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À Promotoria de Direitos Humanos de São Paulo; Promotoria de Combate ao Crime

Cibernético de São Paulo; Promotoria Cível de São Paulo; e Promotoria Criminal de


São Paulo

Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo, brasileiro, solteiro, cientista político e professor,


CPF nº 029.404.431-06 e RG nº 2525483, residente e domiciliado em SEPS 712/912, lote
“c”, bloco B, Brasília-DF; Levi Kaique Ferreira da Silva, brasileiro, solteiro, engenheiro
civil, CPF nº 420.951.278-89 RG nº 42.460.424-3, residente e domiciliado em Rua Ipê
Pardo, 91 Residencial Gênesis Campinas, SP; Thallis Luiz Souza Ramos, brasileiro,
solteiro, funcionário público, CPF nº 12536611701, RG nº 11973053, residente e
domiciliado em Duarte Ferreira Canha 262, Penápolis – SP; Carlos Augusto de Souza
Santos, brasileiro, solteiro, advogado, inscrito no CPF sob o n° 090.692.516-98, portador
do RG de n° MG-15.048.467, com endereço na Rua Dr. Geraldo Starling Soares, Bairro
Regina, Belo Horizonte/MG; Asaph Correa e Teles, brasileiro, solteiro, CPF nº
040.987.201-67, RG nº 2.745.921, residente e domiciliado em CLN 106, Bloco A, 212,
vem, respeitosamente, oferecer notícia de fato em face da influenciadora digital Luísa
Nunes Brasil, dados desconhecidos, com perfil no Instagram “luisanunesbrasil”
(https://www.instagram.com/luisanunesbrasil/), pelas razões de fato e de direito que
passa a expor adiante.

I. Fatos

1. A influenciadora Luísa Nunes Brasil é conhecida por seu trabalho de “fazer a vida
melhor”, conforme seu website (https://www.luisanunes.com/) expõe. A influenciadora
se autodenimina escritora, mentora e produtora de conteúdo digital (imagem em
anexo).
2. Dentre suas obras, encontram-se livros físicos e digitais, todos com dicas e
noções que digam respeito a auto-empoderamento e experiências pessoas que
poderiam servir de exemplo para outras pessoas.

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3. Com isso, tem-se de forma cristalina que a pessoa cuja prática se noticiará se
utiliza das ferramentas disponíveis na internet, sobretudo redes sociais, para dar vazão
a ideias e, com isso, gerar propaganda e publicidade para seus produtos.
4. Sua conta no Instagram conta hoje com pouco mais que 58 mil seguidores. Se
antes era uma conta púlica, hoje está restrita, em virtude dos fatos que se passará a
expor.
5. Em 4 de junho de 2020, a influenciadora em questão foi alvo de polêmica na
internet, uma vez que publicou, em suas redes sociais, críticas aos movimentos
antirracistas e que pregavam a hashtag “vidas negras importam”.
6. O fato propulsor do evento foi, de acordo com a mídia, a violenta morte de
George Floyd, negro, pelas mãos de um policial branco, que permaneceu com o joelho
em seu pescoço por cerca de 9 minutos, até provocar sua completa asfixia.
7. No entanto, o propulsor do evento no Brasil é, na verdade, o racismo sistêmico
e o constante perigo que “ser negro” representam por aqui. Ou seja, a união do fato nos
EUA com os constantes abusos e episódios de raccismo no país contribuíram para dar
força ao movimento.
8. No entanto, a influenciadora em questão, no afã de criticar o movimento e fazer
valer sua opinião, gravou vídeo para os seus vários seguidores (arquivo .mp4 “Vídeo 1”),
no qual afirmou categoricamente que:

“Racismo existe e vai existir enquanto... a maior quantidade de crimes for causada
pela população negra. Vai existir, gente, é uma coisa natural, é um instinto de
defesa.”

9. A influenciadora segue falando, justificando seu pensamento, ao exemplificar


que é natural ter medo ao “ver uma pessoa negra, com trejeitos” em um parque,
enquanto é normal não ter medo ao ver “um branco de terno”.
10. A sequência de vídeos gravados pela influenciadora não traz qualquer tipo de
retratação, mas sim a tentativa de ratificar mais e mais seu posicionamento, de que
racismo é normal e justificável.

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11. As falas da influenciadora provocaram imensa comoção nas redes sociais, de
modo que diversas personalidades se posicionaram contra as ideias veiculadas. De igual
modo, o episódio foi alvo de diversas matérias em portais de notícias de massa, como
Veja, Metropoles, O Globo, Catraca Livre e afins.
12. Diante da mobilização provocada pelo episódio, sua conta no Instagram,
aplicativo esse que não dispõe de um canal de denúncias específico para episódios do
tipo, foi removida do ar. Não sem antes ganhar muitos seguidores, em virtude da
veiculação da imagem da influenciadora na internet.
13. No entanto, dia 22 de junho sua conta voltou ao ar normalmente, de tal forma
que não resta outra saída que não o encaminhamento da presente notícia de fato, de
modo a levar o episódio ao conhecimento das autoridades que possam, efetivamente,
tomar providências nas searas institucionais contra tal prática.

II. Mérito

Cabimento da atuação do Ministério Público na apuração dos fatos narrados

14. De acordo com a Constituição Federal, “O Ministério Público é instituição


permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”.
15. Os direitos indisponíveis são aqueles dos quais não se pode abrir mão por
iniciativa voluntária, dentre eles a vida e a dignididade.
16. O caso em tela, de pessoa que impunemente pratica atos de segregação se
utilizando de larga rede de seguidores em suas mídias sociais, representa indelével
atentado aos interesses sociais e individuais.
17. Isso porque se trata de prática com sérios contornos racistas, excludentes, com
potencial de influenciar dezenas de milhares de pessoas que consomem o conteúdo
desta pessoa.
18. Desta forma, o caso em tela atrai para si a atuação do Ministério Público, na
condição de defensor da sociedade como um todo.

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Os influenciadores digitais e sua responsabilidade

19. De acordo com definição da Wikipedia, influenciador digital “é uma pessoa ou


personagem popular em uma rede social. Esses influenciadores possuem um público
massivo que acompanha suas postagens e eventualmente as compartilha com outras
pessoas”1.
20. Ainda segundo a enciclopédia online, “essas novas personalidades originadas da
internet não se restringem a apenas uma rede social, a união delas faz com que eles
alcancem um público maior e assim consigam firmar o seu espaço. O surgimento desses
novos formadores de opiniões digitais também causa uma mudança comportamental e
de mentalidade em seus seguidores, que tendem a ser facilmente influenciados”2.
21. A partir do número de seguidores da influenciadora em questão, em soma com
suas demais redes, o amplo alcance de suas opiniões é incontestável, de tal forma que
os vídeos em questão chamaram a atenção de diversas celebridades, como Bruna
Marquezine.
22. A influenciadora em questão faz questão de corroborar que o alegado, sobre
racismos ser justificável em virtude de mais negros cometerem crimes, se trata de sua
“opinião”, com suposto embasamento em dados. Mas, em momento algum ela
apresenta esses dados.
23. Neste sentido, tem-se que há uso extretamente irresponsável de sua plataforma,
que, como exposto, possui amplo alcance. A influenciadora em questão disseminou uma
opinião carregada de preconceito, discriminação e que reforça padrões e esterótipos
negativos.
24. A atual sistemática de redes sociais beneficia o uso de polêmicas como forma de
crescimento no número de seguidores e no compartilhamento de sua imagem e
opiniões. É uma forma de chamar a atenção e trazer holofotes para a própria atuação.
25. Como é possível notar em diversos casos nos quais os acusados propagaram
opiniões racistas ou discriminatórias de qualquer espécie, existe um ciclo muito bem

1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Influenciadores_digitais
2 Idem

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definido de ações: a publicidade, a repercussão, a mudança de opinião (ou a desativação
da rede social) e a redenção.
26. Na primeira parte do ciclo, há a divulgação da opinião ou posição discriminatória.
Essa opinião causa choque ou indignação em segmentos da sociedade, deflagrando
amplo debate e publicidade para a prática.
27. Na repercussão, a pessoa responsável (ou marca, a depender do caso), fica em
ampla evidência. Chama a atenção de celebridades, portais e veículos de imprensa, se
torna assunto nas redes sociais. Há a divisão de opiniões, mas normalmente muitas
visualizações no que foi produzido.
28. No ciclo da mudança de opinião ou de remoção da opinião polêmica do ar, a
pessoa ou marca normalmente anuncia que o conteúdo não está mais disponível. É
comum que personalidades apaguem as postagens polêmicas ou mesmo encerrem
temporariamente suas redes sociais.
29. Por fim, há a redenção, na qual a pessoa ou marca em questão pede desculpas,
se retrata publicamente ou indica ter adotado uma mudança de postura, já que estava
errada. Nessa fase, há o ganho de mais seguidores, uma vez que se indica uma
predisposição da pessoa de “aprender com os erros”.
30. Pode parecer que a tese formulada não tem suporte fático, mas a observação de
casos como o de Júlio Cocielo, objeto de ação por parte deste MPSP indicam que é
perfeitamente possível observar a utilização desses passos para crescimento de redes
sociais OU defesa em caso de externalização de opiniões discriminatórias e eventual
capitalização com as mesmas.
31. Acontece que, independente de se tratar ou não de estratégia de crescimento
das redes sociais, o fato não é menos grave. Se trata da naturalização de expediente
criminoso, eis que discriminatório e terrivelmente assustador.
32. Os influenciadores digitais fazem desta profissão um excelente meio de auferir
lucros, visto que seu conteúdo pode ser alvo de “monetização”, quer seja, existir
pagamento pelo o que for produzido nas redes.
33. De igual forma, o sucesso em número de seguidores pode facilitar contratos de
representação, patrocinío, dentre outras vantagens financeiras. Não por menos, a
prática está cada vez mais disseminada.

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34. Portanto, há que se ter responsabilidade redobrada com as opiniões emitidas,
uma vez que o potencial danoso é extremamente alto. Uma opinião como a veiculada
pela influenciadora em questão possui potencial de provocar extenso dano, atingindo
milhares, quiçá milhões de pessoas, uma vez que se alastra infinitamente pela internet.
35. E como as manifestações contrárias ou repressivas ao que foi postado despertam
ainda mais atenção para o que foi dito ou feito, há aí uma dificuldade redobrada, uma
vez que o ato ou fato ganha mais divulgação e mais potência.
36. É preciso frisar que a influenciadora em questão tem perfeita consciência disso,
uma vez que ela admite que o seu conteúdo chega em lugares que talvez ela não
conseguiria chegar por sua própria conta (Vídeo 2 e Vídeo 3).
37. Portanto, é elementar a responsabilidade dos influenciadores digitais, classe que
engloba a personagem cujo fato aqui se noticia. E, conforme se passará a demonstrar,
existem elementos capazes de ensejar persecução na área cível e na área criminal contra
a influenciadora Luísa Nunes.

O ilícito penal de racismo na fala da influenciadora

38. O racismo é uma praga na sociedade brasileira. Apesar de grande parte dos
habitantes do país se declarar como preto ou parto, há, até hoje, ampla estigmatização
e sistemática exclusão dessa população.
39. O racismo no Brasil é sistêmico. É natural para um país no qual o próprio governo
incentivou práticas eugenistas e de embranquecimento da população, que incentivou
famílias de senhores de terras brancos e somente aboliu a escravidão em 1888, após
intensa pressão de outros países.
40. Não se trata de problema que será resolvido em curto prazo. Mas também não
será resolvido sem ampla atividade das autoridades competentes. Ou seja, o Estado
precisa se mover para que a sociedade brasileira vença este mal que mata e exclui.
41. Por isso mesmo, houve a implementação de ações afirmativas, que se fundam
“na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na
sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da

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distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da
população afrodescendente”, conforme palavras do MM. Ministro Roberto Barroso
(ADC 41).
42. Sabe-se que, com o avanço da medicina, das pesquisas médicas, só há uma raça
para fins de classificação biológica: a raça humana. No entanto, a separação em raças,
cores, também tem o condão de proporcionar proteção e políticas específicas de
inclusão de segmentos sociais historicamente excluídos. Neste interim é que se fala em
“raça ou cor” para definir pessoas negras.
43. As mazelas do racismo institucional, estrutural são amplamente reconhecidas.
Enquanto o primeiro decorre do próprio funcionamento das Instituições, o segundo se
desdobra num processo político e histórico, intrinsecamente relacionado à história
deste país. Portanto, a omissão das autoridades competentes no combate a este mal
contribui tão somente para sua perpetuação, reforçando-se a ideia de um sistema que
confere privilégios baseados numa distinção racial3.
44. Portanto, a omissão das autoridades competentes no combate a este mal
contribui tão somente para sua perpetuação.
45. Como resta cada vez mais bem demonstrado, o racismo exclui e mata. Faz com
que as pessoas vítimas desse mal sejam alvo de todo tipo de constrangimento, opiniões
negativas, estigmas e dificuldades adicionais. Ou seja, não se trata de mal banal.
46. Neste sentido, pede-se licença para expor lição do Ministro do E. Supremo
Tribunal Federal, Celso de Mello, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão nº 26:

O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para


além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto
manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada
pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à
dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e
da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável e por não
pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada
estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição
de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa

3 Nesse sentido, ALMEIDA, Sílvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. 203p.

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inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de
exclusão do sistema geral de proteção do direito.

47. Apesar de o objeto da ação em questão não ter diretamente a ver com o objeto
aqui discutido, deve-se considerar a tese levada a cabo pelo MM. Ministro e acolhida
por maioria pelo Plenário do E. STF, uma vez que se tratou de histórico julgamento no
qual homofobia e racismo foram equiparados.
48. Isso porque o racismo é crime inafiançável, imprescritível, conforme definido
pela Constituição Federal. Há a obrigação de o Estado agir ativamente, aplicando o
ordenamento jurídico específico.
49. No caso, a conduta da influenciadora em questão é compatível com o ilícito
previsto no art. 20 da Lei 7716/1989 (Lei Antirracismo):

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,


etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.

50. Como se nota nos vídeos, a fala da influenciadora em questão induz à


discriminação a preconceito de raça e cor. De forma direta, sem sobressaltos, a fala da
sra. Luísa Nunes incentiva o racismo.
51. Nesse sentido, a conduta se amolda perfeitamente aos núcleos do tipo
suprarreferido, posto que consoante a doutrina tradicional, “praticar discriminação” é
conduta abrangente o bastante para reunir os verbos “impedir”, “recusar”, “negar” e
“obstar”, como qualquer outra forma menos explícita de comportamento
discriminatório. Bem como “Induzir” significa significa conduzir, levar para dentro,
inspirar, incutir, arrastar. Neste caso, o agente cria no outro a disposição para a prática
do crime.
52. Ela diz se basear em dados, sem explicar a fonte, para indicar que pessoas negras
cometem mais crimes. Ou seja, ela naturalmente reforça estigma racista. No vídeo 8,
ela deixa bem claro que “a mai... significa que estatisticamente falando, crimes são mais
cometidos pela população negra”.

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53. É muito forte ver a defesa que é feita pela influenciadora em questão, com
tamanha certeza e sem qualquer sombra de dúvidas, sendo que ela mesma reconhece
que suas palavras podem atingir milhares de pessoas.
54. Nos vídeos em questão, ela deixou muito bem exposto seu total desprezo por
pessoas negras. Deixou claro que se deve partir do ponto de vista que se um negro está
na rua com você, você pode estar em perigo.
55. Tal absurdo argumentativo remonta à criminologia lombrosiana que
compreendia o crime enquanto fenomeno biológico necessariamente atrelado a
características físicas. Despiciendo, por óbvio, ressaltar o quanto essa concepção é
ultrapassada e indesculpavelmente racista.
56. Pessoas como a influenciadora em questão precisam sofrer as consequências
legais cabíveis por suas palavras. Em todas as oportunidades possíveis, pessoas como
ela, com falas abertamente racistas e com acesso, evocam o manto protetivo da própria
opinião para dizer impropérios. Como se estivesse em curso uma tentativa vil de
“criminalizar opiniões”.
57. No entanto, não se trata de criminalização de opinião. Pedir apuração e
responsabilização por uma opinião racista é responsabilizar uma opinião criminosa. É
pedir que o Estado cumpra seu papel de erradicação do racismo e de todas as formas
de discriminação negativa.
58. Portanto, diante de todo o exposto, pede-se a investigação da influenciadora em
questão pelo ilícito tipificado pelo art. 20 da Lei Antirracismo, uma vez que houve a
prática de uma opinião que induz discriminação de raça e cor. Mais grave ainda é que o
possível delito foi praticado por meio de redes sociais com amplo alcance.
59. Os vídeos em anexo demonstram, de forma cabal, indícios de autoria e
materialidade do crime em comento, de tal forma que o procedimento investigatório
se faz necessário, com eventual responsabilização da influenciadora caso se entenda ter
ocorrido o delito indicado.
60. No entanto, a responsabilização criminal não é suficiente para, sozinha,
promover o efeito didático necessário para que esta prática seja cada vez mais evitada
por quaisquer pessoas.
61. Neste sentido, também é preciso que haja a investigação e eventual
procedimento civil, conforme se passará a expor.

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A existência de danos sociais a partir da fala da influenciadora

62. Tendo em vista a brilhante atuação do Ministério Público de São Paulo no caso
do influenciador Júlio Cocielo, bem como a justeza daquele caso ao que aqui se expõe,
pede-se licença para transcrever os termos da petição inicial de responsabilização civil
por danos sociais utilizado contra aquele influenciador.
63. Os danos sociais, nas palavras de Antônio Junqueira de Azevedo4, são aqueles
que causam um rebaixamento no nível de vida da coletividade e que decorrem de
condutas socialmente reprováveis, ou seja, condutas corriqueiras que causam mal-estar
social. Envolvem interesses difusos e as vítimas são indeterminadas ou indetermináveis
(correspondem ao art. 81, parágrafo único, inciso I do Código de Defesa do Consumidor).
64. Esses danos constituem-se, pois, na aplicação da função social da
responsabilidade civil, atrelada ao fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, o
qual, com fulcro na supremacia da Constituição, preceitua que os fundamentos de
validade jurídica do Direito Civil devem ser extraídos da Constituição.
65. Nas palavras da Ministra aposentada do STJ Eliana Calmon,

“as relações jurídicas caminham para uma massificação, e a lesão aos interesses de
massa não podem ficar sem reparação sob pena de criar-se litigiosidade contida
que levará ao fracasso do direito como forma de prevenir e reparar os conflitos
sociais. A reparação civil segue em seu processo evolutivo, iniciado com a negação
do direito à reparação do dano moral puro para a previsão de reparação de dano a
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, ao lado do já consagrado
direito à reparação pelo dano moral sofrido pelo indivíduo e pela pessoa jurídica (cf.
Súmula 227/STJ)”.5

66. Aqui cabe a compreensão de que as técnicas de tutela do direito são opções
políticas e ideológicas ligadas à cultura, à filosofia e ao modo de ser do direito em
determinado momento histórico. A partir do constitucionalismo, movimento político
cultural surgido no século XVIII na Europa Ocidental, os direitos fundamentais foram

4 Azevedo, Antonio Junqueira. Novos estudos e pareceres de direito privado, capítulo “Por uma nova
categoria de dano na responsabilidade civil – o dano social”. Editora Saraiva, São Paulo.
5 STJ, Resp. 1.269.494-MT, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 24.09.2013.

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gradativamente, por meio de suas denominadas dimensões, assumindo a centralidade
do ordenamento jurídico.
67. Assim, a própria ideia de tutela da personalidade merece um novo enfoque
atualmente. Isso porque

“os direitos de personalidade manifestam-se como uma categoria histórica, por


serem mutáveis no tempo e no espaço. O direito de personalidade é uma categoria
que foi idealizada para satisfazer exigências da tutela da pessoa, que são
determinadas pelas contínuas mutações das relações sociais, o que implica a sua
conceituação como categoria apta a receber novas instâncias sociais”.6

68. Evidentemente, pois, que uma coletividade está sujeita a suportar danos morais.
Certas condutas atingem não apenas pessoa determinada, mas, também, um grupo
indeterminado de pessoas ou toda a sociedade. Esta lesão descumpre com a
solidariedade e coloca em risco a segurança social. E, por tais características, foi
designada como dano social.
69. Atualmente, essa categoria de dano é reconhecida tanto pela doutrina, quanto
pela jurisprudência.
70. Nesse sentido é o Enunciado 455, aprovado na V Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal/Superior Tribunal de Justiça que, fazendo referência ao
artigo do Código Civil que trata da medida da indenização derivada do dano, reconheceu
a existência dos danos sociais:

“Enunciado 455: A expressão “dano” no art. 944 abrange não só os danos


individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos
e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações
coletivas”.

6 José Rubens Morato Leite. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. RT, São Paulo,
2000, p. 287.

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71. Examinando essa nova categoria de dano, o dano social, Antônio Junqueira7 aduz
que se um ato é doloso, gravemente culposo ou negativamente exemplar, pode não ser
lesivo somente ao patrimônio material ou moral da vítima, mas atingir toda a sociedade.
72. O STJ, em recurso repetitivo8, seguiu esse entendimento, ao reconhecer que a
condenação por danos sociais requer pedido expresso e deduzido no âmbito de uma
ação judicial coletiva.
73. Cuida-se, portanto, de um dano que atinge os fundamentos da sociedade
organizada, em suas expressões políticas, culturais e institucionais, refletindo sobre os
valores que inspiram as relações humanas, tais como a solidariedade, a justiça, a
generosidade, a igualdade democrática e de direitos e, sobretudo, o sentimento
profundo de justiça.
74. Assim, é patente que uma coletividade, diante de ofensas praticadas contra seus
bens e direitos, pode ser culturalmente ofendida ou sofrer abalo em sua honra, crença,
dignidade e reputação. Como ensina a douta Ministra aposentada Eliana Calmon,
referindo-se aos danos morais coletivos lato sensu, incluindo os aqui denominados
‘danos sociais’, ainda no bojo do mesmo acórdão já citado:

“o dano moral deve ser averiguado de acordo com as características próprias aos
interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres próprios das
pessoas físicas que compõem determinada coletividade ou grupo determinado ou
indeterminado de pessoas, sem olvidar que é a confluência dos valores individuais
que dão singularidade ao valor coletivo”9.

75. No entanto, não é qualquer atentado aos interesses da coletividade que merece
ocasionar o seu ressarcimento por dano moral. De acordo com o Ministro do STJ
Massami Uyeda, é indispensável “que o fato transgressor seja de razoável significância
e desborde os limites da tolerabilidade”.10

7 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR., Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato
Afonso (coord.). O Código Civil e sua interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
8 STJ. 2ª Seção. Recl. 12.062-GO, Rel. Ministro Raul Araújo, julgado em 12/11/2014
9 STJ, Resp. 1.269.494-MT, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 24.09.2013.
10 STJ, REsp 1221756/RJ, Rel. Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 02.02.2012.

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76. Nesse ponto, importante destacar que o racismo sempre existiu e continua
existindo, mas não deve o direito legitimá-lo. Ao contrário, cabe ao Direito ser uma
barreira contra; uma arma para brecá-lo e quiçá eliminá-lo.11
77. A indiferença que eventualmente o Direito poderia dispensar às expressões de
racismo seria, em última análise, uma naturalização do fenômeno, o que está na base
de toda forma de preconceito.
78. Esse “processo de naturalização” é essencialmente ideológico, na medida em
que se relaciona com o senso comum, ao “é como é”, como se o mundo tivesse uma
essência e não fosse resultado de construções históricas e sociais. 12
79. No artigo A naturalização do preconceito na formação da identidade do
afrodescendente, Ricardo Ferreira e Amilton Camargo (2001) discorrem sobre a
contradição entre o que se acredita positivo (lutar contra a opressão racial) e o que
realmente está sendo realizado (a disseminação dessa mesma opressão), que se
enraizou em nosso cotidiano de maneira poderosa a partir da desintegração da
escravidão13.
80. Essa exposição dos negros ao mercado de trabalho e a formação de classes após
a libertação dos escravos é vital para entender, já observava Florestan Fernandes, os
aspectos brasileiros do preconceito racial.
81. Diante de um cenário que lhes era integralmente desfavorável, sem acesso a
nenhuma compensação e perante um sistema econômico cada vez mais competitivo, os
negros passaram a ocupar meios pouco privilegiados para sobreviver, na periferia do
crescimento econômico e social.
82. Assim, crescia o número de mães solteiras, desempregados, debilitados pelo
vício no álcool, praticantes da prostituição e da criminalidade, essa última um fenômeno
que ainda causa tristes distorções associadas à pele escura, a exemplo da publicação da
influenciadora em questão, que relacionou pessoas negras à prática de crimes, de
forma direta.

11 Nunes, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, Doutrina e Jurisprudência, Editora
Saraiva, 2ª Edição
12 No País do Racismo Institucional, Dez anos de ações do GT Racismo no MPPE.
13 Idem

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83. Nesse ponto, evocam-se as importantes análises de Charles Taylor, ao observar
que a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do reconhecimento e
da representação exterior que possui, legitimando uma imagem positiva ou negativa14.
84. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLII, no rol dos direitos e
garantias fundamentais, assenta que “a prática do racismo constitui crime inafiançável
e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”.
85. A Carta Magna, pois, conferiu à prática do racismo a maior reprovabilidade penal
existente em seu texto; logo, a maior reprovabilidade existente no ordenamento jurídico
brasileiro. O racismo, ao lado das ações de grupos armados contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático, são os únicos crimes imprescritíveis existentes
no país.
86. Paralelamente, a Constituição da República elencou dentre os seus objetivos
fundamentais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º, IV) e afirmou que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade...”
87. Uma sociedade livre de discriminações, como vertente da dignidade da pessoa
humana, constitui um dos objetivos mais caros do Estado brasileiro. A prática do
racismo, que fere frontalmente o princípio da igualdade, merece, pois, a mais absoluta
intolerância por parte do Estado.
88. O repúdio a condutas como a discutida nos autos se manifesta na sociedade
brasileira de modo crescente. No que tange ao caso concreto, a perda de seguidores,
patrocínios e campanhas publicitárias por parte do Réu demonstra o nível de
intolerabilidade que a sociedade atingiu para com a prática do racismo.
89. E o Poder Judiciário vem contribuindo para tal elevação do patamar civilizatório
brasileiro: tanto o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quanto o Superior Tribunal
de Justiça, já pacificaram o entendimento a fim de conceder indenizações por dano
moral individual em casos de condutas racistas.

14 Idem

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90. É induvidosa, quanto à ocorrência de dano moral individual in re ipsa em casos
de práticas racistas, a responsabilidade civil do agente racista, como comprovam as
ementas de julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Superior
Tribunal de Justiça a seguir:

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. Danos morais. Racismo. Hipótese em que o réu


utilizou expressões com conotação pejorativa e racista, em público, para ofender o
autor. Fato comprovado por testemunha contradita em audiência. Impugnação
indeferida por decisão irrecorrida. Oportunidade preclusa – Nítida finalidade
discriminatória, de inferiorizar. Atitude que não pode ser tolerada pelo direito ou
pela sociedade – Danos presumidos. Verba indenizatória mantida em face das
condições econômicas das partes. Honorários advocatícios sucumbenciais elevados
para máximo legal. Verba que melhor remunera o trabalho desenvolvido pelo
patrono do autor – Recurso do réu desprovido e provido em parte o do autor. (TJ-
SP – APL: 00157905920138260037 SP 0015790-59.2013.8.26.0037, Relator: Rui
Cascaldi, Data de Julgamento; 27/01/2015, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de
Publicação: 28/01/2015)
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. ACÓRDÃO. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. AÇÃO DE
INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. OFENSA A POLICIAL CIVIL DURANTE REGISTRO DE
OCORRÊNCIA DE TRÂNSITO EM DELEGACIA. ACUSAÇÃO DE RACISMO. PROVA.
REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ. I. Não padece de nulidade acórdão
que enfrenta, fundamentadamente, as questões propostas na lide, apenas com
conclusão adversa à parte ré no tocante à interpretação dos fatos colhidos nos
autos. II. Reconhecido pelas instâncias ordinárias, soberanas na apreciação da
prova, o dano moral causado a policial civil, por ofensas e agressões dirigidas a sua
pessoa, inclusive com alusão pejorativa a sua cor, procede o pedido indenizatório
postulado. III. "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso
especial" - Súmula n. 7/STJ. IV. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp: 472804
SC 2002/0129577-3, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de
Julgamento: 03/04/2003, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe
08/09/2003).

91. Reconhecido e presumido o dano moral individual em decorrência de racismo e


pacificado o entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto à existência, no âmbito
do Direito, do dano social, lógica e irrefutável é a constatação da ocorrência do dano
social em virtude de práticas racistas.
92. Por fim, é preciso lembrar que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana
Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância que, em
seu artigo 4º, menciona expressamente:

“Art. 4º. Os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo


com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os

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atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de
intolerância, inclusive:
(...)
II. publicação, circulação ou difusão, por qualquer forma e/ou meio de
comunicação, inclusive a internet, de qualquer material racista ou racialmente
discriminatório que:
a) defenda, promova ou incite o ódio, a discriminação e a intolerância; e
b) tolere, justifique ou defenda atos que constituam ou tenham constituído
genocídio ou crimes contra a humanidade, conforme definidos pelo Direito
Internacional, ou promova ou incite a prática desses atos”. (Grifo nosso)

93. Ademais, o Brasil, por meio da ratificação da Convenção Internacional sobre a


Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial comprometeu-se a adotar, por
todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a
discriminação racial em todas as suas formas e a encorajar a promoção de entendimento
entre todas as raças.
94. Para esse fim, conforme determinado pelo artigo 2º, §1º, alínea “d”, da
mencionada Convenção, o Estado “deverá tomar todas as medidas apropriadas,
inclusive, se as circunstâncias o exigirem, medidas de natureza legislativa, para proibir e
pôr fim à discriminação racial praticada por quaisquer pessoas, grupo ou organização”.
95. O Estado e os direitos são obras humanas que têm por única finalidade a
preservação da esfera de dignidade das pessoas15 e, nas palavras de Rizzatto Nunes16, “é
reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da
bestialidade possível da ação humana”.
96. Com efeito, o valor da dignidade humana não é relativo e mutável a depender
do momento histórico ou do território, mas sim absoluto, pleno e dissociado de
argumentos que o posicionem em um perigoso relativismo, o qual, em diversos
momentos da história da humanidade, serviu de justificativa para o cometimento de
atrocidades.
97. Não podem as autoridades públicas, portanto, omitir-se na concessão de
indenização à sociedade gravemente lesada pelas condutas prenhes de racismo da
influenciadora em questão.

15 Oscar Vilhena Vieira, Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, Editora Malheiros,
1ª Edição.
16 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Doutrina e Jurisprudência, Editora Saraiva, 2ª Edição

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Conclusão e pedido

98. Conforme amplamente exposto, o silêncio das autoridades sobre o caso em


comento permitirá que uma grave manifestação, de caráter notavelmente racista, tenha
servido tão somente para que a influenciadora em questão ganhasse mais seguidores e
influência nas redes.
99. Não está claro até o momento se o ato em questão foi uma estratégia para
angariar mais seguidores ou se foi a materialização de um crime, motivado tão somente
por estigmas e puro preconceito.
100. No entanto, condutas como a perpetrada por parte da influenciadora em
questão não podem ficar sem uma resposta firme e efetiva das autoridades públicas. É
preciso que práticas racistas sejam efetivamente investigadas e punidas, com todo o
rigor da lei.
101. Portanto, diante da inescrupulosa e inaceitável falta de explicações dos
responsáveis pela plataforma Instagram, onde o conteúdo foi veiculado (e que até o
presente momento sequer possui um canal de denúncias que inclua postagens de
conteúdo racista ou discriminatório), requer-se respeitosamente a recepção da
presente notícia de fato e tomada de atitude por este Ministério Público, com as
investigações e medidas judiciais que se fizerem cabíveis no presente caso.

Termos em que, pede deferimento.

Brasília/DF, 23 de junho de 2020

Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo Carlos Augusto de Souza Santos

OAB/DF nº 56.785 OAB/MG nº 168.199

Asaph Correa e Teles

OAB/DF nº 60.544

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