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EU NÃO

SAMUEL BECKETT

BOCA....sair...para dentro deste mundo...este mundo...coisa


pequenininha... antes do tempo... em um miseráv... o quê?... menina?...
sim... menina pequenininha...neste... sair para entrar neste... antes de seu
tempo... buraco miserável chamado...chamado...não importa...pais
desconhecidos...não se ouviu (falar) deles... ele tendo desaparecido...
evaporou... mal abotoou as calças ... ela do mesmo modo...oito meses
depois...quase num instante... logo sem amor... poupado... sem amor como
o expressado normalmente ao... bebê sem fala... no lar... sem... nem, de
fato, por essa razão, qualquer um, de qualquer tipo... sem amor de qualquer
tipo... em qualquer fase subseqüente... um caso tão típico... nada notado até
chegar aos sessenta quando — ... o quê?... setenta?... bom Deus!...
chegando aos setenta... vagueando num campo... andando à toa à procura
de primaveras... fazer uma bola... alguns passos e então parar... olhar o
espaço... então seguir... um pouco mais... parar e olhar de novo... e assim
por diante... andando sem rumo... quando de repente... gradualmente...
tudo se foi... tudo naquela luz matinal de abril... e ela se viu no — ... o
quê?... quem?... não!.. ela!... [Pausa e movimentoI.]...viu-se no escuro... e
se não exatamente...sem vida... sem vida... pois ela ainda podia ouvir o
zumbido... assim chamado... nos ouvidos... e um raio de luz vinha e ia...
vinha e ia... como a luz da lua ... oscilando...para dentro e fora da nuvem...
mas tão entorpecida... sentindo... sentindo-se tão entorpecida... ela não
sabia... em que posição estava... imagine!... em que posição ela estava!...
se de pé... ou sentada... mas o cérebro—... o quê?... ajoelhada?... sim... se
de pé... ou sentada... ou ajoelhada... mas o cérebro—... o quê?... deitada?...
sim... se de pé... ou sentada... ou ajoelhada... ou deitada... mas o cérebro
ainda... ainda... de certa forma... pois seu primeiro pensamento foi... ah
muito depois... lembrança repentina... criada como ela foi para acreditar...
com os outros abandonados... em um Deus... [Risada.]...misericordioso
[Gargalhada]... seu primeiro pensamento foi... ah muito depois...
lembrança repentina... ela estava sendo punida... pois seus pecados...
vários dos quais... mais prova se fosse necessária prova... passavam rápido
por sua mente...um atrás do outro... então descartado por serem tolos... ah
muito depois... esse pensamento descartado... quando de repente ela
percebeu... percebeu gradualmente... ela não estava sofrendo... imagine!
...sem sofrimento!...ela não podia mesmo se lembrar... não queria... quando
tinha sofrido menos... a não ser, é claro, que deveria... estar sofrendo...ah!
pensou estar sofrendo...justo na hora estranha ... na vida dela... quando
claramente pretendia estar tendo prazer...de fato ela não estava tendo...o
menor... e nesse caso, é claro... essa noção de punição... por algum pecado
ou outro... ou por todos juntos... ou por nenhuma razão particular... pelo
próprio pecado... coisa que ela entendia perfeitamente... aquela noção de
punição...que lhe ocorreu pela primeira vez... criada para acreditar... como
os outros abandonados... em um Deus... [Risada] misericordioso...
[Gargalhada]... Deus...lhe ocorreu pela primeira vez... então
descartou...como tolice... talvez não fosse tanta tolice... afinal... e assim
ia... tudo aquilo... justificativas vãs... até que outro pensamento... ah, muito
depois... lembrança repentina... muito tola, realmente, mas—... o quê?..o
zumbido?.. sim... o zumbido o tempo todo... assim chamado... nos
ouvidos... embora é claro, realmente... não nos ouvidos de todos... no
crânio... barulho monótono no crânio... e o tempo todo esse raio ou
clarão... como o luar...mas provavelmente não... certamente não... sempre
o mesmo ponto... agora brilhante... agora encoberto... mas sempre o
mesmo ponto... como lua nenhuma podia... não... lua nenhuma...
simplesmente tudo parte do mesmo desejo de... atormentar... embora
realmente, de fato... nem um pouco... nenhuma pontada... até aqui...ha!...
até aqui... esse outro pensamento então... ah muito depois... lembrança
repentina... muito tola realmente mas como ela... de uma forma... que ela
poderia fazer bem em... gemer... começar e parar... contorcer-se ela não
podia... como se em real agonia... mas não podia... não podia trazer para
si... uma falha em sua montagem... incapaz de enganar.. ou a máquina...
mais provavelmente a máquina...tão desconectada...nunca recebeu a
mensagem... ou sem energia para responder... tão amortecida... não podia
fazer o som... qualquer som... nenhum som de qualquer tipo...nenhum grito
de ajuda por exemplo... se ela se sentisse tão inclinada... gritar... [Gritos]...
então ouvir... [Silêncio]... gritar de novo... [Gritos de novo]... então ouvir
de novo... [Silêncio]... não... dispensou aquilo... tudo silencioso como o
túmulo... nenhuma parte—... o quê?.. o zumbido? sim... tudo silencioso,
apenas o zumbido... assim chamado... nenhuma parte dela se movendo...
que ela pudesse sentir... só as pálpebras... presumivelmente... abrindo e
fechando... apagam a luz... reflexo, eles chamam a isso... sem sentimentos
de qualquer tipo... mas as pálpebras... mesmo nos melhores dias... quem as
sente?... abrindo...fechando... toda aquela umidade...mas o cérebro
ainda...ainda suficientemente... ah muito!...neste estágio... em controle...
sob controle... para questionar mesmo isso... pois naquela manhã de abril...
assim ele raciocinou... naquela manhã de abril... ela estava fixando seu
olho... um sino distante... enquanto ela apressou-se até ele... fixando o olho
nele... com medo que ele a enganasse... nem tudo tinha desaparecido ...
toda aquela luz... de si... sem qualquer...qualquer... por parte dela... e assim
ia... e assim ia, raciocinava... questionamentos vãos... e todos mortos
imóveis... docemente silentes como o túmulo... quando de repente...
gradualmente... ela perceb—... o quê?... o zumbido? sim... tudo imóvel,
morto; apenas o zumbido... quando de repente ela percebeu... as palavras
eram—... o quê?... quem?... não!... ela!.. [Pausa e movimento 2.]...
percebeu... as palavras estavam vindo...imagine!... palavras vinham... uma
voz que ela não reconheceu no início, desde que tinha soado... então
finalmente teve de admitir... não poderia ser outra... senão ela própria...
certos sons de vogais... ela nunca os tinha ouvido... em outro lugar... então
as pessoas olhariam... as raras ocasiões... uma ou duas vezes por
ano...sempre inverno uma estranha razão... olhar para sua
incompreensível... e agora este fluxo... fluxo contínuo... ela que nunca
tinha... pelo contrário... praticamente emudecida... todos os seus dias...
como ela sobreviveu!... mesmo compras... sair para as compras... centro de
compras movimentado... supermerc...a mão na lista... com a sacola... a
velha sacola preta de compras... então ficar lá esperando... por um tempo...
meio da multidão... imóvel... olhando para o espaço... a boca semi-aberta
como de costume...até que ela estava de volta em sua mão... a sacola de
volta em sua mão...então pagar e ir... não muito mais que até logo... como
ela sobreviveu!... e agora este fluxo... sem captar a metade dele... nem um
quarto... nenhuma idéia... o que ela estava dizendo... imagine! nenhuma
idéia que ela estivesse dizendo!... até que ela começou a tentar... enganar-
se... não era dela... não era a voz dela... e sem dúvida teria... vital ela
devesse... estava a ponto de... depois de longos esforços... quando de
repente ela sentiu... gradualmente ela sentiu...seus lábios se mexendo...
imagine!... seus lábios se mexendo!...como é claro até então ela não tinha...
e não só os lábios... as bochechas... as mandíbulas... a face toda... todas
aquelas—... o quê?... a língua?... sim... a língua na boca... todas aquelas
contorções sem as quais... nenhuma fala é possível... e no entanto da
maneira comum... não sentidas... então a primeira intenção é... sobre o que
se está dizendo... o ser todo... pendurando-se em suas palavras... de modo
que não só ela tinha... se ela tivesse... não só ela tinha... desistir... admitir a
dela sozinha... sua voz só... mas esse outro pensamento estranho... ah
muito depois... lembrança repentina...ainda mais estranho se possível...
aquele sentimento estava voltando... imagine! sentimento voltando!...
começando em cima... então descendo... a máquina toda... mas não...
desperdício... a boca só... até aqui... ah! até aqui... então pensando... ah
muito depois... lembrança repentina... não pode continuar... tudo isto...
tudo aquilo... fluxo contínuo... esforçando-se para ouvir... fazendo alguma
coisa disso... e os próprios pensamentos dela... fazendo alguma coisa
deles... tudo—... o quê? o zumbido?... sim... o zumbido o tempo todo...
assim chamado... tudo aquilo junto... imagine! o corpo todo como se
(tivesse) ido... só a boca... lábios... bochechas... mandíbulas... nunca—... o
quê?... língua? sim... lábios... bochechas... mandíbulas... língua... nunca
parados um segundo... a boca em chama... fluxo de palavras... em seu
ouvido... praticamente em seu ouvido... sem captar a metade... nem um
quarto... nenhuma idéia do que ela está dizendo... imagine!... nenhuma
idéia do que ela está dizendo!... e não pode parar... sem parar... ela que um
momento antes... só um momento! não podia fazer um som... nenhum som
de qualquer tipo... agora não pode parar... imagine!... não pode parar o
fluxo... e o cérebro todo implorando... alguma coisa implorando no
cérebro... implorando à boca para parar... pausa por um momento... apenas
por um momento... e nenhuma resposta... como se ele não tivesse ouvido...
ou não podia... não podia parar por um segundo... como se enlouquecido...
tudo aquilo junto... esforçando-se para ouvir... juntando pedaços... e o
cérebro... falando incoerentemente por si... tentando fazer sentido disso...
ou fazê-lo parar... ou no passado... arrastando o passado. lembranças de
toda parte... mais de passeios... andando todos os dias dela... dia após dia...
alguns passos e então parar... olhar pelo espaço.. então seguir... um pouco
mais... parar e olhar de novo... e assim ia... vagueando... dia após dia... ou
naquele momento ela chorou... aquele momento de que ela podia se
lembrar... desde que era bebê... deve ter chorado quando bebê... talvez
não... não essencial para a vida... apenas o choro de nascimento para fazê-
la ... respirar... então nada mais até esta... já uma bruxa velha... sentada
olhando para sua mão... onde foi isso? Croker’s Acres... uma noite a
caminho de casa... casa! ...uma pequena colina em Croker’s Acres...
anoitecer... sentada olhando para sua mão... ali em seu colo... palma para
cima... de repente viu-a molhada... a palma... lágrimas,
presumivelmente...dela presumivelmente... ninguém mais por milhas...
nenhum som... só as lágrimas... sentada e olhando-as secarem... tudo num
segundo... ou tentando uma saída... o cérebro... tremulando por si só...e
seguir... nada lá... até a próxima... fraco como a voz... pior... como pouco
sentido... tudo aquilo junto... não pode—... o quê?... o zumbido?... sim... o
zumbido o tempo todo... barulho monótono como queda d’água... e os
raios... piscando... começando a se mover à volta... como o luar mas não...
tudo parte do mesmo... olho fixado naquilo também... o canto do olho...
tudo aquilo junto ... não posso continuar...Deus é amor... ela será purgada...
de volta ao campo... manhã de sol... abril... afundar a face na grama...
nada, apenas as cotovias... e coisa e tal... tentando salvar-se.. esforçando-se
para ouvir... a palavra estranha...fazer algum sentido dela... o corpo todo
como ido... apenas a boca... como enlouquecida... e não pode parar... nada
a faz parar... algo que ela—... algo que ela tinha que...—... o quê?...
quem?... não!... ela!...[Pausa e movimento 3.]... algo que ela tinha que—...
o quê?... o zumbido?... sim... o tempo todo o zumbido... barulho
monótono... no crânio... e os raios... pondo às claras... indolor... até aqui...
ah! até aqui... então pensando... ah muito tempo... lembrança repentina...
talvez alguma coisa que ela tivesse que... tivesse que ... dizer... podia ser
isso?... alguma coisa que ela tinha que... dizer... coisa pequenininha... antes
do tempo... buraco miserável... sem amor... dispensou-o... emudecida todos
os seus dias... praticamente emudecida... como ela sobreviveu!... aquele
tempo no tribunal... o que ela tinha a dizer por si mesma... culpada ou não
culpada... levanta mulher... fala mulher... levantou-se lá olhando o espaço...
a boca meio aberta como de costume... esperando para ser levada...
contente da mão em seu braço... agora isto... alguma coisa ela tinha que
dizer... poderia ser isso?... alguma coisa diria... como foi... como ela—... o
quê?... tinha sido?... sim... alguma coisa que diria como tinha sido... como
ela tinha vivido... vivido repetidamente... culpada ou não... e assim foi...
ter sessenta... alguma coisa ela—... o quê?... setenta?... bom Deus!...
continuou até ter setenta... alguma coisa que ela mesma não sabia... não
saberia se ouvisse... então perdoada... Deus é amor... piedade generosa...
nova toda manhã... de volta ao campo...manhã de abril... face na grama...
nada, apenas as cotovias... retomar lá... seguir em frente a partir de
lá...outros poucos—... o quê?... não é isso?... nada a ver com isso?...nada
que ela pudesse dizer?... tudo bem...nada que ela pudesse dizer... tentar
outra coisa... pensar em outra coisa... ah muito depois...lembrança
repentina... também não era aquilo... tudo bem... alguma coisa mais... e
assim ia... no final... pensar que tudo continua por tempo suficiente... então
perdoada... de volta no—... o quê?... também não é isso?...nada a ver com
isso também?... nada que ela pudesse pensar?... tudo bem... nada que ela
pudesse dizer... nada que ela pudesse pensar... nada que ela—... o quê?...
quem?... não!... ela!...[Pausa e movimento 4.]... coisa pequenininha... saída
antes de seu tempo... buraco miserável... sem amor... poupado... emudecida
todos os seus dias... praticamente emudecida... mesmo para ela mesma...
nunca em voz alta... mas não completamente... às vezes um impulso
repentino...uma ou duas vezes ao ano... sempre inverno por alguma razão
estranha... as noites longas... horas de escuridão... impulso repentino de...
dizer... então apressar-se para parar a primeira vez que viu... o lavatório
mais próximo... começar a transbordar... fluxo contínuo... coisa louca...
metade das vogais erradas... ninguém conseguia acompanhar... até que ela
viu o olhar que estava recebendo... então morrer de vergonha... afastar-se
de mansinho... uma ou duas vezes por ano... sempre inverno por alguma
razão estranha... longas horas de escuridão... agora isto... isto... mais e
mais rápido... as palavras... o cérebro... tremulando como louco... agarrar
rápido e .. nada lá... em algum outro lugar... experimentar outro lugar... o
tempo todo alguma coisa implorando...alguma coisa nela implorando...
implorando a tudo para parar... não atendida ... oração não atendida...ou
não ouvida... fraca demais... e vai... continua... tentando... sem saber o
quê... o que ela estava tentando... o que tentar... o corpo todo como se
(tivera) ido... apenas a boca... como que enlouquecida... e vai... continua—
...o quê?... o zumbido?... sim... o tempo todo o zumbido... barulho
monótono como queda d’água... no crânio... e os raios... vasculhando
algo... indolor... até aqui... ha!... tudo isto... continua... sem saber o quê?...
o que ela estava—... o quê?... quem?... não!... ela!... ELA!... [Pausa.]... o
que ela estava tentando... o que tentar... não importa... continua... [As
cortinas começam a descer]... encontrar uma solução no final... então
voltar... Deus é amor... piedades generosas... novas, todas as manhãs... de
volta ao campo... manhã de abril... face na grama... nada, só as cotovias...
retomar—
[Desce a cortina. Casa escura. Voz continua por trás da cortina,
ininteligível, 10 segundos, cessa quando as luzes se acendem.]

Tradução: Lúcia Rosa

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