Você está na página 1de 8

Ü PATRIARCA

R ui M ourão*

REsuMo

A publicação qu ase simultânea de Corpo de baile e Grande sertão:


veredas, que ma rcaram a fa se das experiências mais auda ciosas da
obra de João Guima rães Rosa, provocou enciumada reação de impo r-
ta ntes ficcionistas bras ileiros que sentiram o impacto d o confronto esta-
belecido. U m a geração em início de carreira, que afetava tendência cons-
trutivista, deixou-se empo lgar e ganhou ânimo novo com o aparecimento
da qu ele traba lho de exigências estéticas verdadeiras.
João Guimarães Rosa promove u um a es pécie de atualização do moder-
nism o como um todo, podend o se r isoladas, na sua o bra, três linhas
criati vas que já vinham constituindo tradi ção e fo ram por ele levadas às
suas últimas conseqüências: a recriação da forma de narrar dos conta-
dores de estória d o folclore; a estilização da fala dialetal do se rtanejo; a
pesquisa da linguage m ao nível da langue. Em todas essas direções, o
auto r de Grande sertão: veredas fa ri a escola.
A proposta de um a dicção estruturalmente renovada e sem comprome-
timentos regio nalistas, qu e aparece visível em Primeiras estórias, por
esta r em consonâ ncia com a forma de expressão do contingente ma io r
da população brasileira, possivelmente será de res ultados mais positivos
para a evolução da nossa narrativa literária.

inh a geração nasceu sob o signo de João Guimarães Rosa. O primeiro

M trabalho que publiquei na vida - simples crônica estampada no jornal A


Manhã, d o Rio d e Ja neiro - registrava extemporaneamente a forte im-
pressão qu e me causara Sagarana, li vro àquela altura já velho, editad o anos a ntes. E
quando, na companhi a de outros joven s escritores, participava do projeto d a revista
Tendência, assistiria à erupção vulcânica que foi o aparecimento quase simultân eo
de Corpo de baile e Grande sertão: veredas. A novidade que desconcertava pela sua
estonteante orig inalidade e pela extensão, e nvolvendo m ais de mil págin as, colocou
em cheque a lite ratura brasileira. Romancistas importantes, ao verem a sua obra d e
repente dimensionada pa ra ba ixo, reagiram enciumados. Tentaram ridiculari zar o

· Escritor.

SCRI PTA, Belo H orizon te, v. 2, n. 3, p. 25 1-258, 2" sem. 1998 251
Ü I'ATIUARC:\

que considerava m mero fo rmalismo a rti ficia l fora de época, ca udatário d o bacha re-
li smo pedante posto aba ixo pe los modernos d e 22. O s jove ns, aind a com a perspecti-
va de uma carreira a rea liza r, entrega ra m -se à admiração sem reservas e aceitava m o
desa fi o que estava se ndo proposto, de cria r litera riam ente, no Brasil, num pla no d e
ma io r a rrojo e descortino. Entre esses, sem dú vida fo rmava o pessoal d e Tendência .
E mpenhados n a pesquisa de uma lite ratura d e vinculação nacional, o esta rdalhaço
da entrada d efinitiva e aça mbarcado ra de G uima rães Rosa no cená rio, com imediato
tra nsbordamento pa ra o pla no intern acio nal, veio nos m agnetizar. Sentimo-nos um
pouco donos d a ve rdade naque le mo m ento. Juvenilm ente des lumbrados, verificáva-
mos qu e a idé ia de um a a rte viscera lm ente co mpro m etida com a nossa rea lidade
mas de desca rte do pito resco, podia ser su ste ntada sob a p roteção de um rea lizado r
e m tom m a io r que desemboca ra na nossa dianteira, ao n osso lado, na nossa reta-
gu ard a. O estudo e meditação sobre a obra do escrito r nos levariam a tornar definiti -
va a n ossa adesão à estética construti vista e a revista que pu blicáva mos logo estaria
dese mpenhando pa pel de indiscutível presen ça e afirm ação, como um dos ó rgãos
que su stentaram os movimentos de vangard a do fin al d a décad a de cinqü enta. A
convocação que estava sendo feita, e ntreta nto, despertava inte resses os m ais va ria-
dos . D e um m odo gera l, as pegadas rosea nas que atraíam os jovens escrito res apon -
tava m para direções mui to definid as e de fácil reconhecimento.
C oloca ndo com o meta e fim da sua aventura pe lo mundo d as palavras a
expressão de uma área geográfica e huma na cujo conhecimento ajudaria poetica-
mente a aprofunda r a té os limites da ilumin ação m etafísica - o sertão - o fi ccio ni sta
min eiro de saída trato u de incorpora r um a fo rma de estruturação narrati va que teve
começo em pleno do mínio d a oralidade. Nas áreas rurais, persiste a tradição dos
contado res de casos, pe rsonagens in co rpo rados pelo folclo re. As construções ingê-
nuas, sumam ente pito rescas dessa arte de co municar, que prossegue no u so de cha-
vões característicos, de muletas repetitivas que fa cilita m a tra nsmissão de boca em
boca, dos g raciosos circunlóquios que já e nca minham para um desempenho cênico,
das reinvenções e acrescenta mentos na turais ao que se apresenta no mundo da fe no-
menologia, sempre constituiu atração pa ra a literatura regio nali sta . É o que se com-
prova expressiva mente com "Ped ro Barqueiro", conto de Afo nso Arinos, incluído
em Pelo Sertão (1947) . N ele, o au tor passa a palav ra a um personage m , que se rá
na rrador não na prim eira, mas na te rce ira pessoa. Flor assume o relato e fala sempre
e ntre aspas ficando, po r esse artifício, lado a lado com o a uto r do livro. Mário d e An -
drade, em Contos de Belazarte ( 1992) , inve rterá o processo. Ele cha mará e m seu a u-
xílio um renomado contado r de casos que povoou a infâ ncia de vá rias gerações de
brasileiros como protagoni sta de aventuras inesquecíveis, a nuncia ndo n a abertura
de cada estória : "Belaza rte me conto u :". N a verdad e, o auto r paulista n ão irá se
tra nsformar em mero comunicador de a lgo que lhe foi transmitido. O relato qu e
apresentará em seguida será em ling uage m erudita e de sua criação pessoal. A in vo-
cação da figura do imaginário bras ileiro não passa rá de uma espécie de con vocação

252 SCRIPTA, Belo H orizonte, v. 2, n. 3, p. 251-258,2° sem. 1998


Rui Mourão

do leitor para a expe riência de recri a r a realidade psicológica e ling üística de cunho
popular que está interessa do em reali zar. Só em Macunaíma, Mário de Andrade
(1978), fará a estilização do conto ora l. José Lins do Rego, pouco depois, va i se a pre-
sentar como a encarnação mesma do contador de estórias. Ele desejou evocar o mundo
da g rande propriedade rural nordestin a 1 - o engen ho do avô da sua in fâ ncia - tra-
zendo para as páginas dos romances do Ciclo da Ca na de Açúcar o mesmo tom,
flu ência e esponta neidade das narrativas ou vidas nos longos serões da in tim idade da
fa mília. O amigo e colega de ofício, G racilia no Ramos, abordado pelo público no
interva lo das sessões de um cong resso em Porto Alegre, num a conve rsa sem compro-
missos, ma nifestou a desabusad a opinião de que o autor de Fogo morto "escrevia
com os pés", chamando a ate nção para o lado improvisado, tosco e muitas vezes ele-
mentar da obra de alguém que, procedendo como procedia, talvez não estivesse ass u-
mindo uma atitude literári a, apen as m anifestava a autenticidade do legítimo conta-
do r de estórias que, num plano de ma io r intencionalidade cultural , terá sido. De
manei ra incontestável como atitude literária, anos ma is tarde a dicção do contador
de casos irá se impo r no g ra nde desempenho de João Guimarães Rosa, momento em
que passa rá pela ma is exigente elabo ração.
Trabalhando em toda a sua obra, desde Sagarana, o modelo estrutural da
estória popular e chegando, ao escrever Tutaméia, a interessar-se até pela anedota,
em Grande sertão: veredas é que os resultados mais significativos a esse respe ito
apareceriam. A na rrativa se desenvolve com os penduricalhos de um sem-núm ero
de pequenas estórias com princípio, m eio e fim sendo contadas, até que fin a lm ente
va mos descobrir que o romance inteiro não passa de uma grande estória, m ui to ao
estilo trad icional, com princípio, meio e fim, que esta mos escuta ndo. Sim, porque é
principalme nte pelo ouvido que ela pen etra. O nar rador é um tagarela que não n os
d eixa em paz, revolve sem cessar as suas obsessões, nos invoca a todo momento com
o objetivo de nos manter ate ntos, digressiona ap resentando relatos paralelos, avança
e recua e, principalmente, usa de ling uage m en ca ntató ria. Com o avançar do texto -
com o fluir da corrente na rrativa principal- os descaminhos continu ados que apa-
rentemente retardam , atropelam e comprometem a progressão do todo vão se fun-
dindo no corpo geral e mostrando que nada poderia ser diferente. Cada desvio, cada
detalhe co ntribui para a perfeição do co njunto. A solução de transferir a co ndução da
narrati va ao personagem principal, que se entrega a ininterrupto monólogo interior,
é perfeita para nos coloca r diante d o contador da estória.
O brilho dessa tran sposição literária de um a fo rma de manifestação que o
público identifica como típica do brasileiro produziu tanto interesse que uma linha
de influência nesse sentido de im ediato se estabeleceria. Surgiram p ara todo lado
aqueles que desejavam adquirir a embocadura de contadores de estórias, embo ra
nenhum tenha tentado recriar esse m otivo a partir da expe riência roseana e nem

1
Ver Menino de engenho ( 1934).

$CRIPTA, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 251-258, 2° sem. 1998 253


Ü PA'l"RIARCA

mesmo desenvolvido qualquer tentativa mais exp ressiva de competição paralela com
o mestre. Como fenômeno cu ltural de circu lação ampla , acabou aparecendo um gê-
nero de manifestação para-literária, cujo nome de batismo de saída revela a depen-
dência do escritor mineiro: o causo. Ele anda por aí, na imprensa, na televisão, no
teatro ou nas reuniões de amigos, renovando ou reconfirmando aq uilo que nasceu
em decorrência de um fenômeno da cri ação popu lar. Lima Duarte, artista de teatro
e televisão, pelo talento e prestígio profissional de que desfruta, é o que mais vem
contribuindo para a consolidação dessa prática. Em Minas, surg iu um escritor que
não cultiva nem o conto nem a crônica, simplesm ente porque é e deseja se r, por vo-
cação e destino, contador de estórias: Olavo Romano (1982). Não se trata de um in-
ve ntor de estórias. Ele é criador de novas expressões para estórias conhecidas. Proce-
de rigorosamente como o comunicador do fabulário tradicional, que passando ad i-
ante o que tinha para recontar, acrescentava ao produto final a sua maneira de dizer,
as ênfases do seu gosto e até a gesticulação e mímica teatrais que fosse levado a p ro-
duzir. Olavo Romano é tão consciente da sua condição de sucessor daquele conheci-
do personagem do folclore que, durante certa época, financiado pela Secretaria Es-
tadual de C ultura, percorreu o interio r num programa de pesquisa e recolha de casos
em circu lação pelas pequenas povoações e no me io rural, a fim de enriquecer o re-
pertório para, com mais legitimidade e va riedade, prosseguir no seu trabalho.
Ao lado da recriação da forma popular de narrar, João Guimarães Rosa
perseguia agressivamente, com ve rdadeira obsessão - a ponto de essa particula rida-
de se torn ar a sua principal característica de escritor- a tarefa de sintetizar no texto a
fala dialetal do sertanejo. Entretanto, n ão se encontrando esses dois aspectos da sua
prosa necessariamente interligados, do plano exclusivo da língua nasceria outro con-
tingente, agora até mesmo de poetas, que iria promover o crescimento da fam ília
roseana. O trabalho do autor de Corpo de baile nesse plano achava-se também inse-
rido numa linha evolutiva de fácil ide ntificação n a literatura brasileira. Como se
sabe, fiel aos preceitos do Romantismo que privilegiava o elemento local, exótico e
m ais próximo da natureza, José de Alencar desencadeou o processo da criação de
uma língua brasileira. Buscando ca ptar as novas inflexões rítmicas do portug uês que
sofrera a transfusão de elementos das cu lturas negra e indígena, o romancista que,
além de cantar o selvagem, daria início à descrição dos costumes das áreas interiora-
nas, faria ac réscimos ao vocabulário de consumo erudito e passaria a incorporar li-
berdades g ramaticais in spiradas no coloquial. Nascida por influên cia das explora-
ções de campo dos viajantes estrange iros, que na sua curiosidad e pela nova fronte ira
geográfica aberta após a ch egada de D. João VI, revelaria aos próprios brasileiros a
existência de um país típi co, diferen ciado com re lação ao litorâneo, a tendência ser-
tanista, de extração romântica, logo se ace ntuaria na regionalista, introduz ida pelo
Realismo e o Naturalismo subseqüentes. Tornaria cada vez mais inte nsa a coleta dos
falares dialetais das áreas dominadas pela economia agropecuária. As expressões exó-
ticas eram incorporadas em estado bruto à escrita, que continuaria garantindo a so-

254 SCRJ PTA, Belo Ho rizonte, v. 2, n. 3, p. 25 1-258, 2° sem. 1998


Rui Mourão

brevivência d a língua culta. Evide ntemente, o acúmulo de e lementos novos começa-


va a corroer um a estru tura que parecia ameaçada na sua rigidez, mas foi com o a pa-
recimento de Contos gauchescos e Lenda s do sul (1 950), de J. Simões Lopes Neto,
que certo limite acabou sendo ultrapassado. O sopro poético qu e idealizava a figura
do peão dominador das vastid ões dos pa mpas não d eixaria de erodir a camada lin-
güística, qu e se viu a rrastada num processo d e invenção premonitório de nova reali-
dade qu e, em termos definiti vos, mais ta rde se imporia. A linguagem region al surge
ali pela p rimeira vez trabalh ada num plan o de elaboração estética verdadeira, apre-
senta ndo-se diferenciada com relação à sua manifestação n a obj etividade dos que
socialmente a produ zira m, e o fraseado sofre fissuras que acabarão em verdad eiro
rompimento de diques. Esse tra ta mento expressionista avant la lettre vai se acentu ar
com características muito particulares na obra d e Mário de Andrade, na fase de der-
rubada e experime ntalismo do Movim ento Modernista quand o o escritor, reto man -
do a ba ndeira alencariana e abando na ndo as preocupações mera mente regiona listas,
se mostrará preocupado com a fixação d e uma língu a brasileira, que pensava codifi-
car numa "gramatiquinha" . A aventura culmina em Macu naím a, que incorpora a
sintaxe, a prosód ia, a construção rítmica e o vocabulário do povo brasile iro.2
A proposta de João G u imarães Rosa estará ideologica mente vin culada à d e
Má rio po rém estilisticamente identificada à de J. Simões Lopes N eto, com a q ual
guarda identidades sonoras facilmente reconhecíveis. El e introverteu a língua do
povo n a sua subj etividade, para em seguida extrovertê-la extraordina riamente enri-
qu ecida, como todos nós sabemos, na condição de um instrumento plástico de múl-
tiplas sonoridades, d e infinita expressividad e. O escritor conseguiu capta r de um só
golpe a concepção de mundo, a psicologia e a criatividade da comunicação oral da
popu lação do interio r. À medida que o texto avan ça, o que ao mes mo te mpo vai sen-
do revelado é uma filosofia existencial primitiva a sintetizar toscos pensamentos d e
comovente ingenuidade; é um perfi l humano semi-bá rbaro, de cu ltu ra exótica por-
qu e extemporân ea, de viva inteligê ncia natural, arguta e pe rscrutadora da sua rela-
ção com o mundo que aparece sendo desenhado ; é um dina mismo ininterrupto d o
processo da criação verbal que prossegue sendo efetuado através da incorporação d e
neologismos, arca ísmos, de form ação de pa lavras pelos processos de justaposição,
prefixação, sufixação e etimologia popula r. O s estudos d esenvolvid os com o objetivo
d e revelar G u ima rães Rosa na condição de diligente pesquisador das form as de ex-
pressão regional levam a conclusões q u e ne m sempre aju dam n a compreensão do
seu processo de trabalho. O que ch amava a aten ção do ficcionista no exterior só o fa-
zia em decorrência de um a escolha condicionada pela sua man eira própria de ver.
O impacto produ zido pela novidade e força do convencimento da d icção
rosiana, n o instante d a su a ma is explosiva apresentação pública, o lança me nto de
G rand e sertão: veredas, pode ser avaliado através d e reações emocionadas como a de

2
Introdução de Telê Porto Ancona Lopez, in Macunaím a, ed. cit., p. X LI.

SCRIPTA, Belo H orizonte, v. 2, n. 3, p. 25 1-258,2° sem. 1998 255


Ü Pi\TRIARCA

Paulo Mendes Campos, nas páginas da revista Manchete, onde declarou que h avía-
m os sido colocados dia nte da prova de qu e o Brasil existia. O fulgurante desempe-
nho verbal do narrador mineiro passou, com todo o seu peso, para d entro do país
real. A imprensa, o discurso político, as despretensiosas co nversas do dia a dia come-
çara m a con sagra r os achados ma is significativos do autor, o que acabaria impreg-
nando o a mbiente da cidade, dominado pela cultura i_lustrada, com as d esconsertan-
tes sonoridades do dialeto serta nejo. Pessoas que haviam tomado conhecimento da
obra do romancista através de leitura apenas parcia l ou muito superficia l - algu m as
qu e nem a isso chegaram e somente tinham recolhido de ouvido umas tantas expres-
sões- ap resentava m-se desenvoltas, enriquecendo os seu s com entários com a verve
de Riobaldo Tatarana. No plano da literatura, a influência do estil o Guimarães Rosa
será vasta, consistente e persistente, estendendo-se m esmo para outras nacionalida-
des de fala portuguesa. A relação de auto res a citar poderia resulta r em num eroso le-
vantamento. Para ilustrar com exemplos mais bem-sucedidos, lembramos os romances
Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, e O coronel e o lobisomem, de José Câ n-
dido de Carvalho. Este último possui a particu laridade de aproximar dois pilares da
literatura. Ele apresenta na rrador e m primeira pessoa com discurso de extração ro-
siana, para contar uma estória inspirada no Quincas Borba d e Mach ado de Assis.
Realização importa nte, d e g rande origina lidade, que no me u entender corre paralela
ao mesm o tempo em qu e não deixa de se vincular a Guimarães Rosa, é Malagueta,
Perus e Bacan aço e, enfim, toda a obra do contista João Antônio.
A essa a ltura, uma indagação se impõe. O que vimos desenvolvendo até
aq ui esgota o levantam ento das ligações d o autor mineiro com as co rrentes criadoras
que se achava m em evolução dentro d a literatura brasileira? Entendo que a obra de
João Gu imarães Rosa acabou realizando uma espécie de atualização do Modernis-
mo brasil eiro como um todo, ju lgo necessá rio chamar a atenção para um as pecto da
sua lingu agem que subj az à intenção, seja de parodia r os contadores de estórias, seja
de dar tratamento literá rio à fala do sertanejo. É algo relacionado ainda com a cama -
d a lingüística, m as que acontece no plano d a langue, para se fal ar em termos saussu-
reanos. Como o in strume nto da co municação human a co nstitui fenômeno vivo, o
que afeta a paro/e afeta a langue, e vice-versa; pod emos, entreta nto, para fin s d e me-
lhor compreensão, interro mper artificialmente o processo. Há um lado da escrita de
G uima rães Rosa que lida precipuamente com a gramática e a estrutura da frase. E
ao tocar nesse ponto, impõe-se a verificação daquilo que, desde a fase m ais experi-
mentalista do m ovime nto de 22, vinha sendo tram ado para a revolução estrutura l do
romance no Brasil. O swald de Andrade em João Miramar (1964) e Serafim Ponte
Grande (1984), sob a influ ência do Futurismo e do C ubism o, que con heceu em pri-
meira mão nas suas passagens por Paris, introduz iu experimentações no ca mpo da
linguagem para força r o instrumento verba l a promover verdadeira dissecação, des-
mo ntage m e montagem co mpósita da rea lidade. A sua frase se fazia ten sa e sincopa-
d a para constituir e m si mesma , um pen sam ento, uma iluminação sobre a rea lidade.

256 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 251 -2 58, 2° sem. 1998


Rui Mourão

Mário de Andrade e m Macunaíma , navegando ao influxo das estéticas su rreal istas e


expressionistas, ainda co m o uso de as pas, introduz ia a fu são de provérbios, exp res-
sões sentenciosas e segm entos de relatos na estrutura d a fra se culta, eliminava vírgu-
las e utilizava a enumeração caótica, insistia em repetições prin cipa lmente de ver-
bos, promovia a fusão de vocábulos pa ra a formação de novos - tudo resul tando na
subversão do ritmo da linguagem corrente. A partir do início da sua carreira com
Perto do coração selvagem (1943) C larice Lispector não se desviaria do seu p rojeto
de leva r a introspecção da linguagem expressionista até o li mite da quase abstração,
violenta ndo o instru mento verbal para dele arra ncar as mais sutis impressões e sen-
sações. Geraldo Fe rraz, a princípio em parce ria com Patrícia Galvão em A famosa
Revista (1945) e depois só em Doramundo (1975), procurou superar o discurso lógi-
co, através da e nume ração caótica e simultâ nea, d a eco nomi a do emprego do verbo,
da abrupta supressão de complementos que o arredonda mento lógico da seqüência
do e nunciado estari a a exigir.
João G uim arães Rosa, retomando em grau mais avançado a experiência de
Má rio de Andrad e, não ca rrearia o dialeto sertanejo pa ra de ntro da fra se culta. Na
verdade, ao promover nela uma completa substituição de componentes, o escritor
estabelecia uma estrutura alternativa. Como, entretanto, não permanecia inerte di-
ante dos elementos provenientes da pesq uisa de campo, o arranjo que o seu texto
ap resentava nunca era some nte o resultado da simples organização do que chegara
de fora. Reelabo rando subjetivamente esse m aterial, o fi ccioni sta obtinha sem pre
mai s, quer dizer, chegava a estabelecer o seu modelo próprio. É o que vai se tornar
ma is perceptível quando o autor de Grande sertão: veredas abandona a exclusivida-
de da contem plação regiona lista e se volta, em Primeiras estórias, para a con templa -
ção de um transfundo brasileiro m enos conta minado pelo loca lismo. E le exibe, en-
tão, o instrumento que forjou para, de m aneira muito pessoal, exprimir a á rea de
preponderância cosm opoli ta - a realidade a largada de todos nós. N esse po nto, a sua
contribuição para a literatura de caráter brasileiro deixa de ser casuística para setor-
nar de sentido gera l. A influê ncia que nessa direção também seguramente irá exer-
cer, se não estiver já exercendo, será de con seqüê ncias ma is duradouras, por corres-
ponder à maneira de ser mais permane nte do nosso povo.

SCRJPTA, Belo Ho rizonte, v. 2, n. 3, p. 25 1-258,2° sem. 1998 257


Ü PATRIARCA

ABSTRACT

T he a lmost simultaneous publica ti o n o f Corpo de baile and Grande


sertão: veredas, works that are a ud acious la ndmarks in the career
ofJoão G ui ma rães Rosa, caused a jea lo us reactio n of important Brazil-
ia n fictio n writers w ho fel t th e impact o f the con fro ntati on. A fledging
ge nerati on, however, that showed som e constru ctivist te ndency, let it-
self be charm ed by it and brea th ed new life with the publication of such
wo rks oftru ly dem anding esth eti c requirem ents.
João Guima rães Rosa promoted a kind of upd ating of m odernism as a
w hole. In his wo rks, it is possible to define three creative !ines that were
alread y a tradi tion and th at we re taken by him to extrem es: the recre-
ation o f folklore stor y-tellers' narra tive fo rm; and the stylization o f the
d ia lectal speech of the sertanejo; the la ng uage research at the levei o f
langue. In a li th ese directio ns, th e autho r of Grande sertão: veredas
would establi sh a traditi on.
The proposa l ofth e stru ctura lly renovated speech, without any regional
commitments, can be noti ced in Primeiras estórias. Since it is in tune
with the form o f expressio n o f th e largest pa rt o f the Brazilian popula-
ti on, it will probab ly prese nt mo re positive results fo r th e development
of o u r litera ry narrative.

Referências bibliográficas
A DRADE, Mário. Contos de Belazarte. 8. ed . Belo H o ri zonte: Vila Rica, 1992.
AN DRADE, Mári o. Macunaíma. São Paulo: Secretaria da C ultura, C iência e Tecno logia,
1978.
ANDRADE, Oswald de. João Miramar. São Pa ulo: Difusão E uro péia do Livro, 1964.
ANDRADE, O swa ld de. Serafim Ponte Grande. São Paulo: G lobal, 1984.
ARI O S, Afo nso. Pelo sertão. Rio de Ja neiro : Brig uiet, 1947.
FE RRAZ, Gera ldo, G ALVÃO, Patrícia. A famosa Revista. Rio de Janeiro, Americ-Edit, 1945.
F E RRAZ, Gera ld o. Doramundo. 3. ed. São Paulo: Melho ram entos, 1975.
LISP ECTOR, C lari ce. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Noite, 1943.
ET O, J. S imões Lopes. Contos gauchescos e lendas do sul. Porto Alegre: G lo bo, I 950.
REGO, José Lins do. Romances do ciclo da cana de açúcar. 2. ed. Rio de Ja neiro: J. O lym -
pio, 1934.
ROMANO, Olavo C elso. Casos de M inas. São Paulo: Paz e Terra, I 982.

258 SC RJPTA, Belo H orizonte, v. 2, n. 3, p. 251-258,2° sem. 1998

Você também pode gostar