursos. Falemos um pouco dessa totalidade, antes de analisarmos propriamente a
disseminação dos temas e suas figurativizações.
A delimitação de uma totalidade, bem como de uma unidade, vêm à tona quando
falamos em estilo, explica Discini (2009, p. 31): “unidade, porque há um sentido único,
ou um efeito de individuação; totalidade, porque há um conjunto de discursos, proposto
à unidade. Unidade e totalidade são universais quantitativos”. Prossegue Discini (2009),
buscando nos estudos de Brøndal (1986), a reflexão sobre tais conceitos e trazendo,
para o estudo do estilo, enquanto totalidade, os termos-extremos: unus e totus. Mas para
que recorrer a tal fonte? Fazemo-lo, visto que temos um suposto conjunto de discursos,
que, por usa vez, estabelece uma totalidade hierarquicamente superior: gênero livro
didático para o ensino de língua.
Definidos esses princípios, passemos então ao estudo do ator da enunciação que,
de antemão, sabemos tratar-se de um ator tematizado, ou seja, um sujeito que entra em
junção com um objeto de valor, e que “sob as luzes do discurso tal objeto apresenta-se
definitivamente historicizado e ideologizado”, tomando para nós a explicação de Discini
(2009, p. 39). Como já dito, o livro didático define-se, para nós, como um discurso
temático, em que as figuras são distribuídas de maneira esparsa.
Não perderemos de vista, contudo, que as direções tomadas pelo ator da
enunciação na escolha dos temas desenvolvidos no discurso, no caso, do livro didático,
são simulacros das formações ideológicas discursivizadas. O desenvolvimento de um ou
outro tema, portanto, remete a posicionamentos provenientes de universos individuais,
construídos no interior de culturas, ou como define Discini (2009, p. 39): “o ator da
enunciação enquanto reunião de temas de uma totalidade depende, portanto, da
colocação em discurso de determinados valores sociais e individuais”, colocação esta
sempre realizada pelo sujeito da enunciação, efeito de sujeito da totalidade enunciada.
Como já apresentado (cf. CAPÍTULO 1), analisar a imagem, o corpo e o tom de
voz do ator da enunciação é analisar o éthos. Em Português Linguagens 9º ano (2010a),

132
analisaremos a instância enunciativa do narrador, justamente por não considerarmos a
totalidade da coleção. Isso não impede, no entanto, de chegarmos a algumas conclusões
também sobre a suposta maneira de ser no mundo do enunciador, o que será
devidamente sinalizado.
Pelos recursos mostrados até o momento, tanto no nível narrativo, quanto no
nível discursivo, a imagem do narrador em Português Linguagens 9º ano (2010a) pode
ser construída de forma multifacetada. Trata-se de um narrador que, por simulacro,
primeiramente cria uma intimidade discursiva, aproximando-se do narratário e
propondo-lhe valores que lhe (narratário) interessam. Por meio de um jogo de tentação e
sedução, em que o eu não aparece explícito, mas se corporifica pela instauração do tu, o
narrador, em caráter intimista e com sobrecarga de cumplicidade discursiva, manipula o
narratário para fazê-lo assumir como seu o enunciado do outro. Parece criar-se, então,
um simulacro mais apaixonado e mais apegado, próprio do discurso pedagógico.
Não vive, contudo, apenas de tentar e seduzir o ator de Português Linguagens
9º ano (2010a), mas também de intimidar. É próprio da cena enunciativa desse gênero
discursivo - livro didático para o ensino de língua materna – que alguns recursos que
caracterizam a manipulação por intimidação sejam vistos como coerções genéricas, tais
como o uso de perguntas e respostas e o modo verbal imperativo. Este, pela própria
definição da gramática, expressa semanticamente, em 2ª pessoa, uma ordem ou pedido;
aquele pode ser visto como procedimento ambíguo, pois de um lado aproxima o
narratário para que ele responda às perguntas colocadas, numa espécie de diálogo, típico
das relações mais descontraídas, porém, por outro lado, força o narratário a responder
ou reagir ao que está sendo proposto, em uma relação de influência e poder do
manipulador.
Perguntamo-nos, então: que éthos é esse que de um lado afaga e de outro
intimida? De um lado, valoriza e enaltece as qualidades do narratário e o coloca a tal
ponto que recusar a manipulação significaria renunciar a todas as qualidades que lhe
foram atribuídas; por outro, dotado de um poder-fazer, leva o narratário a um dever-
fazer, a partir de uma espécie de “ameaça”: faça o que está proposto, pois só assim
obterá o valor oferecido, ou seja, o objeto cognitivo saber. Parece dúbia a imagem do
narrador e muito provavelmente do ator da enunciação em Português Linguagens 9º
ano (2010a), firmando, na verdade, o éthos do discurso pedagógico e dos livros
didáticos para o ensino de língua materna.

133
Interessa-nos, também, entender como se constrói o corpo desse ator, ou seja, as
características físicas que esse ator apresenta. No caso do narrador analisado, aponta-se
para um corpo flácido, frouxo e de pouca consistência, dado pela análise da
diagramação da obra. Observem-se as páginas 80 e 81 (cf. ANEXO 1) de Português
Linguagens 9º ano (2010a) para que se possa entender a difusão do corpo enunciativo
da obra. Já num primeiro contato, predomina no livro didático, como já discutido, uma
diagramação desequilibrada, distante do simulacro da “justa medida”.
O tamanho das letras também ajuda a construir o éthos de uma enunciação que
deve adequar-se aos objetivos didático-pedagógicos do livro didático. Há diretrizes no
Guia 2011 que preconizam que o livro didático brasileiro apresente letras grandes62 e
um projeto-editorial não anárquico; as diretrizes que norteiam a adequação da estrutura
editorial e do projeto gráfico nos livros didáticos brasileiros parecem cuidar para que as
obras produzidas no país não extrapolem o nível de densidade aceitável, o que, por
simulacro, referencializa o ator da enunciação como mais difuso e rarefeito, menos
austero, como veremos, posteriormente.
Vê-se que a diagramação da obra contribui para a instauração de um corpo
enunciativo recortado, flácido, composto de partes aqui e acolá, não uniformes, que não
caracterizam um “texto corrido”. São poucos os momentos na obra, normalmente
aqueles destinados à leitura de textos, em que há um texto contínuo. Precisa-se dizer,
contudo, que esse éthos mais difuso é resultado de uma política governamental imposta
pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Por conseguinte, faz parte da
proposta de livro didático no Brasil um projeto gráfico-editorial que apresente:

[...] legibilidade gráfica adequada para o nível de escolaridade visado, do


ponto de vista do desenho e do tamanho das letras (grifos nossos); do
espaçamento entre letras, palavras e linhas; do formato, dimensões e
disposição dos textos na página; impressão em preto do texto principal;
títulos e subtítulos claramente hierarquizados por meio de recursos
gráficos compatíveis (grifos nossos) [...] impressão que não prejudique a
legibilidade no verso da página. (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD
2011, 2010, p. 15).

A ausência de quadros sinóticos, na obra, também ajuda a criar o simulacro de


dispersão e pouca concentração no livro didático brasileiro, criando-se, portanto, um
corpo mais espaçoso, cuja coluna dorsal parece dobrar-se mais facilmente aos ideais

62
Vide anexo 1.
134
governamentais ou aos ideais mercadológicos que, de certa forma, coisificam o
conhecimento.
Recorre-se, por fim, aos outros livros didáticos da coleção Português
Linguagens destinados aos 6º, 7º e 8º anos do ensino fundamental, para se contastar que
também seus narradores se servem das mesmas estratégias narrativas e discursivas para
fazer-crer o narratário do discurso posto. Pode-se, então, dizer que o que se apontou
para o narrador de Português Linguagens 9º ano (2010a), pode-se estender aos outros
narradores da coleção, o que faz, portanto, que se defina um éthos do enunciador, da
coleção, tratado em sua totalidade. Encontra-se, nos outros volumes destinados às outras
séries do ensino fundamental, a mesma cumplicidade discursiva explícita, que se
fundamenta linguística, ideológica, visual e somaticamente. Podemos, ao final da
análise, construir uma identidade discursiva do enunciador do livro didático Português
Linguagens.
Passemos, a seguir, a uma análise que utiliza os mesmos procedimentos
metodológicos propostos pela semiótica discursiva, porém, voltada ao livro didático
francês.

3.5. O livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a): apresentação geral

O livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a)63 apresenta-se organizado


globalmente em dois módulos maiores: um de cor branca, que denominaremos estudo
dos textos, embora nem sempre as atividades apresentadas estejam relacionadas à
interpretação de textos (páginas 18 a 311), e um de cor laranja relacionado ao estudo da
língua (páginas 313 a 443), como veremos no decorrer da análise.
A nosso ver, a estrutura de organização em dois módulos diferentes (estudo dos
textos e da gramática) cria dois blocos independentes de atividades ou de reflexões
sobre o ensino da língua francesa. Isso não impede, porém, que se estabeleça um elo
entre atividades que se encontram no plano linguístico, e atividades de produção oral,
produção escrita, atividades de leitura, todas constituintes do trabalho com textos.
Lembramos que essa divisão em um livro único entre o estudo do texto, de um lado, e o
estudo da gramática, do outro, relembra a tradição escolar francesa de sempre

63
Cf. Anexo 2
135
apresentar, nas aulas de francês, dois livros escolares: um somente dedicado ao trabalho
da leitura e outro somente dedicado ao trabalho gramatical.
No módulo de estudos dos textos, encontramos oito capítulos (Petites histoires à
lire entre les lignes, Affirmations de soi, Entre deux cultures: qui suis-je?, Au nom de la
dignité humaine, Hymnes à la liberté, À la recherche du bonheur, Peintures du monde,
Fatalité et pouvoir au cœur du tragique) e seis “dossiers” destinados ao estudo da
disciplina História da arte (Vipère au poing: un roman autobiographique et ses
adaptations, Abécédaire de la Grande Guerre, La ferme des animaux: une fable
politique, Rêves de ville, Œdipe le maudit e Roméo et Juliette: une histoire d’amour
mythique). Cada capítulo apresenta as seguintes seções: Lectures, Œuvre intégrale,
L’écho du poète, Faire le point, Langue et expression (grammaire, ortographe, lexique,
écrit, oral), Lectures personnelles e Évaluations. Algumas dessas seções podem não
aparecer em todos os capítulos ou ter seus nomes modificados, como é o caso, por
exemplo, da seção L’écho du poète que, em uma unidade, passa a se denominar L’écho
du passé. No entanto, são recorrentes em todos os capítulos as seções destinadas ao
trabalho da leitura, aos estudos linguísticos, às leituras pessoais, ao resumo do conteúdo
(faire le point) e à avaliação.
Outro aspecto que vale ser ressaltado em relação à organização geral da obra é
que as unidades e os “dossiers” estão reunidos em cinco núcleos maiores que fazem
parte de uma progressão anual, como podemos observar a seguir:

a) núcleo 1: Romances contemporâneos: Petites histoires à lire entre les lignes;


b) núcleo 2: Relatos de infância e de adolescência: Affirmations de soi, “Dossier”
Vipère au poing: un roman autobiographique et ses adaptations, Entre deux
cultures: qui suis-je?;
c) núcleo 3: A literatura e a história: “Dossier” Abécédaire de la Grande Guerre,
Au nom de la dignité humaine, “Dossier” La ferme des animaux: une fable
politique, Hymnes à la liberté;
d) núcleo 4: Olhares sobre o mundo contemporâneo: À la recherche du bonheur,
“Dossier”: Rêves de ville, Peintures du monde;
e) núcleo 5: Universo trágico: “Dossier” Oedipe le maudit, Fatalité et pouvoir au
cœur du tragique “Dossier” ; Roméo et Juliette: une histoire d’amour mythique;

136
Aos cinco núcleos apresentados, acrescenta-se, no final da parte destinada ao
estudo dos textos, duas outras seções: uma intitulada “Kiosque”64 e outra nomeada ABC
de l´image. A primeira trata de temas evocados pela imprensa. São desenvolvidas nessa
seção atividades transversais que correspondem a uma demanda do Socle commun
(competências cívicas e sociais) de uma sensibilização para a orientação profissional
dos alunos. A segunda permite ao aluno revisar as principais noções que foram
trabalhadas principalmente nos “dossiers” destinados ao estudo da História da arte e que
dizem respeito a um estudo sistemático sobre as imagens. São resumidas, dessa forma,
noções relativas ao ângulo de tomada de posição, ao enquadramento, à composição, ao
plano, às cores, à perspectiva, a proporção, ao zoom, dentre outros. Completa-se a lista
enumerada pela adição de elementos relativos ao movimento da câmera, ao script, a
sequência, ao som, e, novamente, ao zoom.
Compreendida a estrutura geral da obra, passemos a uma análise narrativo-
discursiva da obra Fleurs d’encre 3e (2012a), de acordo com a teoria escolhida.

3.6 Estratégias de manipulação no livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a)

Neste item, buscaremos mostrar os resultados que obtivemos relativos às


análises narrativo-discursivas realizadas na unidade 6 do livro Fleurs d’encre 3e
(2012a)65, com base no quadro teórico-metodológico estabelecido pela semiótica
discursiva de linha francesa. Nossa escolha pela unidade em questão se deu pelo fato de
que nela encontramos, entre os conteúdos apresentados na unidade, referências a temas
em comum com o livro didático brasileiro já analisado, no caso, o discurso indireto.
Ressaltamos que nossas análises não levam em conta os variados textos oriundos
de diferentes autores, que são propostos para a realização das atividades didático-
pedagógicas de leitura, de produção de texto, de análise gramatical, etc. Assim, optamos
por restringir nosso olhar aos enunciados das questões, às perguntas formuladas, às
explicações e aos comentários que acompanham os exercícios, referindo-nos sempre,
portanto, aos enunciados cuja enunciação é de responsabilidade dos autores.
Analisemos, então, primeiramente, o nível narrativo do percurso gerativo de sentido,

64
Em tradução livre: Banca de jornal
65
Vide anexo 2.
137
para, em seguida, convertê-lo em estruturas discursivas assumidas pelo sujeito da
enunciação.
Assim como já visto em relação ao livro didático brasileiro (cf. ITEM 3.3.1),
recuperaremos também no nível narrativo do livro francês a história de um sujeito, no
papel temático tanto de aluno quanto de professor, que é manipulado por outro sujeito,
figurativizado pelos autores. Este exerce um fazer persuasivo, aquele um fazer
interpretativo. Os autores-manipuladores, dotados de um querer/saber/poder/fazer-crer
fazem os alunos-manipulados crer em seu discurso.
Partimos do princípio de que no livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a) há um
percurso de manipulação que também apresenta um destinador que, buscando alterar a
competência do destinatário, oferece-lhe um contrato que tem por objetivo alterar a
competência e levá-lo a fazer algo. Oferece o destinador-manipulador ao destinatário
um objeto cognitivo, ou seja, um saber. Esse processo parece ser inerente ao gênero
discursivo livro didático para o ensino de língua materna.
Lembremos que esse contrato é precedido de um fazer-crer do destinador do
livro ao qual corresponde um fazer interpretativo (crer) da parte do destinatário. Dessa
forma, o querer fazer-crer determina, a partir de um simulacro construído pelo
destinador para o destinatário, quais serão as estratégias narrativas e discursivas a serem
utilizadas nesse processo de modificação da competência do destinatário. Veremos a
seguir de quais tipos de figuras de manipulação (cf. CAPÍTULO 1) se serve o
destinador-manipulador de Fleurs d’encre 3e (2012a) para levar seu destinatário-
manipulado ao fazer-fazer e realizar, então, sua persuasão.

3.6.1 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por sedução e tentação

Iniciaremos a análise das estratégias de manipulação utilizadas pelo destinador


no livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a) pela constatação de que a obra não propõe
um texto de apresentação nos mesmos moldes do livro didático brasileiro. Como visto
na análise anterior de Português Linguagens 9º ano (2010a), um primeiro contato
enunciativo é estabelecido entre narrador e narratário por meio deste texto inicial,
pertencente ao gênero carta de apresentação. Em Fleurs d’encre 3e (2012a), ao
contrário, logo após a capa, há uma página com o nome da obra e o nível de

138
escolaridade, assim como os nomes dos autores. Nas páginas seguintes, há um sumário
detalhado que tem por objetivo apresentar diretamente, por meio de quadros, os
elementos conteudistas trazidos pela obra. O primeiro contato com a obra firma, pois,
um simulacro mais racional e inteligível. Apagam-se as evidências da comunicação e da
interação, em detrimento da objetividade dos dados e dos fatos. Barros (2002b, p. 38)
lembra que “são, em geral, empregados nesses discursos tabelas, números, nomes,
datas, lugares, que produzem os efeitos já mencionados de realidade, de confiança, de
credibilidade”. Parece ser esse o mecanismo de manipulação utilizado pelo destinador,
dado o excesso de quadros sinóticos que compõem as primeiras páginas da obra. No
entanto, salientamos que o sumário apresenta algumas imagens, o que gera um efeito de
sentido de sensorialidade, tanto pelo uso de figuras, quanto pelo uso de cores, o que cria
uma aproximação maior. As duas imagens abaixo relatam o que descrevemos:

139
Imagem 10: Sumário: Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 03

140
Imagem 11: Sumário: Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 04

As duas páginas finais dessa seção destinada à apresentação do livro são


interessantes para a análise dos mecanismos empregados na estratégia de persuasão por
141
tentação e sedução. Na tentativa de fazer-crer, oferecem-se ao destinatário alguns
valores que se acham inscritos no enunciado, valores esses de posse do sujeito operador.
As imagens abaixo refletem o explicado:

Imagem 12: Sumário: Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 16

142
Imagem 13: Sumário Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 17

O manipulador no livro didático francês, sobretudo por meio do mecanismo de


manipulação por tentação, dotado de um poder-fazer, oferece valores positivos ao
143
destinatário, buscando alterar sua competência (do destinatário), levando-o ao querer-
fazer. Esses valores positivos são tidos pelo destinatário como, de algum modo,
irrecusáveis. Alguns desses valores foram apresentados pelo destinador da seguinte
forma: trata-se de uma obra que prepara o aluno para o exame do brevet (cf.
CAPÍTULO 2), contemplando, para tanto, as diretivas do Socle Commun (cf.
CAPÍTULO 2). Dessa maneira, propõem-se aos destinatários-alunos um trabalho de
compreensão de texto, reescrita, ditado, atividades gramaticais e ortografia, atividades
pedagógicas que constituem uma das grandes partes do exame. Em seguida, o livro
didático apresenta uma seção destinada ao trabalho da produção escrita, oferecendo ao
destinatário dois temas que o prepararão para o exame: um destinado à imaginação e
outro destinado a uma reflexão sobre uma questão em relação com o sentido do texto.
Encontra-se, no entanto, ao analisar a totalidade desse discurso, ou seja, os
outros livros didáticos da coleção Fleurs d´encre, no exemplar destinado ao quinto ano
do ensino fundamental – no sistema francês 6 e – um texto de apresentação endereçado
aos jovens alunos que acabavam de entrar em contato com a coleção. Nesse breve texto,
que não pertence ao gênero carta de apresentação, o narrador dá as boas vindas aos
alunos “Bienvenue dans votre Manuel de 6e” para, em seguida, explicar ao narratário a
organização do livro, no que diz respeito à organização de cada capítulo e às sessões
neles encontradas. Trata-se, na verdade, muito mais de uma página explicativa de
apresentação geral da obra do que de um primeiro contato com o narratário. No final, o
narrador retoma as rédeas do texto enunciativo e termina sua apresentação desejando
aos alunos um ótimo ano escolar: “bonne année scolaire!”. Os demais livros didáticos
da coleção não apresentaram em seu corpo nenhum texto mais emocional direcionado
aos alunos. A análise de outras cinco coleções de livros didáticos franceses destinadas
ao ensino fundamental mostrou algo revelador: o gênero textual carta de apresentação
não é elemento integrante da cena genérica do livro didático de francês para o ensino de
língua materna. Nas outras coleções analisadas, foi encontrado um texto inicial
intitulado “Avant-propos”, em tradução livre, um prefácio, tendo por objetivo dar
indicações úteis sobre o plano estrutural e os objetivos da obra.
Além do exposto, outros mecanismos de sedução e tentação podem ser
encontrados. Um primeiro seria o forte trabalho com a literatura encontrado na obra,
pois a partir dele, oferece-se ao aluno o acesso ao patrimônio literário francês. A
literatura é trabalhada pela totalidade da coleção Fleurs d´encre, desde a Antiguidade

144
(sexto ano do ensino fundamental), passando pela Idade Média, Renascimento e século
XVII (sétimo ano do ensino fundamental), séculos XVIII e XIX (oitavo ano do ensino
fundamental), concluindo-se pelos séculos XX e XXI (nono ano do ensino
fundamental). Trata-se de uma exigência dos Nouveaux Programmes (2012), que
determinam o que deve ser trabalhado na escola em cada disciplina. Com isso, oferece-
se ao destinatário:

Une culture européenne par une connaissance des textes majeurs de


l´Antiquité (l´Iliade et L´Odyssée, récits de la fondation de Rome, la Bible) et
qui soit menagée en classe une première approche du fait religieux en France,
en Europe et dans le monde, en prenant appui sur des textes fondateurs (en
particulier des extraits de la Bible et du Coran) dans l´esprit de laïcité
respectueux des consciences et des convictions. (Programmes, 2012, p. 02).

Associado à literatura, oferece-se também ao destinatário a cultura humanista,


isto é, para os Nouveaux Programmes (2012) cabe ao ensino fundamental fornecer aos
alunos uma cultura que o meio social e midiático cotidiano nem sempre ajudam a
construir. Busca-se, a partir disso, um ensino do francês que ofereça ao destinatário-
aluno os elementos necessários à compreensão de obras literárias, cinematográficas,
musicais e plásticas. Paralelo a esse desejo de fundar, na escola, uma cultura humanista,
há ainda na obra capítulos e/ou atividades destinados ao trabalho com a história da arte,
normalmente ligados(as) ao estudo dos textos literários propostos nas atividades de
leitura. Segundo o documento francês, é importante que o aluno tenha acesso ao estudo
da história da arte porque “son enseignement éclaire et facilite la lecture et la
compréhension de certaines œuvres littéraires car il propose des approches spécifiques
en ce qui concerne les fonctions, les formes et les genres de ces œuvres”. (Programmes,
2012, p. 04).
O querer-fazer do destinatário alterado pelo destinador também se revela no
movimento interdisciplinar trazido pelo livro didático francês. Trata-se de um
movimento efetivo, corroborado pela existência na obra de capítulos propostos para que
se favoreça o trabalho interdisciplinar, como é o caso, por exemplo, do capítulo
destinado ao estudo da história da arte. Normalmente, esse trabalho associa as
disciplinas de francês e de história, uma vez que, no final do ensino fundamental
francês, o aluno deverá ser capaz de situar uma obra literária não apenas em seu
contexto cultural, mas também histórico. Segundo os Nouveaux Programmes, “l´élève
est apte à percevoir les échos et les correspondances que des œuvres entretiennent entre
145
elles à une époque donnée”. (Programmes, 2012, p. 04). Isso pode explicar em Fleurs
d’encre 3e (2012a) a quantidade exacerbada de pinturas, esculturas, obras literárias,
fotografias, leituras de peças de teatro, etc., objetos de valor cultural positivo propostos
pelo destinador para que se crie certa cumplicidade junto ao destinatário e este não
escape à manipulação.
Ao se oferecer o objeto cognitivo saber, por meio dos objetos de valor
elencados, o destinador de Fleurs d’encre 3e (2012a) também busca alterar a existência
modal do sujeito manipulado, levando-o a ser e fazendo-o ser sujeito do conhecimento.
Dessa forma, além das estratégias analisadas para persuadir o destinatário, outras
estratégias levam o sujeito a querer no percurso de manipulação por tentação e sedução
em Fleurs d’encre 3e (2012a). Passemos a elas.
Outro objeto de valor proposto pelo destinador-manipulador ao destinatário-
manipulado se dá por meio do discurso da gramática, que emprega uma série de
procedimentos para levar o destinatário a acreditar na verdade e na necessidade de se
usar a norma “correta”, entre aspas por se tratar da norma única. A partir do estudo da
modalização, percebemos que o livro didático francês, no tocante ao tipo de norma e de
língua, preconiza um uso natural ou normal da língua, definido por Barros (2011, p.292)
como “norma única ou natural”. Essa norma, determinada pela modalização do ser,
constrói a imagem de uma língua homogênea, sem variação, em que um único uso é
aceitável, visto que só há aquele. O livro didático francês, ao assumir essa concepção de
norma, não abre espaço, por exemplo, para um estudo de outros usos, visto que eles não
são considerados.
Interessante notar que embora o patrimônio literário francês seja vasto e que
textos literários tradicionalmente sirvam de exemplo para ilustrar as regras de
gramática, não se encontra em Fleurs d´encre 3e (2012a) nenhum exemplo gramatical
que seja retirado da literatura. Deduz-se, portanto, que os exemplos sejam todos frutos
da enunciação, que instaura, assim, um enunciador de prestígio, erudito, capaz de
fornecer os bons exemplos e as regras da língua. O exame das categorias de pessoa e de
tempo que mostraremos posteriormente ajuda a reforçar essas conclusões.
No que diz respeito ao tratamento conferido à língua em Fleurs d´encre 3e
(2012a), fica explícito no livro do professor (2012b) o posicionamento da obra em
relação a seu aprendizado:

La partie langue présente un certain nombre de pages consacrées à des


révisions du programme des années antérieurs : celles-ci sont présentées sous
146
formes des fiches de révision afin de faciliter la mémorisation en fin de
collège [...]. Pour tenir compte des nouveaux programmes, les pages de
langue relatives aux nouveautés du programme de troisième s´organisent de
la manière suivante : une rubrique « Observer pour comprendre » qui vise à
faire réfléchir les élèves sur le fonctionnement de la langue. ; par des
manipulations linguistiques (permutations, suppressions, expansions...) et une
démarche inductive, l´élève est amené à comprendre le système de la langue ;
une rubrique « Retenir la leçon » avec des leçons courtes, clairement
organisées et hiérarchisées de façon à faciliter la mémorisation. Nous nous
sommes donné pour règle d´éviter le jargon de spécialistes et de nous mettre
à la portée d´un élève de troisième. (Bertagna & Carrier, 2012b, p. 14).

Embora a argumentação seja em prol de uma gramática indutiva, ou seja, aquela


que incita a capacidade cognitiva do aluno e sua capacidade de observação,
comparação, classificação e generalização, é a gramática dedutiva que acaba
prevalecendo na obra, ou seja, aquela em que a atenção recai sobre as grandes
regularidades da língua, visto que seu objetivo principal é fazer com que o aluno
domine o quadro da frase. Lembremos que o próprio documento governamental francês
(Programmmes) preconiza, em seu quadro, a gramática da frase. Os exercícios a seguir
demonstram nossas considerações: Indiquez la classe grammaticale et la fonction de
“en”. (p.134); Distinguez les participes présents et les adjectifs verbaux: quelles seront
les formes à accorder ? (p.135) ; Pourquoi l´adjectif « vacillante » est-il un adjectif
verbal ? Ce type d´adjectif s´accorde-t-il ? (p. 135). Os exemplos elencados deixam
claro que, em vários momentos do discurso, o enunciador não se inspirou na gramática
indutiva como diz fazer no manual do professor, ao contrário, observa-se a primazia da
gramática e da ortografia nas atividades propostas.
Em nenhum momento, recuperamos nesse discurso uma diretiva em relação ao
francês que deve ser usado pelo aluno, porém, pelas atividades, deduzimos se tratar do
francês “standard”, quadro de trabalho no qual há praticamente uma rejeição pelas
outras variantes da língua, como já mencionado. Há explícito no discurso uma
preocupação em relação a um possível ato de errar da parte do aluno, característica
típica das metodologias tradicionais de estudo da língua, em que o erro não é permitido
e é, portanto, excluído do processo de ensino-aprendizagem: Récrivez le passage selon
la consigne, en soulignant les mots modifiés, sans faire des fautes de copie.(p.135,
grifos nossos).
É importante ressaltar que o trabalho gramatical da obra está intimamente ligado
ao trabalho ortográfico e à prática do ditado, atividades comuns na cultura escolar

147
francesa, o que dá a essa gramática um alto grau de conservadorismo e rigor. No manual
do professor, podemos entender de maneira clara como a gramática deve ser trabalhada
em sala: “il s´agit en effet d´aborder la langue comme un système, de faire acquérir les
mots de la langue, de construire des séances rigoureuses qui cernent une notion [...] il en
va de même pour l´orthographe”. (Bertagna & Carrier, 2012b, p. 13).
Observemos agora entre as estratégias de manipulação, como o enunciador de
Fleurs d´encre 3e (2012a) usa as categorias de pessoa, tempo e espaço para seduzir e/ou
tentar o enunciatário.
Verificamos que a interação no livro didático em questão se dá tanto como
enunciação enunciada, quanto como enunciado enunciado, conforme mostraremos no
decorrer da análise. Iniciaremos nossa análise pelo primeiro caso, ou seja, a enunciação
enunciada, em que se deixam no discurso-enunciado marcas e traços da enunciação.
Logo, podemos afirmar que o livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a) apresenta uma
interação entre os sujeitos que pode ser considerada subjetiva, uma vez que se vê o
predomínio de enunciados em primeira (e segunda) pessoa, no tempo do “agora” e no
espaço do “aqui”, que caracterizam a enunciação enunciada; (re)constrói-se, portanto,
por um simulacro discursivo, o ato de dizer, ou seja, o ato da enunciação. Esses
discursos que têm por objetivo criar um simulacro da enunciação produzem,
normalmente, efeitos de sentido de proximidade discursiva, isto é, cria-se a impressão
de uma intimidade entre o enunciador e o enunciatário. Nas palavras de Barros (2002b,
p.19) “(os discursos em primeira pessoa) constroem interações com efeitos de
subjetividade e, portanto, predominantemente sensoriais e emocionais”, típicas
estratégias da persuasão por sedução.
Lembremos, a princípio, que o discurso analisado, o livro didático para o ensino
de língua materna, é um espaço no qual vemos instaurado um “diálogo” entre o(s)
autor(es) e o(s) aluno(s) e professor(es). Para que possamos analisar o percurso seguido
por aquele que toma a palavra e enuncia, devemos reconhecer a presença ou a ausência
de determinados índices linguísticos que colaboram para criar a maneira pela qual ele
instaura o seu enunciatário e, automaticamente, se instaura. Para confirmarmos que o
livro didático francês instaura seu discurso em primeira pessoa, voltaremos nosso olhar,
inicialmente, à projeção de pessoa (actancial) no discurso-enunciado dado. O narrador66

66
Assim como procedemos em relação ao livro didático brasileiro, analisamos a enunciação em apenas
uma obra da coleção Fleurs d´encre: o livro didático da “troisième” (3e) etapa do ensino francês. Embora
não tenhamos analisado a totalidade (totus) da coleção, entendemos que ela pode, por sua vez, dividir-se
148
interpela o narratário tanto por meio dos enunciados dos exercícios, quanto pelas
questões que são propostas para a realização dos exercícios.
No livro Fleurs d’encre 3e (2012a) temos, por meio de uma debreagem
enunciativa de 1o grau, a instauração de um narrador em primeira pessoa, embora de
maneira implícita, simulacro discursivo do enunciador implícito, como vemos nos
exemplos a seguir, todos encontrados entre as páginas 116 e 141 da unidade 6: Qu’est-
ce que ces noms évoquent pour vous? (ibid., p.118); Qu’observez-vous dans le ciel?
(ibid., p.119); Que voyez-vous au centre de la pupille? (ibid., p. 121); Quelles sont,
selon vous, leurs connotations? (ibid., p. 123); Que constatez-vous? (ibid., p.129). Ao
se dirigir ao aluno e tratá-lo por vous, relação essa que na teoria da enunciação seria
representado pelo binômio inseparável “eu-tu”, o narrador, além de instaurar aquele
com quem se fala (seu narratário, o “tu”, simulacro do enunciatário implícito), também
se instaura, uma vez que o “tu” pressupõe o “eu” que, por outro lado, não se constitui
sem o “tu”. Parece-nos, no entanto, que o pronome “vous”, nesse caso, pode ser
interpretado tanto por um aluno apenas, o que o caracterizaria como o “vous de
politesse”, quanto pelo conjunto múltiplo de alunos (vocês). Podemos encontrar
momentos em que o pronome “vous” dirige-se ao grupo de alunos, como vemos a
seguir: L’un d’entre vous est nommé “meneur de débat”: il veille à la juste répartition
de la parole et au respect de la parole de chacun. (ibid., p. 138); En vous organisant
par petits groupes d’élèves ayant lu des livres différents, élaborez un dossier
journalistique sur le thème de l’enfant dans les tourmentes de l’histoire. (ibid., p.139).
Trata-se, portanto, da primeira marca linguística que nos ajuda a recuperar a
presença do enunciador (e da enunciação, portanto) no enunciado, embora não se veja,
nos enunciados dos exercícios, a assunção plena da enunciação por meio do pronome
pessoal “eu”. Essa proximidade cria, por assim dizer, um efeito de cumplicidade entre
narrador e narratário, aproxima-os, gerando efeitos de sentido de proximidade e
reciprocidade. As relações construídas dessa maneira são muito mais sensoriais e
emocionais, propícias à tentativa de se manipular, sobretudo, por sedução. Fortalecer os
laços de igualdade e de reciprocidade reforça a imagem positiva que se faz do outro,
levando-o a “comprar” a ideia que lhe é sugerida.

em outras totalidades, denominadas unus. Essa posição, de certo modo, dificulta a diferenciação entre a
voz e o éthos do enunciador e a voz e o éthos do narrador, no livro didático em questão. Diante dessa
situação de unicidade, optamos, portanto, em considerar a voz que fala no livro como a voz do narrador e,
hipoteticamente, a voz do enunciador.
149
No entanto, a comunicação é marcada por um desequilíbrio, uma vez que,
culturalmente, o pronome “vous de politesse”, ou seja, aquele dirigido a uma só pessoa
é usado na França para estabelecer relações de menor proximidade e, portanto, maior
formalidade entre as pessoas. Dessa forma, o narrador expressa o desejo de que se crie
um efeito de distância face ao narratário; reforçam-se, assim, traços de formalidade e de
falta de intimidade, frutos de uma relação assimétrica e de uma manipulação por
intimidação, da qual falaremos mais especificamente no próximo item.
Obtém-se, daí, um efeito de sentido de respeito e afastamento, uma espécie de
manutenção da diferença, já que o autor do livro didático não se coloca no mesmo nível
de igualdade que o aluno, visto que ele é o detentor do saber. Como tal, o narrador não
pode se colocar no mesmo nível do narratário, pois se o fizer, não vai ser aceito como
aquele que tem o conhecimento a mais. Cria-se, também, um efeito de sentido de
superioridade, quanto ao saber, pelo menos. Excluem-se, portanto, os efeitos de
igualdade e de pessoalidade das relações em um mesmo patamar. Permitimo-nos abrir
parêntese, à guisa de informação, para salientar que nos livros didáticos destinados a
crianças na faixa etária dos 3 aos 10 anos, o pronome de tratamento utilizado pelos
narradores é o pronome “tu”, o que sugere uma relação de maior proximidade e
familiaridade entre os pares.
Encontramos, ainda, no livro didático em questão, outra estratégia da enunciação
para a instauração de suas marcas no enunciado: o mecanismo de perguntas e respostas,
procedimento discursivo que gera um efeito de sentido de aparente diálogo entre os
pares. Esse mecanismo se construiu no livro didático de duas formas distintas: uma
primeira, em que há a presença explícita do pronome pessoal ao qual o narrador se
dirige, portanto, mais direta; uma segunda em que, mesmo sem a explicitação do
pronome pessoal (normalmente o pronome “vous”), há a instalação do narratário, porém
de forma implícita, visto que, ao se fazer uma pergunta, pressupõe-se que alguém a
responderá, mesmo que indiretamente. Os exemplos ilustram o que afirmamos: Que
peut-il symboliser, selon vous, l´arrière-plan? Pourquoi? (Fleurs d’encre 3e, 2012a, p.
117, grifo nosso); Quels éléments du tableau mettent em scène une forme de dignité?
(ibid., p. 117).
Já que falamos dos mecanismos de perguntas e respostas, cabe aqui um
comentário elucidativo no que diz respeito à formulação de frases interrogativas em
francês, em virtude de seus diferentes efeitos de sentido. Como nos assevera

150
Charaudeau (1992), a interrogação pode ser entendida tanto do ponto do enunciador
quanto do ponto do enuncitário. O primeiro, ao formular uma questão, coloca, em seu
enunciado, uma informação que deverá ser adquirida, solicitando ao enunciatário que
responda o que sabe. Dessa forma, o enunciador impõe ao destinatário um papel de
“respondedor”. Ao destinatário cabe, então, uma obrigação de resposta, já que é visto
como alguém que tem competência para responder (saber-fazer).
As questões colocadas pelo enunciador ao enunciatário pertencem a três modos
de configuração, que se acompanham todos de uma entonação ascendente na forma oral
ou de um ponto de interrogação na forma escrita. São eles: a interrogação pela
entonação (forma oral) ou pelo ponto de interrogação, como vemos no livro didático
Fleurs d’encre 3e (2012a): Le retour dans la vie? Un régime totalitaire? Une
ségrégation? (ibid., p.118). Um segundo tipo de interrogação em francês é aquele que
pode se fazer pela inversão da ordem Sujeito-Verbo, quando o sujeito é um pronome de
pessoa, ou pela redundância do sujeito, quando este não é um pronome sujeito:
Qu’apprend-on sur Giorgio? (Fleurs d’encre 3e 2012a, p. 134); Que constatez-vous?
(ibid., p. 129); En quoi ce texte a-t-il valeur de témoignage? (ibid., p. 121); Quelles
formes de violence ce tableau évoque-t-il pour vous? (ibid., p. 117). Nesse caso, as
formas utilizadas pertencem a um nível de língua elaborado, “cuidado”, o que,
naturalmente, pressupõe o simulacro de um enunciador que goza de um relativo
prestígio linguístico, como já comentado.
Um terceiro tipo seria a interrogação por meio da forma est-ce que, forma
corrente da língua oral, porém muito usada na escrita. Não foi identificado, contudo,
nenhum uso dessa forma nas perguntas formuladas pelo enunciador como questões
diretas no livro didático em questão. Na verdade, para Grevisse & Goosse (2008,
p.522), as interrogações iniciadas por est-ce que são consideradas, normalmente, como
pouco elegantes ou pesadas. Houve, contudo, recorrências da forma est-ce que quando a
partícula serviu para reforçar o advérbio interrogativo (cf. WAGNER & PINCHON,
1991), como por exemplo: Qu´est-ce qu´une allocution? (Fleurs d’encre 3e , 2012a, p.
122); Qu´est-ce qui caractérise le régime politique en Iran ?(ibid., p. 128).
Uma última possibilidade de se elaborar frases interrogativas em francês é pelo
uso de advérbios interrogativos, como nos casos: Quels éléments du tableau mettent en
scène une forme de dignité? (ibid., p. 117); Qu’est-ce qu’un génocide? (ibid., p. 118);
Qui sont les personnages? (ibid., p. 119); Pourquoi, selon vous, Semprún dit-il [...]?

151
(ibid., p. 121); entre outros. Nesse caso, o livro analisado faz vasto uso dessas palavras
interrogativas em seus discursos-enunciados, sobretudo quando se pressupõe a
existência de uma informação genérica para ser respondida.
Embora haja um predomínio no livro didático Fleurs d´encre 3e (2012a) de uma
comunicação enunciativa entre os interlocutores, existem momentos em que o
enunciador opta por instaurar em seus enunciados não mais os actantes, o espaço e o
tempo da enunciação, mas os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado
(algures) e o tempo do enunciado (então), procedimento discursivo dito debreagem
enunciva. Analisando, inicialmente, a questão actancial, vemos, por meio desse recurso,
um ocultamento da enunciação, não sendo possível, dessa maneira, recuperar suas
marcas. Para tanto, o narrador, projetado no discurso-enunciado pelo enunciador, serve-
se de alguns mecanismos da linguagem, tais como:

a) o uso do pronome il impessoal: Pour traiter certaines questions de


grammaire liées à ce texte, il convient de connaître les périphrases
verbales. (ibid., p.134); Il existe des mots qui ont plusieurs classes
grammaticales. (ibid., p.313); Il faut respecter la concordance de
temps (ibid., p. 382);

b) o pronome on representando a comunidade científica: On peut


juxtaposer ou coordonner plusieurs propositions de même nature.
(ibid., p. 314); Dans la phrase emphatique, on emploie les pronoms
renforcés. (ibid., p. 320);

c) a forma nominal infinitivo impessoal, com valor de imperativo:


Écrire lisiblement un texte, spontanément ou sous la dictée, en
respectant l’orthographe et la grammaire (ibid., p. 135); Ne pas
confondre la conjonction si qui introduit une proposition
subordonnée interrogative directe (ibid., p. 382); Rédiger un texte
bref, cohérent et ponctué à partir des consignes données (ibid., p.
137).

152
Por meio dos mecanismos linguísticos elencados, notamos que o narrador do
livro francês simula um discurso em que se tem a impressão de que o texto enunciou-se
sozinho, como se as questões formuladas ou as explicações e definições dadas não
tivessem por detrás a voz do narrador. Revela-se, aí, um efeito de sentido de
objetividade, afastamento e assimetria do discurso de um enunciado enunciado.
Lembramos que embora essa estratégia discursiva, também típica de uma persuasão por
sedução e/ou tentação, seja diferente da primeira, mais próxima e subjetiva, ela continua
a confirmar a imagem positiva que se faz do outro, pois cria um efeito de sentido de
respeito, em que não se podem confundir os papeis temáticos e figurativos.
Interessante notar que tais mecanismos se deram, sobretudo, no ensino da
gramática, o que nos faz entender que não obstante ser corriqueira e estar presente no
dia a dia dos falantes, a norma da língua precisa ser respeitada pelo falante e se coloca,
portanto, fora do quadro enunciativo. A opção por um discurso mais objetivo, asséptico
de subjetividade, se deu, sobretudo, em partes bem específicas, como: no discurso da
gramática, que se pretende um discurso neutro, próximo do científico; nos textos
históricos, que têm por objetivo descrever a vida dos autores da literatura francesa; nas
notas, que visam a dar pequenas explicações sobre uma obra de arte apresentada, sobre
a vida de um pintor ou sobre as referências a respeito de um personagem famoso, como
se pode notar na página 123, quando o livro descreve a vida de Ruby Bridges, primeira
criança negra a frequentar uma escola destinada a alunos brancos nos Estados Unidos.
Assim, podemos entender o livro Fleurs d’encre 3e (2012a) como um discurso
enunciativo que se serve, em determinados momentos, de recursos enuncivos para
efeitos de sentido de neutralidade, distanciamento, simulacros da “justa medida” de que
se aproxima o discurso científico. Corroboram nossa ideia as palavras de Fiorin (2008b,
p. 26): “como o ideal de ciência [...] é a objetividade, o discurso científico tem como
uma de suas regras constitutivas a eliminação de marcas enunciativas, ou seja, aquilo a
que se aspira no discurso científico é construir um discurso só com enunciados”.
O enunciador de Fleurs d’encre 3e (2012a) também faz uso de outro mecanismo
de instauração da categoria de pessoa em seu enunciado, a embreagem. Ao contrário da
debreagem, que é a colocação fora da instância de enunciação da pessoa, do espaço e do
tempo do enunciado, a embreagem consiste no “efeito de retorno à enunciação”, como
está em Fiorin (2008b, p. 27).

153
O mecanismo de embreagem actancial pode ser recuperado em questões
formuladas pelo narrador nos exercícios destinados aos alunos. Observamos, assim, que
muitas das perguntas referentes aos exercícios de compreensão de texto ou de reflexão
gramatical estão formuladas com o pronome on, como nos exemplos a seguir: Pourquoi
peut-on dire que ce roman appartient au genre de la science fiction? (Fleurs d’encre 3e
2012a, p. 125); Où trouve-t-on les affiches de Big Brother? (ibid., p. 125); Qu´apprend-
on sur Gorgio ? (ibid., p. 134) ;
Façamos, primeiramente, uma consideração sobre o uso desse pronome. Em
francês, atribuímos valores semânticos distintos ao pronome on, porém qualquer
interpretação parte da seguinte premissa, dada por Charaudeau (1992): o pronome on
representa uma coletividade, cuja identidade é indeterminada pelo fato de o pronome
expressar um conjunto no qual cada indivíduo se confunde com os outros. Dessa forma,
se o pronome on pode ser substituído por outras pessoas, temos um processo que
consiste no apagamento não apenas do status da pessoa da interlocução, mas também da
identidade do indivíduo. O pronome ficaria, portanto, em um anonimato. Daí, os
variados usos do pronome, dentre os quais dois parecem interessar-nos, em um primeiro
momento, para tratarmos de livros didáticos: o pronome on como procedimento de
afastamento da enunciação (mise à distance) ou como uma coletividade que representa
a comunidade científica, como, em nível de ilustração, nos exemplos gramaticais: Dans
la phrase emphatique, on emploie les pronoms renforcés (Fleurs d’encre 3e , 2012a, p.
320); On nomme locutions conjonctives les conjonctions composées de plusieurs mots
séparés (adverbes, préposition, GN, gérondif, déterminant indéfini) suivis de la
conjonction que ou du pronom relatif où. (ibid., p. 329); On trouve des attributs du sujet
après le verbe être et des verbes d´état. (ibid., p. 334). Os dois usos elencados,
constituem-se, portanto, como um caso de debreagem enunciva.
Entretanto, é mister compreender uma valiosa observação em relação ao uso do
pronome on, que nos parece fundamental justamente por conseguirmos, a partir dela,
recuperar as marcas projetadas pela enunciação no enunciado. Como já dito, o livro
didático analisado goza de uma enunciação em primeira pessoa, o que o faz, portanto,
um discurso enunciativo. Dessa forma, algumas das perguntas feitas pelo narrador a seu
interlocutor, sobretudo nos exercícios, confere ao pronome on um terceiro uso, isto é, há
a substituição do pronome da primeira pessoa do plural (no caso, o pronome nous) pelo
pronome de terceira pessoa do singular (no caso, o pronome on), o que configura,

154
portanto, uma embreagem actancial. Fiorin (2008a, p. 87) nos lembra que no uso da
terceira pessoa pela primeira do plural, “frequentemente, o nós é substituído por formas
indeterminadas”. Embora o estudo do linguista tenha sido feito para analisar as
categorias da enunciação em português, julgamos que sua análise pode também
estender-se ao francês, já que, como afirmamos, o pronome on é também, em certos
usos, um pronome que representa uma forma indeterminada.
Barros (2002b), ao analisar a interação em anúncios publicitários, explica-nos
que o emprego da 3ª pessoa a gente no lugar da 1ª pessoa do plural enfraquece ou
atenua os efeitos de aproximação da enunciação, de subjetividade, de reciprocidade, e
de igualdade entre os interlocutores. Para a autora, que também faz suas análises das
categorias da enunciação em português, o uso do pronome a gente pode ser considerado
um caso híbrido, pois se perde, pouco a pouco, “o efeito de diferença de pessoa (entre a
3ª e a 1ª), em favor do de variação de formalidade (a gente produz o efeito de
informalidade dos usos mais populares, em relação ao nós, mais formal”). (Barros,
2002b, p. 31).
Voltando a nosso objeto de análise, o uso do pronome on no livro didático
parece adequar-se exatamente ao que propõe Barros (2002b) em sua análise de anúncios
publicitários em língua portuguesa. Constrói-se, portanto, uma relação informal entre os
que ocupam posições e cumprem papéis diferentes.
Outro caso de embreagem que deve ser comentado diz respeito aos títulos das
variadas seções do livro didático em questão dados pelo enunciador, que termina por
fazer também o uso da embreagem actancial em alguns momentos. Lembremos que a
embreagem actancial sugere a neutralização da categoria de pessoa. É o que podemos
observar nos dois títulos seguintes, encontrados em Fleurs d’encre 3e (2012):
Manifester sa compréhension du texte – Socle C1 (ibid., p. 119) e Mobiliser ses
connaissances pour donner du sens à l’actualité – Socle C5 (ibid., p. 125). Nesse caso,
explica-nos Fiorin (2008a, p.85), teríamos o uso da 3ª pessoa (ele) pela 2ª pessoa do
singular (tu). Nesse caso, sa compréhension significa, na verdade, a compreensão do
aluno (ta compréhension) e não a de uma 3ª pessoa. No entanto, reiteramos que os
enunciados estão relacionados às competências preconizadas pelo documento oficial
europeu, o Socle commun. Assim, trata-se de uma voz (do documento oficial) que
ocupa, de certa forma, uma posição de superioridade, visto que se eleva “acima da
condição de pessoa e da relação homem a homem” (Benveniste, 1966, p. 231), ou seja,

155
o documento solicita e espera que se cumpram as diretivas dadas, sem que haja
questionamentos. Evita-se, portanto, a instauração do diálogo.
Uma última ocorrência de embreagem actancial pode ser encontrada em uma das
seções do livro didático, intitulada Faire le point, que tem por objetivo fornecer ao
aluno um resumo dos conhecimentos adquiridos na unidade. Após o estudo dos textos,
há, invariavelmente, um pequeno quadro, situado na parte inferior da página, no canto
direito, nomeado Je retiens l’essentiel, que, no caso da unidade 6, está situado na página
133. Esse “je” (eu) expresso no texto é, na verdade, um pronome de primeira pessoa que
significa um “tu”, pronome de segunda pessoa, visto que quem deve, na verdade, reter o
essencial da matéria estudada é o narratário (aluno) e não o narrador. Parece, portanto,
significar: “tu que estudas deves reter o essencial da matéria”. Dizendo “eu”, o narrador
pensava em “tu”, na esperança de que todos os “tu” se reconhecem como sujeito.
Servir-se, da primeira pessoa com o significado de outra é, assim, subjetivar o discurso.
Essa embreagem produz um efeito de dar a palavra ao aluno, pois é como se ele mesmo
dissesse: “eu retenho o essencial”.
Em outros momentos da unidade, como nas páginas 122, 125 e 129, um
pequeno quadrado alaranjado também se dispõe a fazer com que o aluno guarde o
essencial do tema estudado, (dégager l’essentiel Socle C1), dessa vez, contudo, não em
relação a seus estudos, mas no que diz respeito às competências preconizadas pelo Socle
Commun. A maioria dos títulos é construída, pelo narrador, por meio do uso do
infinitivo impessoal, o que caracteriza um efeito de sentido genérico e indefinido, que
afasta as coordenadas actanciais, espaciais e temporais, visto que sua forma permanece
invariável. Considera-se apenas o processo verbal que, nesse caso, é prospectivo, já que
se orienta em direção ao futuro. Ainda que a questão actancial seja amplamente
utilizada pelo enunciador na tentativa de manipular o enunciatário por sedução e/ou
tentação, as estratégias de tempo e de espaço também ajudam a criar um jogo de
aproximação e distanciamento da enunciação, além de outros efeitos de sentido como a
presentificação e a absenteização.
Por meio da debreagem enunciativa, cria-se também a noção de tempo (o agora)
no discurso-enunciado. Se o ato de enunciar ocorre, por definição, no tempo presente,
dado que o agora é o momento da fala, vemos que a enunciação no livro didático
analisado presentifica a maioria dos discursos-enunciados, uma vez que o tempo verbal
por excelência na obra é o presente do indicativo. Isso faz com que tenhamos a

156
impressão de estarmos vendo o momento da conversa entre narrador e narratário em
tempo real, concomitante ao momento da fala, estabelecendo, portanto, o simulacro de
presentificação: Quelle histoire pouvez-vous imaginer à partir de ce tableau? (Fleurs
d’encre 3e, 2012a, p. 19); Quelles sont vos impressions face à ce tableau? (ibid. , p. 20).
Em Fleurs d’encre 3e (2012a), a maioria dos enunciados apresenta o que
Charaudeau (1992) denomina “presente atual” e Fiorin (2008a, p. 149) “presente
pontual”, ou seja, um processo que se realiza necessariamente no momento mesmo em
que o narrador fala, um momento que coincide ponto por ponto com o momento da fala
sendo, portanto, um elemento que produz efeito de atualidade: Quelle nuance de sens
chacune d’elles exprime-t-elle? (Fleurs d’encre 3e, 2012a, p. 117, grifo nosso);
Qu’apprend-on sur Giorgio (ibid., p.117, grifo nosso); Le narrateur se contente-t-il de
regarder ou bien interprète-t-il les regards portés sur lui. (ibid., p.141, grifo nosso);
Comment faut-il comprendre l’expression “un revenant”. (ibid., p.136, grifo nosso);
Que voyez-vous au centre de la pupille? (ibid., p.117, grifo nosso); Comment ce
témoignage illustre-t-il ce propos de Simone Veil? (ibid., p.119, grifo nosso). Nesse
caso, o presente é sempre (re) atualizado cada vez que o aluno se dispõe a responder às
perguntas sugeridas nas atividades.
Dada a proximidade do livro didático com o discurso científico, sobretudo, no
discurso da gramática, o narrador no livro Fleurs d’encre 3e (2012a) também constrói
seus enunciados em outro tempo presente com valor diferente daquele descrito, ou seja,
o presente gnômico ou omnitemporal, em que o momento de referência é um sempre
implícito, como afirma Fiorin (2008a, p. 151). Com esse recurso, constroem-se as
verdades eternas ou aquelas que se definem como tais, como a ciência, a religião e a
sabedoria popular. Trata-se, portanto, de definições vistas como científicas que sempre
acontecem da forma como estão descritas e que englobam o momento da fala, sendo,
então, simultâneas a ela. Cria-se, nesse caso, o simulacro das verdades universais, não
contestáveis, o que favorece o estabelecimento de uma norma única e considerada
natural. Como o eu ausenta-se desse tipo de enunciado, há um efeito de higienização da
subjetividade no texto, cabendo ao leitor, de forma objetiva, apreciar, compreender e
analisar os fatos descritos.
Os exemplos para nossa afirmação foram encontrados, sobretudo, nas definições
gramaticais da obra (Fleurs d’encre 3e, 2012a, p. 314) que, por meio dessa marca
temporal, parecem constituir o fazer-saber: Une proposition est un groupe de mots

157
constituant une unité de sens; On peut juxtaposer ou coordonner plusieurs propositions
de même nature; Les propositions subordonnées infinitives ne comportent pas de
conjonction de subordination; Les pronoms remplacent des noms ou de groupes
nominaux.
Embora o ato de narrar ocorra, por definição, no presente, dado que o presente, o
agora, é o momento da fala (no caso, fala do narrador), é natural encontrarmos na obra
alguns enunciados que indicam uma anterioridade ao marco referencial presente, o que,
nas debreagens enunciativas temporais, se dá pelo uso em francês do “passé composé”.
Vejamos os exemplos: Vous avez été témoin d’une injustice. Vous racontez cette scène
à quelqu’un de votre entourage en faisant part de vos réactions (Fleurs d’encre 3e,
2012a, p. 137, grifo nosso); Le peintre s’est représenté derrière l’orgue de la barbarie:
pourquoi, selon-vous, ne joue-t-il pas de son instrument? (ibid., p.119, grifo nosso).
Nesse caso, as formas verbais do “passé composé” expressam o valor temporal de
anterioridade em relação ao marco referencial presente, ordenado, por sua vez, em
relação ao momento da enunciação.
Assim como observado em relação à anterioridade, encontramos na unidade 6 do
livro didático analisado poucos enunciados que indicam um acontecimento posterior ao
momento da enunciação, chamado de futuro do presente (cf. FIORIN, 2008, p. 153). É
o caso, por exemplo, dos enunciados a seguir: En vous aidant de la fiche-méthode,
analysez le lien d’amitié entre les deux adolescentes. Vous rédigerez un paragraphe
développé et construit (Fleurs d’encre 3e , 2012a, p. 131, grifo nosso); En vous
appuyant sur les analyses menées en A et en B, rédigez un paragraphe argumentatif qui
analyse la signification du titre. Vous n’oublierez pas de citer le texte à l’appui de votre
analyse. (ibid., p.131, grifo nosso); Distinguez participes présents et adjectifs verbaux:
quelles seront les formes à accorder? (ibid., p.135, grifo nosso); Dans un second temps,
exprimez votre commentaire sur la conception de cette vidéo et sur son message; vous
utiliserez le vocabulaire de l’ABC de l’image. (ibid., p. 137, grifo nosso). Parece-nos
que em todas as situações, o futuro do presente não apenas indica uma ação posterior ao
marco referencial presente, mas também expressa uma ação de ordem metódica e
prescritiva, uma ordem a qual o destinatário não pode deixar de cumprir se quiser ter
êxito na elaboração de sua tarefa.
Nesse caso, trata-se muito mais de um mecanismo de intimidação do que de
tentação e sedução, porém optamos por comentá-lo aqui para que a análise dos

158
mecanismos de tempo fique no mesmo bloco. Na verdade, em uma enunciação
imperativa como a que se constrói no livro didático analisado, esse procedimento pode
ser entendido, a nosso ver, muito mais como uma obrigação do que propriamente um
tempo futuro.
A enunciação em Fleurs d´encre 3e (2012a) também utiliza outro procedimento
para a instauração da categoria de tempo no discurso-enunciado: a debreagem temporal
enunciva. Dessa forma, os enunciados narrados são deslocados para um marco
referencial pretérito, no qual há uma relação de concomitância entre as ações descritas.
É o que podemos verificar nos exemplos a seguir: Cette Française devint une femme
politique, fut plusieurs fois ministre et entra à l’Académie française en 2010. (p. 122,
grifo nosso); En 1960, Ruby Bridges fut la première enfant noire à intégrer une école
blanche en Louisiane. (ibid., p. 123, grifo nosso);Ce peintre réaliste américain fut aussi
un célèbre illustrateur de magazines. (ibid., p. 123).
Não obstante os exemplos elencados sejam todos frutos da enunciação, não
encontramos em seus corpos as marcas projetadas da mesma. Os tempos verbais
sublinhados instauram um marco referencial pretérito, podendo ser igualmente
denominados presente do pretérito (cf. FIORIN, 2008a, p.157), visto que são
concomitantes ou simultâneos ao momento referencial pretérito no qual o enunciado se
constrói. Sugerem, portanto, um fato, acontecimento ou descrição não determinados
pelo tempo presente. Recuperamos esse procedimento muito mais nas biografias dos
autores e ou notas sobre passagens históricas referentes, sobretudo, aos textos literários
e ao estudo da história das artes, do que nas seções de interpretação de textos dirigidas
aos alunos, visto que, nesse caso, predomina o marco referencial presente, o agora da
enunciação.
A última instância de projeção das marcas da enunciação no enunciado
(debreagem) que nos falta averiguar é a espacial. Em relação ao espaço onde se dá o
discurso, a obra prioriza as fronteiras do próprio material que é proposto para o trabalho
em sala de aula. Por meio do uso de demonstrativos, o enunciador aproxima o
enunciatário do espaço ordenado em função do aqui (espaço enunciativo), criando,
portanto, um efeito de sentido de proximidade.
Partindo do princípio de que todo espaço enunciativo é ordenado em função de
um aqui (cf. FIORIN, 2008a, p. 262), percebemos que no livro didático analisado, o
narrador faz farto uso dos demonstrativos ce, cet, cette e ces. Vemos, então, que se

159
marca, por meio do uso do demonstrativo, por um procedimento de debreagem
enunciativa, o espaço da enunciação de maneira explícita, conforme verificamos nos
discursos-enunciados: Quelles formes de violence ce tableau évoque-t-il pour vous?
(Fleurs d´encre 3e, 2012a, p. 117, grifo nosso); Auschwitz-Birkenau, Buchenwald:
qu’est-ce que ces noms évoquent pour vous? (ibid., p. 118, grifo nosso).; Quel lien
pouvez-vous faire entre ce récit et le mythe d’Orphée? (ibid., p. 121, grifo nosso); Vous
racontez cette scène à quelqu’un de votre entourage. (ibid., p. 137, grifo nosso).
Também pudemos encontrar espaços enunciativos marcados por adjuntos adverbiais de
lugar ou advérbios de lugar, tais como: Que voyez-vous au centre de la pupille? (ibid.,
p. 121, grifo nosso); À quels épisodes du roman les scènes ci-contres correspondente-
elles? (ibid., p. 131, grifo nosso). Quelle est la différence entre ce participe présent et
l’adjectif verbal ci-dessus? (ibid., p. 135, grifo nosso). Esses espaços demarcados
recuperam, de maneira catafórica ou anafórica, o espaço da enunciação, em que um eu
dirige-se a um tu no tempo do agora.
Embora saibamos que as questões de figurativização são tratadas pela teoria
semiótica em uma semântica discursiva, a figurativização do espaço será mostrada
nesse momento, por julgarmos que o espaço enunciativo ajuda a desenhar o espaço
escolar e o espaço onde se dá o ensino-aprendizagem. Isso se faz de variadas maneiras,
como: por meio dos textos e de seus gêneros (En ce texte; Ce récit; Cet autoportrait
(ibid., p. 121); do material didático do qual dispõe o aluno para o aprendizado: Ce
tableau (ibid., p. 117); Cette musique (ibid., p. 119); Ce poème (ibid., p.132) , Cet
extrait de film (ibid., p.129); Ce chapitre (ibid., p.132), entre outros.
Expostos os mecanismos narrativos e discursivos que levam o sujeito-
manipulado ao querer, analisaremos, a seguir, as estratégias que levam o sujeito ao
dever as quais, no livro didático analisado, se dão sobretudo pelo mecanismo de
intimidação.

3.6.2 Estratégias narrativas e discursivas de manipulação por intimidação

O tipo de manipulação por intimidação, como já dito anteriormente, define-se


por um sujeito-manipulador que, dotado de um poder-fazer, tenta levar o destinatário-
manipulado ao dever-fazer. Adiantaremos, assim, algumas estratégias utilizadas tanto
no nível narrativo quanto no nível discursivo que corporificam a manipulação por
160
intimidação, em que valores negativos (ameaças) são oferecidos ao destinatário.
Reiteramos que no caso do livro didático, as ameaças representariam, sobretudo, a não
apropriação dos valores positivos que são ofertados pelo manipulador.
No nível narrativo, a manipulação por intimidação no livro didático francês se
deu em menor número nas atividades propostas para o estudo do texto pelo uso do
verbo dever (devoir), e em maior número no discurso da gramática. Com relação ao
primeiro caso, teríamos os seguintes exemplos: n´oubliez pas que vous devez informer
un public qui ne connaît pas nécessairement ce dont vous lui parlez (Fleurs d’encre 3e,
2012a, p. 98, grifo nosso); comment devez-vous modifier les terminasions? (ibid., p.135,
grifo nosso). No que diz respeito ao segundo caso, da gramática, vejamos a seguir
como se dá a manipulação por intimidação na obra.
Como já discutido anteriormente, Fleurs d’encre 3e (2012a) apresenta a norma
gramatical como sendo natural ou única (cf. BARROS, 2010). Trata-se, portanto, de
usos que são invariavelmente da mesma forma. Isso faz parte da tradição que permeia o
ensino da língua francesa que, difundida mundialmente com a imagem de língua de
cultura, possui um padrão bem estabelecido de um uso linguístico geral, “de rigor” ou
que é “sempre”.
Um exemplo que pode ilustrar isso é a análise feita por Maingueneau (1979)
sobre a imagem da língua francesa no livro Le Tour de France par deux enfants, de G.
Bruno, que já em 1877, preconizava a língua francesa como língua uniforme da pátria.
Embora as personagens da obra façam um passeio por praticamente toda a França, há
uma transparência uniforme do francês nacional, falado em praticamente todas as
regiões do país. Nenhuma fratura, nenhuma mudança, nenhuma heterogeneidade deve
alterar a unidade dessa língua por excelência: nem as variações dialetais, nem os níveis
de língua, nem as disparidades sociais de todos os tipos, nada deve atrapalhar o caminho
que percorrem os personagens André e Julian. Do norte ao sul do país, grandes e
pequenas cidades se comunicam em uma linguagem gramaticalmente exemplar, ou seja,
na mesma norma-padrão “única” e “natural”, aquela aprendida na escola primária.
De nossa análise, concluímos que a língua francesa se faz representar por um
natural absoluto, completamente desnuda de marcas individuais e sociais. Trata-se de
um efeito de linguagem que reproduz ficcionalmente a instituição linguística francesa,
na qual o francês escolar elementar é neutro. Podemos notar ao ler os textos que a
ideologia subjacente à obra é a que ser “francês” é falar a língua francesa, na medida em

161
que esta possua os atributos que confirmem a legitimidade semântica do discurso da
República sobre a escola. E, acima de tudo, a clareza. Da mesma maneira que o livro
didático ícone do século XIX, Fleurs d’encre 3e (2012a) apresenta seu discurso da
norma gramatical única e natural, língua homogênea que tem como pilar estrutural a
noção da frase, como preconizada pelos Nouveaux Programmes (2012, p.01): “au
collège, le programme privilégie l´apprentissage de la grammaire de la phrase”.
Reforça o que acabamos de constatar a questão dos exemplos na obra.
Percorrendo o memento gramatical da obra, notamos, não obstante o patrimônio
literário francês e seus reconhecidos escritores, todos os exemplos que ilustram as
definições gramaticais provêm do próprio enunciador, ou seja, dos autores. Segundo
Barros (2010), é normal que gramáticas que constroem o discurso da norma única e
natural contenham exemplos criados pelo próprio autor, o que condiz, também, com o
discurso da norma única. Os exemplos dessas gramáticas de norma única não
necessitam ser referendados por usuários de prestígio, uma vez que a língua “é assim”,
portanto, não necessita ser chancelada, como acontece na norma prescritiva, por
exemplo.
Não podemos, contudo, deixar de ressaltar que nas atividades dirigidas ao
trabalho da produção oral e da produção escrita, a obra às vezes volta-se a um discurso
gramatical prescritivo. Embora a norma gramatical da obra adote a postura de um único
uso, em determinados momentos, o trabalho com a língua, ainda que timidamente,
busca tratar de variantes obrigatórias e proibidas. Captam-se esses momentos em
enunciados do tipo: “ne pas utiliser un niveau de langue familier ou vulgaire” (ibid.,
p.151). Veem-se nesses enunciados encontrados apenas nas atividades de produção oral
e escrita da obra uma modalização pelo querer, dever e poder-ser e fazer, como sugere
Barros (2011).
O livro didático Fleurs d’encre 3e (2012a) constrói, então, com esses usos que
devem-ser e que são “sempre”, efeitos de sentido de rigidez, inflexibilidade e
austeridade. A esses usos, juntam-se os possíveis usos aceitáveis e os usos proibidos,
numa espécie de trabalho de variação linguística, que não se dá, na verdade.
Um exame das categorias enunciativas propostas no nível discursivo ajuda-nos a
desvendar outros mecanismos de persuasão por intimidação, como mostraremos a
seguir. A categoria de pessoa é a mais saliente no que diz respeito à manipulação por

162
intimidação em Fleurs d’encre 3e (2012a). O primeiro caso do qual falaremos é o uso
pelo enunciador do modo verbal imperativo.
O imperativo é, pois, um mecanismo de instauração das marcas da enunciação
no enunciado. Em francês, o imperativo67 é entendido como um modo de ação, utilizado
para expressar uma ordem, um pedido ou uma sugestão, com vistas a obter um
resultado. Seu emprego é normalmente implicado por um diálogo (fictício ou real), no
decorrer do qual o enunciador busca agir sobre o enunciatário. (cf. WAGNER &
PINCHON, 1991). Dessa maneira, buscamos na unidade 6 do livro Fleurs d’encre 3e
(2012a) alguns discursos-enunciados que corroboram nossa análise, tais quais:
Cherchez le sens des mots : infernal, maléfice, parade, rite. (ibid., p. 118); Décrivez le
lieu représenté. (ibid., p. 119); Répondez en citant le texte. (ibid., p. 119); Indiquez la
classe grammaticale et la fonction de “en”. (ibid., p. 134); Récrivez le passage selon la
consigne, en soulignant les mots modifiés. (ibid., p. 135) ; Rédigez un texte pour décrire
et commenter ce dessin de presse de Plantu. (ibid., p. 137).
Os exemplos escolhidos revelam uma prescrição regulada por um “eu”
(enunciador) e dirigida a um “tu” (aluno), de forma direta. Motivado por movimentos
variados, dados, sobretudo, pelo tom de voz do discurso (exigência, impaciência,
aborrecimento, etc.), o modo imperativo, nesse caso, transmite uma nuance de ordem e
obrigação. Como um livro didático é, para nós, permeado pela noção de obrigação,
reflexo de uma enunciação imperativa, a maioria dos enunciados nele encontrados
assumem, portanto, a forma verbal do imperativo.
Ainda sobre o uso do imperativo, o narrador, ao empregá-lo, busca também
ocupar uma posição de superioridade em relação ao enunciatário. Por meio dessa
posição superior, ou seja, daquele que solicita - e solicita porque detém o poder e o
saber para tal, está institucionalmente habilitado a fazer - instalam-se no enunciado
efeitos de sentido de manipulação e intimidação. Ao enunciatário, aliás, não cabe
contestação, ou se couber, ela é passível de sanção. Cabe-lhe, na verdade, a execução
(faire dire / faire écrire / faire lire) do que lhe é imposto. Esse simulacro não só confere
credibilidade ao enunciador, mas também termina por legitimar a relação com o
enunciatário, que vê suas expectativas serem correspondidas.

67
No tocante à morfologia do imperativo em francês, o modo verbal comporta três formas: uma para a 2ª
pessoa do singular (tu), uma para a 2ª pessoa do plural (vous) e uma para a 1ª pessoa do plural (nous). As
3ª pessoas do singular e do plural são retiradas do subjuntivo presente, embora não se constituam como
uma relação direta entre os falantes. (cf. WAGNER & PINCHON, 1991).
163
Acompanha a questão do imperativo o mecanismo de perguntas e respostas
encontrado no texto/enunciado, artifício também utilizado na tentativa de se manipular
por tentação, como mostrado no item anterior. Por meio de interrogações diretas,
chamadas por nós de “perguntas abertas”, observamos que o enunciatário é altamente
convocado pelo enunciador. Simula-se, assim, um possível diálogo entre narrador e
narratário, em que este pode manifestar, de forma um pouco mais livre, suas opiniões e
crenças.
Apresentados os tipos de manipulação tanto do nível narrativo quanto do nível
discursivo propostos pela teoria semiótica, passemos ao exame da disseminação de
temas e figuras, que também podem ser considerados estratégias de persuasão propostas
pelo sujeito da enunciação no discurso.

3.6.3 Tematização e figurativização como estratégias do Saber

Buscaremos, neste item, analisar como a tematização e a figurativização podem


ser vistas como estratégias de persuasão no discurso. Lembramos, para tanto, que as
figuras revestem o discurso de duas formas: ora “cobrem” os temas dando ao discurso
coerência figurativa; ora materializam alguns momentos do discurso temático, de forma
ocasional.
No livro didático analisado, em determinados momentos aparecem figuras
ocasionais e esparsas que têm por objetivo persuadir o enunciatário do texto. Dessa
maneira, o processo de figurativização no livro Fleurs d’encre 3e (2012a) se inicia pela
introdução, em variados momentos da obra, de quadros de pintores renomados,
fotografias, esculturas, ilustrações, cartazes, anúncios publicitários, capas de livros,
poemas, mapas, fotogramas, colagens, etc. Criam-se, pela introdução desses elementos
no decorrer das unidades, efeitos de sentido de realidade, de corporalidade e de
criatividade, que seduzem e tentam o enunciatário, levando-o ao querer-fazer, visto que
lhe são ofertados valores considerados positivos. O enunciatário reconhece, então,
figuras do mundo e as interpreta como “reais”. Constrói-se, assim, o simulacro de que o
livro didático diante dele é o retrato fidedigno do “real”. Veremos, mais
detalhadamente, no decorrer da análise, como o livro didático francês tematiza e
figurativiza os variados saberes que são transmitidos como objetos de valor.
164
Não é comum na cena genérica do livro didático para o ensino de língua materna
na França, como já comentado, encontrarmos um texto de apresentação nos moldes do
livro didático brasileiro (carta de apresentação). Isso faz com que o percurso temático
do livro francês não se estabeleça a partir desse texto inicial, inexistente, mas a partir de
uma análise geral da obra, recuperando os traços ou semas que se repetem no discurso e
o tornam coerente. Funda-se, assim, um tema central associado a outros subtemas, que
auxiliam na organização dos valores em percursos.
O livro didático Fleurs d´encre 3e (2012a) desenvolve um tema central que
denominaremos o saber, ou seja, pensa-se que os alunos devem aprender determinados
conteúdos e que a obra deve, portanto, cumprir seu papel de ensinar e transmitir
conhecimentos. Esse tema geral provém de universos distintos, que denominaremos
subtemas, como por exemplo: a cultura humanista, o patrimônio literário francês, a
ciência linguística e o trabalho sobre a linguagem, o domínio das técnicas usuais da
informação e da comunicação. Tratemos desse subtemas que auxiliam, na verdade, a
entender como o grande tema do saber é tematizado e figurativizado na obra.
Voltemos à cena enunciativa de Fleurs d´encre 3e (2012a) para observarmos a
natureza dos temas que permeiam as unidades da obra. A temática geral da obra
impressiona pelo alto grau de elaboração dos temas que veicula, visto que os assuntos
tratados são de denso teor. Vejamos alguns deles: “Abécédaire de la Grande Guerre”,
“Violences de l’histoire”, “Au nom de la dignité humaine”, “La ferme des animaux, une
fable politique”, “Hymnes à la liberté”, “À la recherche du bonheur”, “Peintures du
monde”, “Œdipe, le maudit”, “ mpacts sur les civils”, “Travaux des champs”, “ oméo
et Juliette, une histoire d´amour mythique”, entre outros.
Parece não haver no discurso francês nenhuma preocupação, ao menos aparente,
com o choque e o “amargo” que certos temas possam causar em crianças na faixa etária
dos 11 aos 14 anos. Discute-se com naturalidade e de maneira um tanto profunda, sem
banalidade, temas como massacre dos judeus durante a ocupação nazista na França e na
Europa, o trabalho em campos de concentração, os reflexos das duas grandes guerras
para a sociedade francesa, questões raciais, formas de violência da sociedade atual,
casos de tortura, as maiores violências da História, poetas e poesias oprimidos, entre
outros.
Os Nouveaux Programmes (2012) também visam a uma reafirmação do lugar
central ocupado pela literatura no ensino fundamental francês (collège). Prática

165
altamente cultural, a literatura mantém em Fleurs d´encre 3e (2012a), junto ao estudo da
língua, uma relação estreita e evidente. Trabalho na língua, a literatura, no livro francês,
é tratada como trabalho da língua e sobre a língua. Dessa maneira, é muito forte a
presença dos textos fundadores do patrimônio literário francês nas páginas de Fleurs
d´encre 3e (2012a), justamente por se acreditar que a convocação da literatura em sala
de aula ajuda, por um lado, a reunir um corpo de obras altamente legitimadas e, por
outro lado, estabelecer um corpus linguístico autorizado, que define e descreve a língua
literária e cede, então, os melhores modelos para o uso da língua, além de servir
também de suporte maior para a reflexão linguística.
Em Fleurs d´encre 3e (2012a), além dos textos destinados ao trabalho de leitura
serem todos oriundos da literatura francesa, outros momentos também desenvolvem o
trabalho literário, como, por exemplo, a seção nomeada Œuvre intégrale, que se destina
ao estudo de uma obra em contato direto com o tema ou o objetivo do capítulo, e a
seção L´écho du poète, que propõe invariavelmente um poema em relação temática com
a unidade da obra. Tanto uma seção quanto a outra são sempre momentos de trabalho
didático-pedagógico, em que questões, questionários, análises, leituras expressivas, etc.
são propostos aos alunos e “contribuent à la mémorisation des textes de référence,
préconisée par les nouveaux programmes”. (Bertagna & Carrier, 2012b, p. 10).
Acompanha o procedimento exposto anterior a seção Lectures personnelles, em
que são expostas aos alunos várias obras da literatura francesa e mundial
contemporânea, e que estão em relação direta com os temas desenvolvidos nas
unidades. Esses livros são apresentados na seção por meio de suas capas e de uma
pequena sinopse de cada um deles. Os livros estão todos acompanhados de asteriscos,
que indicam sua dificuldade de leitura. O patrimônio literário francês é outro valor
oferecido ao enunciatário-aluno com o objetivo de seduzi-lo e/ou tentá-lo.
É interessante lembrar que o percurso temático trazido pelo trabalho com a
literatura se junta à mesma sequência temática nos outros livros da coleção Fleurs
d´encre que compõem a totalidade do discurso analisado. Um exame atento dos livros
didáticos da coleção escritos para as outras séries do ensino fundamental e também de
outros livros didáticos para o ensino de francês como língua materna mostra o mesmo
rigor com o trabalho literário, cabendo à literatura o ponto de partida para todas as
atividades didático-pedagógicas das unidades. Isso nos leva a crer que se trata, portanto,

166
de um núcleo invariante do livro didático para o ensino do francês língua materna, visto
que corporifica uma visão de mundo daquela cultura.
Junto a esse percurso temático da linguagem, tematiza-se também o desejo de se
trabalhar na escola a cultura humanista. Na França, existe uma preocupação em se
fornecer ao aluno uma cultura que o meio social e midiático cotidiano não ajudam a
construir. Dessa maneira, o ensino do francês confere aos alunos os elementos que
concernem uma cultura necessária à compreensão de obras literárias, cinematográficas,
musicais e plásticas, como preconizam os Nouveaux Programmes:

Le socle commun de connaissances et de compétences prévoit, au titre de la


culture humaniste (pilier 5) que, tout au long de la scolarité au collège, les
élèves soient « préparés à partager une culture européenne par une
connaissance des textes majeurs de l’Antiquité (L’ liade et L’Odyssée, récits
de la fondation de Rome, La Bible) » et que soit ménagée en classe une «
première approche du fait religieux en France, en Europe et dans le monde,
en prenant notamment appui sur des textes fondateurs (en particulier des
extraits de La Bible et du Coran) dans un esprit de laïcité respectueux des
consciences et des convictions ». (Programmes, 2008, p. 02).

Associado ao domínio da cultura humanista, Fleurs d´encre 3e (2012a) prega


também um trabalho sobre a história da arte, obrigatoriedade segundo as diretrizes
governamentais francesas. Propõem-se que o aluno, ao final do ensino fundamental seja
capaz de situar uma obra literária em um contexto histórico e cultural, enraizando,
assim, a literatura em seu contexto estético. Esse trabalho com a história da arte
favorece a interdisciplinaridade, visto que o ensino dessa disciplina se articula em torno
de domínios estéticos e temáticos que constituem um ponto de convergência com outras
disciplinas, como a história e o francês, por exemplo. No caso da disciplina de história,
a progressão cronológica estabelecida para seu estudo está intimamente ligada àquela
direcionada ao estudo das artes, o que confere ao professor uma relativa margem de
autonomia e liberdade pedagógica, em função da maturidade dos alunos e de seus
objetivos.
Disso resultam as múltiplas obras de arte encontradas no livro didático francês.
Em Fleurs d´encre 3e (2012a), há um primor pelo trabalho iconográfico que salta aos
olhos. As imagens trazidas pelo enunciador, utilizadas como estratégias argumentativas
para tentar e/ou seduzir o enunciatário, são das mais variadas ordens e vão desde
pinturas clássicas do patrimônio artístico francês e mundial até imagens do cotidiano,

167
como por exemplo: quadros, autorretratos, obras de arte, pinturas de livros, capas de
livros, fotografias, cartazes de filmes, etc.; tudo concorre para que a imagem não sirva
apenas de aspecto ilustrativo e estabeleça uma relação de interdiscursividade em contato
direto com os textos literários aos quais faz eco.
Junto ao trabalho literário e cultural, o livro didático francês também concretiza
seus sentidos no âmbito da ciência linguística, mais especificamente, no âmbito da
linguagem. Observando o trabalho gramatical trazido pelo livro didático francês,
notamos, primeiramente, que todo o conteúdo gramatical tratado na obra é uma revisão,
ou seja, destina-se ao último ano do ensino fundamental francês um trabalho sobre
fichas de revisão dos conteúdos curriculares gramaticais trabalhados nos anos
anteriores, que, segundo Bertagna & Carrier (2012b, p. 13), ajuda a “faciliter la
mémorisation en fin de collège”. A última etapa é, assim, preparatória para o exame do
Brevet (cf. CAPÍTULO 2).
A palavra “memorização”, muito usada pelos autores durante seus diálogos
junto aos professores, remete a duas grandes correntes do ensino do francês língua
materna: a corrente tradicional e a corrente aplicacionista de teorias estruturalistas em
linguística e em literatura. Desse modo, constroi-se no livro didático francês um
trabalho gramatical que mistura as duas vertentes, de que resulta o alto grau de
conservadorismo das práticas em sala de aula, como a prática do ditado, por exemplo.
Cria-se, por meio do modo de dizer, o simulacro de um corpo discursivo austero, de
espinha dorsal ereta, quase objetivo e distante, situação paradoxal, afinal não podemos
esquecer que o livro didático é, em princípio, um discurso em 1ª pessoa, portanto
enunciativo, como mostraremos brevemente.
O discurso gramatical em Fleurs d´encre 3e (2012a), de acordo com os
Nouveaux Programmes (2012, p.01), preza a gramática da frase, como podemos
verificar nas diretivas estabelecidas pelo documento: “au collège, le programme
privilégie l´apprentissage de la grammaire de la phrase”. Vale comentar que o programa
governamental anterior, publicado em 2003, preconizava um trabalho sobre a gramática
da enunciação e do texto e que, por uma mudança ideológica, que acarreta, portanto,
uma mudança na concepção de língua, como veremos adiante, retornou-se a um
trabalho sobre os limites da frase. Restou às gramáticas do texto e da enunciação apenas
uma “iniciação”, como nos mostra os Nouveaux Programmes:

168
Quelques-uns des apports majeurs de la linguistique sont introduits à partir de
la classe de Quatrième dans la mesure où ils sont exprimables en termes
simples et clairs et où ils désignent des faits de langue dont la compréhension
est primordiale (la cohérence textuelle et l’énonciation). (Programmes, 2008,
p. 01).

Tomemos, para concretizar o percurso temático proposto pelo discurso sobre a


gramática da frase, a ficha de revisão correspondente à apresentação do que seja uma
frase (cf. Anexo 2), sua definição e seus exemplos. Na ficha, o narrador define o
conceito de frase, apresenta, em seguida, a natureza delas (principal, ou subordinada),
explica seu encadeamento (justaposição, coordenação ou subordinação), define o que
seja uma frase simples e complexa, para, por fim, apresentar os quatro tipos de frases
(declarativa, interrogativa, injuntiva, exclamativa) propostos pela gramática francesa.
Todas as definições estão invariavelmente acompanhadas de um exemplo, que serve
para demostrar a aplicabilidade da regra. Por meio desse mecanismo, que goza de certa
autonomia e ocupa as dimensões do discurso, tem-se, nesse caso, a construção da
verdade discursiva.
Outras estratégias persuasivas adotadas pelo enunciador em relação ao subtema
da linguagem são:
a) o uso do francês em sua norma natural, única, ou, por vezes, na norma
prescritiva, embora seu uso seja bastante restrito, como já mostramos;
b) o uso de textos literários como ponto de partida para o trabalho pedagógico
sobre as questões linguísticas em sala de aula, como detalharemos a seguir;
c) a recorrência, em alguns momentos, a práticas de aprendizagem dedutivas, a
partir de regras, memorização e aplicação em numerosos exercícios de repetição para o
trabalho do ditado, da escrita e do léxico, embora o enunciador insista, no livro do
professor, que a aprendizagem se dê de forma indutiva: “par des manipulations
linguistiques (permutations, suppressions, expansions...) et une démarche inductive
(grifos nossos), l´élève est amené à comprendre le système de la langue. (Bertagna &
Carrier, 2012b, p. 14);
d) explicações dadas pelo enunciador em pequenos boxes, geralmente ao lado
dos textos literários, sobre a vida de autores dos textos propostos, aspectos biográficos,
suas produções literárias, data de nascimento e morte, etc.;

169
e) um trabalho minucioso sobre a expressão oral, aprofundando, em exercícios
que privilegiam a argumentação, temas precisos, limitados e escolhidos em relação aos
textos literários lidos;
f) considerável desejo de se oferecer ao aluno um estudo pormenorizado do texto
não-verbal, com técnicas de enquadramento e focalização, uso de cores e de luz,
questões de perspectiva, zoom, proporção, entre outras.

Outro subtema depreendido do discurso de Fleurs d´encre 3e (2012a) é aquele


que busca refletir o domínio das técnicas usuais da informação e da comunicação,
denominadas, nos últimos anos, no meio acadêmico, como TIC. Em Fleurs d´encre 3e
(2012a), as novas tecnologias associam-se ao ensino do francês como língua materna,
sobretudo, no tratamento do texto, seja na sua construção, na sua elaboração, na sua
apresentação ou na sua difusão.
As atividades que concretizam esse tema são variadas na obra e vão desde
atividades de produção de texto oral e escrito voltadas ao trabalho com redes sociais e
blogs, até visitas virtuais em sites internet de bibliotecas, pesquisas gerais na internet , a
escuta de poemas sob forma de músicas na internet e a preparação de apresentações em
sala de aula, cujo material de apoio encontra-se tanto na internet quanto no centro de
documentação e informação (CDI) das escolas.
Por fim, ressalta-se o mecanismo de figurativização, por meio da linguagem
sincrética, no exame da diagramação da obra, utilizado pela enunciação em Fleurs
d´encre 3e (2012a). Embora já tenhamos comentado a respeito do número grande de
quadros sinóticos em toda a seção destinada ao estudo da gramática, um vislumbre geral
do discurso revela uma diagramação mais ordenada, organizada e, portanto, mais
fechada e mais concentrada.
Nas páginas destinadas à leitura de textos, temos um bom exemplo de um modo
de ser no mundo que caminha à concentração, dado o tamanho da fonte, a disposição
espacial dos textos na página, um layout homogêneo, relativamente organizado, recorte
subjetivo da realidade intensa trazida pela obra, isotopia de um mundo maior e mais
diversificado. A imagem a seguir ilustra a densidade e a concentração propostas nas
páginas do livro didático francês:

170
Imagem 14: Atividade de leitura – Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 46

Veremos, posteriormente, como a enunciação ganha corpo no nível discursivo e


assume o status de ator da enunciação. Concretização temático-figurativa do actante, é
pelo ator da enunciação que se constrói a imagem do enunciador do livro didático
francês. Tratemos de delinear essa imagem, portanto.

171
3.7 Ator da enunciação e éthos

Recuperamos para a análise do livro didático francês Fleurs d´encre 3e (2012a) a


mesma ideia de totalidade que usamos para a análise do livro didático brasileiro,
efetuada anteriormente, ou seja, estabelecemos uma totalidade superior, representada
pelo gênero discursivo livro didático para o ensino de língua materna. Dito isso,
definiremos, como ponto de partida, o ator da enunciação, para, em seguida,
identificarmos seu éthos, ou melhor, a imagem desse autor discursivo e implícito.
O livro didático francês Fleurs d´encre 3e (2012a) também se constrói como um
discurso no qual predominam os temas, alternando momentos de figurativização
esparsa. Isso leva a crer, portanto, que o ator da enunciação nesse discurso é um ator
que desenvolve um papel temático e, quando figurativizado, corresponderia a “Bertagna
& Carrier”. Nunca é demais insistir que não se trata dos autores reais, em carne e osso,
mas de uma imagem desses autores produzida no texto. A questão é ver, então, como se
constrói a imagem do enunciador no discurso francês, ou seja, o ator da enunciação; ao
fazer certas escolhas dos temas que serão tratados naquele discurso, o ator da
enunciação instaura, na verdade, simulacros de formações ideológicas discursivizadas.
Dessa maneira, coloca em prática uma série de valores sociais e individuais que ajudam
a delinear a imagem da totalidade enunciada.
O fato de a enunciação, enquanto éthos, figurativizar um ator que se apoia em
um corpo robusto, altivo, não dobrado, de coluna dorsal ereta e corpo altamente
concentrado, faz com que o enunciatário seja convocado de maneira mais participativa,
como co-enunciador (cf. MAINGUENEAU, 1997), como analisamos anteriormente.
Trata-se de um enunciador e de um enunciatário austeros e conservadores, que não
receiam falar do alto para o alto; apresentando um corpo sóbrio, altivo, e coluna dorsal
ereta, confirmam um éthos polido, que não alivia e que não facilita para o aluno-modelo
instaurado no enunciado. Não se dobra o corpo enunciativo de Fleurs d´encre 3e
(2012a) aos ares mercadológicos que, no fundo, coisificam o conhecimento. Na França,
o livro é da escola, portanto, parece não haver a necessidade de se enquadrar no ideal
financeiro do mercado livreiro. Cria-se, assim, um simulacro de um livro didático mais
livre, mais independente, cujo tom de voz não nivela por baixo, já que parece não estar
preocupado com número de vendas. Fala-se do que se quer e como se quer.

172
Como é natural no ato da enunciação, o enunciador de Fleurs d´encre 3e
(2012a), ao produzir seu discurso e escrever seu texto, tem em mente um público bem
definido. Não podemos nos esquecer de que esse público, simulacro do enunciatário do
texto, é bipartido entre o aluno e o professor, visto que o enunciador dirige-se tanto a
um quanto ao outro. Mas como se constroem o corpo, o caráter e a voz - o páthos -,
tanto do aluno quanto do professor em Fleurs d´encre 3e (2012a)? Como se traçam os
efeitos do tu nesse dizer? Como são individualizados esses atores que simulam estar
presentes no enunciado, ao se constituírem, pela voz do enunciador, como tu no
decorrer do discurso? São respostas que iremos buscar.
É indubitável que o enunciador do livro didático analisado confere ao
enunciatário um saber e um poder para que este se constitua um sujeito de dúvidas. Essa
voz discursiva, ponderada, mas severa, informa o máximo que pode, sobretudo nas
atividades de leitura, mas, por vezes, parece debater menos, principalmente nas
atividades de produção textual, já que não busca, no modo de dizer, o enunciador
autônomo ou polêmico. Essa voz cria, por sua vez, a coerência do próprio simulacro,
que se vincula a uma imagem, a de um sujeito recheado por um alto grau de
conservadorismo e concentração, tradicional, que chama para si a responsabilidade do
ato praticado. Mas em que nos apoiamos para estabelecermos tais representações?
Responderemos a essa questão, observando alguns elementos que ajudarão a elucidar
nosso ponto de vista do discurso em questão.
Vejamos, em primeiro lugar o tratamento dado ao trabalho gramatical em Fleurs
d´encre 3e (2012a). O discurso gramatical da obra está todo organizado em quadros
sinóticos, o que contribui para um efeito de concentração. São várias as tabelas ou
inúmeros os quadros que tentam mostrar e ensinar aos alunos as regras do falar e do
escrever em língua francesa, concentradas em três pilares: a gramática, a ortografia e o
estudo do léxico. Ora, não estaríamos também, nesse caso, diante de um fenômeno
puramente tradicional, que insiste na aquisição de conhecimentos teóricos sobre a
língua, corpo submisso às regras, buscando a elegância da expressão? Parece que sim.
Continuemos tentando entender como o discurso analisado se mostra fechado e
austero, demostrando altos níveis de concentração. Para isso, passemos às atividades de
produção textual. Na realidade, há poucas propostas de produções textuais na obra, uma
vez que as atividades de escrita pautam-se muito mais pela prática da redação escolar,
em que o aluno se situa muito mais como um repetidor de modelos do que um sujeito

173
em perspectiva dialógica, autônomo, que leva em conta a perspectiva do leitor e dialoga
com esse leitor, prevê suas respostas e reações. Figurativiza esse modo de orientar o
trabalho em sala de aula a página Écrit do livro didático, em que podemos encontrar
propostas de escrita do tipo: “Rédigez un texte pour décrire et commenter ce dessin de
presse de Plantu” (ibid., p. 137); “Rédigez un texte à partir de la vídeo d´Amnesty
International intitulée Balle” (ibid., p. 137); “Vous avez été témoin d´une injustice. Vous
racontez cette scène à quelqu´un de votre entourage en faisant part de vos réactions”.
(ibid., p. 137).
Há, também, exercícios que corroboram a austeridade e a postura tradicional
desse ator da enunciação, como os exercícios de reescrita, o ditado, os exercícios de
ortografia, todos esparsos pelo discurso analisado. Diante de tais atividades, constrói-se,
do aluno, uma imagem de repetidor de modelos pré-estabelecidos, que deve respeitar
uma única norma admitida: o francês standard.
As atividades de leitura revelam também o quanto os alunos são convocados
pelo enunciador no livro didático em questão. As questões de interpretação de texto são
sempre “abertas”, não conclusivas, e isso só faz aumentar nas atividades que têm por
objetivo o trabalho sobre o texto, literário, não nos esqueçamos. Vejamos alguns
momentos em que isso se figurativiza no discurso em questão: Quelles formes de
violence ce tableau évoque-t-il pour vous? (ibid., p. 117); Quel est le ton de l´auteur
ici? (ibid., p. 119); En quoi cet autoportrait d´Escher peut-il illustrer le texte de J.
Semprún? Expliquez. (ibid., p. 121); En quoi ce récit témoigne-t-il d´un univers
totalitaire?. (ibid., p. 125). Vejamos que as perguntas propostas pelo enunciador não
são induzidas, e fazem, portanto, com que o aluno reflita e desenvolva,
consequentemente, sua criticidade e seu posicionamento frente ao fato.
E o professor, encarado por nós como duplo do aluno, como ele é instaurado
nesse discurso-enunciado? Um olhar ao livro do mestre (cf. BERTAGNA & CARRIER,
2012b) mostra que o professor é tão convocado pelo enunciador quanto o aluno,
também sendo coenunciador. Evidentemente, e a cena genérica assim o pede, o livro do
mestre delinea os caminhos didático-pedagógicos sugeridos ao profissional. No entanto,
a liberdade pedagógica do professor é uma atitude valorizada em muitas partes do
discurso ao mestre. Isso reforça o papel de co-enunciador do professor junto ao
enunciador autor do livro didático. Estamos, aqui, diante do que Maingueneau (1997)
define como leitor instituído, instância implicada pela própria enunciação do texto. No

174
entanto, o texto dirigido ao mestre é um texto em 3ª pessoa, o que provoca um efeito de
sentido de objetividade e de assimetria de relações.
O livro é ao professor, porém, não se fala com ele, mas se fala dele. O professor
é, indiretamente, chamado ao diálogo, como afirmamos, porém é tratado pelo seu papel
temático (le professeur), o que reforça os laços de respeito. Julgamos estar diante de um
mecanismo de semântica discursiva que reforça não só o papel temático, mas também a
figura do destinatário, merecedor de consideração.
Visto como os discursos francês e brasileiro reproduzem em seus textos
componentes do imaginário social, por meio de temas e figuras, passemos, a seguir, ao
cotejo de dois modos distintos de recortar o mundo e, assim, fazer parecer universal a
verdade construída.

175
4. PORTUGUÊS LINGUAGENS 9º ano (2010a) E FLEURS D´ENCRE 3e (2012a):
ANÁLISE CONTRASTIVA

[...] Forjar: domar o ferro à força,


Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga.
(João Cabral de Melo Neto – O ferrageiro de Carmona)

O presente capítulo tem por objetivo apresentar uma discussão sobre a análise
efetuada no cotejo dos livros didáticos Português Linguagens 9º ano (2010a) e Fleurs
d´encre 3e (2012a). Como procedimento metodológico, trataremos, inicialmente, das
questões que os livros didáticos têm em comum e que, provavelmente, são questões que
ajudam a definir o gênero discursivo livro didático para o ensino de língua materna
para, em seguida, apresentarmos as invariâncias possíveis nos dois discursos, como
diferentes concepções de língua, de ensino de língua, de metodologia, de cultura, entre
outros.
Tomaremos como ponto de partida para discutir os aspectos em comum
encontrados nos dois livros didáticos uma invariante narrativa bastante clara, ou seja, há
uma estrutura complexa de manipulação, em que o enunciador exerce um fazer
persuasivo e o enunciatário, um fazer interpretativo. O primeiro, dotado de um
querer/saber/poder fazer-crer, busca fazer o segundo crer em seu discurso. Para tanto,
oferece-lhe um objeto cognitivo, que denominaremos um saber. Esse valor acha-se
inscrito no enunciado de formas diversas e é justamente nesse momento que entram as
invariâncias, das quais falaremos posteriormente, como já adiantado.
Nesse quadro descrito, veremos que tanto o livro didático brasileiro quanto o
livro didático francês ordenam da mesma forma, por meio de categorias semânticas, os
diferentes conteúdos do texto, ou seja, os dois investem nessa relação a oposição
ignorância vs. sabedoria. No livro didático para o ensino de língua materna, a
ignorância tem valor negativo e é considerada, portanto, como disfórica, enquanto a
sabedoria apresenta-se como valor positivo, buscado pelo destinatário, sendo, portanto,
eufórica. Na verdade, o destinador nos dois livros didáticos atribui ao destinatário os
valores modais do querer e do poder-fazer, que o tornam competente para realizar o
fazer-transformador, ou seja, passar de um estado de ignorância, estaticidade,
continuidade a um estado de sabedoria, dinamicidade e ruptura. Essa categoria

176
semântica que se estabelece no nível fundamental do percurso gerativo de sentido
proposto pela teoria semiótica ordena, a nosso ver, o discurso didático. Para
compreender, no entanto, toda a sua complexidade, remontaremos aos níveis mais
concretos e complexos do percurso gerativo.
Os dois discursos analisados se assemelham quanto ao mecanismo de
manipulação usado na tentativa de transmitir ao outro um querer e/ou um dever. Tanto
o destinador de Português Linguagens 9º ano (2010a), quanto o de Fleurs d´encre 3e
(2012a) manipulam seus destinatários por meio de três grandes classes de manipulação:
a sedução, a tentação e a intimidação. No primeiro caso, manipula-se pelo saber ao
passo que nos outros dois, pelo poder. No entanto, algumas considerações merecem ser
feitas em relação às duas obras.
O livro didático brasileiro, por ter um texto de apresentação, uma carta pessoal,
explicita, já nesse primeiro contato, um contrato ao destinador, no qual se oferecem os
valores, considerados positivos. Faz-se, dessa maneira, por um mecanismo de sedução,
uma imagem positiva do destinatário elogiando-o e enaltecendo-o, dizendo claramente
no texto o que se sabe da sua competência. Paralelamente à sedução, o destinador
também lança mão da tentação, pois oferece ao destinatário valores “positivos”, que
serão apresentados no decorrer desta análise, aos quais o destinatário aspira. Sedução e
tentação parecem confundir-se no percurso da manipulação encontrado no livro didático
brasileiro.
No livro francês, contudo, o texto de apresentação não se dá da mesma forma
que no livro brasileiro. Nega-se, assim, ao destinatário, um primeiro contato, em nome
de uma relativa racionalidade. O texto de apresentação de Fleurs d´encre 3e (2012a) é
um sumário, no qual se apresentam, por meio de quadros sinóticos, os conteúdos que
serão trabalhados na obra. Diferentemente do livro brasileiro, o destinador do livro
francês parece confiar menos no mecanismo de sedução e se pautar mais pelo de
tentação, oferecendo ao destinatário uma “recompensa” que de algum modo deverá ser
vista como irrecusável, ou seja, o(s) saber(eres) dos quais a obra dispõe e que estão
expressos no sumário. Lembramos que esse(s) saber(eres), quando adquiridos,
permitirão ao aluno também obter o brevet francês (cf. CAPÍTULO 2).
Os dois livros didáticos não abrem mão, contudo, de um forte mecanismo de
manipulação por intimidação. Dessa forma, os dois discursos apresentam um sujeito-
manipulador que, dotado de um poder-fazer, busca levar o destinatário ao fazer,

177
normalmente por alguma ameaça. O uso do verbo dever, verbos no imperativo, regras
gramaticais que devem ser respeitadas, normas linguísticas que devem pautar os usos
dos falantes, o uso de alguns substantivos, adjetivos e advérbios que evocam o rigor
gramatical, tudo parece colaborar para que a intimidação altere a competência do
destinatário, levando-o ao dever-fazer.
Como a intimidação nem sempre faz bem à imagem que os poderosos, como os
autores dos livros didáticos, querem que deles se faça, misturam-se ao mecanismo de
intimidação, os mecanismos de sedução e tentação, na tentativa de se criar o simulacro
de um texto “amigo”. sso gera uma relativa ambiguidade, pois, embora o livro didático
para o ensino de língua materna construa a impressão de proximidade, de parceria, de
admirador do outro (aqui, no caso, do aluno), no fundo, trata-se de um discurso
autoritário, intimidador, que, dotado de um poder, passa parte do tempo dando as
diretivas do que o outro deve fazer.
Examinando o estudo feito sobre as modalizações nos discursos analisados,
percebemos que os manipuladores dos dois livros didáticos instauram um sujeito virtual
que quer-fazer e que deve-fazer, característica típica do discurso didático. A variação
entre o livro didático brasileiro e o francês pode ser percebida, todavia, no exame do
discurso da gramática presente nas duas obras. Enquanto o fazer didático da sala de aula
mantém-se praticamente o mesmo no Brasil e na França, ou seja, os dois sistemas
apresentam atividades de leitura, de produção de textos, de produção oral, etc., o
trabalho gramatical apresenta sensíveis mudanças, que podem ser explicadas pela
questão da modalização.
Em Português Linguagens 9º ano (2010a), o estudo da gramática se dá a partir
de uma norma prescritiva, em que variantes da língua são hierarquizadas como
obrigatórias, possíveis ou proibidas. Preza-se e aconselha-se, sobretudo, a norma-padrão
da língua e desprezam-se as normas possíveis ou proibidas. O aluno, inclusive, por não
se adequar à norma-padrão, não é considerado um usuário de prestígio, conforme já
adiantado. (cf. CAPÍTULO 3). Não é isso, no entanto, o que os autores preconizam no
Manual do professor (Cereja & Magalhães, 2010b, p. 02) ao afirmarem que: “a
mudança de postura em relação à língua [...] abre espaço para refletir sobre as
variedades linguísticas”.
Não obstante a explicação dada pelos autores do livro brasileiro, a preferência
pela norma-padrão instaura, ainda que pressupostamente, o discurso do uso correto e do

178
uso errado, da norma culta e da inculta, e cria, então, a imagem da língua heterogênea,
com usos hierarquizados: alguns são mais recomendados, outros melhores, outros
devem ser evitados, etc. Essa norma é vista por Barros (2010) como modalizada
discursivamente pelo querer, dever e poder-ser e fazer.
Pontuemos, contudo, que em alguns momentos do discurso gramatical de
Português Linguagens 9º ano (2010a), encontramos uma recorrência a outro tipo de
discurso em relação à norma, ou seja, um discurso que prega uma língua homogênea,
sem variação, “natural”, “que é assim”. Essa língua é encontrada, na obra,
particulamente nas definições gramaticais. Nesse caso, a modalização não se dá pelo
dever, mas pelo ser.
O livro didático Fleurs d´encre 3e (2012a) parece pautar-se por essa norma em
seu trabalho gramatical. Como a obra faz alusão a um único uso, a língua é vista, então,
como homogênea, em que não há variantes. Essa norma única, predominante na obra, é
a norma-padrão assumida pela enunciação, que, por vezes, possui uma variação de
registro mais formal (soutenu), portanto, mais tenso, ou menos formal (courant), mais
distenso.
Entre as estratégias de manipulação por sedução, tentação e intimidação
encontradas nos dois livros didáticos, estão também os usos das categorias de pessoa,
tempo e espaço, apropriados ao discurso que buscam veicular.
Em Português Linguagens 9º ano (2010a), no que diz respeito à categoria de
pessoa, predomina a debreagem enunciativa em 1ª pessoa, o que, como já explicado,
instaura o eu no discurso. Há, ainda, momentos em que se optou pela instauração da 1ª
pessoa do plural, o que ajuda a configurar o discurso do livro brasileiro como um
discurso predominantemente enunciativo. Outro recurso amplamente utilizado pela
enunciação na obra é o uso do imperativo e do mecanismo de perguntas e respostas.
Projeta-se, com isso, no enunciado, o efeito de sentido de que a enunciação está
ocorrendo naquele exato momento. Segue o mesmo caminho do livro didático brasileiro
o livro didático francês. Fleurs d´encre 3e (2012a), em relação à projeção actancial no
discurso, também se constrói um discurso em 1ª pessoa, no qual predominam os usos
dos pronomes de 2ª pessoa, do modo verbal imperativo e do mecanismo de perguntas e
respostas. A obra faz um uso relativamente maior do mecanismo de embreagem, se
comparada ao livro brasileiro, o que, nos casos apontados (cf. CAPÍTULO 3), gera, em
princípio, um efeito de sentido que busca atenuar a aproximação da enunciação e a

179
subjetividade e reciprocidade entre os interlocutores que ela provoca. Constrói-se,
portanto, uma relação informal entre falantes que ocupam posições e cumprem papéis
diferentes.
A maior parte dos recursos elencados é responsável por criar no discurso efeitos
de subjetividade, de reciprocidade e de cumplicidade; gera, como já explicado
anteriormente, o simulacro de relações muito próximas e excessiva intimidade, além de
equilíbrio de relações entre enunciador e enunciatário.
Corroboram essa enunciação dita enunciada, as noções de tempo e de espaço.
No caso brasileiro, a noção de tempo emprega os procedimentos de presentificação da
enunciação por meio do uso do presente “pontual” (cf. TEM 3.3.1), do pretérito
perfeito 1 e do futuro do presente (cf. ITEM 3.3.1), tempos enunciativos por excelência,
além do presente “omnitemporal ou gnômico” (cf. TEM 3.3.1), sobretudo no discurso
da gramática. O livro didático francês também se assemelha ao livro didático brasileiro
quanto ao uso de tempos verbais, fazendo a enunciação uso praticamente dos mesmos
tempos verbais enunciativos, o presente “pontual”, o presente “omnitemporal” ou
“gnômico”, o “passe composé” e o futuro do presente. O uso de tempos verbais
enunciativos cria, nos dois discursos, efeitos de sentido de presentificação e realidade,
pois se tem a impressão de que os fatos ocorreram no instante exato da enunciação.
As noções de espaço também se assemelham nos dois livros didáticos. Os dois
discursos preservam os limites da própria obra e estão ordenados em função do aqui da
enunciação. Confirmam-se, com esse procedimento, os efeitos de sentido de
proximidade e presentificação, sempre gerados pelo uso de pronomes demonstrativos,
advérbios ou adjuntos adverbiais de lugar.
Podemos, concluir, em um primeiro momento, que o gênero discursivo livro
didático para o ensino de língua materna oferece ao aluno, sujeito virtual do querer-
fazer e do dever-fazer, um saber, inscrito no enunciado de diferentes formas. Além
disso, pode-se dizer que, no gênero, estabelece-se um percurso de manipulação
principalmente por sedução, tentação e intimidação, em que se oferecem ao destinatário
valores considerados tanto “positivos”, quanto “negativos”, como já mostrado em
análises anteriores. (cf. CAPÍTULO 3). Entre as estratégias de manipulação encontradas
no gênero estão também os usos das categorias de pessoa, espaço e tempo apropriados
ao discurso de manipulação da obra. O gênero discursivo livro didático para o ensino
de língua materna é, pois, um discurso enunciativo em 1ª pessoa, logo, mais subjetivo e

180
dialógico. O uso da relação eu X tu depreendido da instância enunciativa no gênero
caracteriza, por isso, relações mais informais, íntimas e espontâneas.
Embora apontemos o livro didático como um discurso prioritariamente em 1ª
pessoa, há momentos em Português Linguagens 9º ano (2010a) e em Fleurs d´encre 3e
(2012a) em que a enunciação buscou, como já foi apontado, a ilusão de afastamento e
de frouxidão dos laços interativos, provocando efeitos de sentido de assimetria e
desigualdade entre os interlocutores posicionados fora do quadro enunciativo. Esse
discurso “monológico” se deu, sobretudo, no trato de questões gramaticais, em que um
maior rigor científico em favor da objetividade dos fatos se dá. Assim, a então
enunciação enunciada cede espaço ao enunciado enunciado, e os mecanismos de
instauração sejam de natureza distinta. (cf. CAPÍTULO 1). Intensifica-se no discurso
gramatical das duas obras um efeito de austeridade até então pouco depreensível de uma
enunciação que, em sua maior parte do tempo, busca construir o simulacro de
sobrecarga de cumplicidade. Destaca-se que o livro francês, se comparado ao livro
brasileiro, faz uso bastante superior de um enunciado com menos subjetividade em
outros momentos da obra, sobretudo no trato de questões históricas ou nos textos que
buscam descrever a vida de autores da literatura francesa.
Dessa forma, cabe afirmar que o livro francês, embora seja um discurso em 1ª
pessoa, apresenta em vários momentos na obra – e não apenas no trabalho gramatical -
um efeito de distância e relativa economia das marcas da enunciação no enunciado,
desestabilizando esse efeito de subjetividade próprio ao gênero. Rompendo, em parte,
com o gênero, Fleurs d´encre 3e (2012a) quer parecer um livro didático mais objetivo.
Coerente ao gênero livro didático para o ensino de língua materna parece ser Português
Linguagens (2010a), em que o enunciado enunciado desprovido das marcas da
enunciação aparece apenas nas questões gramaticais.
O quadro abaixo tem por objetivo permitir uma visualização resumida dos
mecanismos de manipulação utilizados nos dois livros didáticos analisados.

181
PORTUGUÊS LINGUAGENS 9º ano e
FLEURS D´ENCRE 3
(2010) (2012)
 Sedução e tentação  Tentação (prioritariamente) e
CLASSES DE sedução
 Intimidação  Intimidação
MANIPULAÇÃO

MODALIDADES  Saber-fazer e poder-fazer  Poder-fazer (prioritariamente) e


BÁSICAS (destinador) saber-fazer (destinador)
 Querer-fazer (destinatário)  Querer-fazer (destinatário)
 Dever-fazer (destinatário)  Dever-fazer (destinatário)
 Querer, dever e poder-ser e fazer  Ser (gramática)
(gramática)
 Uso do pronome você (tu)  Uso do pronome vous (de
 Uso do pronome nós (inclusivo politesse)
(eu + tu); misto (eu + tu + ele(s);

PROJEÇÕES DE  Uso do imperativo  Uso do imperativo


PESSOA  Mecanismo de perguntas e  Mecanismo de perguntas e
respostas respostas
 Embreagem (nós em lugar de eu)  Embreagem (on em lugar de
nous)
 Embreagem (il em lugar de tu)
 Embreagem (je em lugar de tu)
 Uso da 3ª pessoa  Uso do pronome il impessoal
 Uso do pronome apassivador se  Uso do pronome on
 Uso da forma nominal infinitivo
impessoal;
PROJEÇÕES DE  Uso do presente “pontual”  Uso do presente “pontual”
 Uso do presente “omnitemporal”  Uso do presente “omnitemporal”
TEMPO
ou “gnômico” ou “gnômico”
 Uso do pretérito perfeito 1  Uso do “passé composé”
 Uso do futuro do presente  Uso do futuro do presente
 Uso do pretérito perfeito 2  Uso do “passé simple”
 Uso do pretérito imperfeito
PROJEÇÕES DE  Uso de pronomes demonstrativos  Uso de pronomes demonstrativos
 Uso de adjuntos adverbiais de  Uso de adjuntos adverbiais de
ESPAÇO
lugar lugar
 Uso de advérbios de lugar  Uso de advérbios de lugar
Quadro 8: Mecanismos de manipulação

Se até o momento falamos de elementos que pouca variação apresentaram no


livro didático brasileiro e no livro didático francês, sendo, portanto, elementos comuns
inerentes ao gênero discursivo livro didático para o ensino de língua materna, a partir
da análise dos temas e figuras de cada uma das obras, pode-se perceber uma maior
maleabilidade quanto ao saber, isto é, o saber que se quer ensinar aos alunos no Brasil é

182
diferente do saber que se busca transmitir aos alunos na França, uma vez que a
tematização e a figurativização são feitas de forma distinta nos dois livros.
Para isso, partamos do princípio de que o livro didático não é um discurso
científico, mas um discurso de divulgação científica. Um dos grandes objetivos do livro
didático é transmitir um saber científico e este saber será usado, portanto, num discurso
didático. Interessante, porém, é notar que o discurso didático diferencia-se do discurso
científico justamente por possuir outras estratégias de manipulação, e a facilitação é
uma dessas estratégias. Observemos como as duas totalidades lidam com essa estratégia
em seus discursos, olhando, primeiramente, a tematização e a figurativização nas obras.
Português Linguagens 9º ano (2010a) busca, como já apontado, em um primeiro
momento, transmitir um objeto cognitivo, denominado saber. Esse saber se cobre por
outros saberes oriundos de universos distintos. Constroem-se, dessa forma, paralelos ao
percurso temático central da obra, outros percursos temáticos, que no livro didático
brasileiro são: o domínio das linguagens, o desenvolvimento de conhecimentos
comportamentais, o conhecimento das artes, o universo do jovem, as questões
tecnológicas e, por fim, a prática da cidadania. Para transmitir esses saberes, outros
temas são tratados no livro, em cada uma das unidades, dentre eles: valores, amor,
juventude, nosso tempo, etc. A maior parte dos temas está figurativizada, ainda que
difusamente, visto que o livro didático apresenta um discurso temático de
figurativização esparsa. Vê-se a figurativização tanto por meio de anúncios
publicitários, histórias em quadrinhos, poemas, obras de arte, quadros, quanto por meio
de figuras da adolescência e do mundo jovem (sentimentos como o humor, a
inquietação), questões de cidadania como passeatas, manifestações, entre outros.
Pelo elenco de temas propostos, percebe-se no livro brasileiro que a tematização
é “leve”, ou seja, não se encontram na obra temas que possam ser considerados
“espinhosos” e que venham a desestabilizar o corpo, de certa forma sereno, da
enunciação. Em Português Linguagens 9º ano (2010a), a enunciação parece não estar à
vontade para propor, em seu enunciado, temas e figuras que contrariem os deleites da
adolescência. Preferem-se questões relativas a projetos de vida, esportes,
relacionamentos amorosos, adolescência e consumo, a inquietações, perturbações e
agitações, temas fora de cogitação em uma enunciação que se pauta pelo desejo de
cristalizar temas e figuras que recobrem o interesse do mundo jovem. Dessa forma, não
se veem nas unidades do livro didático brasileiro temas que tratem da História do Brasil

183
ou da história geral, como as revoluções, a colonização portuguesa no Brasil, o
massacre dos índios, a escravidão, as ditaduras no país e seus resultados, entre outros.
Temas de interesse geral, como as grandes guerras ou o Holocausto tampouco são
propostos para estudo e reflexão, o que dificulta, inclusive, um movimento
interdisciplinar efetivo, como veremos ocorrer no livro didático francês.
Nada é gratuito, no entanto. Boa parte das escolhas dos temas se pauta, no
contexto brasileiro, pelas diretrizes preconizadas pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD). Aliás, é importante ressaltar que nem todos os temas do livro
brasileiro são tão inocentes assim. Em alguns momentos da obra, a enunciação parece
querer trazer à tona temas mais consistentes, de relevância para a vida e a formação do
jovem estudante. Registram-se, em algumas lições, temas como bulimia, anorexia,
gravidez indesejada, plásticas na adolescência, entre outros.
No entanto, peca Português Linguagens 9º ano (2010a) ao propor um tratamento
dos temas de forma bem menos dilacerante e dilacerada do que na totalidade francesa.
No Brasil, a superficialidade com que a enunciação trata dos temas que propõe
impressiona pela difusão e rarefação, como já adiantado na análise anterior. Veja-se, por
exemplo, como questões históricas são tratadas na obra:

Imagem 15: Atividade de leitura: Português Linguagens 9º ano

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 119.

Vê-se que o texto acima não tem outro objetivo senão listar e pontuar exemplos
de filmes e livros de pessoas engajadas no auxílio à causa do outro. O tema da

184
alteridade, como se nota no decorrer da unidade em que a atividade está proposta, não é
desenvolvido e nem discutido a contento. Depreendido do modo de dizer, o
comprometimento com a facilitação, no livro didático brasileiro, parece ser semantizado
por uma banalização.
Cumpre-se, dessa maneira, a ordem implícita em tal discurso, que é a de tornar o
livro didático um lugar agradável, em que não se oferecem aos alunos discursos que, de
certa forma, possam desestabilizar esse modo de ver o mundo de forma menos
impactante. Assim, vai se criando, em nossa opinião, um simulacro de aluno
infantilizado, não no sentido pueril, mas no sentido de que se poupa o aluno de
determinados temas, como torturas, morte, guerras, massacres, etc.
Na construção de um corpo soberano, a temática do livro francês, por sua vez,
impressiona pela distância em relação ao livro didático brasileiro. A serenidade e
extensão dos temas de Português Linguagens 9º ano (2010a) dá lugar, em Fleurs
d´encre 3e (2012a), a uma enunciação que parece não relativizar na escolha e no
tratamento conferido aos temas. Além do saber científico, a obra propõe outros saberes
que, assim como no livro brasileiro, provêm de universos distintos, tais quais: o trabalho
sobre a linguagem, a cultura humanista, as técnicas da informação e da comunicação, as
competências sociais e cívicas, a autonomia e a iniciativa. Outros temas também se
desenvolvem e dão corporalidade às unidades da obra, a saber: abecedário da grande
guerra, em nome da dignidade humana, hinos à liberdade, pinturas do mundo, fatalidade
e poder no âmago do trágico, Romeu e Julieta, uma história de amor mítico, entre
outros. Os temas estão figurativizados por meio de quadros, pinturas, esculturas,
cartazes de filmes, ilustrações, etc., praticamente da mesma forma que no livro didático
brasileiro.
O enunciador de Fleurs d´encre 3e (2012a), diferentemente do enunciador de
Português Linguagens 9º ano (2010a), parece não temer a exposição de seu
enunciatário a um tratamento dado ao saber de forma mais pungente. Não parece haver
na França a mesma preocupação que há no Brasil em se fazer do livro didático um lugar
agradável, prazeroso, associando a aprendizagem ao bem-estar. Não se permite ao aluno
ficar a salvo de temas embaraçosos e complicados, por vezes constrangedores, como a
morte nas grandes guerras pelas quais a França passou, a tortura dos judeus em campos
de concentração, a questão do negro na sociedade francesa, a invasão alemã no país e o
impacto sobre os civis durante a Segunda Grande Guerra, a guerra da Argélia e as

185
torturas sofridas pelos colonizados, a literatura frente às violências da História, as
opressões sofridas por povos europeus, etc. A imagem abaixo corporifica o que
afirmamos:

Imagem 16: Atividade de leitura - Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 110

Ressaltemos que as estratégias de tentação e sedução encontradas no percurso do


destinador-manipulador nos dois livros didáticos são consideradas uma tentativa de se
valorizar de maneira positiva o aprendizado. No entanto, no livro francês, esse esforço
para se tornar o livro didático um lugar de aprendizado agradável é atenuado pelo
emprego predominante da estratégia de tentação, modalizada pelo poder, e menos da
186
sedução, modalizada pelo saber, ao passo que no livro brasileiro é acentuado, pelo
emprego prioritariamente da estratégia de sedução.
A atividade de leitura anterior objetiva ilustrar o que afirmamos em relação à
densidade dos temas propostos pelo livro didático francês. Na página, verbal e não-
verbal se completam na tentativa de representar a crueldade sofrida por mulheres
francesas, que ocupando o lugar de cavalos, realizam o trabalho de arado em campos de
concentração. O cartaz do artista americano Penfield tenta, sob a égide da propaganda,
fazer um apelo à população ao sentido do dever e da solidariedade frente aos sacrifícios
e às restrições inerentes à guerra.
Folheado rapidamente e sem a devida atenção, o livro didático francês parece
caminhar para um inventário de experiências desagradáveis vividas tanto pelos
franceses quanto por outros povos. No entanto, é exatamente por meio do cruzamento
dessa gama de discursos que um trabalho realmente efetivo sobre a interdisciplinaridade
se constrói. São relativamente numerosas as atividades didáticas em Fleurs d´encre 3e
(2012a) que recorrem, sobretudo, às aulas de História e de História da Arte, por meio de
pinturas, quadros, esculturas e textos, a maioria literários.
Trata-se de um livro didático no qual se vê o primado do interdiscurso, em que
se depreende a história e se vê a história, por exemplo, por meio da ficção. Firma-se,
portanto, o dialogismo68 bakhtiniano entre discursos, em que há um embate entre dois
discursos: o do livro didático e o da história, por exemplo, como podemos verificar
nestas passagens de Fleurs d´encre 3e (2012a) escolhidas aleatoriamente: “envisager
l´histoire à travers la fiction” (ibid.,p.125); “comparer un incipit de roman et son
adaptation pour la télévision” ( ibid., p. 73); “comprendre le rôle de la langue dans la
construction de l´identité” (ibid., p. 85). É válido lembrar que a questão do interdiscurso
não é só uma característica do livro didático francês, uma vez que Português
Linguagens 9º ano (2010a) também apresenta, embora em menor número, no decorrer
de suas lições, recorrências a outros discursos, que revelam tanto a posição do
enunciador, quanto a do outro. São elas, para que exemplifiquemos: “os anos 60 e a

68
Pelo viés bakhtiniano, o termo dialogismo é entendido como o modo de funcionamento real da
linguagem, o princípio constitutivo do enunciado. Nessa perspectiva, todo enunciado constitui-se a partir
de outro enunciado, é uma resposta a outro enunciado, fato que faz com que nele se ouçam pelo menos
duas vozes. Ainda que não se manifestem no discurso, elas estão aí presentes. Um enunciado é, portanto,
sempre heterogêno, pois revela duas posições: a sua e aquela em oposição à qual ele se constrói. Em
síntese, diz o autor: “a vida é dialógica por natureza”. (cf. BAKHT N, 2006, p. 35-36).
187
juventude brasileira” (ibid., p. 40); “no cinema e na música, o protesto” (ibid., p. 71);
“os estatutos do homem” (ibid., p. 115); “como reagir diante da TV” (ibid., p. 144), etc.
Outro valor oferecido pelo livro didático Fleurs d´encre 3e (2012a) e, de certa
forma, muito estimado pelo sistema de ensino na França, tanto pela própria tradição,
quanto pelo patrimônio artístico, cultural e literário francês, é o trabalho com a
literatura. O livro didático francês é um celeiro para o trabalho literário. Desfilam em
suas páginas autores dos séculos XX e XXI, conforme preconizam os Nouveaux
programmes. O mesmo se dá nos outros livros didáticos da mesma coleção destinados
aos outros anos escolares; para cada uma das etapas, todo o panorama literário francês é
exibido, desde os textos da Antiguidade até o século XXI, como apontamos .
Prática altamente cultural, a literatura no contexto francês está, na verdade,
associada ao desejo de se fundar na escola uma cultura humanista. São vários os
gêneros literários abordados em Fleurs d´encre 3e (2012a) que têm por objetivo suscitar
a reflexão sobre o lugar do aluno na sociedade e sobre feitos de civilização, em
particular, sobre feitos religiosos. Estuda-se, em Fleurs d´encre 3e (2012a), tanto obras
integrais quanto passagens de romances, contos, peças de teatro e de tragédia clássicas,
gêneros autobiográficos e biográficos, epopeias, textos bíblicos, narrações, entre outros.
Sabemos que se trata, contudo, de um trabalho de literatura escolar69, o que não invalida
o desejo de se construir uma cultura fundadora comum, que difunda saberes culturais
(literários ou de história literária), por meio da leitura de um corpus de textos literários.
As atividades de leitura em Fleurs d´encre 3e (2012a) tomam como ponto de
partida, invariavelmente, os textos literários. Num trabalho interdisciplinar efetivo com
a disciplina de História, já que a progressão cronológica dos textos literários para o
estudo do Francês está associada ao programa de História (cf. Nouveaux Programmes,
2012), convida-se o enunciatário a ler e estudar as obras literárias e situá-las em um
contexto histórico e cultural, além de analisá-las em função dos gêneros e formas aos
quais elas pertencem. Esse trabalho conjunto entre disciplinas parece permitir que o
aluno perceba, de forma permanente, as ideias que as obras mantêm entre elas.
Há de se ressaltar, ainda, o esforço feito em Fleurs d´encre 3e (2012a) para que a
literatura mantenha junto à língua uma relação frutífera. No livro didático francês, a
literatura pode ser vista não só como um trabalho na língua, mas também um trabalho
69
Há trabalhos na França que têm por objetivo estudar não os gêneros literários, mas a forma escolar
desses gêneros, suas versões ou variantes escolares. Segundo esses trabalhos, não é o teatro, por exemplo,
que é objeto de ensino na escola, mas um teatro escolar, que responde a finalidades disciplinares
particulares. Para conhecer a natureza desses trabalhos, cf. CHERVEL (2005) e DENIZOT (2010).
188
da língua e sobre a língua. Em cada uma das unidades da obra, a seção destinada ao
estudo da gramática, à ortografia e à reescrita usa constantemente textos literários como
ponto de partida para as atividades didático-pedagógicas. Cumpre-se, dessa maneira, à
risca, a representação do imaginário escolar francês de que a literatura é, por excelência,
o lugar primoroso do aprendizado da língua, é o “corpus linguistique autorisé”, nas
palavras de Halté (2008, p.33).
No caso brasileiro, Português Linguagens 9º ano (2010a) não percorre o mesmo
trajeto de Fleurs d´encre 3e (2012a) na França. A abordagem do texto literário é tímida,
pouco recorrente, o que gerou, inclusive, críticas da equipe de avaliadores do PNLD em
relação ao trabalho com a literatura na obra. (cf. GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS:
PNLD 2011, 2010, p. 112). Como não há, nem nos PCNs nem no livro didático
brasileiro nenhuma referência ao ensino de uma cultura necessária à compreensão de
obras literárias, cinematográficas, musicais e plásticas, Português Linguagens 9º ano
(2010a) parece eximir-se de apresentar ao aluno, ao longo da escolaridade, textos
fundadores e grandes obras do patrimônio literário brasileiro, português e mundial. Não
se trata apenas de um fato isolado no livro didático analisado, mas de uma recorrência
que se estende desde o primeiro livro da coleção destinado ao 6º ano do ensino
fundamental, com poucas exceções, sobretudo, nos livros destinados aos 7º e 8º anos,
em que alguns poucos excertos literários são propostos como ponto de partida para
atividades de leitura em sala de aula.
Hipoteticamente, esse relativo abandono da literatura nos livros didáticos
brasileiros pode ser explicado, mas não justificado, pela massificação e democratização
do ensino iniciada nos anos 50, o que gerou uma grande expansão da rede de escolas no
Brasil. Houve uma necessidade dos materiais didáticos se adequarem a um “novo tipo”
tanto de professor quanto de aluno, o que alterou, de certa forma, a representação social
e cultural que deles se tinha. Assim, nesse quadro escolar, não só o ensino da literatura
parece ter sido deixado de lado, mas também o estudo de temas mais complexos, como
os históricos, os sociais, os culturais, etc. Abandona-se a concepção de língua como
expressão estética dos anos 40, prevalente inicialmente no ensino da retórica e da
poética, e passa-se a ver a língua como comunicação, cujos objetivos são, sobretudo,
pragmáticos e utilitários. (cf. CAPÍTULO 2).
Com um espaço menor destinado ao estudo literário, os livros didáticos
brasileiros passaram a investir no estudo dos gêneros discursivos, conforme

189
preconização governamental (cf. PCNs, 1998), tendo, por objetivo, com isso,
ultrapassar os limites de práticas puramente escolares, conhecendo e compartilhando da
diversidade textual vivenciada pelos alunos em seu cotidiano. Os fatos analisados
parecem ser a tônica dos livros didáticos que, junto a Português Linguagens 9º ano
(2010a), fizeram parte da avaliação do PNLD 2011. (cf. GUIA DE LIVROS
DIDÁTICOS PNLD 2011, 2010).
Se tomarmos as duas totalidades, portanto, a brasileira e a francesa, firmaremos
o simulacro de duas identidades completamente distintas, ou seja, para uma cultura o
trabalho de base, na escola, é o texto literário e para outra, o mesmo trabalho se dá a
partir de textos pertencentes a outros gêneros discursivos, sobretudo da esfera cotidiana,
como veremos posteriormente. Criam-se dois mundos discursivizados de maneira
distinta: o brasileiro em preocupação constante com a construção da cidadania, ou seja,
olhando o homem em um mundo socializado; o francês, na construção de um mundo
histórico e trágico, olhando o homem como mítico.
É bom lembrar que a temática do livro didático brasileiro e a temática do livro
didático francês constituem-se parte de um núcleo temático invariante, o que reforça,
portanto, não apenas os temas desenvolvidos, mas a visão de mundo daquela cultura.
Gera-se, por conseguinte, uma estabilidade de núcleos temáticos que fundam uma
distinção em cada um dos livros.
Importa destacar que a tematização e a figurativização - formação discursiva -
conferem corporalidade à figura do enunciador e, reciprocamente, àquela do
enunciatário. A escolha de temas e figuras auxilia a definição do ator da enunciação.
Consolidam-se, então, nos livros didáticos analisados, duas maneiras de ser diferentes
no mundo, dois ethé, tomando para nós o conceito de Maingueneau (1995); duas
imagens, dois corpos, dois tons de vozes distintos, dois atores da enunciação, portanto.
“Corpo que não é oferecido ao olhar, que não é uma presença plena, mas uma espécie
de fantasma induzido pelo destinatário como correlato de sua leitura”. (Maingueneau,
1997b, p.47).
Dessa forma, tratemos, primeiramente, de delinear o perfil do ator da
enunciação, e consequentemente o éthos, de Português Linguagens 9º ano (2010a). É
relevante reafirmar, antes de definir o perfil dos atores da enunciação das obras, nossa
hipótese de que há uma estabilidade de atores nos livros didáticos analisados, ou seja,
do destinador/destinatário, enunciador/enunciatário, autor/leitor dos livros didáticos.

190
Enunciador e enunciatário ocupam sempre um papel temático estável de autor e de
aluno/professor e essa estabilidade permeia todos os livros didáticos, devido ao gênero.
Aumenta-se, portanto, a previsibilidade. No entanto, examinar como cada
totalidade reage a essa previsibilidade é o que faremos em seguida. Recuperada nossa
hipótese inicial, verificaremos como cada uma das totalidades reagirá às
imprevisibilidades, isto é, qual livro didático resistirá mais à previsibilidade e entrará
com imprevisibilidades, e qual livro didático ficará mais na estereotipia de papéis
temáticos, ou seja, o professor será sempre o professor, o aluno será sempre o aluno,
numa assimetria de papéis.
Lembramos, para os dois livros didáticos analisados, que estamos falando do
éthos do narrador e pressupondo o do enunciador, uma vez que quando analisamos uma
obra singular, o unus, podemos definir os traços do narrador e somente quando
estudamos a obra inteira, o totus, é que podemos apreender o éthos do enunciador.
Embora saibamos que para determinados discursos seja possível haver uma dissonância
entre o caráter do narrador e o do enunciador, julgamos que no caso do livro didático
para o ensino de língua materna, o caráter do narrador e do enunciador são bastante
próximos, já que na totalidade, as mesmas características praticamente se mantêm.
O livro didático brasileiro, discurso em 1ª pessoa, como já dito, portanto, mais
sensorial, mais apegado e mais cúmplice do aluno, constrói por dentre suas unidades um
ator da enunciação cujo efeito de austeridade se atenua. O ator da enunciação em
Português Linguagens 9º ano (2010a) é individualizado explicitamente, visto que se
apoia num narrador também explícito que simula estar presente no enunciado, ao dizer
“você”, ou ao fazer o uso do imperativo e do mecanismo de perguntas e respostas. É
justamente com esse simulacro da interlocução, narrador do livro didático X aluno, eu
X tu, que o ator da enunciação se constrói como o mais íntimo, o mais cúmplice e o
menos sutil possível. Busca esse narrador chegar o mais próximo possível da fala
“pura”, recíproca e dialógica, típica da enunciação enunciada.
Confirma-se esse jeito mais “espaçoso” de ser pela diagramação da obra.
Predomina no livro didático brasileiro uma diagramação mais difusa, espalhada,
desiquilibrada e distante do simulacro da “justa medida”. Observem-se os tamanhos das
fontes das letras, a disposição sem ordem dos poucos quadros sinóticos que a obra
apresenta, geralmente, para explicar algum ponto gramatical, o uso de cores diferentes
para se chamar a atenção do narratário, o não respeito à diagramação “natural” dos

191
múltiplos gêneros que a obra traz. Instaura-se, portanto, um ator da enunciação de corpo
mais recortado, em que partes aqui e acolá se juntam para construir a totalidade da
diagramação da obra.
Mais uma vez lembremos que a sugestão desse corpo mais difuso e rarefeito que
é acatada pelo livro é uma imposição dos documentos governamentais, uma vez que no
Brasil a diagramação dos livros didáticos é imposta pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD). (cf. ITEM 3.4). Legibilidade gráfica, tamanho de letras, espaçamento
entre linhas e palavras, disposição, formato e dimensões dos textos nas páginas,
hierarquização de títulos e subtítulos, tudo está controlado pelo projeto gráfico-editorial
proposto por diretrizes governamentais na confecção de um livro didático no Brasil. As
imagens abaixo podem ilustrar o que afirmamos:

192
Imagem 17: Seção Intervalo

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 68

193
Imagem 18: Semântica e discurso

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 126

Não parecem ser esses os princípios que regem a organização visual de um livro
didático na França. Embora o livro francês também seja um discurso em 1ª pessoa como
o brasileiro, em que praticamente se dão os mesmos recursos de instauração das
categorias enunciativas de pessoa, espaço e tempo, com vistas a obter uma intimidade e
uma reciprocidade entre os pares enunciativos inerentes ao gênero, Fleurs d´encre 3e
(2012a) constrói seu ator da enunciação de forma distinta de Português Linguagens 9º
ano (2010a). Se examinarmos a diagramação da obra para depreendermos o corpo do

194
ator da enunciação no livro francês, veremos que se trata de um ator mais austero e
muito menos “espaçoso” do que no livro didático brasileiro. Ator, por vezes mais
distante que ancora o discurso na “realidade”, dado o uso relativamente maior em
relação ao livro brasileiro do mecanismo de debreagem enunciva, o que não se dá
apenas no trato gramatical, mas também no corpo das atividades para a leitura, por meio
dos textos históricos, e o ensino da produção de texto e da produção oral.
A contar do número de quadros sinóticos que a obra apresenta, do tamanho das
fontes das letras, de uma espécie de padrão editorial bem definido da diagramação,
como já mostramos, poderíamos dizer que o ator da enunciação em Fleurs d´encre 3e
(2012a) caminha para a concentração e o fechamento. Desse enunciado deduz-se que o
ator da enunciação da totalidade, enquanto enunciador e enunciatário, possui um corpo
robusto, ereto, que, pela escolha de temas, parece viver o mundo de forma mais intensa,
mais impactante; um ator da enunciação que quer-querer e, sobretudo, tem de querer
conteúdos que lhe são ofertados.
Poderíamos dizer também que o ator da enunciação no livro francês é muito
mais tradicional do que o ator da enunciação no livro brasileiro, dada a escolha dos
temas que são desenvolvidos na obra e a forma mais aprofundada do tratamento
conferido aos conhecimentos fundamentais que a obra propõe, como, por exemplo, as
questões históricas da França, o efeito de corpo enunciativo que se constrói por uma
diagramação mais densa, porém, bem organizada, o tratamento dado pela enunciação
ao trabalho gramatical, etc. Persiste no discurso francês o modelo tradicional de livro,
fonte de um saber cultural, literário e enciclopédico, referendado, inclusive, pela própria
cultura francesa. O livro didático francês valoriza mais a dêixis tradição/transmissão
em detrimento da dêixis novidade/inovação valorizada pelo livro didático brasileiro.
As imagens a seguir ajudam a corporificar o que acabamos de analisar:

195
Imagem 19: Atividade de leitura - Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 42.

196
Imagem 20: Atividade de leitura - Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 43.

Ao se pegar como modo de dizer regimes axiológicos de triagem e de mistura


(cf. FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001), as análises dos temas e da diagramação
do livro didático brasileiro e do livro didático francês permitem considerar que há, na
França, uma triagem para se construir um corpo soberano, puro, enquanto no Brasil
teríamos um corpo discursivo difuso, desigual. Poderíamos propor, pois, o seguinte
197
regime axiológico nas duas culturas: condensação/concentração/triagem, na França,
versus difusão/facilitação/mistura, no Brasil. Tanto a temática quanto a diagramação do
livro didático brasileiro, se confrontadas ao livro didático francês, parecem mais
amenas, menos impactantes pois são mais abrangentes.
As obras se assemelham, contudo, no que diz respeito ao tratamento da
enunciação ao discurso gramatical. Nos dois livros, a cena enunciativa da gramática é
marcada pela enuncividade. Trata-se de uma cena enunciativa distante das relações
pessoais, equilibradas, interacionais e dialógicas que até então sempre estiveram
permeando as unidades dos dois livros didáticos, mais no livro brasileiro do que no
livro francês, vale lembrar. Uma diferença entre as obras que talvez mereça ser
ressaltada, nesse caso, é o número de quadros sinóticos apresentados no livro francês, o
que, como já dito, pressupõe um ator da enunciação mais concentrado. Essa
concentração se dá, inclusive, na própria organização do livro, já que a sistematização
gramatical é dada no final da obra, numa espécie de memento. Historicamente, como já
dito, faz parte de a tradição francesa separar o livro para o estudo dos textos do livro
para o estudo da gramática, cada qual em volumes separados. Vê-se que o princípio
parece se manter no livro didático francês atual, embora com alguns avanços, como o
fato, por exemplo, de os dois livros (textos e gramática) estarem juntos no mesmo
exemplar. (cf. CAPÍTULO 2).
No caso brasileiro, mesmo o discurso gramatical é apresentado em forma de
“texto corrido”, em uma seção “A língua em foco” que se mistura aos exercícios de
sistematização gramatical propostos, como podemos averiguar nas imagens a seguir:

198
Imagem 21: Memento gramatical

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 314

199
Imagem 22: Seção Língua em foco

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 28.

Diferenças de organização e diagramação a parte, os dois livros didáticos


projetam o discurso gramatical em 3ª pessoa e produzem, como já adiantado, a ilusão de
afastamento da enunciação, de objetividade e de frouxidão dos laços interativos.
Instaura-se, portanto, um ator da enunciação “monológico”, impositivo, detentor de um

200
poder que leva o outro ao dever-fazer e, consequentemente, ao dever-ser. Veem-se, nas
duas obras, no discurso gramatical, os efeitos já mencionados de realidade, de confiança
e de credibililidade. Tanto o discurso brasileiro quanto o discurso francês no tratamento
conferido à gramática se servem também de argumentos por ilustração, tendo por
objetivo enunciar a afirmação gramatical e dar exemplos com a finalidade de comprová-
las.
É interessante, contudo, que depreendamos, no discurso da gramática, dois ethé
distintos no Brasil e na França. Em Português Linguagens 9º ano (2010a), um éthos
principalmente prescritivo, que restringe o uso linguístico às regras ditadas pela
gramática normativa, fazendo alusão ao que é certo e ao que é errado. Toma-se, nesse
caso, como parâmetro, a variedade escrita da língua como parâmetro e não a oral. Tem-
se, nessa concepção de língua heterogênea, com variantes hierarquizadas, como já
mostrado, um sujeito modalizado pelo querer, dever e poder-ser e fazer. Já Fleurs
d´encre 3e (2012a) constrói prioritariamente outra maneira de ser no mundo, pautada
pela concepção homogênea da língua estática, de um único uso considerado “natural” e
sem variação. Nesse caso, não se atenta para a variação linguística nem para os
“desdobramentos necessários da própria divisão da sociedade em diferentes grupos, em
diferentes comunidades de falantes”, conforme pontua Discini (2005, p. 287). Cria-se,
pois, um sujeito cuja modalização se dará pela existência, pelo ser (de um único uso).
Não do ponto de vista de norma prescritiva, mas do ponto de vista prescritivo
amplo, a norma natural veiculada no livro francês é mais forte do que a norma
prescritiva encontrada no livro brasileiro, já que a língua francesa “é assim”, é “natural”
que seja assim, concepção ilusória de língua que não tem variação. Como já dito,
existem poucos momentos em que se encontram no livro questões relativas à norma
prescritiva, porém, o livro didático na França é proposto como se todos os falantes
falassem o francês da mesma maneira. Isso parece ir ao encontro da visão cultural e
histórica da língua francesa, miticamente conhecida no mundo como língua de cultura.
Para isso, é necessário um francês “único”, em uma norma-padrão que não se modifica,
sem variação, (con)firmando uma visão, aliás, que se conserva até hoje nos livros
didáticos franceses, embora já haja, de pouco em pouco, questões relativas à variação e
à norma prescritiva em algumas atividades. Isso aponta, portanto, para duas formas de
pensar e de se ver a língua, duas concepções de língua diversas, na França e no Brasil.

201
O que vale destacar nos dois discursos gramaticais dos livros didáticos é o
simulacro de um discurso pautado pelo indiscutível. Constrói-se, portanto, um modo de
dizer cujo efeito de sentido é monofônico, já que ao dizer o que se deve fazer e como se
deve fazer, o discurso gramatical das obras funda um único tom de voz, típico dos
discursos autoritários. Esse éthos articula-se à imagem do bom falante da língua e, para
Discini (2005, p.287), “firma o olhar que parte dos altos eufóricos, em direção aos
baixos disfóricos, figurativizados pela camada da população que não sabe falar correto”.
Também se dá, no estudo das atividades pedagógicas que desenvolvem as
competências do ler, do escrever e do falar (cf. SIMARD; DUFAYS; DOLZ &
GARCIA-LEBLANC, 2010) nos livros didáticos analisados, um efeito de corpo, que
não é deduzido de um mundo apriorístico, mas construído no texto. No caso francês,
confirma-se o que dissemos anteriormente a respeito da austeridade e da construção de
um corpo soberano e altivo. Há, em Fleurs d´encre 3e (2012a), muito mais do que em
Português Linguagens 9º ano (2010a), um desejo de se atenuar a intimidade própria ao
gênero livro didático e a relativa informalidade que ele traz, por se tratar, como já
dissemos, de um discurso em 1ª pessoa, próximo, sensorial e afetuoso. Dessa forma,
coloca-se o aluno em “seu lugar”, em seu papel temático, fixo, mas isso não quer dizer
que se diminuam os efeitos de respeito, consideração e afeto que se tenha por ele.
Salta aos olhos no livro francês a assimetria de papéis entre o professor e o
aluno, por exemplo. Imperativo cultural, parece-nos. Essa relação professor-aluno,
marcada pela distância, aumenta a previsibilidade do gênero, ou seja, Fleurs d´encre 3e
(2012a) reforça muito mais a estereotipia de papéis temáticos do que o livro didático
brasileiro. Isso se dá também no exame das atividades propostas. No livro francês, a
invariância é marcada no tratamento didático-pedagógico constituinte das atividades em
sala de aula, como veremos.
Em Fleurs d´encre 3e (2012a), ensina-se a gramática da frase. Trata-se de uma
gramática com alto grau de conservadorismo, cuja principal ambição é criar uma
competência “geral”, que supostamente auxiliará no domínio do nível textual. Observa-
se, então, o trabalho sobre o sistema da língua de análise gramatical, essencialmente
morfossintática. Lembremos, contudo, que a gramática da frase não é uma escolha dos
autores do livro francês, mas uma imposição das diretivas governamentais francesas,
por meio dos Nouveaux Programmes (2012), como já salientado. Para linguistas
franceses (cf. COMBETTES, 2000), a gramática da frase no ensino fundamental francês

202
serve apenas para o domínio da análise de estruturas e as classificações de formas
morfológicas e sintáticas, as quais devem ser dominadas pelos alunos para que se
produzam, futuramente, textos coerentes e adaptados a tal ou tal situação discursiva.
Paralelamente ao trabalho da frase, o livro francês apresenta atividades
pedagógicas que corroboram um ator da enunciação definido por um éthos de elevado
grau de conservadorismo e concentração, cujo corpo apresenta uma postura de coluna
dorsal ereta, dados, por exemplo, pela prática do ditado e os inúmeros exercícios de
reescrita de passagens de textos literários, tendo por objetivo a prática da reescrita.
Tem-se, por meio dessas atividades, um ator da enunciação, tematizado pelo professor,
muito mais participante e detentor do saber, do poder e do fazer em sala de aula, uma
vez que as atividades descritas pressupõem sua intervenção.
As atividades de produção de texto também seguem o modelo descrito. Não se
busca, em Fleurs d´encre 3e (2012a), o aluno enquanto enunciador autônomo, que
debate, polemiza, critica, etc. No livro francês, as atividades de produção textual estão,
em sua grande parte, voltadas à reescritura ou à prática de textos cujos temas são
impostos pelo livro. Não há, no livro analisado, produções de textos que se constituam
como autênticas produções de sentido, mediante a execução de ações da linguagem.
Em Fleurs d´encre 3e (2012a), os exercícios de produção de texto lembram os
exercícios de redação propostos pelos livros didáticos brasileiros até a década de 1980
aproximadamente. Uma vez que as bases filosóficas dessa abordagem são dadas pela
gramática tradicional, os exercícios se caracterizam como substratos diretos do
raciocínio. Nesse caso, aprender a escrever está relacionado ao domínio de regras
gramaticais que, na verdade, valem mais como fórmulas lógicas de raciocínio do que
uso linguístico propriamente dito.
Ainda sobre a produção de texto em Fleurs d´encre 3e (2012a) e a instauração de
uma enunciação conservadora e tradicional, verificamos que os textos produzidos
devem seguir uma espécie de “receita” dada pelo enunciador da obra, que se coloca,
nesse formato, como instrutor, selecionador e organizador das atividades propostas para
a escrita. A nosso ver, esse tipo de exercício pode tolher a liberdade e a criatividade do
aluno. Priorizam-se, sobretudo, os esquemas básicos de textos - a narração, a
dissertação e a descrição -, cuja técnica principal é desenvolver o texto dentro de um
esquema textual abstrato, previamente dado. A finalidade única da produção textual
nesse livro didático parece ser o treinamento de estruturas, já que as atividades não

203
levam à produção de um texto visto a partir de aspectos discursivos e enunciativos, mas
apenas formais. As atividades a seguir ilustram o caso:

Imagem 23: Atividades de produção de texto - Fleurs d´encre 3e

Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 39

204
O corpo enunciativo de Português Linguagens 9º ano (2010a) não segue a
rigidez e austeridade do livro francês, como já dito. No livro brasileiro, a relação
professor-aluno se dá no mesmo quadro enunciativo, ou seja, há uma simetria de papéis
temáticos. É o mais próximo que se chega do comprometimento e da parceria junto ao
aluno, sentimentos de cumplicidade e de amizade que geram efeitos de interesse por ele
e por seu aprendizado. Português Linguagens 9º ano (2010a) parece basear-se na
interação, sendo o livro uma espécie de mediador, que constrói o conhecimento junto ao
aluno.
Cria-se, com isso, uma imprevisibilidade de papéis temáticos, uma vez que o
professor deixa seu papel de orientador, transmissor de conhecimentos e avaliador, para
assumir um papel de provocador de conflitos, mediador e facilitador do processo de
ensino-aprendizagem. O desejo é que o professor deixe de ocupar, portanto, o papel
central nas aulas e passe a dividir o espaço da sala de aula com um aluno interativo e
participativo. A seção intitulada “ ntervalo”, invariavelmente no final de cada uma das
unidades, apresenta projetos que têm por objetivo justamente trazer à sala de aula as
reais condições de produção de textos associadas às experiências cotidianas e de
conhecimento prévio do aluno.
Embora previsível no que diz respeito à escolha das pessoas, do tempo e do
espaço e à instauração de um simulacro mais apegado, respeitando mais as
características do gênero do que o livro francês, a imprevisibilidade do livro brasileiro,
dada pela já comentada diagramação difusa e pouco impactante e pelo simulacro de
uma enunciação frouxa, cujo corpo se dá de forma “espaçosa” e solta, livre das amarras
coercitivas do gênero, pode ser encontrada, principalmente, nas atividades de produção
textual e muito pouco nas atividades de gramática, mesmo que a enunciação diga o
contrário, como mostraremos.
Em Português Linguagens 9º ano (2010a), leem-se no manual do professor (cf.
CEREJA & MAGALHÃES, 2010b, p. 06), as propostas da obra para o ensino de
língua. Um dos pontos a se considerar é o desejo de se alterar o enfoque tradicional
dado à gramática e voltado quase que exclusivamente à classificação gramatical,
morfológica e sintática. Segundo a enunciação, “a língua, nesta obra, não é tomada
como um sistema fechado e imutável de unidades e leis combinatórias, mas como um
processo dinâmico de interação[...] como um meio de realizar ações, de agir[...]”.
(Cereja & Magalhães, 2010b, p. 06). Dizem também os autores do livro brasileiro que

205
“o trabalho linguístico não pode se limitar à frase (o que não significa que, às vezes, não
se deva trabalhar com frases). Deve também ser considerado o domínio do texto e, mais
do que isso, o do discurso, ou seja, o texto inserido numa situação concreta e única”.
(Cereja & Magalhães, 2010b, p. 06, grifos do autor).
Essa abertura preconizada pelos autores no manual do professor, contudo, não
parece estar aplicada satisfatoriamente nas atividades de reflexão linguística propostas
aos alunos no material didático. Como também notado pela equipe de avaliadores do
PNLD 2011 (cf. GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD 2011, 2010, p. 112),
Português Linguagens 9º ano (2010a) é um livro didático que dá ênfase exagerada aos
conteúdos morfossintáticos, o que se revela um contrassenso com o discurso
preconizado pela enunciação.
Interessante atentar para o fato de que o discurso constrói a sua verdade. Em
outras palavras, o enunciador do discurso gramatical francês fabrica discursos que criam
o efeito de verdade, uma vez que a gramática em Fleurs d´encre 3e (2012a) se define
como uma gramática de cunho tradicional, da frase, e se parece com uma gramática
tradicional no bojo da obra. Contrariamente ao discurso francês, Português Linguagens
9º ano (2010a) se define como uma obra que tenta desvincular sua imagem do discurso
da gramática tradicional, porém não é o que se encontra nas páginas destinadas ao
trabalho linguístico. Dessa maneira, o discurso gramatical da obra parece ser um
processo em que a língua opera como um todo, mas não é.
O ator da enunciação do livro brasileiro é, na esteira do que afirmamos a seu
respeito, um ator que, por vezes, se inclina à abertura. Essa abertura pode ser
encontrada, sobretudo, no trabalho didático-pedagógico da produção textual.
Diferentemente da falta de autonomia para a produção textual na qual se encontra o
contexto francês, o contexto brasileiro pressupõe que a maior parte das atividades de
escrita de textos seja realizada por um enunciador autônomo, ou seja, alguém que
debata, argumente, discuta, reveja seus pontos de vista, e desenvolva ações de
linguagem. Porém, não completamente, visto que os exercícios para a produção de
textos, embora mais livres do que no livro francês, também contêm “receitas” que, de
certa forma, guiam o trabalho final do aluno. Trata-se, portanto, de uma liberdade de
certa forma cerceada, como ilustra a atividade de produção textual proposta a seguir
pela obra Português Linguagens 9º ano (2010a):

206
Imagem 24: Atividade de produção textual - Português Linguagens 9º ano

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 19.

207
A maioria das atividades de produção textual em Português Linguagens 9º ano
(2010a) está voltada à produção de um gênero do discurso, na perspectiva teórica
bakhtiniana. Dessa maneira, busca-se estabelecer um diálogo efetivo entre o tema da
unidade e a produção de textos do capítulo. Esse fazer pedagógico baseado no estudo e
na produção de gêneros é algo que pode ser depreendido em todos os outros livros
didáticos da coleção, o que nos remete, portanto, a uma característica da totalidade.
Embora se trate de uma produção textual que busca a interação e a linguagem
como mediadora entre duas posições enunciativas, a de um sujeito-enunciador e a de
pelo menos um sujeito-enunciatário, as instruções dadas pela enunciação, as “receitas”
já comentadas, estão presentes em boa parte das atividades de produção textual, porém,
com outra função, ou seja, ajudar na elaboração do gênero discursivo, o que confirma
um éthos facilitador, preocupado não apenas com o produto, mas também com o
processo.
Ao contrário do livro didático francês, o livro brasileiro deseja afastar-se da
prática de escrita de textos sob os moldes da antiga redação escolar, até mesmo por
influência dos documentos governamentais oficiais, como os PCNs, cuja base teórico-
metodológica para a produção de textos segue prioritariamente a Escola de Genebra,
com os trabalhos de Bronckart (1997) e Schneuwly & Dolz (2004). Nesse método,
explicado de forma geral e pouco minuciosa, busca-se estabelecer uma situação
autêntica de interação, como por exemplo, produzir uma apresentação teatral, montar
um livro de contos, produzir um jornal televisivo, etc., na qual o aluno buscará produzir
um texto escrito pertencente a um determinado gênero discursivo e essa escolha se faz
em função de quem escreve, para quem se escreve, para quê se escreve e em que esfera
e sobre que suporte deverá circular o texto produzido.
A pluralidade de gêneros discursivos no material didático brasileiro em relação
ao livro didático francês gera uma oposição dada pela dêixis abertura X fechamento,
Brasil X França respectivamente. No Brasil, o desenvolvimento dessa noção de gênero
é o que parece permitir uma mudança nos procedimentos de ensino, já que ela
possibilita a compreensão de que a escrita não é um processo que se realiza apenas pela
apreensão do uso correto da gramática e da ortografia. Na França, parece haver ainda a
ideia de que a manutenção da sequência temporal do texto (começo, meio e fim), os
tempos verbais, os estudos das sequências textuais no sentido de Adam (1992), as
questões de coerência e coesão, entre outros, são elementos suficientes para o domínio

208
da escrita. Talvez o sejam para a redação modelar produzida na escola, mas não para um
efetivo domínio de escrita fora dela.
A falta de um trabalho de escrita com base nos gêneros discursivos na França
talvez possa ser explicada por um compromisso da escola francesa em fornecer ao aluno
um trabalho com textos com os quais ele não tenha contato fora da escola. Parte-se,
nessa hipótese, do princípio de que o aluno já tenha conhecimento dos demais gêneros
discursivos e que a escola seria, portanto, o lugar ideal para o trabalho sobre a língua
literária e o estudo dos grandes autores, daí o fato de a literatura ser tomada como
corpus invariavelmente em todas as atividades de leitura propostas em Fleurs d´encre 3e
(2012a). Isso nos leva a crer que os franceses, portanto, parecem ter entrado menos no
discurso da facilitação, diferentemente do livro didático brasileiro. Isso confirma,
portanto, o éthos rígido, impositor, analítico, (con)centrado do livro didático francês.
Isso posto, podemos associar cada um dos livros didáticos analisados a
concepções de língua distintas concebidas pelas obras em questão. Partimos do
princípio de que o modo como se concebe a natureza fundamental da língua altera
consideravelmente a estrutura do trabalho linguístico em termos de ensino.
Seguindo os estudos de Geraldi (2011) e Travaglia (2009), associaremos o livro
didático francês à concepção de língua tradicional, tanto pela ideia de que a cultura é
proveniente, sobretudo, do conhecimento da literatura consagrada, quanto por se
presumir que haja regras que devem ser seguidas para a organização do pensamento.
Essas regras ganham corpo, normalmente, nas normas gramaticais do falar “bem” e
escrever “bem” e as encontramos pulverizadas nas gramáticas ditas normativas ou
tradicionais. (cf. TRAVAGLIA, 2009).
Nesse mesmo quadro teórico, diremos que o livro didático brasileiro se situa em
outra dimensão, visto que vê a língua como forma ou processo de interação, que
ultrapassa a transmissão de informações de um emissor a um receptor e concebe a
linguagem como um lugar de interação humana, mais comunicativo, portanto. Embora
modernizada, lembremos que essa concepção de língua do livro didático brasileiro
continua ainda associada à concepção de língua como comunicação dos anos 60 e 70, já
descrita anteriormente. (cf. CAPÍTULO 2). Nessa perspectiva, as ações do indivíduo
não são pautadas apenas pela exteriorização de um pensamento ou pela transmissão de
informações a outrem, mas, sobretudo, pela questão do agir social sobre o interlocutor.

209
Na concepção interacional, a língua é concebida como um lugar de interação
humana, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. Levam-se em conta, por
conseguinte, a produção de efeitos de sentido entre os interlocutores, em uma dada
situação de comunicação, em um dado momento sociohistórico e ideológico.
No que tange à questão do sujeito, nessa concepção os usuários da língua
interagem enquanto sujeitos ativos, entidades psicossociais que (re)produzem o social,
na medida em que participam da situação de comunicação como atores/construtores
sociais, enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e dali “falam” e “ouvem” o
mundo. (cf. KOCH, 2002). Valendo-nos ainda de Bakhtin (2009), trata-se de um sujeito
social, histórica e ideologicamente situado, constituído na interação com o outro.
Sujeito que, perpassado pelo outro, recebe a medida do que realmente é, o que lhe
confere identidade.
O quadro abaixo apresenta um resumo do que acabamos de dizer sobre as obras
analisadas:

Aspectos PORTUGUÊS LINGUAGENS 9º FLEURS D´ENCRE 3e


Livros ANO
Concepção de - interacional (prioritariamente) - tradicional (prioritariamente)
língua - tradicional (gramática)
Concepção de - indução (prioritariamente) - dedução (prioritariamente)
aprendizagem - dedução - indução
da língua
Conteúdos - valorização da escrita e da - valorização da língua literária
privilegiados oralidade (em menor proporção) - insistência sobre a aquisição de
- valorização de variados gêneros conhecimentos teóricos sobre a
discursivos, tanto utilitários, quanto língua (noções gramaticais)
literários (em menor proporção)
Tipos de - produção textual a partir de um - ditado
exercícios gênero discursivo - exercícios de gramática
- exercícios morfossintáticos - análise lógica e gramatical
- debates, sketches - redação sobre um tema imposto
- realização de projetos de - análise literária
comunicação
Norma e - língua heterogênea, que admite - língua homogênea, norma “única”
variação variados usos (prioritariamente) (prioritariamente)
linguística - língua homogênea (gramática) - língua heterogênea (pouco usual,
nos exercícios de redação)
- éticos - estéticos
Valores - estéticos - culturais
- literários
- enciclopédicos
Quadro 9: Resumo da análise

Fonte: Inspirado de SIMARD; DUFAYS; DOLZ; GARCIA-LEBLANC, 2010.


210
Chega-se, por fim, ao patamar do enunciatário, que em nosso caso, por se tratar
de uma obra singular, como dito, será substituído pelo narratário. Como nos ensina
Greimas (1994), enunciador e enunciatário (narrador e narratário) são sujeitos da
enunciação. Ao colocar o enunciatário como sujeito da enunciação, Greimas ressalta seu
papel de coenunciador no discurso. Essa coenunciação é que se dá de forma distinta,
dependendo do discurso, como veremos.
Lembremos, de antemão, que o páthos é a imagem que o enunciador/narrador
tem do seu enunciatário/narratário e que essa imagem estabelece coerções para o
discurso. A imagem que se cria do enunciatário é um papel temático, composto de uma
rede complexa de relações: possui, de um lado, uma dimensão cognitiva, ideológica, da
ordem do saber, e, de outro, uma dimensão perceptiva, da ordem do crer. Nesse sentido,
vejamos como Fleurs d´encre 3e (2012a) e Português Linguagens 9º ano (2010a)
constroem a imagem de seus narratários.
Pela própria coluna dorsal do livro didático Fleurs d´encre 3e (2012a), que não
se dobra, é altiva e concentrada, o narratário da obra se constrói como um aluno
altamente convocado pela enunciação. As questões propostas pelo narrador no corpo da
obra confirmam esse status qualificado do aluno a qual fizemos alusão. Como exemplo,
observemos a imagem a seguir, proposta para uma atividade oral:

Imagem 25: Atividade de produção oral - Fleurs d´encre 3e

Fonte: Fonte: Bertagna & Carrier, 2012a, p. 138

211
Vê-se, por meio do alto grau de concentração de ordem dado ao aluno, em uma
atividade oral, a concentração conceitual a qual o aluno está exposto: analise, comente,
qual efeito essa fotografia produz, explique o título, explique o que simboliza essa
mulher. É impressionante o grau de refinamento conceitual ao qual o aluno francês está
exposto pelo discurso da obra, isso não apenas nas atividades de literatura, mas no livro
didático como um todo.
As atividades de leitura e interpretação de textos e as atividades de produção
oral, normalmente, instituem o enunciatário do livro didático francês como um sujeito
participante, interessado, que tem consciência do patrimônio cultural e literário que seu
país lhe oferece e que, por isso, deve, além de dar o devido valor ao que está a sua
disposição, constituir-se como consumidor da cultura erudita e das manifestações
consideradas mais sofisticadas da cultura francesa e mundial. Trata-se de um sujeito que
também é capaz de suportar as mazelas da vida e da História, como as torturas, as
guerras, as mortes, as segregações raciais, entre outros.
Já em relação às atividades para o estudo gramatical e para a produção de textos,
o aluno francês, por vezes, lembra o aluno pressuposto pela teoria behaviorista. Por
conta da visão do professor de transmissor de conhecimento, selecionador e avaliador
de conteúdos, uma espécie de administrador e orientador do processo, o aluno se
constrói como um repetidor de modelos, fazedor de tarefas, que só responde se
perguntado. A esse aluno cabe, nas aulas de gramática e de escrita de textos, ouvir as
explicações do professor e escrever, conforme lhe é recomendado, caracterizando-se
como um recipiente para depósito de informações. Interessante é atentar, portanto, à
pluralidade de imagens conferida aos alunos pelo enunciador de Fleurs d´encre 3e
(2012a). Isso nos ajuda a provar que o enunciador sempre considera seu enunciatário na
produção do discurso e que, em momentos diferentes, diferentes imagens se constroem
desse enunciatário com vistas a obter a manipulação.
A imagem do aluno em Português Linguagens 9º ano (2010a) é globalmente
distinta da imagem do aluno francês. O corpo enunciativo da obra, mais “espaçoso”,
pouco denso, mais livre, pressupõe um aluno descolado, que tem interesses muito
variados. Um aluno que, pouco convocado pela enunciação, dificilmente se tornará um
homem crítico, que tende à dúvida.
Embora haja no livro didático brasileiro temas densos como doenças,
manifestações, comportamentos na adolescência, a leveza com que esses temas mais

212
sérios são tratados pela enunciação institui um aluno infantilizado, jovem, que precisa
ser protegido. Constrói-se na obra o páthos de um aluno que ainda não saiu do mundo
da adolescência e que, portanto, não deve estar exposto a temas mais profundos, que
falam de dores e sofrimentos; se esses temas aparecem, porém, é de maneira leve e
superficial. O aluno em Português Linguagens 9º ano (2010a) parece viver a vida de
maneira leve e despreocupada. Reitera a enunciação que a temática escolhida para a
obra leva em conta tanto as recomendações dos PCNs, quanto a faixa etária e o grau de
interesse dos alunos. Não parece haver, contudo, essa mesma preocupação em relação
ao livro didático francês. A imagem a seguir pode confirmar essa difusão de temas
proposta pelo livro didático brasileiro:

Imagem 26: Trocando ideias

Fonte: Cereja & Magalhães, 2010a, p. 55

Embora não tratados de forma relevante, os temas propostos por Português


Linguagens 9º ano (2010a) e todo o trabalho didático-pedagógico acompanhado dos
gêneros discursivos na perspectiva bakhtiniana carregam, em si, uma carga exacerbada

213
de socialização, que não é vista no livro didático francês Fleurs d´encre 3e (2012a). O
livro brasileiro, tendo em vista a preparação de um cidadão, sugere, por meio dos
gêneros discursivos, variados temas sociais. Ressalta-se, porém, que isso nem sempre
traz os resultados almejados, devido à excessiva facilitação e infantilização do aluno,
que dificultam o processo.
No que diz respeito às atividades didático-pedagógicas propostas pela
enunciação, Português Linguagens 9º ano (2010a), assim como Fleurs d´encre 3e
(2012a), apresenta, no mínimo, dois páthe distintos que merecem ser considerados. Um
primeiro, encontrado nas atividades de produção de textos e produção oral, que instaura
um narratário que busca interagir a partir de experiências sociais, sobretudo, por meio
dos gêneros discursivos, como apontado. Esse aluno observa, experimenta, levanta
hipóteses e argumenta no intuito de se constituir como um sujeito consciente e
participativo de sua comunidade, cidadão, portanto. Um segundo, depreendido no trato
das questões gramaticais, ainda que a obra diga que uma “nova” postura é adotada no
trabalho da gramática, não é o que julgamos acontecer. Por intermédio dos tipos de
exercícios propostos bem como da postura em relação à concepção de língua adotada na
obra, o aluno é ainda, em Português Linguagens 9º ano (2010a), um fazedor de tarefas,
passivo, também repetidor de modelos, embora de maneira diferente do que no sistema
francês. No livro didático brasileiro, as atividades de gramática propostas, ao menos,
parecem mais contextualizadas do que no livro didático francês, o qual faz suas análises
prioritariamente a partir de frases soltas.
Há em Português Linguagens 9º ano (2010a) uma aparente preocupação com a
contextualização dos estudos gramaticais, feita por intermédio dos gêneros discursivos.
Cabe, contudo, lembrar que a maior parte dos gêneros propostos pela obra para os
estudos linguísticos podem ser encarados como pretexto para o ensino da gramática,
uma vez que se esvaziam as condições de produção de cada um dos textos propostos em
benefício da observação de aspectos puramente linguísticos e estruturais.
Como visto, cada um dos livros didáticos analisados constrói seu público, seus
leitores, seus alunos, a partir de uma série de características discursivas. Essa imagem
do enunciatário/narratário passa, então, a ser um coenunciador na medida em que ela
determina as escolhas efetuadas pela enunciação para completar sua manipulação de
forma bem-sucedida. Por outro lado, o enunciatário/narratário só adere ao discurso por
se ver nele constituído como sujeito, identificando-se, pois, com o éthos do enunciador.

214
A eficácia do discurso só ocorre, portanto, quando o enunciatário incorpora o éthos do
enunciador e adere ao discurso, não apenas porque lhe é apresentado um conjunto de
ideias que vão ao encontro de seus possíveis interesses, mas, sobretudo, porque se
identifica com um dado sujeito da enunciação, com um caráter, um tom e um corpo.
Nessa perspectiva, o livro didático para o ensino de língua materna, um discurso,
como dito, não é apenas um conteúdo, mas também um modo de dizer, que, por sua vez,
constrói sujeitos da enunciação de formas distintas.

215
CONCLUSÃO

Nesta tese, partimos do princípio de que o sujeito apreende o mundo por meio de
discursos. Ao acatarmos esse quadro epistemológico discursivo, consideramos o livro
didático para o ensino de língua materna, objeto de estudo do trabalho, como um
objeto discursivo.
Na esteira dos estudos semióticos, teoria de base do presente trabalho,
apontamos, a seguir, resultados finais obtidos de nossos exercícios de análise realizados
em dois livros didáticos: Português Linguagens 9º ano (2010a), no Brasil, e Fleurs
d´encre 3e (2012a), na França. Para tanto, faremos considerações sobre aspectos que
esses dois discursos têm em comum, ou seja, o que é previsível ao gênero, e, a partir
daí, pontuaremos as possíveis diferenças e imprevisibilidades do gênero.
É característico desse gênero discursivo um programa narrativo de base, no qual
um destinador leva o destinatário a querer e a dever entrar em conjunção com um objeto
de valor, sobremodalizado, nesse caso, pelo saber. Esse saber, objeto cognitivo, acha-se
inscrito nos enunciados dos livros didáticos. Em disjunção inicial com o saber, o
destinatário, ao fazer o que lhe é proposto pelo livro didático, deverá, então, adquirir o
valor oferecido pelo destinador.
Poderíamos definir a narratividade do livro didático para o ensino de língua
materna, da seguinte forma: há um destinador que tem por objetivo manipular um
destinatário, bipartido em aluno e mestre, para que os alunos queiram e devam entrar
em conjunção com os saberes que a obra propõe, que vão desde o conhecimento formal
do idioma até o acesso à cultura, à cidadania, à tecnologia, etc., e para que os mestres
aprendam a ensinar esses saberes.
Essa narratividade, no nível mais profundo do percurso gerativo de sentido, o
das relações fundamentais, se dá, no livro didático para o ensino de língua materna, por
meio das categorias semânticas básicas: ignorância vs. sabedoria. Todos os livros
didáticos, dessa forma, repelem a ignorância e propõem o conhecimento.
Os dois livros didáticos analisados como discursos não são narrativas mínimas,
já que neles se encadeiam uma série de enunciados tanto de fazer quanto de ser (de
estado). Observando uma das fases desse espetáculo do fazer didático, a da
manipulação, notamos que os dois discursos fazem uso de uma estrutura complexa de
manipulação, em que o destinador/enunciador exerce um fazer persuasivo e o

216
destinatário/enunciatário, um fazer interpretativo. Pautam-se Português Linguagens 9º
ano (2010a) e Fleurs d´encre 3e (2012a) pelos mesmos mecanismos de manipulação: a
sedução, a tentação e a intimidação. Manipula-se, nesse caso, nos dois discursos, tanto
pelo saber quanto pelo poder, de forma positiva ou negativa, porém em graus
diferentes.
No caso de Português Linguagens 9º ano (2010a), ao se fazer uma imagem
positiva do destinatário e oferecer-lhe valores positivos, predomina no percurso de
manipulação uma mistura das estratégias de sedução e tentação, ou seja, o destinador,
sujeito do saber, faz uma imagem positiva do destinatário, valorizando sua (do
destinatário) competência. Não se age da mesma forma em Fleurs d´encre 3e (2012a),
cuja manipulação se dá muito mais pela tentação do que pela sedução, embora, por
vezes, as duas estratégias se confundam no percurso imposto pelo destinador. No caso
do livro francês, o sujeito do saber cede mais espaço ao sujeito do poder, que oferece ao
destinatário uma recompensa vista, de certa forma, como irrecusável.
A manipulação por tentação aproxima-se mais da manipulação por intimidação,
visto que o destinador-manipulador age, nos dois casos, pelo poder. Dessa forma, o
destinatário de Fleurs d´encre 3e (2012a) está diante de um discurso que, antes de tudo,
mostra poder e, apenas em um segundo momento, busca a aproximação do destinatário
pelo mecanismo de sedução. Português Linguagens 9º ano (2010a), ao contrário, desde
sua carta de apresentação, situada nas primeiras páginas do livro, tem por objetivo fazer
uma apresentação lisonjeira do destinatário, enfatizando o que se sabe de sua
competência. O livro didático brasileiro age pelo poder sobretudo na seção destinada ao
ensino da gramática.
As duas obras manipulam também por intimidação, sobretudo, no discurso da
gramática. Nesse caso, evocam os dois discursos o rigor gramatical e a necessidade de
certos usos linguísticos. Interessante é notar que como o mecanismo de intimidação nem
sempre faz bem à imagem que os autores de livro didático querem que deles se tenha,
misturam-se à estratégia de intimidação, estratégias de sedução e de tentação, com o
objetivo de deixar o discurso mais dialógico, mais próximo do interlocutor, simulacro
de um texto mais “amigo”. Grande paradoxo, afinal estamos diante de um discurso que
de um lado se diz amigo, próximo, mas ao mesmo tempo é impositor e autoritário,
intimidador. Para isso serve, portanto, a mistura das estratégias de sedução e tentação à

217
estratégia de intimidação, já que quanto maior o grau de intimidade, maior a
possibilidade de se obter do outro o que se deseja.
Cumpre ressaltar que, embora as características de manipulação sejam bastante
parecidas nas duas obras, a grande diferença entre elas se dá no exame do trabalho
gramatical, por meio do qual se depreendem dois modos de ver a língua, duas
concepções de língua, portanto, distintas. No caso brasileiro, a língua é vista a partir da
norma prescritiva, em que variantes da língua são hierarquizadas como obrigatórias,
possíveis ou proibidas. O livro brasileiro preconiza predominantemente o uso da norma
prescritiva, ou seja, de valorização de certos usos, e despreza os demais usos possíveis e
proibidos, embora não seja essa a postura que a obra diz adotar no livro destinado ao
professor. Essa norma prescritiva, que cria o simulacro de uma língua heterogênea, é
modalizada discursivamente pelo querer, dever e poder-ser e fazer. A obra, no entanto,
apresenta em algumas passagens, sobretudo nos exemplos em que há definições
gramaticais, o discurso da norma única, aquela que “é assim”.
Do lado francês, o discurso gramatical revela-se sob outra faceta. Aqui, a norma
gramatical preconizada é única, natural, sem variação, simulacro da língua homogênea.
Nesse caso, a modalização não se dá pelo dever, como no livro didático brasileiro, mas
pelo ser, aquele de um único uso. A gramática que preconiza a norma única em Fleurs
d´encre 3e (2012a) é, portanto, a norma-padrão adotada pela enunciação, que, por vezes,
apresenta um registro mais formal (langage soutenu), mais tenso, ou mais informal
(langage courant), mais distenso.
Entre as estratégias de manipulação encontradas nos dois discursos, destacam-
se os usos das categorias de pessoa, tempo e espaço. Ainda no que diz respeito às
previsibilidades do discurso analisado, outra consideração que trazemos à luz é o fato de
o gênero discursivo livro didático para o ensino de língua materna ser um discurso em
1ª pessoa, portanto, enunciativo, em que o enunciador projeta no enunciado as marcas
da enunciação: o eu (ego), aqui (hic) e agora (nunc). Trata-se, em um primeiro
momento, de um discurso que busca construir uma relação mais próxima entre
destinador/enunciador e destinatário/enunciatário; um discurso mais sensorial, portanto,
por vezes de excessiva intimidade, o que cria efeitos de sentido de reciprocidade e
equilíbrio de relações entre sujeitos que se colocam no mesmo quadro enunciativo. Isso
reforça o que apontamos anteriormente sobre o fato de que o livro didático brasileiro se
aproximar mais de seu destinatário, justamente por dar prioridade à manipulação por

218
sedução, em detrimento do livro didático francês, que, por sua vez, privilegia
prioritariamente a manipulação por tentação, embora, também, não fuja às coerções do
gênero e misture a essa estratégia de tentação a estratégia de sedução.
Essa sobrecarga de cumplicidade e intimidade inerente ao gênero é, contudo,
atenuada de maneira distinta no decorrer das lições dos dois livros didáticos. No estudo
da gramática, por exemplo, encontram-se nos discursos, sobretudo, os usos da terceira
pessoa e do presente omnitemporal, próprios do discurso da ciência, além de outros
mecanismos que visam a mascarar a assunção da enunciação, como, por exemplo, no
caso brasileiro, o emprego da voz passiva analítica e da voz passiva sintética, e no caso
francês, do pronome impessoal il e do pronome on, ambos funcionando como uma
espécie de índice de indeterminação do sujeito. Prefere-se, nesse caso, a ilusão de
apagamento das marcas e traços que a enunciação propriamente dita deixou no
enunciado, a enunciação enunciada, em detrimento de um discurso mais neutro,
composto apenas de enunciados enunciados, produzindo, assim, efeitos de sentido de
objetividade.
No cotejo dos discursos analisados, com a análise do uso do mecanismo da
sedução e da tentação, pudemos dizer que se dá no livro didático brasileiro uma relação
mais sensorial, íntima e espontânea do que no livro didático francês. O próprio exame
das projeções de pessoa mostra essa proximidade no livro brasileiro, graças
principalmente ao uso do pronome você, do pronome nós e do uso do mecanismo de
perguntas e respostas.
O livro didático francês também não foge às coerções do gênero livro didático
para o ensino de língua materna, pois é igualmente um discurso em 1ª pessoa e também
faz uso do mecanismo de perguntas e respostas como recurso para “falar” com o
enunciatário/narratário. No entanto, o discurso francês “perde” em pessoalidade, visto
que ao se dirigir ao enunciatário/narratário, diferentemente do livro didático brasileiro,
não instaura em seu discurso outras pessoas. Em Fleurs d´encre 3e (2012a), a
enunciação faz uso apenas do pronome vous, que pode, no entanto, ser interpretado de
duas maneiras distintas: uma que se refere à totalidade de pessoas (vocês), outra ao
emprego do pronome em situação de formalidade (vós).
O enunciador do livro francês, na verdade, faz um maior uso do pronome vous
em situação de formalidade, visto que são poucos os momentos em que faz uso do
pronome vous dirigindo-se ao grupo como um todo (vocês). Isso leva a crer que Fleurs

219
d´encre 3e (2012a) preza, pois, a menor proximidade e, consequentemente, a maior
formalidade e falta de intimidade em suas relações junto ao enunciatário. Essa
assimetria de relações provoca efeitos de afastamento e de respeito, uma espécie de
manutenção da diferença. Conclui-se, portanto, que o livro didático francês rompe, em
parte, com o gênero, ao querer parecer um livro didático mais objetivo e menos
passional, diferentemente do livro didático brasileiro, cujos enunciados desprovidos das
marcas da enunciação se dão, principalmente, no estudo das questões gramaticais.
O sujeito, quando tematizado e figurativizado, converte-se em ator da
enunciação, a reunião de pelo menos um papel actancial e um papel temático. A questão
é então pontuar como se constrói a imagem desse ator, seu éthos. Podemos dizer de
antemão que os dois livros didáticos analisados constroem atores da enunciação
distintos, conforme suas características de caráter, corpo e tom de voz.
Dessa maneira, constrói-se em Fleurs d´encre 3e (2012a) um ator da enunciação
cujo caráter é de austeridade e de relativa distância do enunciatário/narratário. Ator
categórico, que instaura um modo de presença no mundo tradicional; ator monológico,
que parece afastar o diálogo, promovendo, dessa forma, a frouxidão dos laços
interativos; ator impositivo, detentor de um poder que, por sua vez, intima o outro ao
dever-fazer e, consequentemente, ao dever-ser.
Reforça-se, portanto, na França, a estereotipia de papeis temáticos no discurso
analisado: o professor é sempre professor, o aluno é sempre aluno, e não se misturam
esses papéis. A assimetria de papéis e de relações nas escolas francesas parece, logo,
definida por imperativos culturais. O próprio uso constante do pronome vous em
situação de formalidade ajuda a construir esse simulacro de não igualdade entre os
pares.
Dos enunciados do livro didático francês, depreende-se ainda um simulacro de
corpo robusto, ereto, que pela escolha de temas e figuras, vive o mundo de forma mais
contundente. Não há, ao menos aparentemente, nenhum desejo da enunciação em
amenizar a escolha de temas densos, como mortes, guerras, grandes massacres, formas
de violência, etc. Firma-se, daí, um discurso cujo movimento interdisciplinar se dá de
forma efetiva, sobretudo da língua francesa em relação à história e à história da arte.
A diagramação do livro francês é ainda um bom exemplo dessa enunciação que
caminha para o fechamento e a concentração. O elevado número de quadros sinóticos,
sobretudo no trato gramatical, além de uma diagramação que segue o rigor dos padrões

220
editoriais bem definidos do que seja um protótipo de livro didático, isto é, não se trata
de uma diagramação que se espalha e se contrói como “espaçosa”, contribuem para
configurar esse modo aparentemente de voz séria, peremptória, que fala alto e do alto.
Ao se tentar suspender a subjetividade, instaura-se um modo mais veemente de dizer,
que parece opor-se às coerções genéricas do livro didático para o ensino de língua
materna.
O discurso gramatical de Fleurs d´encre 3e (2012a), tematizado pela gramática
da frase, pode também ser visto como pertencente a um quadro de ensino de língua
tradicional, mais rigoroso e centrado, sobretudo, no sistema linguístico, extraído dos
textos literários, na maioria dos casos. No livro francês, a língua é vista como
homogênea, uma vez que preconiza apenas uma norma, a natural ou única, modalizada
pelo ser, de um único uso. Essa norma-padrão verdadeira e genuína, em que não há
variantes, por vezes apresenta diferentes registros (langage courant e langage soutenu),
mas não chega a apresentar aos alunos outras variantes, já que pressupostamente elas
“não existem”.
Cumpre dizer que o trabalho linguístico em Fleurs d´encre 3e (2012a) está
acompanhado de um trabalho primoroso sobre a literatura. No livro francês, a literatura,
considerada prática altamente cultural, é o ponto de partida para absolutamente todas as
atividades destinadas ao trabalho da leitura, além de servir também como pretexto para
múltiplos exercícios de ditado e de ortografia. Esse exímio trabalho literário confirma
um ensino de língua que se pauta pela corrente tradicional, visto que nessa corrente, a
cultura é proveniente do conhecimento da literatura consagrada. O papel do livro
didático, nesse paradigma, é formar alunos eruditos por meio do estudo de obras e de
autores reconhecidos pela crítica literária.
Essa concepção de língua vista como única em Fleurs d´encre 3e (2012a) ajuda a
construir, na verdade, o éthos de rigor do livro. Ajuda também a reforçar a visão
histórica e cultural que se tem do francês como língua mundial de cultura, visto que só
se pode exportar a língua se ela se apresentar de forma singular, em uma norma-padrão
que não se altera. Não se preocupa com a própria divisão da sociedade em diferentes
grupos e diferentes comunidades de falantes.
Já em Português Linguagens 9º ano (2010a), firma-se outro modo de ser no
mundo. O livro brasileiro não segue a mesma rigidez e austeridade encontradas no livro
francês, uma vez que instaura um ator da enunciação cujo caráter é de menor

221
comedimento e maior proximidade em relação ao enunciatário/narratário. Trata-se de
um ator que instaura um modo de ser no mundo mais brando, mais “parceiro” do aluno,
e comprometido com questões que talvez venham a interessar ao jovem, como amor,
juventude, moda, as descobertas da adolescência, etc.
O percurso temático do livro didático brasileiro impressiona pela “leveza”. Não
é comum encontrar na obra temas que possam desestabilizar um ambiente mais
agradável e motivador de aprendizado, como, por exemplo, fatos históricos do Brasil.
Quando necessário, questões mais espinhosas ligadas ao mundo do jovem são
propostas, como bulimia, anorexia, gravidez na adolescência, entre outras, porém o
tratamento conferido a elas é superficial e pontual, sem maiores explicações ou
detalhes, o que confirma um éthos facilitador do livro. Isso dificulta, de certa forma, o
movimento de aprendizagem interdisciplinar, que se vê reduzido e passível de algumas
poucas aplicações no decorrer das unidades do livro didático brasileiro.
O livro didático brasileiro cria, dessa maneira, um simulacro de maior diálogo se
comparado ao livro francês, no sentido em que preserva uma relação muito mais
próxima com o aluno e instaura, com isso, uma excessiva intimidade, fator que gera
relações mais recíprocas e equilibradas, simétricas, portanto. Em Português Linguagens
9º ano (2010a), atenua-se a estereotipia professor X aluno, invariância relativa ao
gênero, portanto, já que professor e aluno parecem confundir e misturar os papéis
temáticos no processo de ensino-aprendizagem. Ampliam-se os efeitos de interesse
pelo aluno, pelo seu aprendizado, colocando-o como a finalidade primeira das ações do
livro (e do professor). Essa combinação entre subjetividade e intimidade aliada à
cumplicidade e ao comprometimento gera um livro didático afetivo, emocional,
diferente do simulacro construído pelo discurso francês.
A diagramação de Português Linguagens 9º ano (2010a) corrobora a construção
desse corpo difuso, pouco impactante e mais aberto apresentado pelo ator da
enunciação. A diagramação do livro didático brasileiro é recortada, composta de partes
dispersas, que não chegam a constituir uma uniformidade. O projeto gráfico da obra não
apresenta um “texto corrido”, contínuo, em um padrão editorial clássico de livro
didático. Parece-se cuidar para que as páginas do livro brasileiro não extrapolem o nível
de densidade aceitável, o que, por simulacro, referencializa um ator da enunciação mais
difuso e rarefeito, em oposição a um ator mais concentrado e denso, como no livro
francês. Se tomarmos como modo de dizer regimes axiológicos de triagem e de mistura

222
(cf. FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001), pode-se, por meio da escolha de temas e
da diagramação, comparar o livro didático brasileiro ao francês por meio da seguinte
equação: difusão/ facilitação/ mistura, no Brasil, versus condensação/ concentração/
triagem, na França. Isso fez pensar, dessa forma, em Português Linguagens 9º ano
(2010a) como um livro didático mais distenso em oposição a Fleurs d´encre 3e (2012a),
construído como mais tenso pela enunciação.
O discurso gramatical de Português Linguagens 9º ano (2010a), em tese, diz
estar atento às diferentes comunidades de falantes, porém não é o que se vê no decorrer
das atividades. Concebe-se a língua como prescritiva, em que determinados usos
linguísticos são pautados pelas regras da gramática normativa. Essa variação linguística
a qual a obra diz trazer em seu bojo, mas não o faz, é herdeira, a nosso ver, do período
de massificação e democratização do ensino, pelo qual passou o sistema escolar
brasileiro a partir dos anos 50. Com a profunda modificação do alunado, os livros
didáticos se viram obrigados – mas não o fizeram a contento - a inserir em seus
conteúdos questões de variação que não estimulassem a uniformização linguística num
amplo e diversificado espaço sócio-cultural, palco dos discursos da hierarquização
social em classes e da relação estabelecida entre a língua e uma sociedade segmentada.
Não obstante a concepção de língua em Português Linguagens 9º ano (2010a)
ser dada como heterogênea, modalizada pelo querer, poder, dever-ser e fazer, dá-se
exímia atenção apenas aos usos obrigatórios, deixando-se de lado os possíveis. Importa
deixar claro aos alunos aquilo que é certo e aquilo que é errado, sempre recorrendo a
exemplos de usuários de prestígio, que têm por objetivo avalizar a norma-padrão da
língua portuguesa. Vê-se, portanto, que o discurso gramatical do livro didático
brasileiro, embora se diga mais aberto a outras variantes que não aquelas impostas pela
norma-padrão, é tão fechado quanto o discurso gramatical francês uniforme da norma
única. Quer, então, parecer heterogêneo, parece mas não o é.
A abertura almejada por Português Linguagens 9º ano (2010a) no discurso da
gramática se dá, de forma efetiva, no trabalho da produção textual. A obra propõe seu
trabalho de escrita de textos pelo viés da teoria bakhtiana dos gêneros discursivos,
priorizando, em suas propostas, a interação e a linguagem como mediadora entre duas
posições enunciativas e o estabelecimento de um sujeito-enunciador e de pelo menos
um sujeito-enunciatário.

223
Essa proposta, baseada na construção de uma competência discursiva do aluno e
na crítica a uma abordagem que leva o aluno a trabalhar na escola com textos fechados
em aspectos e funções exclusivamente escolares, diferencia-se nitidamente da prática
textual nas salas de aula que adotam Fleurs d´encre 3e (2012a) como livro didático na
França. No livro francês, uma das questões apontadas no ensino da produção escrita é a
desconsideração de seus aspectos sócio-discursivos. Lembram, a maior parte das
atividades de escrita propostas pelo livro francês, as antigas redações que figuravam (ou
figuram?), até pouco tempo, no ensino brasileiro. Práticas textuais que servem como
meio para a verificação e avaliação do aprendizado de aspectos gramaticais, ou para a
avaliação da escrita em si, como, por exemplo, o saber escrever sem erros de ortografia.
Constroem-se, nessa perspectiva fechada e tradicional, textos que não encontram
referência nas práticas de linguagem escrita fora das salas de aula. Estaríamos, nesse
caso, diante, de novo, da dêixis marcada pela abertura vs. fechamento, dois modos
distintos, portanto, de conceber concepções de aprendizagem de uma língua, dois éthe,
portanto.
Tratemos, por fim, da imagem do aluno, configurada pelo enunciador/narrador
nos dois discursos analisados, ou seja, o páthos do enunciatário. Lembremos que esse
ator da enunciação não é uma instância abstrata e universal, ao contrário, é uma imagem
concreta a que se destina o discurso.
Consoante a sua maneira de ser no mundo, concentrada, altiva, tradicional, um
éthos dado a falar do alto e para o alto, o enunciador/narrador de Fleurs d´encre 3e
(2012a) instaura seu enunciatário/narratário de maneira mais convocada, ou seja, pelo
exame das questões de interpretação de texto, o aluno é convidado a responder de
maneira mais crítica e participativa, tendendo sempre à dúvida. Sempre depreendido do
modo de dizer, pressupõe-se no livro francês um enunciatário qualificado, curioso,
exposto a um elevado grau de refinamento conceitual. Por meio, sobretudo, das
atividades de leitura da obra, instiga-se o aluno a se interessar e a tomar consciência de
temas das mais variadas ordens, desde históricos, até culturais e artísticos, despertando-
o para o consumo da cultura literária e artística francesa e de suas manifestações mais
complexas.
Cria-se, no discurso de Fleurs d´encre 3e (2012a), o páthos de um
enunciatário/narratário enérgico e robusto, que não deve ser poupado de forma alguma,
sobretudo, no trato de questões históricas como mortes, guerras, torturas, etc. Para esse

224
aluno, a leitura é o meio mais importante de obtenção de informações, e o mundo,
objeto do conhecimento e campo de ação. Seu tom de voz é sério, educado, destemido,
resultado de uma enunciação que quer ouvir sua voz em boa parte do livro didático.
Quando está diante das atividades de gramática ou de produção de texto, o
páthos do aluno francês se altera e passa a ser definido como um repetidor de modelos,
um fazedor de tarefas, que só responde quando perguntado. Modifica-se, assim,
substanciosamente, a personalidade desse aluno, que nas aulas de gramática e escrita de
textos, encontra-se submisso ao professor, cabendo-lhe o papel de repositório de
informações. Na verdade, cria-se um enunciatário/narratário ambíguo, que na aula de
leitura, pela exposição aos temas culturais humanistas e literários, é mais convocado,
levado ao contato com todo o patrimônio artístico/literário francês e mundial, enquanto
que nos exercícios de gramática e de produção de texto, temos um
enunciatário/narratário menos convocado, mais repetidor de modelos, que se mantém
praticamente sem autonomia.
Português Linguagens 9º ano (2010a), por sua vez, não constrói seu público da
mesma forma que o livro didático francês. O enunciatário/narratário do livro brasileiro é
um aluno menos convocado por uma enunciação que dá impressão de se suavizar na
relação com seu aluno. Cria-se o corpo do aluno brasileiro como mais “espaçoso”, mais
livre, mais descolado, de interesses variados. Interesses que não ultrapassam a dimensão
de sua faixa etária, ou seja, não se vai muito além de temas que tratam de amor, moda,
felicidade, tatuagens, etc., temas do universo cultural jovem. Quando se chega a
assuntos densos, como doenças, questões de cidadania, questões comportamentais, não
se desenvolvem esses temas de forma profunda e crítica, simulacro da facilitação,
semantizada por banalização com que se depara o aluno de Português Linguagens 9º
ano (2010a).
O mundo para o aluno de Português Linguagens 9º ano (2010a) parece ser
menos absoluto, mais relativizado, portanto. Confirma-se esse páthos por meio da
infantilização do aluno, não no sentido pueril, mas no sentido de que é um aluno jovem,
que necessita ser protegido. Não se chama esse ator da enunciação de Português
Linguagens 9º ano (2010a) à crítica, já que não se expõem a ele temas mais
substanciosos, densos, que convidam à reflexão e à ação. Situação paradoxal, já que as
atividades de produção de texto por meio dos gêneros discursivos têm justamente o

225
objetivo de levar o aluno à condição de cidadão e, portanto, à prática da cidadania, além
do contato com a diversidade textual fora do contexto escolar.
O livro didático brasileiro também apresenta uma imagem do
enunciatário/narratário ambígua, porém de maneira inversa ao livro francês. Por um
lado, para as atividades de leitura, o aluno é pouco convocado se compararmos ao livro
francês. As questões de interpretação de texto geralmente não buscam despertar no
aluno o interesse e a dúvida, desenvolvendo-se a capacidade crítica. Há, geralmente,
pouca densidade na interpretação dos textos e as respostas são praticamente induzidas
nas próprias perguntas. Por outro lado, nas questões de produção textual, o aluno se
coloca como observador e experimentador, sendo constantemente convidado à interação
com seus pares, buscando desenvolver suas experiências sociais; tenta se constituir
como um sujeito consciente e participativo de sua comunidade.
Diante de questões gramaticais, o aluno do livro brasileiro é também um fazedor
de tarefas e repetidor de modelos, porém, de forma diferente do aluno francês. Aqui,
busca-se contextualizar o trabalho gramatical por meio da observação e análise de
gêneros discursivos, o que faz com que o aluno, em parte, perceba um contexto de
aplicação das estruturas gramaticais as quais está exposto, um passo além da análise
estrutural e gramatical com a qual se defronta o aluno francês.
Em síntese, diferentes imagens do enunciador/narrador, diferentes imagens do
enunciatário/narratário, em cada um dos discursos, diferentes éthe e páthe dentro do
mesmo discurso. Diferentes maneiras de ver, sentir e representar o mundo, por meio de
discursos, simulacros da ação do homem no mundo. Duas totalidades, cuja unidade
sustenta a imagem de um sujeito como corpo, voz e caráter, sujeito determinado por
sistemas de valores e de percepção de mundo. Duas maneiras diferentes de ser, criadas
discursivamente e fundamentadas no eixo extensão/ distensão, que refletem e refratam
diferentes “realidades”, o jeito Português Linguagens e o jeito Fleurs d´encre de ser no
mundo, o jeito Brasil e França, respectivamente.

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Anexo 1: Livro didático Português Linguagens 9º ano (2010a)

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Anexo 2: Livro didático Fleurs d´encre 3e (2012a)

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Anexo 3: Vendas de livros didáticos no Brasil

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Anexo 4: Vendas de livros didáticos na França

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