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Brasileira
fa s e i x
• abril-maio-junho 2018 •
ano i • n.° 95
Ac a d e m i a B r a s i l e i r a R e v i s ta B r a s i l e i r a
de Letras 2018
Diretoria Diretor
Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni
Secretária-Geral: Alberto da Costa e Silva
Conselho Editorial
Primeira-Secretária: Ana Maria Machado
Arnaldo Niskier
Segundo-Secretário: Merval Pereira
Merval Pereira
Tesoureiro: José Murilo de Carvalho
João Almino
Comissão de Publicações
Membros Efetivos Alfredo Bosi
Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin
Alberto da Costa e Silva, Alberto Evaldo Cabral de Mello
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
Produção Editorial
Ana Maria Machado, Antonio Carlos
Secchin, Antonio Cícero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Arnaldo Niskier, Arno Wehling, Candido Revisão
Mendes de Almeida, Joaquim Falcão, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Carlos Nejar, Celso Lafer, Cícero Sandroni, Projeto Gráfico
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domicio Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
Editoração Eletrônica
Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante
Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras
Cavalcanti, Helio Jaguaribe, João Almino, Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar
José Murilo de Carvalho, José Sarney, Lygia Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021
Fagundes Telles, Marco Lucchesi, Marco Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500
Maciel, Marcos Vinicios Vilaça, Merval Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525
Pereira, Murilo Melo Filho, Nélida Piñon, Fax: (0xx21) 2220-6695
Nelson Pereira dos Santos, Paulo Coelho, E-mail: publicacoes@academia.org.br
Rosiska Darcy de Oliveira, Sergio Paulo site: http://www.academia.org.br
Rouanet, Tarcísio Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2
Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.
en s aio
José Murilo de Carvalho Machado de Assis e Joaquim Nabuco: Patriotas belicosos 39
João Almino Medeiros e Albuquerque: Irrequieto inovador 45
Ana Maria Machado Jovita & Companhia 53
Edmar Lisboa Bacha Os Lisboa: Fragmentos de memória 57
Eduardo Portella Anotações sobre o cânone 65
Evaldo Cabral de Mello A sombra de Pombal 67
Sergio Paulo Rouanet Marcuse e o movimento de maio de 1968 71
Flávio Ricardo Vassoler Os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa: Crítica e apologia
sociais em Pai contra mãe, de Machado de Assis 75
Floriano Martins Algumas anotações sobre a vanguarda na República Dominicana: La poesía sorprendida,
Eugenio Granell e Freddy Gatón Arce 81
Márcio Seligmann-Silva Plurilinguismo, tradução e errância nos poemas de Moacir Amâncio 89
Gabriel Oliven Medicina e literatura: O encontro das palavras na trajetória de Moacyr Scliar 99
Sandra Bagno O Paiz do Carnaval: A alcunha recusada por Jorge Amado 105
Henrique Marques Samyn Em busca de “novos ollos”: Sobre Pálpebra azul, de Helena Villar Janeiro 119
P O ESIA
Flávia Rocha 123
Júlio Machado 131
Mauricio Vieira 137
co n to
Josué Montello O monstro 143
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Editorial
Cícero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras
E
sta é a edição 95 da Revista Brasilei- do passado e do presente, sejam brasileiros
ra, relativa aos meses de abril/maio/ ou estrangeiros, em relação analítica com
junho. Tal número ainda uma vez hon- questões caras à contemporaneidade. Rea-
ra a tradição da Casa ao trazer grafada em firma-se assim o que nos diz Graça Aranha:
suas páginas o diálogo, o debate vigoroso “A Revista Brasileira teve o dom da tolerân-
em torno do pensamento filosófico, históri- cia e da concórdia. Nas suas páginas e nas
co e artístico, além de apresentar momen- suas salas uma verdadeira confraternidade
tos de expressão criativa. espiritual entre os homens, os mais diver-
Sua primeira seção, “Dossiê Nelson Pe- gentes, floresceu docemente.”
reira dos Santos”, dedica-se ao Acadêmi- As seções “Poesia” e “Conto” seguem
co, ocupante da Cadeira 7, no período de em consonância com a organização edito-
julho de 2006 a abril deste ano, e conta rial por mim adotada. O leitor encontra-
com textos de seus confrades, bem como rá uma narrativa de Josué Montello, mais
de críticos e cineastas de relevante expres- tarde levada para o cinema com o título
são, por meio dos quais se reafirma a nota- “O monstro de Santa Teresa”.
bilidade do saudoso Acadêmico no campo Os interessados na essência da Institui-
do cinema. ção e no pensamento de seus pares encon-
Na seção “Ensaios”, apresentamos in- trarão nestas páginas farto material de pes-
quietantes debates em torno de escritores quisa para ler e rememorar.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 9
D o s s i ê N e l s o n P e r e i r a d o s S a n to s
Tributo à Nelson
Ana Maria Machado
Ocupante da Cadeira 1 na Academia Brasileira de Letras
E
u gostava muito de Nelson Pereira dos Capaz de, já com obra consagrada e quase
Santos. se despedindo, ousar fazer um longa-me-
Nesta hora passam pela lembran- tragem sem locução, diálogos, ou voz em
ça muitos encontros ao longo da vida. Não off, como “A música segundo Tom Jobim”.
vou evocá-los mas começam muitos anos E capaz de dar significado sutil até mesmo
antes do dia em que fui a seu escritório e aos créditos ou ao letreiro inaugural pro-
conversamos sobre a possibilidade de que jetado na tela. Desde seu primeiro longa,
ele se candidatasse à Academia. Primeiro quando já começa a projeção anunciando
foi preciso convencê-lo, evocando a presen- a protagonista que se apresenta. Em vez
ça de Jean Renoir na Academia Francesa. do nome de uma grande estrela a atrair as
Depois, para Nelson chegar a nós, foi um atenções, o espectador lia na tela, após o
caminho longo, trilhado com paciência, de tradicional letreiro em que A produtora x
forma discreta e disciplinada. apresenta: A cidade do Rio de Janeiro em
Revelou-se então o acadêmico de conví- “Rio quarenta graus”.
vio agradabilíssimo e participante no nosso Anos depois, nos brindou com o ines-
dia a dia, assíduo, apresentando propostas, quecível início de “El justicero”: aparece
supervisionando o setor do audiovisual e o a imagem do Condor que caracterizava a
ciclo de Cinema na ABL, desempenhando distribuidora Condor Filmes, toda a plateia
missões junto a universidades no exterior. faz a gracinha de sempre, gritando XÔ, a
Não vou evocá-lo em termos pessoais, ave levanta voo (como sempre, claro), mas
todos aqui o conhecemos e lhe queríamos então a câmera se afasta e aparece o prota-
bem. gonista, vivido por Arduíno Colassanti, sen-
Mas quero celebrar o grande artista que tado numa plateia de cinema, gritando xô!
fica. Aquele que foi, para mim, nosso cine- para uma imagem de condor que levanta
asta maior, agregador, formador de equipes voo... Composição em abismo – classificam
e professor e animador de novas gerações. os teóricos. Brincadeira com a linguagem
Criador inteligente e agudo, em perma- audiovisual, ensinava o diretor.
nente diálogo com a literatura e a música, Era assim Nelson. De múltiplas facetas e
atento à linguagem visual de forma sempre cheio de camadas inesperadas – sérias, di-
consistente, quase clássica, cerebral, sem vertidas, ternas. Por tudo isso sua obra fica e
pirotecnias, mas flexível e criativo, incluindo por tudo isso vamos lembrá-lo sempre com
a moldura em que um filme se apresentava. carinho.
10 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
Adeus, Nelson.
Antonio Carlos Secchin
Ocupante da Cadeira 19 na Academia Brasileira de Letras
A
ssisti a mais de uma dezena de fil- Tive a alegria de desfrutar de sua com-
mes dirigidos por Nelson Pereira de panhia, sempre ao lado da querida Ivelise,
Santos, e não hesito em dizer que foi em encontros de que também costuma-
através de sua arte que aprendi, na década de vam participar Edla Van Steen e Sábato
1960, a amar o cinema brasileiro, com “Boca Magaldi.
de Ouro“ (1962) e “Vidas secas“ (1963). Sem nenhuma pompa, sempre acessí-
Evoco também, entre tantas outras, a vel, era exemplo de cortesia e consideração
magnífica adaptação de Memórias do cárce- para com todos que o procuravam.
re, de 1984. Nelson saiu-se igualmente bem Participei, ao lado de vários outros aca-
na transposição de ficcionistas cujos universos dêmicos, de seu filme “Português, a língua
são quase antagônicos: o sertão despojado do Brasil“, de 2009, e comprovei seu dom
de Graciliano Ramos e a Bahia exuberante de de sempre deixar à vontade os entrevistados.
Jorge Amado, de quem Nelson filmou “Tenda Nelson Pereira, de todos os santos e de
dos milagres“ (1977) e “Jubiabá“ (1987). todas as crenças, Nelson, de “O amuleto de
Nele votei quando, em 2006, candidatou- Ogum“. Agora, quando o letreiro da pa-
-se à ABL, e aqui desenvolveu um profícuo lavra “Fim” se projeta na tela em meio à
trabalho em prol da arte cinematográfica, escuridão da sala, estou certo de que seu
organizando um cineclube e incentivando a empenho por um cinema ao mesmo tempo
criação do prêmio para melhor roteiro basea comunicativo e elaborado não foi em vão. O
do em obra literária. brilho de sua obra continua a nos iluminar.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 11
O cineasta brasileiro,
Nelson Pereira dos Santos
Antonio Cicero
Ocupante da Cadeira 27 na Academia Brasileira de Letras
N
a verdade, não tenho nada a acres- uma grande produção de Hollywood basea
centar ao que foi dito sobre Nelson da na obra de Tolstoi. Foi, para mim, uma
Pereira dos Santos. Mas vou contar decepção terrível. Achei que o filme não
rapidamente uma experiência pessoal que chegava aos pés do livro. E decepções se-
tive com a obra dele. Quando eu era ado- melhantes me aconteceram algumas vezes,
lescente, era um tanto esquisito. Morava na ao assistir filmes baseados em livros que eu
Avenida Vieira Souto, em frente à praia, mas, havia lido. Pois bem, quando assisti ao filme
em vez de ir à praia, preferia ficar em casa, de Nelson Pereira dos Santos “Vidas secas”,
lendo. Meu pai tinha uma biblioteca muito baseado no livro de Graciliano Ramos, de
grande e eu lia, quando adolescente, os ro- que eu gostava muito, tive uma experiência
mances clássicos, tanto brasileiros quanto inteiramente diferente. Esse filme me emo-
estrangeiros, que ela continha. O maior que cionou muito e achei que ele não ficava, de
eu tinha lido, tanto do ponto de vista físico maneira nenhuma, atrás da obra literária em
quanto do ponto de vista literário, havia sido que se inspirara. Foi a primeira experiência
Guerra e paz, de Tolstoi. Fiquei entusiasmado, desse tipo que tive e jamais a esquecerei.
encantado com esse romance. Algum tem- Percebi então a grandeza do diretor Nelson
po depois, assisti ao filme “Guerra e paz”, Pereira dos Santos.
12 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
E
ssa tarde lembra o Glauber Rocha, a menor informação. Mas o Nelson, que
quando dizia “que o nosso povo can- era o Nelson, com aquela paciência que
ta alegre uma terrível alegria de triste- Deus lhe deu, sentou-se à minha frente e
za”. Essa sessão lembra um pouco isso. Há ele fez a entrevista. Ele me disse tudo que
uma tristeza por trás e uma grande beleza era preciso dizer e acabei não passando ver-
por tudo que foi dito aqui e que não deixa gonha perante o meu chefe, fazendo uma
mais espaço para se falar do Nelson. Quem matéria publicável. Iria conhecê-lo melhor
ele foi, a pessoa, o Acadêmico, o artista, o muitos anos depois, não sei como, num
homem completo e que para mim deixou a tempo em que havia uma interlocução en-
impressão de ter sido o cinema novo com tre todas as artes. Música, cinema, teatro,
público. Eu pude ver isso na estreia de “Vi- literatura, tudo se intercambiava. Eu acho
das secas”, em São Paulo, em 1963, que que aqui todos viveram isso, passaram por
assisti num cinema popular, completamente esse tempo, por essa história e foi muito fá-
lotado, às cinco horas da tarde. Coisa que cil chegar ao Nelson e conviver com ele, a
não era comum, a não ser nos filmes de ponto de ele ser um interlocutor privilegia-
chanchada ou nos filmes do Mazzaropi, e do em pesquisas que eu andava fazendo,
o Nelson quebrou essa hegemonia popular sobre o Rio de Janeiro do tempo dos índios,
da narrativa fácil. Ele trouxe outra narrativa, que conhecia muito. E para finalizar, recor-
mas com público. do aqui um episódio do ano 2000, quando
Conheci Nelson no ano de 1960, na fui convidado para um festival literário na
Bahia, quando ele fez uma incursão frustra- Holanda, com participantes da Argentina,
da ao sertão para a primeira tentativa de Guatemala, Colômbia e, por causa desse
filmar “Vidas secas”, e as condições climá- convite, veio outro, para participar do júri
ticas não permitiram. Ele acabou fazendo do Festival de Roterdã para a escolha dos
outro filme, o “Mandacaru Vermelho”, e vinte melhores filmes latino-americanos do
apareceu na redação do Jornal da Bahia, século XX, porém de cine-literatura. O voto
onde um foca estava lá, há poucos dias, era defendido em dez linhas, não mais do
e o editor-chefe o trouxe até mim para eu que isso, e eu defendi “Vidas secas”. Che-
entrevistá-lo. Eu acho que todo mundo que gamos a Roterdã, o diretor do palácio do
começou em jornal passou por essa angús- festival me deu um livro que ele fez com os
tia de ser escalado para fazer uma entre- vinte premiados, escolhidos, com fotogra-
vista com alguém do qual você não tinha ma dos filmes, o voto de cada um em inglês
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e holandês, e eu vi que do Brasil, além de me disse: “É, fizemos uma exceção para o
“Vidas secas”, tinha “Deus e o Diabo na Glauber, porque ele merece. Afinal ele era
Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade con- um cineasta que escrevia. Mas ainda bem
tra o Santo Guerreiro”, do Glauber Rocha. que alguém votou no ‘Vidas secas’, por-
Eu perguntei para o Diretor a razão, pois que teria sido uma grande vergonha para
se tratava de um festival de cine-literatura. esse festival se o ‘Vidas secas’ não estivesse
Claro que eu votaria em “Deus e o Diabo entre os melhores filmes latino-americanos
na Terra do Sol”, se não fosse um festival do século XX.” Enfim, tudo que foi dito so-
de literatura. O João Ubaldo, que não foi, bre Nelson é comprovável, é perfeito. Uma
mas era jurado, votou em “Deus e o Dia- pessoa maravilhosa e tenho uma grande
bo na Terra do Sol” e o cubano Senel Paz, frustração de, ao entrar nessa Casa, não ter
autor de “Morango e chocolate”, tinha vo- desfrutado da sua companhia aqui nesta
tado no outro filme do Glauber. E o Diretor sala. Esta é uma tristeza que eu carrego.
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M
embro da ABL desde 2006, o predestinado a dedicar a maior parte de sua
cineasta paulista do Brás Nelson vida ao cinema. Produziu “Rio, zona norte”,
Pereira dos Santos sentava ao filmou documentários sobre a seca do Nor-
meu lado nas sessões plenárias da Casa de deste e, em termos de contracultura, filmou
Machado de Assis. Era um convívio extre- “Fome de amor”, “Quem é Beta” e a co-
mamente amável e, por isso, inesquecível. média carioca “El justicero”, sem esquecer
Seu amigo e admirador, Cacá Diegues, o clássico histórico “Como era gostoso meu
afirmou que Nelson inventou um cinema francês”.
que somente poderia ser feito no Brasil. Le- Nelson Pereira dos Santos foi fundador
vado a assistir a longa-metragens por sua do curso de cinema da Universidade de
mãe, no Cine Teatro Colombo, em São Pau- Brasília e lecionou na Universidade da Ca-
lo, acostumou-se com as obras de autores lifórnia e na Universidade de Columbia, em
como Graciliano Ramos (levou à telas obras Nova York. Como se vê, um intelectual de
como “Vidas Secas” (1963) e “Memórias múltiplas qualidades, que o país perde e la-
do Cárcere”), Machado de Assis (“Azyllo menta profundamente.
muito louco”), Jorge Amado (“Tenda dos Apesar de ter se dedicado também ao
milagres” e “Jubiabá”), Guimarães Rosa (“A jornalismo, participou de atividades de ci-
terceira margem do rio”), Nelson Rodrigues neclubes e de teatro amador, além de se
(“Boca de ouro”), Gilberto Freyre (“Casa- envolver com política, tendo se filiado ao
-Grande & senzala”) e Castro Alves (“Guerra Partido Comunista Brasileiro, do qual se
e liberdade”). Nelson costumava afirmar que desligou em 1956. Em 1949, viajou a Paris.
era de uma geração formada por esses e ou- Durante dois meses, frequentou a Cinema-
tros escritores do modernismo. teca Francesa, de Henri Langlois. Ao voltar,
Vindo para o Rio de janeiro, tornou-se filmou “Juventude”, média-metragem des-
pioneiro do Cinema Novo, com o seu notá- tinado ao Festival da juventude que ocor-
vel “Rio 40 graus”, de 1955. Foi influencia- reria em Berlim. Em 1952, foi assistente de
do pelo neorrealismo italiano, de cineastas Alex Viany em “Agulha do palheiro” e foi
como Roberto Rosselini e Luchino Viscon- acumulando experiências necessárias.
ti. Mesmo tendo feito o curso de Direito Extremamente criativo, Nelson Pereira
na USP (concluiu em 1953) e exercendo dos Santos filmou, em 1976, o seu “Amu-
atividades de jornalista no Jornal do Brasil leto de Ogum”, quando analisou as reli-
e na Manchete, no Rio de Janeiro, estava giões afro-brasileiras e, em 1980, filmou
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o musical “Estrada da Vida”, baseado na do cinema brasileiro”, até ter a sua vida in-
trajetória da dupla Milionário e José Rico. terrompida por um câncer fatal. Deixou a
Ganhou muitos prêmios internacionais e mulher Ivelise, quatro filhos e cinco netos,
herdou de Humberto Mauro o título de “pai além de uma saudade infinita.
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Um intérprete do Brasil
Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras
G
ostaria de me associar à homena- Por isso mesmo devemos vê-lo como
gem que a Academia Brasileira de um dos “intérpretes do Brasil”. O conceito
Letras presta ao Acadêmico Nelson ficou associado à redescoberta de nossa
Pereira dos Santos, destacando o que me pa- sociedade pelas obras seminais dos anos
rece ser contribuição essencial de sua obra à 1930, mas certamente houve antes e de-
cultura brasileira. pois muitos intérpretes valiosos da expe
Quando pensamos em sua vasta e di- riência histórica brasileira. E outro não foi o
versificada produção, o primeiro aspecto a sentido da contribuição de Nelson Pereira
chamar a atenção é a profunda brasilidade. dos Santos. Sua filmografia produziu obras
De início retratou o Rio de Janeiro dos anos de densa leitura – iconológica, no seu caso
50, que acelerava a urbanização, e sua di- – do país e da sociedade brasileira. E para
ferenciação social e geográfica, de que são além do valor intrínseco dessa leitura está,
emblemas “Rio 40 graus” e “Rio Zona Nor- pelo veículo em que se apoia – a imagem
te”. Depois apresentou-nos a herança cul- –, a disseminação social que o filme per-
tural africana no “Amuleto de Ogum”, a te- mite, com um potencial pedagógico mul-
mática nordestina na releitura pela imagem tiplicador, sobretudo num país em que o
da obra de Graciliano Ramos, a percepção percentual de leitores é significativamente
de nosso passado no “cinema histórico” e baixo.
nos documentários, a ironia machadiana e a Intérprete do Brasil, e pioneiro de sua
dele próprio no “Azillo muito louco”. leitura pela imagem, esta a sua marca na
Perpassa em sua obra a brasilidade, cultura brasileira.
sempre acompanhada de um humanismo
empático.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 17
E
u quero salientar o aspecto, usando Os companheiros falaram da sucessão
o conceito de Lévi-Strauss de “arte de obras do nosso homenageado. Mas eu
fundadora”, do nosso reverenciado. quero, voltando a Lévi-Strauss, mostrar em
Digo isto porque cabe a ele a revelação quanto o nosso homenageado realmente
de uma paisagem. Ou seja, ele entrega e chega a um cânone, a partir do contrapon-
funda na nossa literatura a noção da geo to que tem nove anos de destaque entre as
grafia urbana, no seu sentido mais rico e suas duas obras antológicas, que são “Rio,
denso. E aí ele começa, ao mesmo tempo, 40 graus” e depois “Vidas secas”. É impor-
e é a marca dessa sua originalidade, o seu tante, no seu conjunto de obras, marcar
pioneirismo. essas duas. E retomo o conceito de Lévi-
Não se pode esquecer o trabalho cria- -Strauss de cânone, porque Nelson chega
dor e inicial de “Juventude”, trabalhando a uma situação absolutamente inimitável
as ruas e as favelas do Rio, ele, paulista, que do que seja o Rio de Janeiro naquele mo-
nunca tivera o choque de conhecer a fave- mento, o que é extremamente importante
la. À favela vai uma premissa do lado ca- para quem iniciou a vida em São Paulo, mas
rioca do nosso homenageado, e ele a viveu se transformou num carioca obcecado, se
profundamente na estupefação, do que era eu assim pudesse dizer. E depois, evidente-
juntar essas ruas, essas favelas. Dizia ele: mente, trabalhando como ninguém a obra
“Em São Paulo, a horizontalidade da pro- e o insight de Graciliano Ramos, no que foi
gressão urbana nos impediu de saber o que o seu trabalho de “Vidas secas”.
era o espanto e o choque das favelas.” A Presidente, a perda do nosso homena-
favela é uma revolução e um choque, que geado em nada reduz a voracidade com
necessariamente ele traz para a nossa estu- que chega a um cânone brasileiro. O impor-
pefação. Digo isso, porque ao mesmo tem- tante foi a sua capacidade de definir uma
po, como em todo grande escritor, não só situação limite da reflexão brasileira e que,
se marca o seu pioneirismo, mas também a sobretudo, a meu ver, “Juventude” estabe-
sua capacidade de chegar ao cânone. lece desde as suas premissas.
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N
ão digo que gozei nesta Casa de silenciosa de “Vidas Secas” e a exuberância
Machado, da intimidade de Nelson de “Terceira Margem do Rio”. Tinha, sim, a
Pereira dos Santos, mas o quis bem, exuberância na secura, como Graciliano Ra-
admirando seu jeito de existir na quietude, mos, tinha a vertente exuberante de tentar
de criar sem ruído, de sonhar no dia claro atingir a terceira margem do rio da lingua-
ou ser o que inventou para si – um poeta gem, como Guimarães Rosa.
das imagens do povo. Farejava o aconteci- Os olhos das imagens não são os olhos
mento, deixava-o cansado, polido, tinha o das palavras. Nelson distinguia a diferença
clima de sua época, respirava o que via. e, ao retratar obras-primas literárias, criava
Generoso, objetivo, sem expansão (a um horizonte, que aprendera a manejar a
tudo abrigava no cofre de imagens), como distância das almas. Ou a alma da distância
se fora hábito da infância. Sentava nas ses- entre os seres.
sões da Academia nesta nossa fileira de Era o País na imagem, era uma vontade
maré, à esquerda. Falava pouco, já que ima- coletiva de sonhar. Ao retratar os margina-
ginava demais. lizados, os humilhados e ofendidos, engen-
Nelson, como é sabido, marcou a nos- drou nova paisagem, carregada de tempo
sa cinegrafia. Com “Zona Norte, “Rio 40 humano.
graus”, “Como era gostoso o meu francês” Falava na retina da república, falava de
e outros. Dois filmes, no entanto, o defi- dentro, falava com a coragem de haver trans-
niram para sempre. A contensão e beleza formado o cinema em sua morada eterna.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 19
É
com admiração e saudade que asso- Permito-me concluir lembrando que os
cio as minhas palavras à dos confra- estímulos iniciais de sua sensibilidade cria-
des nesta sessão dedicada a evocar a dora deitam as suas raízes na polivalência
grande figura de Nelson Pereira dos Santos. das vertentes dos que em São Paulo vive-
Reitero o óbvio ao destacar o seu papel ram e estudaram na Faculdade de Direito
de mestre desbravador e consolidador do do Largo de São Francisco.
cinema brasileiro que soube, de maneira Essas origens foram por ele registra-
única, transcriar, com originalidade e força, das no seu belo e abrangente discurso ao
na linguagem própria do cinema os valores assumir a Cadeira n.º 7. Cicero Sandroni
da literatura brasileira. Desta maneira, alar- apontou-as no seu discurso de recepção, e
gou os horizontes e aprofundou o significa- eu mesmo as evoquei mais adiante no meu
do da nossa cultura e da nossa gente. discurso de posse.
20 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
A literatura no Cinema
Cícero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras
E
ste é um momento difícil. É sempre e então, acredito, o de Letras foi esquecido,
difícil prantear o amigo, lembrar sua talvez de propósito.
vida, seu trabalho, sua amizade, os Além de expoente em sua arte, Nelson
momentos que passamos juntos, as tarefas foi escritor de imagens construídas na base
às quais nos dedicamos em colaboração, a da literatura brasileira, tanto na ficção como
cozinha de Nelson, com o seu nhoque sem nos documentários. Era um dos nossos, se
rival no Rio de Janeiro, seja em casa de ami- posso me incluir entre os operários da pa-
gos ou restaurantes, suas lembranças dos lavra, e repito, além de cineasta, foi jorna-
primeiros tempos, conversas em mesa de lista, trabalhou no copy desk do JB quando
bar onde sempre encontramos motivo para este jornal abrigava a fina flor do moderno
outra dose, enfim um homem comum, mas jornalismo brasileiro. Neste sentido também
com uma ideia na cabeça: fazer filmes. um dos nossos nesta Casa onde desde a
E não simplesmente fazer filmes, mas fundação, em 1827, os jornalistas estiveram
fazer filmes baseados em histórias do povo presentes.
brasileiro, contadas por escritores brasilei- Recordo: embora o falar de si seja sem-
ros. Assim ele realizou obra completa, que pre odioso, nos meses finais de 2003, o
sua morte não atinge, ao contrário, preser- poeta Ivan Junqueira, presidente desta Aca-
va enquanto houver vida inteligente neste demia, pediu aos seus colegas de diretoria,
planeta. o Acadêmico Evanildo Bechara e este ora-
A época em que ingressei nesta Casa, dor, um programa de conferências para o
graças à generosidade dos acadêmicos de ano seguinte. Lembrei-me então que, em
então, sempre me senti atraído pela posição 2004, o filme “Rio 40 graus”, de Nelson
de Nabuco, o grande defensor da presença Pereira dos Santos, completaria meio sécu-
de expoentes da nossa cultura na Acade- lo de existência, e que o cineasta, no curso
mia. Não terá sido por outra razão que a de sua carreira, realizara pelo menos uma
geração liderada por Afrânio Peixoto colo- dezena de filmes baseados em romances e
cou no pórtico do Petit Trianon, em 1923 contos de autores brasileiros. Sugeri então
(quando recebemos cópia perfeita desta a inclusão, no nosso programa de palestras
joia da arquitetura francesa), a expressão das terças-feiras, de um ciclo dedicado à
Academia Brasileira, omitindo o de Letras. obra de Nelson, homenagem da Academia
Se observarmos bem, veremos que haveria ao cineasta por todos os méritos, já o pa-
espaço para pelo menos mais uma palavra, triarca do cinema brasileiro. Exibimos seus
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 21
filme antes das palestras, o ciclo obteve boa Seu depoimento: “A minha primeira re-
frequência e a partir de então aconteceu lação com o cinema foi essa. Aos dez anos
um caso de amizade entre o cineasta e a eu já estava vendo filmes para adultos, com
Academia, um encantamento das acadêmi- a família. Depois veio o cineclube, o desejo
cas e acadêmicos com aquele senhor gentil, de fazer cinema e as dúvidas sobre a possi-
afável, engraçado, inteligente, culto, enfim, bilidade de fazer cinema no Brasil.” Neste
um candidato perfeito à nossa enganosa transe, aos vinte anos, viajou para a Europa
imortalidade. num cargueiro italiano e foi acolhido com
A mãe de Nelson, dona Angelina Binari amigos em Paris pelo pintor e gravurista
dos Santos, filha de pais italianos da região Carlos Scliar, tio de Moacir Scliar. Em Paris
do Veneto, deu à luz um menino no 22 de frequenta a Cinemateca e recebe a influên-
outubro de 1928 em São Paulo. Ela queria cia do documentarista holandês Joris Ives,
que o filho se chamasse Marco Antonio, mas que valorizava o conteúdo dos filmes e pre-
o pai, o alfaiate Antônio Pereira dos Santos, gava a transmissão de mensagens de con-
preferia que Nelson. Apaixonado por cinema, fiança para os homens na luta por uma vida
cujas salas frequentava todas as noite, se en- melhor. Nelson absorveu bem essas ideias
cantara com um filme do cinema mudo, base- e incorporou-as em seus filmes mais tarde.
ado na vida do Almirante Nelson, o intrépido De volta a São Paulo em 1950, dirige
marinheiro inglês que derrotou a esquadra “Juventude”, documentário em 16 mm
francesa de Napoleão em Trafalgar. E assim sobre os jovens paulistas levado ao Festival
o menino foi batizado Nelson, pequeno equí- de Cinema da Juventude de Berlim onde
voco do seu Antônio, pois Nelson era nome foi bem recebido. No ano seguinte, convi-
de família, o primeiro nome do Almirante era dado por Rodolfo Nanni, foi assistente de
Horácio. Mas não terá sido apenas o nome de direção em “O Saci” baseado no livro in-
batismo inspirado no filme “The Divine Lady”, fantil de Monteiro Lobato. Logo depois veio
dirigido por Frank Lloyd com H. B. Wamer no para o Rio e trabalhou como assistente de
papel do almirante, a marca de sua vocação. direção em “Agulha no Palheiro”, de Alex
O pai de Nelson adorava cinema, todo o do- Viany, filme que recebeu boa crítica, estre-
mingo levava a família para assistir a marato- lado pela cantora Doris Monteiro. Foi tam-
na de filmes à tarde. Ele alugava um camarote bém assistente de Paulo Wanderley no filme
no cineteatro Colombo, no Brás. Nelson, o “Balança, mas não cai”, baseado no popu-
caçula, também ia, embora ainda fosse um laríssimo programa humorístico da Rádio
bebê. Sua mãe, além da mamadeira para o Nacional. Na função de assistente aprendeu
futuro cineasta, levava garrafas de água, leite, com bons mestres, mas não esqueceu ja-
queijo, pão, salame e guaraná. Quatro horas mais a leitura: “Eu acho que aprendi muito
de sessão, de uma às cinco, durante anos. com a literatura. Ao filmar ‘Rio 40 graus’,
Lembrança de Nelson: “Vimos todos aqueles procurei a construção no estilo de James
filmes considerados hoje grandes clássicos da Joyce em Ulisses, criando um dia no Rio de
época. Sempre começava com um documen- Janeiro com muitos personagens, com mui-
tário, e as comédias – o Gordo e o Magro, tas crianças vagando pela cidade. É como
Harold Lloyd, Chaplin e por aí ia.” um mosaico, um mosaico da cidade, e seus
22 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
habitantes, do que eles poderiam estar pen- A proibição de “Rio 40 graus” gerou
sando ou sonhando.” polêmica; o escritor Orígenes Lessa, mais
Nelson tinha uma ideia na cabeça, e tarde membro desta Academia, também
uma boa ideia, mas faltava uma câmara na publicitário e, portanto, conhecedor das
mão, isto é, recursos para financiar aquele leis do mercado, afirmou que a proibição
filme pleno de calor e crítica social no Rio do filme era burra, mas teria um benefício,
de Janeiro, imaginado por um paulista que pois quando liberado, bateria recordes de
quando não pensava no filme, passava o bilheteria. E assim aconteceu. Quando o
tempo lendo, especialmente os autores filme pôde ser exibido em fins 1956, no
brasileiros de esquerda, que os banqueiros, primeiro ano do mandato do presidente
possíveis financiadores, queriam ver bem Juscelino Kubitschek.
longe, e se possível na cadeia. Cacá Diégues:
Obstinado, Nelson conseguiu alguns re- “Mais até do que uma experiência artísti-
cursos e começou a filmar em 1954, ano de ca, ‘Rio 40 Graus” era um programa de vida ao
qual seu autor nunca seria infiel, mesmo que
grande convulsão política e social marcado
seu cinema passasse por tantas transformações
pelo suicídio de Getúlio Vargas, e o traba-
no futuro. Um programa de vida ao qual aderiu
lho só terminou em 1956. Quando estava toda uma geração de adolescentes e universitá-
pronto para a exibição, “Rio 40 graus” foi rios cinéfilos que juntos se tomariam, em breve,
denunciado como filme comunista. O Che- cineastas brasileiros que marcariam a história
fe da Polícia do Distrito Federal proibiu sua de nosso cinema de modo seminal. Se as telas
exibição sob alegação de que era perigoso do país, tomadas pela produção internacional,
por mostrar apenas os aspectos negativos e sobretudo americana, eram as janelas através
das quais esses jovens aprendiam a amar o ci-
do Brasil e dessa forma seu conteúdo tinha
nema, ‘Rio 40 graus’ foi a porta luminosa pela
potencial para gerar convulsões populares.
qual eles o invadiram.”
E além disso, afirmava o Chefe de Polícia, a
temperatura do Rio de Janeiro chegara aos Depois de “Rio 40 graus”, nunca mais a
40 graus centígrados e dessa forma o títu- cultura brasileira poderia ser a mesma. Ela
lo do filme do cineasta paulista suspeito de tinha sido levada para as ruas em busca da
pertencer ao Partido Comunista começava verdade e da compaixão, em nome da justi-
com o propósito de ofender a Cidade Mara- ça e da beleza, dos sonhos que alimentaram
vilhosa. Acontece que uma antiga portaria o que de melhor fizemos em nosso cinema.
municipal estipulava que quando os termô- Se sua contemporânea bossa-nova era, na
metros da cidade alcançassem os 40 graus música, um projeto de harmonia e elegância
seria automaticamente decretado ponto fa- musical para um país miserável e em grande
cultativo, e os termômetros oficiais estavam mudança social, o cinema inaugurado por
preparados para registrar apenas até 39,9 e “Rio 40 graus” nos exibia a face dolorosa do
jamais chegar aos 40 graus. Assim, quando Brasil que não queríamos mais que existisse,
o ar-refrigerado era um luxo só acessível a mas que não devíamos esquecer.
poucos, a temperatura podia chegar aos 45 E assim continuou Nelson, infatigável em
graus à sombra que, oficialmente, o Chefe sua atividade, sempre com um livro e uma
de Polícia continuava com a razão. ideia nas mãos e uma câmara ainda em
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 23
sonho, na sua cabeça, até que encontrasse o vemos como é indispensável pensar o cine-
financiamento para o filme. Sua trajetória na ma brasileiro além da arte, técnica, indústria
cultura brasileira conquistou os corações dos e comércio e também um fator de identida-
brasileiros e as plateias do Brasil e no exterior, de nacional. O termo lembra um clichê, é
onde seus filmes foram exibidos. certo, mas o cinema é a arte que, por sua
Em mais de meio século de atividades popularidade e caráter global, acessível a
ininterruptas, Nelson não foi apenas o cine- bilhões de seres humanos, pode oferecer,
asta comparável aos grandes, de Lumière a em um instante, o reconhecimento de uma
Eisenstein, ou de Buñuel a Stanley Kubrick. civilização, em escala doméstica e universal.
Além de jornalista e autor ou coautor de livros Civilização e cultura com muitos problemas,
sobre cinema foi conferencista cujas reflexões mas estampando uma face própria, única,
ajudaram a encontrar caminhos para o desen- com seus pecados e virtudes, sua originali-
volvimento do audiovisual no Brasil. Fundador dade e os efeitos da globalização sobre ela,
de cursos de cinema em três universidades e seu dinamismo ou seu marasmo, nas telas
brasileiras, foi professor desses cursos onde do Brasil e de todo o mundo.
se formaram numerosos cineastas hoje em Neste momento de saudade de Nelson
atividade. Produtor de cinema que ofereceu Pereira dos Santos não posso deixar de pen-
emprego a centenas de atores, cinegrafistas, sar como seria bom se o cinema nacional
iluminadores, técnicos, artesãos e operários. chegasse a todos os brasileiros, como se-
Seus filmes apresentados no exterior de for- ria bom se os nossos filmes estivessem ao
ma restrita, como toda produção brasileira, alcance de todos os bolsos e não de uma
receberam prêmios e produziram divisas para parte mínima dos brasileiros e encontras-
a nossa balança comercial. Um artista que sem forma de expandir-se pelo mundo para
contribuiu, portanto, ao seu modo, como mostrar que sim, nós existimos, vivemos no
tantos outros, a economia nacional. mesmo planeta, estamos aqui, e fazemos
Diante de trajetória tão fecunda, deste cinema de qualidade, e este é o nosso retra-
exemplo seguido por tantos realizadores, to sem retoque.
24 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
C
onheci pessoalmente Nelson Perei- Stein, trabalhar junto com ele na elabora-
ra dos Santos nesta Casa. Antes, ção do roteiro e no acompanhamento das
seu nome e sua figura mítica in- gravações, conviver com a magia da sua
tegravam a minha admiração pelo notável criação foi uma revelação e um grande pra-
cineasta revelador de Brasil na arte de seu zer entusiasmado que me fez um adepto
raro talento e paixão totalizante. Logo des- bissexto dessas andanças. E mais. O início
cobri que o Acadêmico discreto, de poucas de uma amizade sólida e fraterna que se es-
palavras, desestruturava a imagem de lenda tendeu a sua dedicadíssima e companheirís-
viva e a distanciava com a sua simpatia, a sima Ivelise, minha irmã. Perdi mais que um
naturalidade nos tratos das coisas, a firme- grande amigo, autêntico, sincero. Sentirei
za de suas convicções a sua simplicidade, saudade da simplicidade com que ele via a
sem prejuízo da consciência plena do traba- vida, com que vivia a vida, do seu encanto
lho a que se dedicava. Nelson parecia viver com os passarinhos, convivas da sua varan-
cinema vinte e quatro horas por dia e foi da à sombra do Cristo Redentor e de sua
pelo cinema que nos aproximamos. Quan- imensa alegria. Em respeito a ela, não choro
do ele aceitou o convite para dirigir o filme a sua partida. Ele cumpriu com galhardia o
“Português, a língua do Brasil”, idealizado seu percurso na inexorável navegação das
por esse que vos fala e por Maria Eugênia águas desse rio fatal, chamado vida.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 25
N
elson Pereira dos Santos passou a foi eleito em 2006. Sua eleição deveu-se em
existir para mim em 1963, quando boa parte à grande proximidade que sempre
assisti a “Vidas Secas”. Era estudan- manteve com textos literários, fossem eles de
te da Universidade Federal de Minas Gerais. Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de
Na Belo Horizonte da época, havia intensa Assis, Guimarães Rosa. Creio que Nelson foi
atividade cineclubista coordenada por um unanimidade entre os acadêmicos no que se
Centro de Estudos Cinematográficos. Os ci- refere ao convívio social. Nelson era amável,
neastas da Nouvelle Vague francesa e do ne- alegre, expansivo, dono de sonoras gargalha-
orrealismo italiano eram os mais influentes. das. Enquanto pôde, deu substancial contri-
Os Cahiers du Cinema eram nossa bíblia. Foi, buição à vida cultural da Casa ao promover
então, que assisti a “Vidas Secas”, o primeiro sessões de cinema abertas ao público.
filme de Nelson que via. Foi uma revelação. Estreitamos as relações quando ele ma-
Ajudado pelo texto de Graciliano Ramos, to- nifestou o desejo de fazer um filme sobre
mando de empréstimo alguns traços do ne- d. Pedro II e me procurou para consultas.
orrealismo italiano, e fugindo do excesso de Ivelise deve lembrar-se. Escreveu um exce-
intelectualismo da Nouvelle Vague, Nelson lente roteiro, mas o projeto foi incialmente
tinha produzido um clássico do cinema bra- retardado por falta de financiamento e ago-
sileiro, um clássico que me marcou para sem- ra definitivamente cancelado por sua parti-
pre. Admiração repetiu-se mais tarde, embora da. Fico a imaginar que, em sua permanen-
sem o mesmo impacto, na outra colaboração te preocupação com a injustiça, ele esteja
da dupla Nelson-Graciliano, as “Memórias do agora tentando fazer algum documentário
Cárcere”. Duas pessoas tão diferentes enten- sobre as reclamações dos anjos contra o ex-
diam-se perfeitamente tanto na forma enxu- cesso de trabalho a que possam estar sendo
tas do texto e da imagem como no conteúdo submetidos. Sem problemas de financia-
imbuído de preocupação social. mento, suponho. Nelson ficou a dever-me
Pessoalmente, só nos viemos a conhecer um filme, mas o Brasil todo é seu devedor
na Academia Brasileira de Letras para a qual por sua obra grandiosa.
26 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
N
elson foi antes de mais nada um ci- de ver durante o Festival de Cinema de Ber-
neasta da cultura universal, da qual lim (hors-concours), quando eu era Cônsul-
ele participou plenamente, seja em -Geral.
festivais internacionais, seja como professor A relação de Nelson com a ensaística
em universidades como a UCLA e a Colum- deu-se através de filmes documentários
bia. Mas sobretudo cineasta da cultura bra- como “Raízes do Brasil”, baseado em Ser-
sileira em seus diversos segmentos: literatu- gio Buarque de Holanda, e “Casa-Grande e
ra, ensaística, música, entre outros. senzala”, de Gilberto Freyre, para mencio-
Com a literatura, o vínculo é dos mais nar apenas dois dos que me pareceram os
estreitos. Nelson se especializou nos últimos mais impactantes.
tempos em dirigir o seu olhar cinematográ- Passemos agora a novo segmento da cul-
fico para a adaptação de roteiros baseados tura, a música, com o filme “A música de Tom
em obras de ficção e ensaística. Menciono Jobim”, de 2011, dedicado ao pai da bossa
apenas alguns exemplos, dando preferência nova, concluído quando Nelson já era mem-
àqueles que tive o privilégio de assistir em bro da ABL. A importância da música para
minha vida errante de diplomata. Nelson já ficara evidente desde 1955, com o
De Machado de Assis, Nelson Pereira filme “Rio 40 graus”, com trilha de Zé Keti.
dos Santos extraiu o roteiro para “Um Azyllo Enfim, ficaria faltando, para completar
muito Louco”; de Jorge Amado, “Tenda de a relação de Nelson com a cultura moder-
Milagres” e o “Amuleto de Ogum”; de Gra- nista, um filme sobre a pintura de Tarsila do
ciliano Ramos “Vidas Secas”, “Memórias do Amaral, que talvez encontremos algum dia
Cárcere“; de Guimarães Rosa “A Terceira entre as obras póstumas da filmografia de
Margem do Rio”, que tive a oportunidade Nelson Pereira dos Santos.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 27
É
um momento de não rara dificuldade, Nelson teve a ousadia não apenas de
querida Ivelise, colegas e familiares denunciar, mas de criar uma estética da
de Nelson Pereira dos Santos, porque denúncia, humanista, corajosa, que trans-
se espera que o Presidente cumpra o rito, cendesse leituras fundamentalistas. A de-
pronuncie poucas palavras, corifeu de um sigualdade nítida. Uma estética para com-
coro antigo, que traduza, quanto possível, preendê-la e uma ética para denunciá-la:
o sentimento da Casa, dos companheiros e instância permanente de emancipação.
de quantos se reúnem em torno da figura À direita de Nélson, nesta sala dos poe
luminosa de Nelson Pereira dos Santos. tas românticos, encontra-se Castro Alves. A
Querida Ivelise, somos testemunhas de Cadeira de Nelson não é uma contradição
seu amor a Nelson, vivido de modo intenso, no adjetivo. Nelson e Castro Alves possuem
de parte a parte, e cuidadoso. Prova desses não raras convergências, sob uma perspec-
atributos consolidou-se na travessia recente, tiva generosa, batendo-se para o fim de
cheia de desafios, dolorosa, partilhada pela modos assimétricos, contra a injustiça, no
família, tornada pelo afeto algo mais leve. cinema e na praça, que é do povo, integra
Meu caro Nelson, a emoção não tem mé- e não separa, sob uma ótica republicana in-
trica, estamos cercados de lágrimas-nuvens, contornável.
saudade, comoção. Ao mesmo tempo, tris- Nelson amou como poucos a cultura po-
tes e feridos, mas consolados, na dimensão pular, antes que muitos percebessem essa
fraterna que organiza a presente cerimônia riqueza. Criou imagens antológicas, que até
de adeus. Não se contava com a sua morte. hoje povoam nossas retinas. A sua obra não
Certas pessoas não deviam partir, sobretudo pertence a seu autor, é propriedade de nos-
em momentos ásperos da História. sa gente e do futuro. O autor viverá para
Como disse Tarkovsky, o cineasta escul- sempre. Esse “escultor do tempo” está de
pe o tempo. Nelson Pereira dos Santos, ao viagem e leva um amuleto, no dia da festa
cinzelar imagens vigorosas de nossa iden- popular de São Jorge, a poucos passos da-
tidade, quando o Brasil ainda mal se co- qui, onde o povo se reconhece, nos terrei-
nhecia, deu protagonismo à cidade, como ros e igrejas. “O amuleto de Ogum” é um
conversamos Ana Maria Machado e eu, ci- filme que todos conhecem, todos celebram,
dade multiforme, dando início a um diálogo porque é um símbolo de nosso amigo Nel-
raro de uma cidade nada transitiva, alvejada son, um amuleto de partes dispersas que se
pela desigualdade. integram a partir de uma obra generosa, de
28 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
Um homem de Cinema
Marcos Vinicios Vilaça
Ocupante da Cadeira 26 na Academia Brasileira de Letras
E
u quero focar no Nelson revelador um a falar das coisas do Nordeste, mas de
do Nordeste. Otávio de Farias escre- saber interpretá-las, recriá-las, sem que elas
veu um longo artigo pouco antes da perdessem a sua significativa significância.
publicação de Vidas secas que é uma bo- Eu tenho esse sentimento muito do
bagem completa. Ele disse que o Nordeste meu chão relacionado a Nelson, mas sem
como tema de literatura estava esgotado. esquecer o quanto foi agradável conviver
Esgotado coisa nenhuma. Veio o livro Vidas com ele. Era uma pessoa convivial, disse há
secas, e veio o filme “Vidas secas”. O filme pouco para Ivelise, mesmo quando ficou
não é, para nós nordestinos, uma disserta- surdo. Ele era extremamente comunicati-
ção sobre o Nordeste. Longe disso ou além. vo. Sabia se comunicar, sabia sentir o que
É um renascimento da vida do Nordeste, a gente queria, e a gente sentia também o
das coisas que formam a nossa cabeça. que ele queria dizer. Eu creio agora que a
Nelson não foi, como muitos outros, um Academia deve ter muito cuidado na suces-
dissertador, nem sei se essa palavra existe, são de Nelson. Para que venha alguém com
mas ele não fez uma dissertação sobre o o estofo dele. Não necessariamente porque
Nordeste. Ele fez uma reinvenção do Nor- a Academia deva privilegiar Capitanias He-
deste. Isso é que me parece muito significa- reditárias nas suas Cadeiras. Não tem nada
tivo e deve ficar para Ivelise e para os filhos a ver uma coisa com outra, mas espero que
como o grande contributo dele. A grande Nelson tenha um sucessor que seja igual a
herança que ele deixou foi a de não ser mais ele nas suas virtudes extraordinárias.
30 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
N
elson foi um artista que se deu oportunidade de dizer isso a ele aqui, quan-
como destino a tarefa de apresen- do nos tornamos colegas, como uma forma
tar o Brasil a si mesmo. Não é uma de gratidão. E se eu repito hoje exatamente
pequena tarefa. Um país complexo em que tudo que disse a ele, lá na sala do Castori-
cabiam as imagens ásperas de “Vidas Se- no, entre as câmeras, que ele trabalhava, é
cas”, mas também a exuberância tropica- porque esses jovens que estão aqui e que
lista de um desfile de escola de samba, que são seus netos, devem realmente se orgu-
termina com o maestro Jobim numa espécie lhar muito desse homem que afinal de con-
de trono tropical, uma das mais belas cenas tas fundou uma geração. Não é pouco não,
do cinema brasileiro, no meu entender. Essa na história de um artista. Não é pouco não.
complexidade do Brasil, esse retrato difícil Nelson Pereira dos Santos fundou uma arte
foi talvez a arte maior de Nelson, desse líder que foi no seu tempo, no momento em que
de uma geração de cineastas que chamou começou uma arte precária no país, que mal
a si o destino do Brasil, de mudar o Brasil. começava, e que ele fez existir com um ta-
Nelson nunca concebeu a sua arte como lento extraordinário, sobretudo com esse
uma manifestação puramente individual, amor pelo Brasil, essa capacidade de trans-
mas ele tinha esse destino, que se dirigiu a mitir esse amor através da diversidade de
uma geração que era a minha, quando eu imagens. Foi essa gratidão que eu quis dizer
tinha a idade desses jovens aqui presentes a ele e que eu repito hoje para vocês. É espe-
hoje. Nelson nos apresentou o Brasil, e tive a cialmente a vocês que eu estou me dirigindo.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 31
Nelson, saudade
Sergio Paulo Rouanet
Ocupante da Cadeira 13 na Academia Brasileira de Letras
O
Brasil perdeu o primeiro nome meu francês”. Sua obra, em grande parte
do seu cinema moderno. Foi Nel- vinculada à nossa literatura, mostrou sem-
son Pereira dos Santos que, de pre uma profunda percepção de nossa re-
maneira genial, dirigiu alguns filmes que alidade. Na Academia Brasileira de Letras o
marcaram a arte nacional, como “Rio 40 recebi como uma grande contribuição para
graus” e “Vida Secas”, baseada na obra a trajetória de nossa Casa.
de Graciliano Ramos. Como presidente do Sinto profundamente sua morte e junto-
Festival de Cinema de Brasília, entreguei- -me a sua família e a todos os acadêmicos
-lhe os prêmios por “Como era gostoso o por essa perda irreparável.
32 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
C
omo todo grande artista, Nelson (1958), foi bem compreendido pelos cineas-
Pereira dos Santos é uma luz que tas mais jovens, aqueles que logo formariam
ilumina a criação de um povo, um o Cinema Novo. Era preciso se interessar pelo
marco cultural na história de seu tempo e ser humano mais próximo, sem piedade e
do tempo que virá depois dele. Uma luz que sem demagogia, como se se estivesse desco-
não se apaga. brindo o povo através de sua própria cultura.
No período de aproximação com seus
Morre aos 89 anos o jovens discípulos, no início dos anos 1960,
cineasta Nelson Pereira Nelson iria montar “Barravento”, primeiro
longa-metragem de Glauber Rocha; “Pe-
dos Santos
dreira de São Diogo”, o episódio de Leon
Nelson pertence a uma família de ar- Hirszman em “Cinco vezes favela”; e “O
tistas modernos que escolheram carregar, menino da calça branca”, de Sergio Ricar-
como suas, as dores à sua volta. Que fa- do. Montando meu episódio do mesmo
bricaram um projeto de solidariedade uni- “Cinco vezes favela”, eu e Ruy Guerra, que
versal, capaz de levar sua luz às multidões, estudara em escola europeia de cinema,
com um único sagrado segredo: o da pró-
aderíamos ao grupo. Vivemos tardes e noi-
pria vida que deve ser vivida por todos, em
tes de euforia, à mesa de edição, ouvindo
sua total inteireza. Nelson foi o barqueiro
as explicações sobre como devia ser do jeito
que levou a canoa do gênio modernista ao
que, suavemente, Nelson sugeria.
porto instável do cinema.
Apesar da importância de seus filmes
Apesar da importância de seus filmes
anteriores, “Vidas Secas” (1963) era o
anteriores, “Vidas Secas” (1963) era o re-
resultado de tudo aquilo que Nelson nos
sultado de tudo aquilo que Nelson nos en-
sinara, mais o que havíamos aprendido por ensinara, mais o que havíamos aprendido
nossa conta. por nossa conta. O gosto por um realismo
O que ele propunha com seus dois fil- não necessariamente naturalista, voltado
mes inaugurais, “Rio, 40 graus” (1955) e para costumes inéditos, fazia de seus he-
“Rio, Zona Norte” (1957), e o que produzira róis seres dos quais não devíamos sentir
para Roberto Santos, “O grande momento” pena como superiores a eles, mas com os
quais devíamos nos solidarizar. Impressiona-
Cacá Diegues. Publicado em O Globo em 23/4/2018. dos pela luz inédita de Luiz Carlos Barreto,
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 33
sentíamo-nos responsáveis pelas vidas secas Ainda que não saibam disso, cada fotogra-
dos heróis, mas não culpados por elas. ma dos filmes de cineastas brasileiros de
É tão imensa a sua importância funda- qualquer idade estará sempre impregnado
dora, que mesmo o jovem cineasta de hoje, pelo rastro de luz deixado por Nelson Pereira
que nunca tenha visto um filme de Nelson, dos Santos. Nelson é um marco eterno no
é necessariamente tributário do que ele fez. cinema e na cultura do Brasil.
34 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
E
m 2011, Nelson Pereira dos Santos me
ligou. “Oi, André, aqui é o Nelson, avô Bem-vindo, Cinema Novo
da Mila.” Ele queria falar sobre seu fil-
Paulistano, formado em Direito na USP,
me “A música segundo Tom Jobim”. Era um
ele foi o cineasta que retratou os margina-
cineasta de 80 e tantos anos, reconhecido e
lizados, os excluídos, os retirantes. Foi o di-
admirado por uma carreira brilhante, ligando
retor de “Rio, 40 graus” (1955), filmando
para um crítico 50 anos mais jovem. Ele não
a favela ao som de Zé Ketti muito antes de
se apresentou como o Nelson do Cinema
alguém inventar o horroroso termo “favela
Novo, como o imortal que adaptou clássicos
movie”. O neorrealista “Rio, 40 graus” nas-
da literatura brasileira ou como o cineasta de
ceu da admiração que Nelson desenvolvera
“Rio Zona Norte” (1957) e “Como era gos-
pelos filmes dirigidos por Roberto Rossellini
toso o meu francês” (1971).
e pelos roteiros escritos por Cesare Zavattini.
Era apenas o Nelson, um avô que gos-
A Vera Cruz fora fechada em 1954, e a
tava de se sentar na varanda de seu apar-
Atlântida se aproximava do fim.
tamento no Largo dos Leões, no bairro do
A proposta de Nelson, ao narrar a histó-
Humaitá, para tomar uma cachaça – nos úl-
ria de meninos pretos e favelados que ven-
timos anos, mudou para saquê –, servir um
diam amendoim nas ruas quentes do Rio,
nhoque que ele próprio cozinhava e trocar
foi fazer um novo cinema brasileiro. Pouco
uma prosa.
depois, não à toa, ele foi o montador do
É aquele Nelson, o avô da minha amiga
primeiro longa-metragem de Glauber Ro-
Mila, e também de Thalita, Bruno, Carolina
cha, “Barravento” (1962). A mensagem
e Gabriel, quem será velado nesta segun-
ecoava: adeus chanchadas, bem-vindo o
da-feira, na Academia Brasileira de Letras
Cinema Novo.
(ABL), a partir das 9h (o corpo será enter-
Nelson foi o precursor. Antes de “Rio,
rado às 16h no cemitério São João Batista).
Ele foi eleito imortal em 2006, na Cadeira 40 graus”, ele já indicava a trajetória po-
lítica que marcaria sua carreira. Foi filiado
André Miranda. Publicado em O Globo em 23/4/2018. ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, em
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s • 35
1950, fez o curta “Juventude”, sobre traba- margem do Rio” (1994), a partir de Guima-
lhadores de São Paulo. No ano seguinte, es- rães Rosa. Fora dos sets, foi um dos articu-
creveu na antiga revista Fundamentos que ladores para a criação da Lei do Audiovisual,
era preciso criar uma cinematografia que que permitiu que a produção retomasse seu
reproduzisse “na tela a vida, as histórias, as curso abalado pelos anos Collor.
lutas, as aspirações de nossa gente”. Se hoje o Brasil faz mais de cem filmes por
Ao longo das décadas, o cinema de Nel- ano, Nelson Pereira dos Santos, morto neste
son manteve-se fiel àquela regra. E não era sábado aos 89 anos, merece todos os agrade-
preciso roteiro para que desse certo, era pre- cimentos. Nelson deixou, ainda, dois roteiros
ciso apenas observar o Brasil. O improviso era prontos, ambos sobre a cultura nacional que
comum em seus filmes, como da vez que ro- tanto lutou para preservar: um sobre o impe-
dou “Mandacaru vermelho” (1961) na Bahia rador Pedro II e outro sobre o poeta Castro
quando se preparava para filmar Vidas secas Alves, o patrono da tal Cadeira 7 da ABL.
(1963), mas foi impedido pela chuva.
Pouco depois, desta vez em Alagoas,
Dia de São Jorge
onde a história original foi concebida, Vidas
secas, o livro de Graciliano Ramos, virou um É lá, na Academia Brasileira de Letras,
filme em preto e branco, com fotografia que se dará a despedida de Nelson. Ele não
contrastada e a câmera bem próxima da devia acreditar em destino, mas é incrível a
miséria do protagonista Fabiano e de sua coincidência de que seu velório esteja marca-
família de retirantes. O cinema, sim o cine- do para um 23 de abril, dia de São Jorge, o
ma, expunha as dores do brasileiro. Ogum da mitologia iorubá. Em 1974, Nelson
lançou “O amuleto de Ogum”, no qual o
santo protegia o protagonista Gabriel, inter-
Papel na retomada pretado por Ney Santanna, seu filho. Exibido
Seu olhar para o país seguiu presente no Festival de Cannes, “O amuleto...” tinha
num filme experimental como “Fome de trilha sonora de Jards Macalé e terminava
amor” (1968), uma crítica ao isolamento de com a música “Revendo amigos”.
intelectuais de esquerda; ou numa comédia A letra diz: “Eu vou, eu mato, eu morro,
como “Azyllo muito louco” (1970), obra eu volto para curtir.”
inspirada em “O alienista”, de Machado de Nelson, definitivamente, sempre curtiu.
Assis, que ironizou o dito progresso da dita- Houve uma vez, não faz muito tem-
dura militar. Nelson buscou em Jorge Ama- po, em que o bloco de carnaval Me Beija
do um campo para tratar da miscigenação que sou Cineasta presenciou uma fantasia
brasileira em “Tenda dos milagres” (1977); que teoricamente apenas cinco pessoas no
e retornou a Graciliano Ramos para abordar mundo poderiam usar. Dizia a camisa, usa-
o período da redemocratização com o pre- da por Bruno: “Me beija que eu sou neto
miadíssimo “Memórias do cárcere” (1984). do Nelson Pereira dos Santos”.
Quando o cinema brasileiro teve sua Com sua morte, o cinema brasileiro não
Retomada, no início dos anos 1990, ele perdeu um diretor. Apenas ganhou uma
se manteve presente e dirigiu “A terceira fantasia, muitas lembranças e um avô.
36 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
O
corpo do cineasta Nelson Pereira dos Santos influenciou não só sua própria
dos Santos foi velado, na manhã obra, como a de todo cinema nacional:
desta segunda-feira, na sede da “Nelson Pereira dos Santos está presente
Academia Brasileira de Letras (ABL), no Cen- toda vez que se pega numa câmera no Bra-
tro do Rio de Janeiro. Artistas e familiares se sil. Ele deu régua e compasso para o moder-
despediram do diretor, que morreu aos 89 no cinema brasileiro. Foi e é uma bússola
anos, no sábado. O corpo foi enviado ao para diversas gerações de diretores.”
cemitério São João Batista para o enterro. Para o diretor, Nelson é um divisor de
O diretor Luiz Carlos Barreto destacou a águas na cultura brasileira: “Assim como
importância de Nelson para a cinematogra- não é possível falar de literatura sem passar
fia nacional: “Ele deixa o legado para o Bra- por Guimarães Rosa e Graciliano Ramos,
sil de que o cinema é uma coisa útil, e não não é possível falar de cinema sem o nome
uma futilidade. Ele engrandecia o especta- Nelson Pereira dos Santos.”
dor, provocava reflexão crítica e emoções Para a atriz Regina Cazé, seu cinema é
verdadeiras. Se Glauber Rocha era o profe- eterno: “Fica uma grande obra que mudou
ta, Nelson era o feiticeiro” – disse Barreto. o cinema nacional.”
O presidente da ABL Marco Lucchesi des- Mila Chaseliov, neta do cineasta, lem-
tacou o caráter simbólico do velório ocorrer brou de Nelson como o "avô flamenguis-
no dia de São Jorge: – O Nelson é um amu- ta", indissociável de sua arte: “A familia res-
leto, um muiraquitã, pois nesse mesmo dia pirava cinema a partir dele. Ele deixa para o
as pessoas estão celebrando o santo, ogum, Brasil um olhar único para nossa identida-
nas ruas e nos terreiros. E essa vida cultural de, para a formação do nosso povo”, disse
foi a que ele retratou de forma inaugural, Mila. Sob o corpo de Nelson, além das flo-
dando visibilidade a toda pluralidade cultu- res, pousa uma vaquinha malhada, uma de
ral do Brasil. Foi um grande homem, e deixa suas manias, lembra Mila. “Ele coleciona-
uma guia ética para nós. va essas vaquinhas, era aficcionado. Tinha
Emocionado, o cineasta Walter Salles prateleiras inteiras cheias dessas figuras”,
afirmou que o trabalho de Nelson Pereira explica a neta.
E
ncontrei Nelson pela primeira vez em retrospectiva Fifty Years of Brazilian Cine-
Los Angeles, em 2002, quando ele ma com sete filmes de Nelson, incluindo o
foi agraciado com o Gabriel Figue- recém-lançado “A música segundo Antônio
roa Lifetime Achievement Award no Festi- Carlos Jobim”. Esse filme atraiu um públi-
val Internacional de Cinema Latino. Já nos co enorme – muitos na assistência de nossa
conhecíamos nesse período, mas só por Faculdade de Música, que é reconhecida in-
e-mail. Na época eu estava escrevendo um ternacionalmente.
livro sobre seus filmes, e ele mandou res- Nelson e Ivelise foram convidados e
postas a perguntas que enviei para uma en- passaram uma semana conosco em Bloo-
trevista que faria parte do volume Nelson mington. Ficaram hospedados no Metz
Pereira dos Santos (2003). Mas Nelson fazia Suite, um apartamento enorme no hotel no
parte de minha vida muito anos antes des- campus que a universidade só utiliza para
te encontro na Califórnia e de nossa cor- receber dignitários como o presidente Gor-
respondência. Eu era grande aficionada de bachev, a família Kennedy e o Dalai Lama.
Nelson e durante mais de trinta anos mos- Nelson almoçou e conversou com os alunos
trei pelo menos um a dois de seus filmes de pós-graduação, falou em sessões com o
em cada um de meus cursos sobre cinema. público depois de cada mostra, e ele e eu
Um pouco antes de me aposentar, crei um tivemos uma longa conversa no palco do
curso intitulado “Literatura e Adaptação” cinema onde ele contou histórias – umas
para focalizar o grande talento de Nelson muito engraçadas – sobre suas experiências
(e outros diretores) na área de adaptação. como diretor. Falou também dos desafios e
Além de “Vidas secas”, “Como era gos- dificuldades de fazer cinema no Brasil. Ele
toso o meu francês” e “O alienista”, que deu uma longa entrevista à prestigiosa re-
comentamos na aula, os alunos escreveram vista Black Camera cuja editora está aqui.
trabalhos finais sobre os pouco comentados O número em que a entrevista saiu tem
“Boca de outro” e “Tenda dos milagres”. lindas imagens de muitos de seus filmes.
Sem exceção, os alunos de cinema adora- Creio que Nelson e Ivelise gostaram de sua
vam os filmes de Nelson. Para aqueles alu- visita – a primeira de duas que fizeram a
nos que líam os romances que ele adaptou, nossa cidade universitária no meio-oeste.
essa admiração tornava-se ainda maior. A visita foi a primeira parada de Nelson
Em 2013 organizei com Jon Vickers, numa turnê pelas universidades nos EUA
o diretor do Indiana University Cinema, a organizada pelo Indiana University Cinema.
38 • D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos
Nesse mesmo ano, o presidente da India- amizade; a última num restaurante italiano
na University, Michael McRobbie, visitou a em Copacabana que tem uma linda foto de
Academia Brasileira de Letras para assinar Nelson pendurada na parede. A foto, que
o convênio entre as duas instituições. Nessa ficava perto de nossa mesa, surpreendeu
cerimônia, McRobbie, que é cinéfilo, con- todos, inclusive Nelson, e resultou em gran-
cedeu a Nelson a Medalha Thomas Hart des risos e muita alegria.
Benton em reconhecimento a sua grande Embora Nelson já não esteja conosco, ele
contribuição ao cinema mundial. permanece mais do que presente em seus
Tive o grande prazer de entrevistar muitos filmes e entrevistas publicadas e fil-
Nelson no Brasil quando a Editora Papirus madas, e nos ensaios e depoimentos impe-
lançou a tradução em português de Nelson cáveis e perspicazes que ele escreveu duran-
Pereira dos Santos na Livraria Travessa, em te toda a vida. A obra completa escrita de
Ipanema. Lá conheci amigos e fãs de Nelson Nelson ainda espera coleção e publicação.
enquanto assinávamos exemplares do livro. São documentos de inestimável valor não só
Sempre havia uma festa depois de nossos para a história do cinema brasileiro e mun-
encontros profissionais para celebrar nossa dial, mas também para a história do Brasil.
en s a i o
A
contece com frequência na pesqui- contraste, embora com população muito
sa histórica que ao procurarmos in- menor, o Paraguai, desde que Francisco
formações sobre um tema nos de- Solano Lopez assumira o poder em 1862,
paramos com coisas interessantes que não vinha aumentando o exército, comprando
procurávamos. Foi o que se deu comigo re- armas e construindo sólidas fortalezas com
centemente. Buscava nos jornais da década ajuda de engenheiros ingleses.
de 1860 informações sobre uma jovem vo- Para sanar o problema, o governo criou,
luntária da pátria, Jovita Alves Feitosa, que no início de 1865, os Corpos de Voluntá-
queria ir para a guerra matar paraguaios, e rios da Pátria. Logo a seguir, convocou 15
acabei encontrando a mesma belicosidade mil guardas nacionais, estabelecendo cotas
onde menos a esperava: entre dois futuros para cada província. Para se ter ideia da im-
membros da Academia, Machado de Assis e portância dessas duas medidas, basta dizer
Joaquim Nabuco. que cerca de 60 mil guardas nacionais e 55
Relembro brevemente a situação políti- mil voluntários lutaram na guerra, número
ca na década de 1860, quando o país se muito superior aos 16 mil da tropa de pri-
envolveu em vários conflitos externos. O meira linha, mesmo se somados a estes os
primeiro foi com a Grã-Bretanha no que se 8 mil conscritos.
chamou de Questão Christie. Depois foi a A convocação de guardas nacionais e
vez do atrito com o Uruguai, que resultou voluntários despertou de início grande entu-
na invasão do país vizinho em outubro de siasmo patriótico. Foi o primeiro movimento
1864. Finalmente, veio a guerra da Tríplice cívico de alcance nacional, e surpreendente,
Aliança contra o Paraguai, iniciada em de- dadas as grandes distâncias e as dificuldades
zembro de 1864. O Brasil não tinha exérci- de comunicação. A imprensa da época con-
to preparado para a guerra. Compunha-se tém abundantes provas desse entusiasmo.
apenas de uns 16 mil homens mal treinados Em todo o país, apresentaram-se pessoas
e mal armados. A Guarda Nacional era nu- dispostas a lutar: ricos, pobres, homens, mu-
merosa, mas sem treinamento bélico. Em lheres e crianças. Foi intenso o envolvimento
40 • José Murilo de Carvalho
das mulheres. Em Minas, certa dona Bár- Nação livre, é nossa glória
bara, a exemplo das mães espartanas, teria Rejeitar grilhão servil;
dito ao filho voluntário, ao lhe entregar um Pa[e]reça a nossa memória
Salva a honra do Brasil.
escudo, que voltasse carregando-o ou carre-
gado sobre ele. Até mesmo em Pernambuco Em 1865, ele voltou à carga, agora con-
apareceram voluntários e voluntárias para tra os paraguaios, em longo poema de 87
defender a pátria brasileira. Dona Mariana versos, que os jornais chamaram de monó-
Amália do Rego Barreto, de 18 anos, volun- logo, intitulado “O acordar do Império”. O
tariou-se e discursou em praça pública, exor- monólogo foi declamado no Ginásio Dramá-
tando todos a seguirem seu exemplo. No tico em maio de 1865. Nas Obras Comple-
Ceará, engajou-se dona Joana Francisca Leal tas, ele aparece com o título de “A cólera do
Sousa. Nessa mesma província, um menino Império”. Cito alguns versos:
de uns 9 anos apresentou-se como voluntá-
rio ao presidente, o futuro barão Homem de De pé! – Quando o inimigo o solo invade
Melo. Paternalista, o presidente ofereceu-lhe Ergue-se o povo inteiro; e a espada em punho
uns doces. Má ideia. O garoto retrucou com É como um raio vingador dos livres!
Que espetáculo é este! – Um grito apenas
altivez que o que queria era pólvora.
Bastou para acordar do sono o Império!
O entusiasmo inicial foi compartilhado
[...]
pela elite intelectual do país. Os jornais da
época estão repletos de poemas patrióti- Então (nobre espetáculo, só próprio
cos escritos por homens de letras, alguns já De almas livres!) então rompem-se os elos
De homens a homens. Coração, família,
consagrados, outros iniciantes. Entre os pri-
Abafam-se, aniquilam-se: perdura
meiros estavam Pedro Luís Pereira de Sousa, Uma ideia, a da pátria. As mães sorrindo
Francisco Muniz Barreto, Franklin Távora, Armam os filhos, beijam-nos; outrora
Bernardo Guimarães. Sobretudo, estava Ma- Não faziam melhor as mães de Esparta.
chado de Assis. Entre os novos, destacou-se Deixa o tálamo o esposo; a própria esposa
Joaquim Nabuco. É quem lhe cinge a espada vingadora.1
Machado de Assis já publicara versos
belicosos contra os ingleses em 1863, por Joaquim Nabuco, por seu lado, então
ocasião da Questão Christie. Escreveu então com 16 anos, escreveu um Hino que foi pu-
um Hino Patriótico, cujo estribilho rezava: blicado na Semana Illustrada (15/10/1865,
p. 6), cujo estribilho rezava:
Brasileiros! Haja um brado
Nesta terra do Brasil:
HINO
Antes a morte de honrado
Do que a vida infame e vil! “Levantai-vos, soldado da pátria;
Ide avante vingar a nação!
Cito mais duas estrofes: E voltai glorioso da luta
Ou morrei abraçado ao pendão!”
Quer estranho despotismo
Lançar-nos duro grilhão; 1 Os dois poemas de Machado de Assis podem ser
Será o sangue o batismo encontrados na Obra Completa publicada pela Nova
Da nossa jovem nação. Aguillar em 2008, volume III, pp. 763-64 e 768-70.
M ac h a d o de A ssi s e J oaq u im N a b uc o : P at r i otas b e l ic o s os • 41
João Almino
Ocupante da Cadeira 22 na Academia Brasileira de Letras
P
olêmico polemista, irrequieto ino- professor da Escola de Belas Artes (desde
vador, José Joaquim de Campos da 1890) e presidente do Conservatório Dra-
Costa Medeiros e Albuquerque foi o mático de 1890 a 1892.
fundador da Cadeira 22 desta Academia, a Homem erudito, foi jornalista de grande
mesma a que pertenço. Por isso, no meu destaque, à frente de O Clarin; durante o
discurso de posse, pronunciado em 28 de governo Floriano Peixoto, na direção do jor-
julho último, já tive a oportunidade de fa- nal O Fígaro; mais tarde, do jornal A Folha
lar sobre ele. Mas agradeço ao Acadêmico e, finalmente, com colaborações diárias no
Alberto Venancio Filho e à Acadêmica Ana jornal A Gazeta, de São Paulo. Sobretudo
Maria Machado pelo convite para, uma foi escritor prolífico. Escreveu romances, pe-
vez mais, discorrer sobre aquele que, em ças de teatro, livros de contos, de poesia,
seu tempo, exerceu grande influência nos de ensaio, de crítica literária, além de confe-
meios literários do Brasil. rências e discursos, que lhe deram especial
Nasceu no Recife em 4 de setembro de celebridade e que, reunidos, compõem pelo
1867. Comemoramos, portanto, o sesquis- menos uma dúzia de volumes. Foi deputa-
centenário de seu nascimento. Estudou em do federal por Pernambuco, eleito pela pri-
Lisboa de 1880 a 1884. De volta, fez no Rio meira vez em 1894. Em 1923 foi Secretário-
de Janeiro um curso de História Natural com -Geral desta Academia, que veio a presidir
Emílio Goeldi e foi aluno de Sylvio Rome- em 1924.
ro. Com a vitória da República, foi nome- Crítico feroz de Dom Pedro II, fez opo-
ado secretário do Ministério do Interior e, sição à instituição da monarquia e foi mili-
em 1892, vice-diretor do Ginásio Nacional, tante republicano, sendo inclusive o autor
havendo ocupado em 1897 a Direção Geral da letra do Hino da República. Mas, pro-
da Instrução Pública do Distrito Federal. Foi clamada a República, atacou os governos
republicanos especialmente de Prudente de
Conferência na Academia Brasileira de Letras, em 12 de Morais, durante cuja presidência foi forçado
dezembro de 2017. a pedir asilo à Embaixada do Chile, de Nilo
46 • João Almino
que mandou o filho salvar, redimir a Huma- em 1928 com o Professor Sousa da Silveira.
nidade? Não salvou nada, não redimiu coisa Medeiros e Albuquerque diz que quando a
alguma. Um novo fiasco!” Academia Brasileira fez sua primeira refor-
Afima ainda que “dos vários deuses ma, seu erro fora o de não modificar tudo,
que disputam a imbecilidade dos crentes, mas tudo o que modificou havia obedecido
nenhum tem maioria.” E é especialmente ao critério fonético. Já na ortografia por-
cruel com a religião católica: “No fim de 20 tuguesa, com a reforma de 1911, a regra
séculos, depois de sua segunda errata, ten- obedecia ora ao princípio da simplificação,
do feito matar o Filho, o Deus dos Católicos ora da etimologia, ora da fonética. Ao que
não conseguiu ainda a maioria para os seus Sousa da Silveira responde que a ortografia
crentes!... O grande ridículo é essa religião oficial portuguesa submete-se a uma orien-
inteira, tão absurda no seu conjunto como tação única. E aqui vem a explicação dessa
nas suas partes.” orientação única nas palavras de Sousa da
Já em 1928 entrara em polêmica com o Silveira, citadas por Medeiros: “simplificar e
Padre Pedro Gaston R. da Veiga. Medeiros uniformizar, dentro da medida da prudên-
criticara o que chamou de “indução sim- cia e de acordo com a história da língua e a
plória” em que incorrera o livro de Tasso observação da sua fase atual, tendo sempre
da Silveira, Alegria Criadora, quando dizia em vista a etimologia do vocábulo.” Ora,
que, se o relógio pressupõe um relojoeiro, contesta Medeiros, esta frase demonstra
o mundo pressupõe um autor inteligente. que não houve critério fixo. Em alguns ca-
À defesa teológica então apresentada pelo sos se fez a simplificação. Noutros se recuou
Padre Pedro Gaston da Veiga em resposta dela por causa da prudência. Nuns casos se
a seu artigo, contra-argumenta que “sen- respeitou a etimologia. Mas como não se
do Deus absolutamente perfeito, absolu- diz que ela deve ser respeitada, apenas que
tamente completo, já não podia ter razão se deve tê-la em vista, noutros casos ela foi
alguma para criar nada”. Se adquiriu uma desrespeitada.
nova perfeição com a criação, seria sinal de Suas ideias de reforma ortográfica não
que antes não a tinha. E finalmente pergun- encontraram paralelo em ousadia e malo
ta: E “quem criou Deus?” Se foi ninguém gro nem no Glauber Rocha de Riverão Sus-
e há, portanto, quem não tenha sido cria- suarana, que criou uma ortografia própria
do, “por que não acreditar que foi o Mun- substituindo “c”, “i” e “s” por “k”, “y”,
do”? Cita um poema de Antero de Quental “z” e “x”. As de Medeiros eram mais sim-
no qual os deuses, com voz triste, dizem: ples: se tivessem prevalecido, com o empre
“– Homens! Por que é que nos criastes?” E go radical do critério fonético, nenhuma
conclui afirmando: “Se 2 e 2 são realmente criança em início de aprendizado teria dú-
4 – não sei muito bem. Mas de que Deus vida sobre se Mossoró, minha cidade, se es
não existe – tenho a mais absoluta certeza.” creve com cedilha ou com um ou dois esses;
Outra das questões polêmicas em que se Brasília se escreve com esse ou com zê.
se envolveu diz respeito à reforma ortográ- Por outro lado, não deixariam de provocar
fica em Portugal e no Brasil. A mais famo- choque e mesmo riso em quem prezasse
sa de suas polêmicas nesse campo ocorreu sobretudo as tradições da escrita da língua
48 • João Almino
N
a última sessão, quando o Acadê- medieval ibérico. Talvez reverberação dos
mico José Murilo de Carvalho nos feitos históricos de Joana d’Arc e da força
trouxe sua rica colaboração sobre mitológica das guerreiras amazonas. E com
Jovita Feitosa – que se vestiu de homem origens em motivos asiáticos muito antigos.
e se apresentou como Voluntária da Pá- Mas o fato é que o assunto se manteve
tria para ir lutar na guerra do Paraguai –, o muito forte em nossa tradição popular – em
presidente Marco Lucchesi em seguida fez prosa e verso. São exemplo disso as inúme-
uma referência brincalhona a mim, evocan- ras variantes de histórias como a de Dom
do eventual contribuição minha ao tema, Varão, com seu obsessivo estribilho,
ocorrida em uma conversa paralela a uma “Os olhos de Dom Varão / são de mulher.
reunião da diretoria. De homem, não!”
Hoje venho esclarecer melhor, ao menos
para que não se pense que também estou Sua influência em nossa literatura con-
pensando em pegar em armas quando nos temporânea culmina, evidentemente, em
reunimos. Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, mas
Acontece que há muito tempo me inte- se trança também com as raízes africanas
resso, ainda que de forma periférica e sem o fortíssimas da Rainha Ginga, ecoa em Luzia
rigor histórico de nossos confrades, pelo tra- Homem e no Memorial de Maria Moura.
dicional tema literário da mulher que se ves- Foi admiravelmente estudada por Leonar-
te de homem para ser soldada. E quando, há do Arroyo e por Walnice Nogueira Galvão.
algum tempo, José Murilo mencionou que Por vezes se mescla com reverberações de
estudava a figura de Jovita Feitosa, eu lhe figuras históricas, de Maria Quitéria a Anita
trouxe menção a outros casos, fora de nos- Garibaldi, mesmo se sabendo que esta não
sas fronteiras, notadamente na Guerra da precisou se vestir de homem nem se marcar
Secessão dos Estados Unidos. como donzela.
Na verdade, o tema da Donzela Guerrei- Em nossa história, entre as que não pu-
ra é um tópos onipresente no romanceiro deram se mostrar sem os trajes masculinos,
54 • Ana Maria Machado
talvez a primeira conhecida seja Maria Ur- ao dar a volta ao mundo, incluindo sua pas-
sula de Abreu e Lencastre, nascida em 1682 sagem pelo Rio de Janeiro. (Publicado ape-
no Rio de Janeiro. Fugiu de casa aos 18 nas em 1927). Nesse subconjunto de uma
anos e foi para Portugal, onde se alistou no coleção pessoal eclética, alguns nomes me
exército. Lutou na India como soldado, sem atraem especialmente, ainda que nem to-
nunca revelar que era mulher, até que em dos ligados ao Brasil. Cito inicialmente,
1714 deu baixa e se casou com um tenen- como amostra, duas ou três dessas mais
te. Seus feitos militares foram reconhecidos distantes.
pelo rei Dom João V que lhe deu honrarias Por exemplo, a belgo-francesa Alexan-
e uma pensão vitalícia. dra David-Neel (née Louise Eugenie Alexan-
Interessa-me, especialmente, o aspec- drine Marie David), anarquista e budista,
to de uma mulher ter de se disfarçar para viveu de 1868 a 1969. Em sua vida centená-
sair de casa, quebrar as amarras do papel ria interessantíssima, influenciou filósofos,
imposto ao gênero, ganhar o mundo, viver como Alan Watts, e autores beatnicks como
experiências mais amplas que conduzissem Jack Kerouac e Allen Ginsberg, e se nota-
além dos limites domésticos. Nesse sentido, bilizou especialmente por ter largado uma
um ramo decorrente desse tronco é o que carreira de sucesso como cantora de ópe-
se afasta das mulheres guerreiras e desem- ra para sair viajando. Furou o bloqueio que
boca nas mulheres viajantes. Mais sob a vedava o acesso de estrangeiros ao Tibete,
égide de Palas Atena e do chamado para por onde viajou disfarçada de peregrino,
o estudo, a ciência e a cultura, do que sob o lá viveu vários anos, ficou amiga do Dalai
impulso de Ares e das artes marciais. Lama e escreveu sobre isso. Outra pioneira
Pelo Brasil, tivemos vários casos de mulhe- em furar o bloqueio e entrar no Tibete, essa
res viajantes que não se vestiram de homens vestida de freira tibetana, foi Annie Taylor,
mas se puseram sob a capa de preceptoras que lá viveu um bom tempo.
de filhos de famílias abastadas, ou segui- Muito interessante também foi a inglesa
doras de companheiros que viajavam e nos Isabella Bird (1831-1904), grande viajante
deixaram registros vívidos de sua experiência pelos mais variados países do mundo. Na-
e suas observações de viajantes – como Ina turalista, estudou medicina, era elogiadíssi-
von Binzer, Adele Toussaint-Samson, Maria ma como excelente amazona, foi a primeira
Graham, Mme. Langley Dufresnoy, Virginie mulher da Royal Geographic Society, mem-
Leontine, Marie Robinson Wright, a Baro- bro da Royal Photography Society.
nesa de Langsdorf. Um bom levantamento Entre várias outras damas dessa estirpe
desses nomes foi feito por Miriam Moreira (que não é o caso de esmiuçar aqui, mas são
Leite. Uma dessas autoras, Rose de Freycinet inúmeras e interessantíssimas), há etnólo-
(viajante entre nós, de 1817 a 1820) embar- gas, cartógrafas, arqueólogas. Várias foram
cou clandestinamente para o Brasil, vestida recentemente homenageadas com uma
de homem, no navio comandado por seu exposição e um belo catálogo na National
marido Louis de Freycinet. Nascida Rose Pi- Portrait Gallery de Londres. Delas destaco a
non (aparentada de nossa Nélida?), deixou botânica Marianne North, que percorreu o
um diário com o relato de suas experiências Brasil de norte a sul, pintando e registrando
J ov i ta & C o m pa n h i a • 55
diversas plantas brasileiras, muitas até en- o futuro conceito do Bom Selvagem, que
tão desconhecidas. Tem algumas nomeadas Rousseau desenvolveria em seguida. Mas
em sua homenagem, como pode ser visto acabaram sendo deixados para trás no Tai-
num magnífico pavilhão permanente, todo ti (ou em uma das ilhas Mauricio, segundo
dedicado a sua obra, erigido no Kew Gar- outros relatos), após a tripulação descobrir
dens, o Jardim Botânico de Londres. que ela era mulher. Tiveram de seguir via-
Mas volto o foco para uma viajante que gem anos mais tarde, em outro navio, após
aqui esteve disfarçada de homem, e encerro outras descobertas botânicas. Os dois têm
esta evocação com a francesa Jeanne Baret, uma vida meio rocambolesca, segundo vá-
a primeira mulher a completar uma viagem rios registros, que incluem um filho e o tes-
de circum-navegação. Era alfabetizada, de tamento de Commerson que a deixa como
família hugenote, e tinha uma boa forma- sua herdeira universal.
ção como botânica, trabalhando por mui- Mas o que nos importa aqui é consig-
tos anos como assistente do médico, natu- nar que essa Jeanne, naturalista vestida de
ralista e ictiologista Philibert Commerson, marinheiro, foi quem trouxe para bordo, na
muito ligado a Lineu, e responsável por um escala que fizeram no Rio de Janeiro, vários
programa de estudos da Marinha francesa. ramos e mudas de uma planta trepadeira
Sob o nome de Jean Baret, ela se alistou lenhosa com “flores” miúdas e brancas en-
em 1765 na tripulação do Étoile, para dar voltas em brácteas exuberantes, vivamente
a volta ao mundo junto com seu patrão, coloridas, hoje conhecida entre nós como
que deixava em terra a esposa. É provável primavera, pataquinha, rosa-do-campo ou
que o capitão soubesse ou desconfiasse de três-marias, e mais uma dezena de nomes
algo, pois Commerson alegou problemas registrados pelo dicionário Houaiss, e que
de saúde e, para aceitar o convite recebido ganhou o mundo com o nome de buganvília
e participar da expedição científica, obteve ou Bougainville, em homenagem ao capitão
o direito de ter uma cabine exclusiva para da expedição e comendante do navio Étoile.
ele e seu “assistente e enfermeiro”, a pre- E não como tributo a ela, Jeanne Baret, que
texto de necessitar de tratamento constan- a descobriu e fez as mudas transportadas
te. O casal se notabilizou por uma mirada para a Europa pelo capitão, segundo registra
protoantropológica sobre os povos que ob- Commerson, e cujo nome apenas é reconhe-
servavam, notavelmente aberto para aceitar cido em outra planta, Solanum baretiae. Daí
costumes diferentes, ajudando a embasar meu registro agora em nossos anais.
Os Lisboa: Fragmentos de memória
A
ceitei prontamente o gentil convite Natural de Campanha, minha avó Sinhá
do Acadêmico Rogério Faria Tavares casou-se com meu avô Lisboa em Lambari,
para falar nesta Academia sobre com apenas 14 anos e meio de idade. (Ele
meus tios Henriqueta, Alaíde, José Carlos e tinha 23). Passou os próximos 21 anos dan-
Lourenço. Sabia não caber a um economista do seus 14 filhos à luz e o resto da vida ze-
como eu discorrer neste recinto sobre a obra lando por meu avô e pelos nove filhos que
literária de meus tios. Dei-me conta, entre- sobreviveram. Psicóloga inata e com ideias
tanto, de que, se era para fazer um roteiro avançadas para a época, vó Sinhá fez ques-
afetivo, não poderia deixar de mencionar ou- tão de dar às filhas mulheres uma educação
tros filhos de meus avós maternos que exer- primorosa: todas fizeram o curso normal no
ceram importante influência em minha vida. Colégio Sion de Campanha.
João de Almeida Lisboa e Maria Rita (Si- Abigail faleceu muito jovem aos 27 anos.
nhá) Vilhena Lisboa tiveram 14 filhos, dos Maria, minha mãe, ficou em Lambari para ca-
quais nove sobreviveram para a idade adulta: sar-se com seu “sheik árabe” (chamado Felí-
João, Maria (minha mãe), Henriqueta, José cio Bacha e não Rodolfo Valentino...) e tor-
Carlos, Alaíde, Oswaldo, Abigail, Waldyr e nou-se diretora do Grupo Escolar da cidade
Pedro. (Figura 1) (Figura 2). Henriqueta e Alaíde vieram com
Precisaria de um dia inteiro para fazer jus- os pais para Belo Horizonte, e aqui se torna-
tiça a esse conjunto. Não se preocupem, não ram as acadêmicas que todo o país conhece.
vai ser hoje. Por isso, o subtítulo “fragmen- Dos irmãos, João se formou em medicina;
tos de memória”. Nesse processo não vou José Carlos graduou-se primeiro em farmácia
poder deixar de falar de mim mesmo – e, e depois em direito; também em direito se
por isso, talvez o melhor título para o que se graduaram Oswaldo, Waldyr e Pedro.
segue seja simplesmente: “meus tios e eu”. Todos nasceram em Lambari. Ali, meu
avô Lisboa, quando chegou de Macaé, RJ,
Conferência na Academia Mineira de Letras. Belo Hori- exerceu o ofício de farmacêutico antes de
zonte, 28 de junho de 2017. se casar com minha avó e entrar na política.
Figura 1: Bodas de Ouro de João e Sinhá Lisboa. Lambari, 27/12/1943.
Figura 8
Centenário de
Alaíde Lisboa de
Oliveira. Figura 10
Henriqueta Lisboa,
Pousada do Ser.
Vejam assim que, indo bem além do re-
cato mineiro, as irmãs Lisboa tinham uma
Lembro-me também de sua devoção
boa razão para não quererem conversar so-
por Mario de Andrade. Em sua escrivaninha
bre a idade que tinham.
tinha uma foto dele num porta-retratos,
protegida por uma cortininha de renda.
Henriqueta Lisboa foi uma pessoa espe- Com esse mesmo recato, determinou que
cial. Não só por sua poesia, que é admirada as cartas do autor paulista para ela somen-
mundo afora. Também por sua figura frá- te fossem publicadas 50 anos após a morte
gil que parecia ser feita de porcelana, e sua dele.
personalidade a um tempo forte e reclusa. Não foi Henriqueta diretamente, mas
Ao contrário de minha mãe, que adorou a sua poesia que teve um impacto funda-
experiência do Sion, Henriqueta a detestou, mental em minha vida. Quando comecei a
mas tanto assim que da madre superiora namorar Maria Laura, vi em sua mesa de
ganhou a alcunha de la petite orgueilleuse, cabeceira um exemplar de Pousada do Ser –
a pequena orgulhosa. (Figura 9) que ela jura que realmente lia mesmo antes
Irritava-se quando a chamavam de “po- de me conhecer! De qualquer modo, foi o
etisa”, e me dizia algo assim: “só mesmo sinal inequívoco de que havia encontrado a
homens para quererem se apoderar de um mulher de minha vida. (Figura 10)
substantivo terminado em ‘a’, como ‘poe-
ta’, para relegar as mulheres poetas a um
diminutivo ‘poetisa’”. Foi não só por Henriqueta, mas por ela,
por Alaíde, Lourenço e José Carlos que abri
meu recente discurso de posse na ABL com
um poema seu sobre o Caraça6.
Quis, naquela ocasião, sentir meus tios
literatos bem perto de mim. É ainda mais
perto que os sinto aqui hoje, na homena-
gem que lhes faço nessa também minha
Belo Horizonte.
Figura 9
Presença de 6 Disponível em: http://www.academia.org.br/academicos/
Henriqueta. edmar-lisboa-bacha/discurso-de-posse.
Anotações sobre o cânone
Eduardo Portella
Sexto ocupante da Cadeira 22 na Academia Brasileira de Letras
H
á figuras de verdade na história do scholar, no seu recorte institucional ou na sua
Ocidente que se comprazem em cul- avidez apropriativa, vem sendo o dedicado –
tivar e proteger a canonização do tão dedicado quanto sedentário – zelador do
cânone. Outras, como a literatura em perío- cânone.
dos não canônicos, preferem investir as suas
energias na profanação do cânone. Por isso, O grande escritor não é o que preserva
talvez seja válido percorrer esse terreno mo- ou protege o cânone. E o que implode. Ha-
vediço, que configura o outro do cânone. rold Bloom se engana redondamente.
S
ebastião José de Carvalho e Meio, pode até vir montado a cavalo, mesmo se
conde de Oeiras e marquês de Pombal alquebrado por uma dispneia, como Deodo-
(1699-1782), é, na tradição autoritária ro naquela manhã do 15 de novembro. Ao
luso-brasileira, uma figura totêmica. Tanto passo que restabelece e consolida a ordem,
a direita quanto a esquerda acolheram-se o herói pombalino instrumentaliza o Estado
confortavelmente à sua sombra. Uma, em para modernizar o país, fomentar sua pros-
nome da manutenção da ordem: o regime peridade e defendê-Io dos predadores exter-
salazarista ergueu lhe um monumento numa nos, sempre na tocaia.
das principais praças de Lisboa. E a outra, em Ao ascender ao poder em 1750 como
nome da intervenção do Estado na econo- ministro del-Rei D. José, Carvalho e Meio
mia: os nacionalistas deste lado do Atlân- viera encontrar bem avançada, graças ao
tico viram na sua luta contra o predomínio meio século de reinado de d. João V, a
britânico no comércio português como que transformação da monarquia portuguesa
uma prefiguração de sua própria luta contra num regime de tipo absolutista, como os
a hegemonia americana. Da fortuna historio- que já predominavam em outros países da
gráfica do marquês, pode-se, portanto, dizer Europa. Politicamente, Pombal completou a
que teve “o melhor dos dois mundos”. obra iniciada no meio século anterior, gra-
A vertente conservadora de seu mito é a ças ao apoio irrestrito que, por fraqueza
do homem forte, que, no nosso imaginário ou preguiça do monarca, nunca lhe faltou.
político, tem a função providencial de colo- Destarte, ele pôde enfrentar a alta nobreza
car a casa em ordem depois da bagunça que e o clero, mandando executar por alta trai-
os maus inquilinos tendem periodicamente ção os chefes de uma das principais famílias
a promover. Esse homem forte pode ser um do reino, os Távoras, e expulsar os jesuítas
paisano, como no seu caso, no de Salazar ou de Portugal e dos seus domínios, algo im-
no de Getúlio, ou mesmo um militar, como pensável antes dele.
ocorreu mais frequentemente, que, de prefe- Mas a vertente da ação do marquês que
rência, para aumentar o efeito cenográfico, mais interessa ao leitor de hoje é eviden-
68 • Evaldo Cabral de Mello
temente sua política econômica, esta de- Pombal teve de enfrentar por fim o eter-
cididamente muito século XX. Tratou-se no problema que confronta os grandes re-
aqui de um ambicioso programa de refor- formadores: o de fazer durar suas reformas,
mas visando à proteção e ao fomento das no que teve menos êxito do que na sua luta
atividades nacionais, fossem elas agrícolas contra os jesuítas, os nobres ou os ingleses.
ou manufatureiras. Elas atacaram também A oposição ao regime do marquês cultivara
as estruturas sociais que tendiam a estorvar assiduamente a herdeira do trono, a futura
o processo de acumulação, como sejam os dona Maria I. A expectativa de que, pela pri-
preconceitos religiosos, nobiliárquicos e de meira vez na história portuguesa, uma mulher
raça que discriminavam o homem de negó- viesse a assumir a chefia do Estado por direito
cios ou por ser cristão-novo ou por desem- próprio, e não como simples regente, levou à
penhar ofícios ditos então mecânicos, isto suspeita de que Pombal estivesse planejando
é, manuais, e, por conseguinte, considera- um golpe palaciano mediante o qual se ado-
dos vis sob a ótica senhorial. Ao contrário taria no reino a lei sálica, praticada na França,
que afastava automaticamente as pessoas do
de muito reformador do século XX, para
sexo feminino da sucessão ao trono. Destarte,
quem o crescimento econômico era uma
a Coroa teria passado ao príncipe d. José, pri-
questão de investimento físico, Pombal
mogênito de D. Maria I e de cuja educação o
compreendeu a importância dos aspectos
marquês tratara com especial cuidado. O fato
institucionais, como o sistema educacional,
é que, se manobra houve, ela não vingou. Fa-
que secularizou e expandiu na esteira da ex-
lecido o monarca, Pombal foi despedido da
pulsão dos jesuítas.
corte sem maiores cerimônias e exilado nas
Havendo derrotado a aristocracia, os
suas terras da Beira Alta.
jesuítas e até o Vaticano, restava a Pombal
Mas a grande burguesia que Pombal in-
enfrentar os ingleses. Era inevitável que ele
centivara sobreviveu ao seu criador e até se
entrasse em choque com a Grã-Bretanha,
beneficiou da nova situação, na medida em
que desde os meados de Seiscentos torna-
que o enfraquecimento da máquina buro-
ra-se o grande aliado político e o principal crática lhe permitiu passar de instrumento
parceiro comercial do país. Como salientou do Estado a seu manipulador. Politicamente,
Kenneth Maxwell, Pombal nunca teve a ve- contudo, os amigos e protegidos do marquês
leidade nem incorreu no irrealismo de pre- tiveram de esperar a regência do príncipe
tender retirar Portugal do sistema estratégi- d. João, o futuro d. João VI, para fazer um re-
co inglês, para aderir ao sistema continental torno discreto às posições de poder. Quanto
ou muito menos para assumir uma atitude ao marquês, gastou os últimos anos de vida
independente. Para ele, tratava-se, muito na tarefa de se defender de um processo
pragmaticamente, de aumentar a capacida- que o acusava dos crimes de corrupção e
de de manobra de Portugal dentro da área de abuso do poder, de que só o resgatou
da aliança inglesa, de modo a melhor pre- a rainha, pretextando sua idade avança-
servar as vantagens econômicas que dela da, incompatível com os castigos de que,
auferia, sobretudo em termos de segurança segundo dizia, ele se tornara merecedor.
do império ultramarino. Aliás, no poder, Pombal e a família haviam
A sombra de P o m b a l • 69
enriquecido enormemente. Muito à maneira decênio que vai da aclamação de dona Ma-
luso-brasileira, a lei que criara a Companhia ria I aos primeiros rugidos revolucionários
dos Vinhos do Alto Douro estabelecera uma na França constitui um período dourado,
exceção em seu favor, ao prever que seus vi- embora medíocre, da história portuguesa.
nhedos de Oeiras, nas cercanias de Lisboa, Quem sente a nostalgia dessas épocas co-
poderiam beneficiar-se das vantagens do letivamente felizes deve ler os relatos dos
monopólio que, em princípio, só eram reco- viajantes estrangeiros, sobretudo ingleses,
nhecidas ao vinho do Porto. que visitaram o país nesses anos de omis-
Retirado Pombal em suas terras, Portu- são e complacência, quando os melômanos
gal adormeceu docemente, embalado por iam deliciar-se com o canto dos castrati da
um sistema que já não era a autocracia Patriarcal, os marialvas promoviam suas ar-
pombalina mas que já não podia voltar a ruaças no Bairro Alto, os privilegiados vera-
ser a monarquia tradicional. Se, por outro neavam em Sintra; e todos, passada a hora
lado, já não se tratava daquela nação de da sesta, fossem ricos ou pobres, iam aos
meio século antes, em que, na queixa de touros e às festas de igreja. Pois consoan-
um embaixador inglês, “metade da popula- te um ditado então corrente, em Lisboa, às
ção esperava pelo Messias e a outra metade duas horas da tarde de um dia de verão, só
por D. Sebastião”, Portugal tampouco tor- se topava nas ruas com os cachorros e com
nara- se uma nação moderna. E, contudo, o os ingleses.
Marcuse e o movimento
de maio de 1968
H
á exatamente 50 anos um abalo por expulsar essa dimensão, petrificando-se
sísmico sacudiu os fundamentos do na imanência absoluta.
mundo civilizado. O epicentro desse Com isso, a sociedade bidimensional
cataclisma, de não sei quantos graus na es- tornou-se unidimensional. O homem não
cala Richter dos terremotos sociais, situava- mais percebe o caráter alienado do seu tra-
-se em algum lugar no meridiano de Paris. balho. Não se dá conta de que a sobrevida
Usando uma linguagem menos metafórica, do sistema impõe a manipulação totalitária
quero me referir aos chamados aconteci- das necessidades, a fim de forçar a absor-
mentos de maio de 1968, período durante ção dos bens supérfluos sem os quais a eco-
o qual estudantes e operários vieram à ruas, nomia não poderia funcionar em condições
primeiro em Paris e depois no mundo intei- de pleno emprego. As necessidades supér-
fluas são criadas e multiplicadas pela mídia,
ro, gritando palavras de ordem contra to-
que bombardeia metodicamente o público
das as formas de autoritarismo, embutidas
com um fluxo contínuo de mensagens pu-
em macroinstituições como as burocracias
blicitárias. O objetivo é internalizar no indi-
estatais, ou em micropoderes disciplinares,
viduo, sob a forma de falsas necessidades,
como os exercidos nas famílias, nas escolas
os comportamentos objetivos indispensá-
ou nas fábricas.
veis à prosperidade e autorreprodução do
Entre os autores que influenciaram os
sistema.
participantes do movimento de maio de Na sociedade moderna, esse processo
1968 um lugar de destaque cabe ao alemão chega a seu clímax. As necessidades não
Herbert Marcuse, colaborador de Adorno são mais sentidas como heterônomas e sim
Institut fiier Sozialforschung, de Frankfurt. como impulsos e desejos radicados no pró-
Para Marcuse, o sistema capitalista, que prio indivíduo. O capitalismo fica blindado,
no início ainda permitia uma dimensão de porque a repressão que o sustenta se torna
transcendência em direção a formas extra- ao mesmo tempo total e invisível. Todos os
capitalistas de organização social, acabou dualismos se dissolvem. A utilidade pessoal
72 • Sergio Paulo Rouanet
em seu trabalho. Ficou mais rara a cena raivosas de seu filho Jacques, de 12 anos;
caricata do jovem professor-assistente car- em cada página, Jacques rabiscara um in-
regando a pasta do catedrático. Tudo isso sulto. Meu amigo perguntou severamente:
é um progresso, mas não um progresso re- “Jacques, qu’est-ce que c’est ça?” O peque-
volucionário, porque as estruturas do poder no vândalo respondeu: “C’est Ia révolution
real permaneceram inalteradas. Note-se, culturelle!”
por exemplo, que a proporção de mulheres Sem saber disso, Jacques estava per-
no corpo docente universitário continua re- sonificando o próprio movimento da re-
presentando apenas cinco por cento do to- volução cultural. Em grande parte, ela foi
tal e que os desníveis salariais entre homens uma revolta pubertária, uma rebelião dos
e mulheres realizando as mesmas tarefas jovens contra os adultos. Com seus 12 anos
são gritantes. de vida, o rapazinho estava na idade certa
Gostaria de terminar narrando um pe- para contestar a sabedoria e o bom gosto
queno episódio pessoal. Um amigo meu, en- dos mais velhos. Mas por que Flaubert?
tão residente na França, tinha encomendado Enquanto autor reverenciado por várias
as obras de Flaubert, na edição da Pléiade, e gerações, Flaubert era o símbolo da tradi-
passou o dia antegozando o momento em ção, aquela mesma tradição que os jovens
que chegaria em casa, depois do trabalho, maoístas estavam desafiando nas ruas de
para examinar suas aquisições. Mas em casa Paris e de Pequim, brandindo O Livro Ver-
encontrou os livros profanados pelas unhas melho do Presidente Mao.
Os inimigos do homem serão as
pessoas de sua própria casa: Crítica
e apologia sociais em Pai contra
mãe, de Machado de Assis
Flávio Ricardo Vassoler
Doutor em Letras pela FFLCH-USP, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA)
Não julgueis que vim trazer a paz à Terra. Vim da natureza humanas. Ora, mas e se a du-
trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer biedade do olhar de cigana oblíqua e dissi-
a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mulada de Capitu – dubiedade com a qual
mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do
só conseguimos entrar em contato por
homem serão as pessoas de sua própria casa.
meio do relato deveras enviesado de Ben-
M ateus , 10, 34-36
tinho, o Dom Casmurro potencialmente
traído por Capitu – pudesse se confundir
Preâmbulo com a própria estrutura narrativa de “Pai
contra mãe”? Nesse caso, apologia e crítica
No princípio era o verbo?
sociais estariam umbilical e incestuosamen-
Não.
te enredadas, o que nos permitiria insinuar
No princípio eram o choro e o ranger de
que o narrador machadiano, para quem o
dentes.
grotesco e o cruel seriam as balizas (o ara-
Como um obstetra que nos dá as boas-
me farpado) de nossa história, seria dialeti-
-vindas a este mundo com um tapa que nos
camente pessimista: no ventre do conto a
faz chorar – bem-vindos ao nosso vale de
arremessar o pai contra a mãe, haveria tam-
lágrimas –, o narrador machadiano de “Pai
bém a possibilidade de revelar (e criticar) a
contra mãe” (1906) rasga o ventre de seu
ordem social que pressupõe o grotesco e o
conto sentenciando que “a ordem social e
humana nem sempre se alcança sem o gro- cruel como sentinelas inequívocas.
tesco, e alguma vez o cruel”1. Analisemos, então, como o joio da apo-
Estaríamos, então, inequivocamente en- logia e o trigo da crítica sociais se fundem e
voltos por um ethos – ou melhor, um pa- se confundem em “Pai contra mãe”. (Ape-
thos – machadiano a referendar a (e a se nas não percamos de vista que a tentativa
resignar diante da) iniquidade da história e de separar o joio do trigo, isto é, o ímpeto
de arregimentar Machado de Assis, inequi-
1 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “Pai contra mãe”.
empobrecer o caráter polissêmico de sua poderia sofrer ao avariar sua mercadoria es-
estrutura narrativa a acompanhar as con- crava. Ora, nós bem poderíamos ler essa ver-
tradições de uma ordem social e humana dadeira chicotada – “dinheiro também dói”4
que, até hoje, ainda não conseguiu prescin- – como uma crítica sumamente epigráfica à
dir do grotesco e do cruel como sentinelas ordem social que administrava seres huma-
de nossa história.) nos como coisas. Mas, como em Machado
de Assis a ordem social é (retro)alimentada
pelo legado de nossa miséria ontológica, o
Em meados do século XIX, na cidade do capitalismo à brasileira também poderia ser
Rio de Janeiro, o narrador cinicamente críti- a luva a calçar a mão da natureza humana.
co – e/ou criticamente cínico – de “Pai con- Como tal ferida histórica não apenas não
tra mãe” nos diz que “os escravos fugiam foi cicatrizada como parece expelir cada vez
com frequência. Eram muitos, e nem todos mais pus – a dubiedade machadiana bem
gostavam da escravidão. Sucedia ocasional- poderia insinuar que as tentativas reformis-
mente apanharem pancada, e nem todos tas e/ou revolucionárias de amenizar nossas
gostavam de apanhar pancada”2. Ora, se os feridas históricas com mertiolate também
escravos fugiam com frequência, muitos re- visaram provocar ainda mais agonia e ardên-
pudiavam os aguilhões da escravidão – mas, cia no corpo social –, a atualidade da crítica
ainda assim, como nem todos gostavam da social apologista de “Pai contra mãe” parece
escravidão e como nem todos gostavam de residir em sua capacidade de escarafunchar
apanhar pancada, podemos deduzir que ha- contradições ainda não superadas – para um
via também, sempre segundo as (contra)in- sem-número de personagens machadianas,
formações do narrador machadiano, aqueles trata-se de contradições insuperáveis.
que rezavam segundo o discurso da servidão Paridos a fórceps o grotesco e o cruel
voluntária. O curioso (e sintomático) é que do conto machadiano que arremessará o
grande parte dos escravos fujões era apenas pai contra a mãe, ficamos sabendo que, em
repreendida, já que poderia haver “alguém meio à sociedade brasileira oitocentista en-
de casa que servia de padrinho [ao escra- cimada por uma exígua cúpula de senhores
vo]”, e talvez o dono não fosse “mau; além e assentada sobre o dorso prostrado da es-
disso, o sentimento de propriedade modera cravidão, “pegar escravos fugidios era um
a ação, porque dinheiro também dói”3. As- ofício do tempo”5. Mas, ora, quem eram
sim, a moderação da ira senhorial – mode- os atores sociais que se aventuravam por
ração que, por vezes, lançava mão do chi- tais veredas esguias e o que os levava a um
cote e do pelourinho como instrumentos de ofício tão incerto? Nosso narrador pronta-
catequese – ocorria não pela mediação da mente nos revela que ninguém se metia em
Declaração dos Direitos do Homem e do Ci- tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a
dadão, cujo conteúdo emancipatório ainda necessidade de uma achega, a inaptidão para
outros trabalhos, o acaso e, alguma vez, o
não chegara ao Brasil escravocrata de então,
gosto de servir também, ainda que por outra
mas pelo prejuízo pecuniário que o senhor
2 Ibidem. 4 Ibidem.
3 Idem, p. 660. 5 Idem, p. 661.
Os i n im i g os d o h om e m s e r ã o a s p e ss oa s d e s ua p r óp r i a c a s a • 77
via, davam o impulso ao homem que se sentia ademais, que, desde a Idade Média, [o nome
bastante rijo para pôr ordem à desordem6. Mônica] tem sido associado ao termo latino
É assim que, para Cândido Neves, des- moneo, que quer dizer conselheiro, e ao ter-
cendente do ethos macunaímico de Leonar- mo grego monos, que significa um, único.
do Pataca, o anti-herói – ou, por outra, o No século IV d.C., esse nome surge a partir
da santa norte-africana Mônica de Hipo, mãe
herói à brasileira – de Memórias de um sar-
de Santo Agostinho, a quem ela converteu ao
gento de milícias (1854), de Manuel Antônio
cristianismo8.
de Almeida, o ofício – ou melhor, o biscate
Como a crueldade machadiana e o gro-
– de captor eventual de escravos era como
tesco da realidade social parecem não ter
a ocasião que faz o ladrão, já que Candinho
fim, a Mônica do nosso conto é a conselhei-
era acometido pela síndrome do caiporismo,
ra singular que traz a divisão entre o pai e a
isto é, o rapaz não parava quieto nos (sub)
mãe – na paródia de Machado de Assis, o
empregos que, vez por outra, ele amealhava
nome da mãe de Agostinho de Hipona, ca-
entre um fiado e outro no boteco, entre um
nonizado pelas Confissões (397-398 d.C.) do
jantar e outro na casa de parentes e amigos.
teólogo católico, invoca o anátema de que o
Assim, como os donos dos escravos fugidos
filho de Cândido e Clara seja conduzido não
prometiam gratificações generosas para
à pia batismal, mas à Roda dos enjeitados.
os captores em seus anúncios nos jornais,
No princípio era o verbo – abortar.
o caiporismo e o dinheiro fácil faziam com
Diante da crescente concorrência com
que Candinho ressignificasse o anátema di-
a legião de caiporas/captores de escravos
vino do Velho Testamento: Ganharás o pão
e costureiras que faz minguar os ganhos
sem o suor do teu rosto.
já exíguos de Candinho e Clara; diante da
Não deixemos de notar que, em meio
ordem de despejo iminente do locatário do
ao darwinismo social à brasileira, a lei dos
casebre; diante da comida cada vez mais ir-
senhores brancos só fazia legar o salve-se
regular e escassa, a tia e apóstata Mônica
quem puder à legião de espoliados pardos,
prega o 11.o Mandamento: Abortarás.
mestiços e negros. Assim, a crueldade ma-
Eis, então, o que o narrador machadiano
chadiana faz com que o (anti-)herói de “Pai
nos revela em um trecho que parece extraído
contra mãe” seja submetido à dupla euge-
do Evangelho segundo Mônica Iscariotes:
nia de se chamar Cândido Neves. E, como A situação era aguda. [Candinho e Clara]
se tal tentativa de arrefecer/embranquecer Não achavam casa nem contavam com pes-
a negritude como destino social não fosse soa que lhes emprestasse alguma; era ir para
suficiente, o grotesco machadiano faz com a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica
que Candinho se apaixone pela costureira teve a arte de alcançar aposento para os três
Clara. Em face do casamento do caipora em casa de uma senhora velha e rica, que
lhe prometeu emprestar os quartos baixos da
com a costureira, Mônica, tia de Clara, não
casa, ao fundo da cocheira, para os lados de
tem muita dificuldade em fazer as vezes de
um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer
pitonisa: “Vocês, se tiverem um filho, mor-
rem de fome”7. Não deixemos de notar, 8 Behind the Name: The Etymology and History of First
Names [Por detrás dos nomes: a etimologia e a histó-
6 Ibidem. ria dos nomes]. Mônica: https://www.behindthename.
7 Idem, p. 662. com/name/mo13nica. Consulta feita no dia 22/4/17.
78 • Flávio Ricardo Vassoler
nada aos dois, para que Cândido Neves, no antes de chegarmos à vitória de Pirro – ao
desespero da crise, começasse por enjeitar o vencedor, as batatas – do filho do captor de
filho e acabasse alcançando algum meio se- escravos Candinho sobre o filho da escrava
guro e regular de obter dinheiro; emendar a
Arminda; antes de chegarmos, a bem dizer,
vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem
a um dos desenlaces mais cruéis da obra
as repetir, é certo, mas sem as consolar. No
dia em que fossem obrigados a deixar a casa, de Machado de Assis, voltemos ao calvário
fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e dos pais Cândido Neves e Clara, já que o
iriam dormir melhor do que cuidassem9. filho do casal acaba de nascer. “Notai que
era um menino, e que ambos os pais dese-
Para abrigar Candinho e Clara, tia Môni- javam justamente este sexo”11. Escarra na
ca Iscariotes espera que o casal seja despeja- boca que te beija: o narrador machadiano
do; para que Candinho abandone de vez o faz com que tal afeição tenha a dupla (e
caiporismo, tia Mônica Iscariotes espera que dúbia) função de enternecer o coração dos
o pai enjeite o filho; ainda que tenha uma pais ao mesmo tempo em que torna ainda
carta na manga para impedir que Candinho mais árdua a via crucis do filho rumo à Roda
e Clara durmam ao relento, tia Mônica Is- dos enjeitados. Mas, ora, diante da penúria,
cariotes ouve as queixas de Clara, mas não que fazer? Para que consigamos oferecer a
consola a sobrinha. Se, para a tia Mônica dos outra face, é preciso que todos e cada um
Anjos, a mão que afaga é a mesma que ape- de nós tenhamos um rosto – o espectro da
dreja; se, para a tia Mônica Citotec, é preciso tia Mônica Iscariotes só faz sentenciar que
jogar o bebê fora junto com a água do ba- o velho dito de que onde comem dois tam-
nho para salvaguardar a banheira; se, para a bém comem três não compra a fiado nem
tia Mônica Maquiavel, os fins legitimam os na mercearia do irmão do padre. Então,
meios, bem podemos entrever por que, no diante da penúria, que fazer?
Evangelho segundo Mônica Iscariotes, Judas Fazer, executar. 11.o Mandamento: Abor-
trai Jesus Cristo com um beijo. tarás.
Ocorre que, mesmo com todo o caipo- Assim, Clara e Candinho mal puderam
rismo de Candinho, o rapaz parece ter ver- dar algum leite ao bebê – chegara a hora
dadeira afeição por Clara e, antes mesmo de enjeitá-lo de vez. Mas, “como chovesse
do nascimento do bebê, Candinho já parece à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na
amá-lo enternecidamente. Neste momento, noite seguinte”12.
os leitores escolados de Machado de Assis Repleto de comiseração pelo filho, Can-
já tentam encontrar alguma fissura no amor dinho aproveita a noite derradeira para ler
paterno de Candinho por conta da utilização e reler, um a um, os últimos anúncios que
do verbo parecer. Na verdade, logo veremos prometiam recompensas para captores de
que o amor de pai – amor que não deixa de escravos fugidos. A maioria lhe pareceu fo-
ter seus laivos narcísicos – se afirmará, gro- go-fátuo – meras promessas ou gratificações
tescamente, contra o amor de mãe, já que escassas. Uma recompensa por uma mulata,
“nem todas as crianças vingam”10. Mas, no entanto, subia à polpuda soma de cem
9 MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”, p. 663. 11 Idem, p. 664.
10 Idem, p. 667. 12 Ibidem.
Os i n im i g os d o h om e m s e r ã o a s p e ss oa s d e s ua p r óp r i a c a s a • 79
mil-réis. Na manhã seguinte, Candinho se ‘mente dourada’, a partir dos elementos ar,
embrenhou pelo centro do Rio de Janeiro à que quer dizer ‘ouro, dourado’, e mend, que
caça de pistas da escrava fugida, mas nada quer dizer ‘mente’”16. Como a escrava Ar-
logrou descobrir. Quando do triste retorno minda não pertence a si mesma, sua mente
ao casebre em que morava de favor após o a remete primeiramente ao arbítrio de seu
despejo, Candinho encontra tia Mônica com senhor; depois, durante os momentos con-
o bebê já pronto para ser levado à Roda dos tingentes de fuga e liberdade condicional,
enjeitados. Diante da miséria patente e da a mente de Arminda é alienada em função
resignação cabisbaixa de Clara, o pai decide da legião de captores de escravos, dentre os
abortar o filho. quais desponta nosso caipora Candinho. E
Reparemos que a Roda dos enjeitados Arminda, é claro, vale ouro – mais precisa-
ficava “na direção da rua dos Barbonos”13, mente, cem mil-réis, quantia polpuda que,
cujo nome alude aos “membros da Ordem ao menos por ora, revogaria o aborto do fi-
dos Frades Menores Capuchinhos, [uma] or- lho pelo pai. Assim, no Largo da Ajuda, o
dem religiosa franciscana e reformada”14. darwinismo social daquele Brasil grotesco e
Como uma faca só lâmina – a mesma faca cruel sentencia que a sobrevida do filho de
que degolará o filho de Candinho –, a cruel- Candinho pressupõe os aguilhões contra os
dade machadiana e o grotesco da ordem so- pulsos e tornozelos de Arminda – isso para
cial e humana só fazem abortar a bondade e não mencionarmos a suma tortura com a
a compaixão que remontam a São Francisco “máscara de folha-de-flandres, (...) [que] ti-
de Assis. nha só três buracos, dois para ver, um para
Candinho fizera com que Clara amamen- respirar, e era fechada atrás da cabeça por
tasse o filho uma última vez antes de enjeitá- um cadeado”17.
-lo; o pai queria levar o filho de volta para Se terminasse com a captura de Armin-
casa enquanto percorria a via crucis rumo da e a sobrevida (momentânea) do filho do
à Roda dos enjeitados; o pai agasalhava o caipora Candinho, o conto já seria grotesco.
filho e lhe cobria o rosto para preservá-lo Ocorre que tanto o niilismo quanto a crítica
do sereno. Súbito, “na direção do Largo da e a apologia sociais de Machado de Assis de-
Ajuda, [Candinho] viu do lado oposto um legam à crueldade o papel de revelar por que
vulto de mulher; era a mulata fugida”15. o conto se intitula “Pai contra mãe”. Assim,
Tomado por enorme comoção, o pai pede a enquanto se contorcia para tentar escapar
um farmacêutico que cuide do filho por um das mãos robustas de Candinho, Arminda lhe
instante e dispara rumo à captura da escrava implorou “que a soltasse pelo amor de Deus.
Arminda, cuja condição reificada desponta ‘Estou grávida, meu senhor!’, exclamou. ‘Se
desde o próprio nome, já que, “possivel- Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por
mente, Arminda é a forma feminina de Ar- amor dele que me solte; eu serei tua escrava,
mend, nome masculino albanês que significa vou servi-lo pelo tempo que quiser’”18. Pobre
13 Idem, p. 665. 16 Behind the Name: Arminda: https://www.behindthe-
14 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Aurélio: o dicioná- name.com/name/armend/submitted. Consulta feita no
rio da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo, 2004, dia 23/04/17.
p. 167. 17 MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”, p. 659.
15 MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”, p. 665. 18 Idem, p. 666.
80 • Flávio Ricardo Vassoler
Arminda: é por amor de seu próprio filho que Mas, ora, que importava a Candinho
Candinho não pode soltá-la; é por amor de o filho morto da escrava se seu filho pôde
seu próprio filho que Candinho não pode voltar para casa? Que importavam a Can-
permitir que Arminda tenha o ventre livre. dinho as palavras duras da tia Mônica con-
No Brasil oitocentista, ser senhor de escravos tra a fuga da escrava e contra o aborto de
é condição para muito poucos. Se Candinho Arminda? (Segundo a liturgia do poder, a
mal consegue alimentar Clara e seu filho, vítima, por ser vítima, já é culpada; afinal,
como é que o caipora arcaria com os custos não é o pássaro que busca a proteção da
de manutenção de Arminda? Assim, com a gaiola?) Beijando o filho (e as duas notas
frieza aguçada pelo darwinismo social da de cinquenta mil-réis) entre lágrimas ver-
guerra de todos contra todos, Candinho grita dadeiras, Cândido Neves abençoa a fuga
para Arminda: “Você é que tem culpa. Quem de Arminda – a bem dizer, Cândido Neves
lhe manda fazer filhos e fugir depois?”19 abençoa a escravidão que também o agui-
Quem lhe manda fazer filhos e abortar lhoa. Afinal, sentencia o pai embalando o
depois, Candinho? filho sobrevivente, “nem todas as crianças
A obra de Machado de Assis bem po- vingam”22.
deria responder: a ordem humana, como Por ora, Candinho venceu. Por ora, seu
legado de nossa miséria, e a ordem social, filho sobreviveu. Mas, além de os cem mil-
reproduzindo a miséria como nosso legado. -réis não serem eternos, o caiporismo pau-
Duas faces da mesma moeda que compra e pérrimo de Candinho e Clara precisa rezar,
vende legiões de Armindas. de fato, pelo pão nosso de cada dia. O nar-
Quando, após muito choro e ranger rador de “Pai contra mãe” bem poderia sus-
de dentes, Candinho chega com a escrava surrar para Candinho: amanhã, meu caro,
à casa de seu dono, uma cena ainda mais há de ser outro dia, já que pau que bate no
dantesca é parida: filho de Arminda também bate no filho de
Arrastada, desesperada [e] arquejando,
Clara. Afinal, em meio à obra dialeticamente
(...) Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o
senhor da escrava abriu a carteira e tirou os
pessimista de Machado de Assis, nem todas
cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves as crianças vingam.
guardou as duas notas de cinquenta mil-réis,
enquanto o senhor novamente dizia à escrava Referências bibliográficas
que entrasse. No chão, onde jazia, levada do ASSIS, Joaquim Maria Machado de. “Pai contra mãe”. In:
COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Ja-
medo e da dor, e após algum tempo de luta, a neiro: Nova Aguilar, 1997, v. 2, pp. 659-667.
escrava abortou20. BEHIND the Name: The Etymology and History of First
Names. [Por detrás dos nomes: a etimologia e a his-
tória dos nomes]. Disponível em: https://www.behin-
Cúmplice como Candinho – e como os dthename.com/. Consulta feita no dia 23/04/17.
leitores/espectadores –, o narrador macha- Bíblia sagrada. Tradução dos originais mediante a versão
dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíbli-
diano sentencia que, “entre os gemidos co Católico. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1994.
da mãe e os gestos de desespero do dono, FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio: o dicio-
nário da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo,
Cândido Neves viu todo esse espetáculo”21. 2004.
19 Ibidem.
20 Idem, p. 667.
21 Ibidem. 22 Ibidem.
Algumas anotações sobre a vanguarda
na República Dominicana: La poesía
sorprendida, Eugenio Granell e Freddy
Gatón Arce
Floriano Martins
Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura
dominicano: Mariano Lebrón Saviñón (1922- Mais do que isto, Trata-se aqui do pri-
2014), Freddy Gatón Arce (1920-1994) e meiro registro em terras americanas de ex-
Franklin Mieses Burgos (1907-1976). Todos periência com escritura automática, além
eles, poetas, exceto por Eugenio Granell, do fato dela envolver uma performance de
que, além da poesia, se destacava como criação coletiva. Tais publicações vitalizam
músico e artista plástico. cada vez mais as afinidades de La Poesía Sor-
Assim estava formado o quinteto de La prendida com o Surrealismo, embora sem
Poesía Sorprendida, e a revista, já em sua tratar-se de adesão formal ao movimento.
estreia, publicava poemas de Paul Éluard, A exemplo do que, na década seguinte, fa-
William Blake, ao lado de poetas domini- riam revistas americanas, tais como a argen-
canos. Também era forte característica sua tina Poesía Buenos Aires, a nicaraguense El
que ao final de cada número viessem algu- Pez y la Serpiente e a mexicana El Cuerno
mas notas que davam ciência de afinidades Emplumado, dentre inúmeras outras, au-
e plena atenção com o que se passava ao tores de distintas tendências conviviam em
redor. Logo na primeira nota deste número um estado vital de aceitação das diferenças.
inaugural encontramos uma confirmação Aos nomes já referidos viriam se juntar os
de caráter da aventura editorial: de André Gide, Paul Claudel, James Joyce,
Somos contra toda limitação do homem, da Paul Valéry, Stephen Spender e Ronald de
vida e da poesia; contra toda falsa insularidade Carvalho, único brasileiro publicado na re-
que não nasça de uma nacionalidade universa- vista.1 Também era evidente a cumplicidade
lizada na eterna profundidade de todas as cul- do quinteto de La Poesía Sorprendida com
turas; contra a permanente traição da poesia e,
os editores de revistas que lhe eram con-
pela curta visão, seus permanentes traidores.
temporâneas, a exemplo da cubana Oríge-
O rol de inquietas afinidades prossegue nes e da chilena Mandrágora.
sendo fiado a cada número, e na edição se- Na edição # 6, de março de 1944, os
guinte podemos ler poemas de Pierre Rever- editores de La Poesía Sorprendida manifes-
dy, Robert Desnos, André Breton e Apolli- tam sua adesão ao movimento surrealista
naire, dentre outros. Este segundo número, chileno. Já em números anteriores vinham
datado de novembro de 1943, destaca um sendo publicados alguns poemas de Jorge
fato da maior importância para a cultura Cáceres (1923-1949), um dos integrantes
dominicana e, em particular, para a confi- do grupo Mandrágora, a vanguarda surre-
guração singular do Surrealismo em terras alista chilena. Agora a revista dominicana
americanas. Diz a nota: destacava a ação do grupo, mencionando
As edições de La Poesía Sorprendida pu-
blicaram Los triálogos – Livro primeiro – e Infi- 1 Uma nota editorial sublinha que Ronald de Carvalho é
nitestética – Livro terceiro – [...] Ambos os ca- “um dos mais fundos acentos da poesia brasileira con-
dernos, que recolhem temas universais, levam temporânea”, e prossegue: “Voz profunda do Brasil
constante. Seu mundo amplo, multiforme, sinfônico,
a epígrafe: “Poesia a três vozes, de Domingo de ‘toda América’, foi por nós escolhido para desta-
Moreno Jiménes, Alberto Baeza Flores e Ma- cá-lo, na versão publicada, como a veia comovida do
riano Lebrón Saviñón”. Obra nova, em fundo Brasil.” Como curiosidade final, acrescente-se que o
poema foi traduzido para o espanhol a partir de uma já
e forma. Nova por sua intenção essencial eter- existente tradução do mesmo para o francês, publicado
na de antes e agora. em 1934 na revista alemã Ulenspiegel.
A lgum as a n ota ç õ es s o b r e a va n g ua r da n a R e p ú b l ic a D o m i n ic a n a • 83
o “exemplar trabalho dos jovens poetas e poética e existencial. Antes, o que eu co-
pintores surrealistas chilenos, que de ma- nhecia, era fruto bem pequeno de minha
neira tão exemplar e nobre se preocupam correspondência com um crítico romeno
de ampliar o mundo com a criação e a re- que em muito distorceu a realidade do
velação de uma obra e uma conduta”. Tal surrealismo em nosso continente. Para co-
adesão foi bastante ampliada, no número nhecer os milagres da criação nada melhor
seguinte, com a publicação de poemas de do que o convívio com ela mesma. Deste
todos os poetas da Mandrágora, além da modo, Gómez Rosa me pôs em contato di-
redação de uma nota final, ampla, desta- reto com a magia do que se realizou neste
cando o relevante papel desempenhado país em nome de um surrealismo que vai
pela nova vanguarda chilena. muito além do que antes sequer se havia
La Poesía Sorprendida, a exemplo dos imaginado.
cadernos individuais que costumavam edi- Foi justamente Eugenio Granell (1912-
tar, em formato A4, trazia na primeira fo- 2001) quem primeiro chama a atenção para
lha, logo abaixo do título e da ficha técnica, o erro de tratar o surrealismo como sobrer-
as vinhetas tão características de Eugenio realismo. Para ele há que destacar o fato de
Granell. Era uma revista essencialmente de que aquilo que se busca, através do surrea-
criação poética, seja em verso ou em prosa, lismo, é um tipo de realismo total, em que a
o que não impedia a publicação, em alguns criação se realiza em uma dimensão muito
de seus números, de textos críticos, tais ampla que cobre a realidade em todos os
como “Notas sobre a aventura do Surrea- seus ângulos, em todas as suas perspecti-
lismo” (LPS # 12, setembro) e “Poetas, po- vas. É muito interessante porque a ideia
esia” (LPS # 13, outubro), ambos em 1944, de um sobrerrealismo é demasiado ínfima
respectivamente assinados pelo equatoria- e reflete certa leitura formal, limitada ao
no Jorge Carrera Andrade e o cubano Eli- sentido imediato de relação com a criação,
seo Diego. Logo após completar o primeiro a leitura de um poema, o olhar sobre uma
ano de intensa atividade, a revista declara pintura etc. O surrealismo busca a dimen-
a consciência plena de seus feitos, em um são integral dos sentidos, sua festa essen-
dos balanços mais corajosos e reveladores cial alquímica. E isto o havia compreendido
da cultura dominicana. muito bem Eugenio Granell. Assim como
já o havia defendido Juan-Eduardo Cirlot,
a própria palavra “surrealismo” é “uma in-
Poucos minutos com
tensificação do sentimento da realidade”,
Eugenio Granell de modo que o surrealismo é uma revelação
Lembro o dia em que o poeta domini- do homem que levamos dentro de nós. Pela
cano Alexis Gómez Rosa, em um encontro primeira vez a arte compreende que sua
nosso em San Salvador, me presenteou com realização é uma combinação de forças que
a edição fac-similada e raríssima da cole- amplia em nosso íntimo a vontade de ser,
ção completa de La Poesía Sorprendida. de conhecer, de distinguir-se em meio ao
Justamente ali começou a minha viagem universo. O complexo conceito da realida-
pelas veias cósmicas desta imensa aventura de requer um exercício perene de liberdade,
84 • Floriano Martins
um estado transbordante de transição. Re- período de sua vida em Santo Domingo re-
cordo com o mesmo Cirlot que “a concep- sulta parte considerável de sua obra plás-
ção do universo recolhe, portanto, todos tica, quase igual ao de sua residência em
os dados que podem ser isolados em di- Nova York, de permanência ainda mais
versas disciplinas do conhecimento, porém extensa.
em particular a relação viva através da qual A seu respeito, eu recordo umas exatas
o homem se confessa incluído na ordem palavras de Benjamin Péret, ao dizer de sua
do mundo”. pintura que está repleta de formas híbridas,
A realização de uma bem cuidada ex- entre tantos personagens que parecem sair
posição individual, em 1989, poucos me- de um mundo ainda por ser habitado. Disse
ses após a morte de Salvador Dalí, faz com Péret: “Esses espécimes de uma fauna fu-
que a crítica perceba que Granell era então tura – galo-relógio de sol, galinha-máquina
o mais importante surrealista vivo na Espa- de costura – nos fazem evocar os seres
nha. Porém Granell viveu em muitos países fabulosos que os primeiros viajantes reco-
e, em especial, se relacionou com o movi- nheceram na América”. Em sua plástica nos
mento de vanguarda na República Domini- deixamos mesclar por uma profundidade de
cana, de modo que, mais do que espanhol, mitos, uma possessão de fábulas, um caste-
eu o tenho como um desses artistas que lo de máscaras que são deuses que são nos-
estão bem além dos limites geográficos que sas figuras mais íntimas. Em um percurso
costumam definir a vida de alguém. milenar pelas veias mais secretas do Caribe,
Em Granell, o parentesco com a pintu- a selva dançante com suas coxas esculpidas
ra de André Masson e Wifredo Lam, entre pelo suor do entusiasmo, as vozes vibrantes
outros, não cria senão a dimensão familiar e prolixas que descobrem o rosto verdadeiro
mágica que propicia sua força estética. Há das excursões do mistério.
no espanhol uma sintaxe muito singular Granell presenteou a pintura e o surrea-
que faz com que sua criação seja o cenário lismo com essa relação direta com a másca-
de uma revelação do espírito. Em suas pin- ra, o cenário amoroso no qual buscamos o
turas, igual que em seus poemas, o corpo homem no mais íntimo de cada um de nós,
todo é uma máscara, no sentido da afirma- através de formas que são móveis, dinâmi-
ção de um teatro pleno de revelações. cas, musicais. Seu mundo plástico é uma
Sua biografia compreende dois mo- partitura de jazz, é toda uma jam session
mentos bem especiais, o encontro com dos vertigens de nossa aventura existencial.
André Breton e o grupo de La Poesía Sor- Porém também criou no ambiente da
prendida. As duas coisas são frutos de sua amizade, com seu entusiasmo e generosi-
residência na República Dominicana. Com dade. Em suas viagens fez muitos amigos
o primeiro, juntamente com Marcel Du- que testemunham o valor magistral de seu
champ, organizou, em 1947, uma das ex- espírito. Entre esses encontros mágicos,
posições internacionais do Surrealismo, em destaco os momentos passados com o casal
Paris. O segundo caso compreende um dos Susana Wald e Ludwig Zeller, seja na Espa-
mais afortunados momentos do surrealis- nha, Portugal, Estados Unidos ou Canadá.
mo em nosso continente. Deste extenso Neste último país, seus amigos chegaram a
A lgum as a n ota ç õ es s o b r e a va n g ua r da n a R e p ú b l ic a D o m i n ic a n a • 85
pela coleção de La Poesía Sorprendida, en- Arce, sempre um leitor faminto, devorador
contramos que de maravilhas, buscador de inesgotáveis ex-
Vlía é uma confissão ao mesmo tempo periências.
diabólica e crente; angustiada e com um ful- O que um dia ele procurou através da es-
gor interior, uma sinceridade desnuda, densa,
critura automática certamente o encontrou,
obscura, de secreto humor em busca de uma
de modo que não necessita seguir criando
libertação maior. A ética e a poesia se aliam e
digladiam com o acento da dor que se mes-
de acordo com uma receita. Alcançou uma
cla ao desespero. Raro livro amoroso distinto, fluidez carismática que encontramos em
salvadoramente difícil e minoritário, de lenta Son guerras y amores (1980), sobretudo
entrega. no capítulo IV (“Suelo y quebranto de las
cañas”), assim como no capítulo “Desde
Comecemos por recordar a imagem de
antes de las palabras” do livro El poniente
André Breton ao dizer que Lautréamont
(1982). A voragem da linguagem leva em
foi um “transeunte sublime, o grande ser-
suas águas a excelência de transmutações
ralheiro da vida moderna”. Igualmente
como lemos nas páginas destes dois livros,
podemos dizer da linguagem neste livro
assim como nos fragmentos de De paso
tão ousado de Freddy Gatón Arce. A lin-
(1984), até o retorno de Vlía em Mirando el
guagem assume o protagonismo de uma
lagarto verde (1985). Escutemos:
viagem pelas possibilidades amorosas e a Tudo começou com o voo.
exaltação dos sentidos. Por isto a definição Os móveis foram se esboçando
do livro é uma tarefa ociosa, que a nin- Com suas novas solidões,
guém deve importar. Que explicação bus- Enquanto os passos e as vozes da casa
car nos textos bíblicos ou nas evocações Pareciam de outros pés e de outras bocas.
de Maldoror? Não se passa o mesmo com O avião, com a primavera a bordo
E, no entanto, em qualquer direção
Vlía e seu humor refinado e transbordan-
O infinito...
te? Com esse castelo de fogo e os metais
que saltam das chamas como personagens Como dizer que o surrealismo passou
que tratam de nos orientar por novos ca- pela vida de Freddy Gatón Arce uma única
minhos? Não são poemas de viagem, mas vez, ali no passado remoto dos anos 1940?
sim a viagem em si mesma. Como dizer que foi um acidente na cultura
Que Vlía seja um raro exemplar de es- dominicana? É verdade que não houve uma
critura automática no Caribe é outra coisa formalização ortodoxa, porém talvez seja
que requer um novo exame. Certamente justamente isto o que mais importa à saúde
há que se destacar a passagem de André do surrealismo. Já em 1952 dizia André Bre-
Breton por Santo Domingo, assim como a ton que “não deixam de ser produzidas hoje
residência ali de Alberto Baeza Flores e Eu- obras que, sem ser exatamente surrealistas,
genio Granell. Como reflexo natural che- o são mais ou menos profundamente por
gam as vozes plasmáticas do surrealismo e seu espírito”. Certamente que não se trata
a magia entranhável de movimentos poé- da cegueira manifesta no conceito de um
ticos desde Cuba e Chile, sobretudo. Sem parassurrealismo. Com o tempo a criação foi
esquecer a própria natural de Freddy Gatón descobrindo vários matizes para se realizar,
88 • Floriano Martins
como as mil formas vítreas que podemos lírica. Além do mais, na força anímica que
obter soprando a mesma areia. E as vozes caracteriza o poeta, podemos recordar, com
que representam o teatro surrealista não se o argentino Aldo Pellegrini, que o mais atra-
limitam aos ditames de suas técnicas. tivo do surrealismo “foi a crença de que a
Na poesia de Freddy Gatón Arce en- arte não tem uma função em si, mas sim
contramos a presença quase constante do que é um modo de expressão do vital no
humor em seu acento mais agudo, por ve- homem”.
zes disfarçado em afirmações vertiginosas e Deste modo, Vlía é a primeira página de
insólitas. Em contraste com o registro me- um ambicioso projeto de exploração poéti-
nos frequente do automatismo, ali estamos ca da própria vida e suas inesgotáveis pers-
sempre de mãos dadas com a exaltação pectivas.
Plurilinguismo, tradução e errância
nos poemas de Moacir Amâncio
Márcio Seligmann-Silva
Doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e professor titular de Teoria Literária na
UNICAMP. É vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006.
“o que sopra dos abismos do esquecimento é ele afirma que “a obra de Kafka representa
uma tempestade.” um adoecimento da tradição”. (1993: 303)
W alter B enjamin , 1934 (2012:176) Kafka enfatizaria a transmissibilidade, mas
o conteúdo mesmo, a lei, a tradição, estaria
como que esquecida na sua obra.
C
omo dar forma ao esquecido? É fá- Iniciei este trabalho com essa referên-
cil associarmos, e isso tem sido fei- cia à leitura benjaminiana de Kafka por-
to desde a Antiguidade, a poesia à que tratarei aqui de um escritor paulista,
arte da memória. Mas desde a Modernida- Moacir Amâncio, nascido em 1949, mais
de impõe-se outra questão: É possível fazer especificamente de seus poemas, onde
poesia e literatura a partir do esquecimen- percebemos também essa construção po-
to? Walter Benjamin dizia que o esquecido ética em torno do esquecimento. Trata-se
é um dos protagonistas da obra de Kafka, de uma obra que ronda um vazio pleno de
essa verdadeira pérola da literatura moder- sentido, que imanta o presente e as pala-
na. Segundo o filósofo, num pensamen- vras, transformando-as em um recipiente
to, de resto, bem ao gosto de Freud, não que permite vislumbrar esse mesmo vazio.
é porque algo é esquecido que ele não se Não por acaso, portanto, o último livro
manifestaria no presente, pelo contrário: “é de Amâncio, sobre o qual me debruçarei
esse esquecimento que o torna presente”. aqui, se chama Matula (2016). Segundo o
(2012: 168) Mesmo porque trata-se em Ka- dicionário Houaiss, matula significa tanto
fka de um esquecimento coletivo: “o esque- “ajuntamento de gente ordinária; corja,
cimento [...] não é nunca um esquecimento súcia, matulagem”, significados que logo
meramente individual”, enfatiza Benjamin. nos interessarão, como também “alforje,
(2012: 169) Isso ele escreveu em um artigo farnel” e, ainda, “vaso, gamela”, tendo
de 1934 por ocasião dos dez anos da morte também sinonímia com penico. Seria um
do escritor de Praga. Já em 1938, em uma termo derivado de “matalotagem (no sen-
longa carta a seu amigo Gershom Scholem, tido de ‘provisão’)”. Esse sentido de “‘vaso
90 • Márcio Seligmann-Silva
sua Eretz Israel reconstruindo uma descen- arca-arquivo: que salva escombros que são
dência em parte imaginária, marcada ao citados, comentados ou parafraseados. É
mesmo tempo pela piedade, pelas fugas e como se o mundo se desfizesse em letras. E
perseguições, mas também pela criativida- o próprio Luís Nunes Tinoco, na apresenta-
de e capacidade inventiva de se disfarçar. ção do referido texto, deixava claro a visão
Isso tudo curtido em altas doses de esque- de mundo mística judaica que se conserva
cimento e recordação. Trata-se de lembrar no poeta paulista. Tinoco lavrou:
do esquecido, mas de um esquecido essen- He o mundo todo hum grande livro de que
cial, que tem seu valor derivado do fato de emana a Sciencia da Orthographia: cujos Tra-
nunca poder existir integralmente. Tornou- tados são as Idades, os Capítulos, os Séulos,
as folhas os annos, os paragrafos os mezes,
-se, portanto, matéria fértil para a poesia
as Regras os Dias e as Letras as Horas. [...] Foy
e é disso que Amâncio sabe se aproveitar
Adam a primeira Letra do Alfabeto Racional
muito bem. Ele coleta os vestígios dessa que Deus tirou e criou do Nada, que hé Ana-
tradição do naufrágio. gramma de Adam na língua espanhola (...)
Matula tem em sua capa uma bela Fênix- Com Estrellas de brilhante ouro escreveu Deus
-tatuagem que faz as vezes de uma guar- as Letras redondas sobre o azul dos Celestes
diã protetora. Ela protege essa obra, que é Orbes: com flores de varias cores formou Al-
na verdade essa ambígua arca da memória fabetos de diferentes matizes na Terra: com
do esquecimento. Amâncio recolheu nela aves de diversas formas delineou vistozas pe-
nadas no Ar. Nesta cristalina lamina desse hu-
os fragmentos da judeidade portuguesa-
mido Elemento abriu o subtil buril da Divina
-espanhola e de seus desdobramentos em
Providencia Letras de prata que posto sejam
Amsterdã, no Recife e pelo mundo afora. A só Mutas, e Líquidas não deixam de se soletrar
Fênix é o pássaro que se renova e renasce a nellas innumeraveis maravilhas da Natureza,
cada ciclo, como os judeus em sua dispersão. que se lêm como Agua. (...) Finalmente nesta
Esse pássaro também estava estampado na Machína do Orbe todas as criaturas são A B C
capa da talvez primeira obra de autor mar- de Deos, como diz Santo Ambrosio, por onde
rano publicada em solo brasileiro, ainda no cada natureza he huma letra cada vínculo
huma sylaba e cada geração muytas dicções:
século XVI, a Prosopopeia de Bento Teixeira
não havendo criatura alguma por pequena
Pinto (1561-1600), conforme indica o pró-
que seja que não sirva de folhano volume do
prio Amâncio em palestra proferida em tor- Mundo.” (Apud Harthely 1999)
no do marranismo e de seu Matula. Ele nota
também que esse mesmo pássaro imortal é É digno de nota que esse tipo de visão
o símbolo da comunidade Nevê Shalom dos escritural do mundo, como também o de-
judeus portugueses de Amsterdã. monstrou Benjamin em seu livro sobre o
O livro-(i)memorial se abre paradoxal- Trauerspiel, é típico do Barroco e de sua
mente com um anexo de Luís Nunes Tinoco alegorese. Um mundo esvaziado de trans-
(1642-1719), um poeta, pintor e calígrafo cendência é resignificado ludicamente pelo
português, autor de “A Feniz (sic) de Por- poeta barroco com seus constructos enig-
tugal Prodigiosa”, com anagramas que ofe- máticos, como no caso dos emblemas.
receu à rainha Maria Sofia Isabel. Tudo no Neles coexistem palavras e imagens que
livro de Amâncio lembra essa metáfora da se tensionam e alimentam mutuamente,
92 • Márcio Seligmann-Silva
produzindo interpretações as mais variadas, silva zacuto câmara zarco ferreira melo e cas-
que projetam um mundo místico onde mui- tro rosa peixoto mesquita pinto mendes preto
tas vezes tem-se na verdade um vazio. Sem magriço corte real campos cardozo frances mo-
reno rodrigues maia bentes rozales rodrigues
dúvidas também Amâncio é tributário desse
mendes rosa pereira carranca sequerra mon-
jogo barroco, como vemos, por exemplo em
santo chaves belmonte etc.
seus inúmeros poemas-nomes. Neles a ten-
dência barroca para aquilo que Benjamin Nesses nomes sobrevivem os filhos e
chamou de “armazenamento” (Magazinie- descendentes dos forçados à conversão e es-
rung) é levada a sua última consequência: quecimento, como que em uma desforra da
O ideal de saber do barroco, o armazena- história de violências. Se o mundo se disper-
mento [Magazinierung], cujo monumento se sa em palavras, como um livro aberto cujas
cristalizou nas bibliotecas gigantes, é realizado
folhas se espalharam, as letras que com-
pela imagem escrita [Schriftbild]. Quase como
põem os nomes lhe dão um lastro. O nome é
na China, é como se uma tal imagem fosse
não signo do que deve ser sabido, mas, antes, o intraduzível por excelência. É o nervo duro
um objeto em si mesmo digno de ser conheci- da linguagem. Segundo a cabala, criada e
do. (Benjamin 1980: 359 s.) seguida por muitos dos autores recordados
por Amâncio, a língua originária foi a língua
E Amâncio compõe seu universo grama-
de Adão, uma língua de nomes que ele deu
tológico-onomástico listando nomes em um
a cada ser, lendo a criptoescita que Deus dei-
verdadeiro arquivo da sobrevivência onde o
xara em suas criaturas. Nomes são fragmen-
Eu (poético mas não só este) se reinventa:
tos robustos do passado. Nomes tornam-se
tu não és
quem pensas
que és as palavras-chave do poema do mundo da
(pergunta pelo primo dirigida a E.M.M.C.) dispersão: são nossas casas, arruinadas, mas
p.s. nas quais encontramos abrigo. Construídas
etc. os câmara zarco ferreira melo rosa com a consciência de que o passado nunca
peixoto mesquita pinto mendes preto magriço pode ser restaurado. Como poeta Amâncio:
corte real bezerra cardozo frances moreno ro- “ninguém pode ir pra casa de novo/ só como
drigues soares bentes rozales rodrigues men-
estrangeiro/ todos nós”.
des roiz pereira carranca sequerra silva zacuto
Amâncio é o catador das palavras e ima-
câmara zarco ferreira melo rosa ferreira peixoto
mesquita pinto mendes preto magriço corte gens que ele reorganiza nesse livro-monta-
real bezerra cardozo frances moreno rodrigues gem, um verdadeiro painel da judeidade e
soares bentes rozales rodrigues mendes roiz da criptojudeidade marrana. Tudo se mistu-
souza pereira carranca brito sequerra silva za- ra aqui, inclusive o mais privado e o mais
cuto câmara zarco ferreira melo rosa peixoto histórico: “marrano de pai mãe e avós eu o
mesquita pinto mendes preto magriço corte sou”, lemos em um verso. E mais: “foi esta
real campos cardozo frances moreno rodrigues
a equação/ tetratetravós judeus/ tetravós
soares bentes rozales rodrigues mendes roiz
marranos/ bisneto ateu”. A história é apre-
pereira carranca sequerra silva zacuto câmara
zarco ferreira melo rosa peixoto pinto men-
sentada como um quiasmo: é um processo
des preto souza brito magriço barbosa roiz sá de afastamento da tradição, mas também,
campos cardozo frances moreno soares bentes o presente é visto como um local de encon-
rozales mendes roiz pereira carranca sequerra tro com os escombros do passado. Tudo
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o • 93
“casa”, e ato reverencial. Na tradição dos que publicou a Gazeta de Amsterdã, o jornal
livros de memória judaicos, faz-se um jazigo da comunidade judaica. Ele era filho de um
de palavras para os que sofreram persegui- cristão novo fugido de Bragança. Abraham
ções. Como o autor escreve em versos: “a Miguel Cardozo (1626-1706) era descen-
costureira de mortalhas/ descobre no passa- dente de marranos, foi médico, cabalista e
do claro – a tecer no passado claro/ o obs- um profeta na linha de Sabbatai Zevi. Esse
curecimento do presente.” Assim, também, poema e o livro estão mesmo cheios de pro-
um pequeno poema homenageia Antonio sopopeias (o mencionado título do livro de
Enríquez Gómez, dramaturgo e poeta espa- Bento Teixeira Pinto), de jogos de máscaras,
nhol, nascido em 1601 em Cuenca e faleci- de inseminação de vida em seres mortos.
do em 1663. Criptojudeu sefardita, teve o De resto, o próprio Sabbatai Zevi aparece na
avô marrano queimado pela Inquisição. pena de Amâncio como uma figura quase
paradigmática das metamorfoses identitá-
de la estrella de Venus tan ajeno rias e mnemônicas que esse livro testemu-
Antonio Enríquez Gómez nha. Afinal, esse judeu otomano, fundador
na ibéria as chamas
de uma poderosa seita mística inspirada na
cresciam das masmorras cabala, acabou se convertendo ao islamis-
com lenha local mo. Em sua lembrança escreve o poeta:
e dos aquém mares
onde dispersava shabtai tsvi o judeu o rabino o messias o com a
se em relva sem nome redenção no bolso esquerdo e todas as heresias
no bolso direito o novo muçulmano convertido
sob ameaça de morte para assim disse seguir
Assim como o barroco Luís Nunes Tino-
no caminho da redenção sob o entulho de
co, Amâncio também faz poesia imagética
todas as humilhações era o judeu muçulmano
como em um poema em forma de X ou de e o muçulmano judeu que o messias se coloca
taça, ou seja, de recipiente, matula, confor- múltiplo marrano e a farsa multiplicidade
me o leitor preferir:
dos brilhos de um astro
juan de prado gracia mendes samuel usque a cair a subir para o fundo
uriel da costa moses mendes espinosa ou rumo à flor em águas do universo
antônio martelo raposo tavares e perguntam que flor é essa de setenta
isaac oróbio de castro e sete nomes
antónio josé da silva e tantas vezes sete a cifra inumerável
barros basto
o pessoa Gershom Scholem, em seu livro sobre o
prosopopeias místico otomano, mostrou como para ele
abraham miguel cardozo
o número sete continha todo o mistério do
menashê ben israel soeiro abraham pereyra
mundo de forma concentrada. (1976: 441)
tartas tartas tartas tartas tartas tartas tartas
crasto tartas Mas Amâncio se apropria desse nome para
fazê-lo renascer no misticismo político portu-
David ben Abraham de Castro Tartas guês: “sebastião/shabtai:sabtai/?” E não sem
(1630-98) foi um impressor de Amsterdam ironia arremata: “o passado nos atualiza”.
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o • 95
Dentro dessa poética “nominalista” outra, esse gesto de copista que traduz um
Amâncio recorda também um tradutor e tratado em poema ecoa também um ges-
ator, ou seja, um especialista em represen- to semelhante do grande poeta e tradutor
tação como dissimulação, chamado Vitali Haroldo de Campos, que publicou uma tra-
Háim Ferera, cujo nome leva o poeta a um dução em versos de uma passagem da Fe-
encadeamento que o ecoa e desdobra em nomenologia do Espírito de Hegel. (“Hegel
outros nomes da tradição marrana des- Poeta”.)
vendando a tradução como uma ação que O ser nômade da cultura iluminada do
acentua o nomadismo cultural marrano: ponto de vista do marranismo é explicitado
ironicamente no poema em inglês “ETY-
vitali vitale vidal háim herrera MOLOGY”:
ferera de repente perera
pereira ferreira change j for x and read that letter like a
gallego
do fausto dos dons manuéis or a brazilian or a portuguese
moedas falsas or maybe an old spanish reader
nas mãos dos ministros ancestrais sh
do autor que se desdobra para traduzir o máscara da própria literatura e das artes,
intraduzível: da existência e da poesia. As- que Amâncio representa de modo exem-
sim, em outro poema do mesmo volume, plar. Lembrando que em grego prosopon
o poeta escreve: “eu me reparto: todos os é face e máscara, podemos dizer que a li-
possíveis/ ainda que a máscara seja uma e teratura e as artes são também máscaras
só./ [...] Aqui nada matura nem conclui,/ da morte: prosopopeia, personificação do
ninguém informa sobre permanência,/ um “indizível”, onde um personagem (ou al-
saldo de memória ou existência.” (2007: guém em vista já da sua morte) é vivificado
49) Aqui podemos entender como Amân- como uma pessoa real.
cio cria com um jogo de máscara(s), lite- Dentre os jogos de preferência de Amân-
ralmente, uma prosopopeia, um teatro da cio em sua poética de máscara(s) encontra-
memória, uma mise en action dos mortos. mos seu plurilinguismo. Ele possui todo um
Explico-me. Primeiro entendamos por que volume de poesias em espanhol, Colores si-
de certo modo o poeta representa nesse guientes (1999) (2007: 208-256) e outro em
teatro nada menos do que o papel de Per- língua inglesa, At (2007: 431-75). Em Contar
séfone. O nome de Perséfone é derivado a Romã (2001) (2007 257-337) Amâncio, em
por alguns autores de pherein phonon, um longo poema, “O palácio da fronteira (ou
“trazer” ou “causar a morte”. Mas exis- golpes de vista)” faz uma “anotação para
te outra aproximação semântica possível, uma hipótese de mapa” (2007: 289), que
particularmente importante para nos apro- já introduz seu gosto pela pesquisa histórica
ximarmos dessas obras de Amâncio: em com destaque para o tema dos cristãos-no-
etrusco, phersu significa a pessoa que por- vos. A “polifonia” (2007: 313) é explícita nes-
ta uma máscara (originalmente em rituais se livro. É como se diante da intraduzibilidade
fúnebres). Daí vem o termo latino persona, e da necessidade da tradução houvesse a pas-
ou seja, o personagem dramático com sua sagem para a polifonia: a coleção de vozes,
máscara. Perséfone, via phersu, também mesmo que fictícias ou reinventadas. Como
tem sido aproximada de persona. Ela é ora o artista com a sua natureza morta, que pinta
caracterizada por sua extrema e irresistível cada fruto ou cebola como únicas e inimitá-
beleza, ora como terrível, pavorosa (epai- veis. Assim lemos em um poema de At:
né). Como esposa de Hades, ela é a temida
rainha do mundo dos mortos. Além disso, This onion
afirma-se que Perséfone é a mãe das te- is quite different
míveis Eríneas, as deusas que perseguem from all those on the table.
os assassinos para cobrar a “dívida de san-
gue”. Elas são a memória do mal e a jus- Think of each
onion
tiça. A relação tensa de Perséfone com a
as a collection
beleza e com a morte, seu natural “jogo
of tongues.
de máscaras”, sua vida que alterna entre o
Hades e a primavera na terra, tudo isto faz Each one
desta figura mítica uma das mais poten- over and under
tes metáforas para expressar os jogos de another one
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o • 97
Tiedemann, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1980, vol II, Hartherly, Ana. “Experimentos Visuais do Barroco Português”.
pp. 140-157. http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/
Benjamin, Walter; Scholem, Gershom. Correspondência, Barroco/Experimentos_Visuais_do_Barroco_Portugues.
tradução de N. Soliz, São Paulo: Perspectiva, 1993. htm Consultado em 18/08/2017.
Campos, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, Scholem, Gershom. Sabbatai Ṣevi: The Mystical Messiah,
S. Paulo: Perspectiva, 1981. 1626–1676. Princeton University Press, 1976.
_____. “Hegel Poeta”. In: O Arco-Íris Branco. Ensaios de Lite-
ratura e Cultura; Rio de Janeiro: Imago,
1997, pp. 61-73.
Medicina e literatura: O encontro das
palavras na trajetória de Moacyr Scliar
Gabriel Oliven
Jornalista formado pela PUC/RS, com pós-graduação em
Comunicação Empresarial pela Universidade Candido Mendes.
A
medicina é um mergulho na condi- trajetória do imortal gaúcho, que ocupou a
ção humana. A literatura também. Cadeira n.o 31 da ABL. De um lado, inspi-
Moacyr Scliar (1937-2011) mergu- raram políticas pioneiras de saúde pública,
lhou fundo nas duas atividades, como a des- amparadas na sua visão social da medicina.
cortinar novos horizontes. Em seu processo De outro, deram origem a uma coleção va-
de imersão, marcado por rara sensibilidade e liosa de romances, contos, crônicas, ensaios
um talento incomum, resgatou pequenos te- e artigos. Ele buscou na própria história de
souros que nos ajudaram a compreender os vida as bases dessa relação singular:
dilemas da existência humana. Ou pelo me- “A literatura muitas vezes se inspirou na
nos a entender melhor a sua complexidade. doença e na figura do médico para revelar
obras magistrais. E muitos jovens buscam essa
Esses tesouros fazem parte do rico legado de
profissão por influência dos livros e de seus
Scliar e permanecem vivos, fortes e atuais.
autores.”2
As carreiras de médico e escritor cami-
nharam lado a lado, sempre de modo com- Quando se trata de Scliar, a interseção
plementar. Unidas pelo fio condutor da pa- entre medicina e literatura abriu caminho
lavra, separadas pelo tipo de abordagem. para uma produção vigorosa: autor de mais
“Além do território da emoção humana, de 80 livros, deixou pelo menos 22 roman-
médicos e escritores compartilham um instru- ces e novelas centrados – ou inspirados –
mento comum: a palavra. É claro que nos dois
em temas médicos. Entre eles, O Ciclo das
casos a atitude é diferente. O médico avalia
Águas (1975), Doutor Miragem (1978), So-
a emoção, o escritor utiliza-a como matéria-
-prima”,1 explicava Scliar. nhos Tropicais (1992), A Majestade do Xin-
gu (1997) e Saturno nos Trópicos (2003).
Com a mesma intensidade, medicina Todos se valem da ficção para refletir sobre
e literatura semearam um campo fértil na questões essenciais ligadas à medicina, à
médicos a uma triagem. Só seriam aprova- fosse reeditada. Esperou seis anos até pu-
dos aqueles que tivessem vocação. blicar o livro seguinte, O Carnaval dos Ani-
A leitura de clássicos como A Montanha mais6. Mas jamais parou de escrever nesse
Mágica, de Thomas Mann, A Morte de Ivan intervalo.
Ilitch (Tolstói), Arrowsmith (Sinclair Lewis), A partir dos anos 70, a medicina tor-
O Doente Imaginário (Molière) e O Alienis- nou-se peça-chave na produção literária de
ta (Machado de Assis) reforçou a vocação Scliar. Além das raízes judaicas e gaúchas,
de Scliar. Ao concluir o período escolar, era três temas predominaram nas obras do au-
natural que optasse pela carreira médica. tor: a história da medicina, a saúde públi-
Impregnado de ideais socialistas, fez da ca e a Psicanálise. Esta última tem lugar de
medicina sua utopia particular. Nela edifi- destaque em um de seus primeiros roman-
cou seus sonhos e castelos. Acreditava que ces, O Exército de um homem só, publicado
a medicina é a arte e a ciência de cuidar em 1973 e traduzido para dez idiomas. O
da humanidade, um instrumento de justiça livro relata a saga de Mayer Guiznburg, um
social, de redução das desigualdades. Daí o judeu que chega a Porto Alegre ainda me-
seu olhar humanista sobre o tema. nino, vindo da Rússia.
Movido pelo ideal de uma utopia so-
O primeiro livro cialista, Mayer transforma-se em Capitão
Birobidjan, destemido herói do Novo Mun-
Em 1955, Scliar foi aprovado no vesti- do, um Dom Quixote dos trópicos. Para de-
bular da Universidade Federal do Rio Gran- sespero do pai, que o queria rabino, Mayer
de do Sul (UFRGS). Ali começou a escrever tenta construir a Nova Birobidjan em pleno
pequenas crônicas no jornal O Bisturi da Bom Fim, o que gera dúvidas sobre a sua
faculdade de Medicina. Incentivado pelos sanidade mental.
colegas, que elogiavam seus textos, lançou Em uma das passagens memoráveis do
em 1962 seu primeiro livro, ao qual deu o livro, o avião que levava Sigmund Freud
título de Histórias de médico em formação5. para Buenos Aires faz escala em Porto Ale-
Os contos refletiam as angústias e expec- gre. O pai de Mayer vai atrás de Freud no
tativas de um jovem universitário diante da aeroporto e tenta a todo custo convencê-lo
profissão que escolhera seguir. a analisar o filho. O diálogo que segue é
Orgulhosos do filho, Sara e José o aju- impagável. Além da narrativa ágil e precisa,
daram a publicar o livro, convencendo os que costura as várias passagens de tempo,
vizinhos a comprar um exemplar. O resul- a Psicanálise é abordada com toques de hu-
tado, porém, foi decepcionante. Histórias mor judaico, uma das marcas do autor.
de médico em formação era fruto da an-
siedade de um autor imaturo. Após re-
ceber duras críticas, Scliar reconheceu os Escravas judias
defeitos do texto e concluiu que havia se Já O Ciclo das Águas teve como inspi-
precipitado. Nunca mais deixou que a obra ração um caso real vivido por Scliar em sua
5SCLIAR, Moacyr. Histórias de Médico em formação. 6 SCLIAR, Moacyr. O Carnaval dos Animais. Porto Ale-
atividade médica. Depois de formado, ele marido não tenho, mas se soubesses como é
foi trabalhar no Lar dos Velhos, um asilo bom um homem. E a vida que eu levo...”7
mantido pela comunidade judaica de Por-
Outro personagem fundamental na nar-
to Alegre. Lá atendia uma senhora em es-
rativa é Marcos, o filho de Esther, que é um
tágio avançado de demência. Vaidosa, ela
pesquisador sanitarista. Ele tenta compre-
vivia cantando pelos corredores, gostava
ender a história de sua mãe prostituta e o
de se maquiar e passava horas em frente
curso de águas fétidas. A água tece uma
ao espelho. Apesar de muito simpática,
rede simbólica que diz respeito à transição
a senhora era discriminada pelos outros
psíquica e emocional dos personagens.
residentes. Ninguém queria a sua compa- Scliar faz um paralelo entre o ciclo das
nhia no refeitório, muito menos dividir um águas e o ciclo de vida dos personagens:
quarto com ela. é uma constante transformação, e a cada
Quando ficava doente e Moacyr ia reviravolta na vida dos personagens, uma
visitá-la, a idosa o convidava para sentar nova fase do ciclo se inicia.
na sua cama e logo tentava uma investi- Em Doutor Miragem, de 1978, Scliar
da sexual. Moacyr descobriu que ela tinha reflete sobre os dilemas e contradições da
sido dona de bordel, uma remanescente profissão que abraçou. Ao narrar o seques-
das antigas polacas, judias do Leste euro- tro de um médico, ele critica a mercantiliza-
peu que eram trazidas ao Brasil sob a falsa ção da medicina em meio a um cenário de
promessa de casamento. Chegando aqui, miséria social. É uma obra que contrapõe o
eram levadas à prostituição e viviam como poder dos médicos e sua autoconfiança por
escravas sexuais. vezes excessiva ao quadro de degradação
Moacyr pesquisou o assunto, que era que encontram em suas carreiras, especial-
tabu na comunidade judaica, e descobriu mente em saúde pública.
que havia uma organização internacional
– a Tzvi Migdal – responsável pelo tráfico Revolta da vacina
dessas mulheres. Essa organização tinha
ramificações em vários países da América Essa degradação também é exposta em
do Sul. A idosa inspirou a personagem Es- Sonhos Tropicais. Ambientado no Rio de Ja-
ther, de O Ciclo das Águas. Esther carrega neiro de 1904, o romance expõe o clima de
as marcas do sofrimento, comum a tantas guerra nas ruas da cidade no início do século
XX. Manifestantes erguem barricadas, derru-
mulheres judias que foram vítimas do mes-
bam postes e incendeiam bondes. Na origem
mo engodo quando vieram para a América.
dos distúrbios está o Dr. Oswaldo Cruz, médi-
Em vez de uma vida melhor, ela encontra a
co sanitarista que, em sua luta para erradicar
humilhação e a dor. Mas não esconde a sua
a febre amarela, acabou provocando a Revol-
sexualidade quando escreve para a família.
“Ah, mãe, tu não me ensinaste, mas
ta da Vacina, uma das mais polêmicas bata-
aprendi ligeiro... E gosto, mãe!... É bom! O lhas sociais e políticas brasileiras.
médico russo...! Prazer assim, tu nunca ti-
veste, nunca terás. Teu marido sabe degolar 7SCLIAR, Moacyr. O Ciclo das Águas. Editora LP&M.
galinhas, mas não sabe te fazer gozar. E eu, Porto Alegre, 1975
M edi cina e literatur a : O e nc o n t ro das pa l av r as n a t r a j e t ó r i a d e M oac y r S c l i a r • 103
O autor trata de médicos escritores (de Ga- ou pelo menos nenhum médico disposto a
leno e Vesálio até Thomas Mann, Tolstói e assumir sua condição. Mas sempre é melhor
Molière); memórias dos tempos de estudan- um médico de saúde pública do que nenhum
médico (e quero dizer que os sanitaristas fre-
te na Faculdade de Medicina da UFRGS; his-
quentemente compensam com o bom senso
tórias da prática médica; escritores doentes
resultante de sua visão global o que lhes falta
e o modo como lidaram com as próprias li- em conhecimento), de modo que me apre-
mitações físicas. Enfim, escritores que escre- sentei.
veram sobre medicina. Felizmente, não era coisa grave: uma senho-
Uma boa mostra desse caldeirão de ra com um pouco de pirose (azia, para falar a
influências está presente na crônica “Há um verdade). Ela mesma fez o diagnóstico, infor-
médico a bordo?”9, que combina o relato pes- mando que a sua hérnia de hiato de vez em
quando incomodava. Havia antiácido na peque-
soal de Scliar ao humor tipicamente judaico.
na farmácia do avião, de modo que minha inter-
“Poucas coisas devem ser mais desconfortá-
veis para um médico do que, estando ele a bor- venção médica terminou com êxito estrondoso.
do de um avião (de um navio é menos provável), Nem sempre as coisas são tão fáceis. Não
ouvir pelo alto-falante o pedido: ‘Se há algum em manuais médicos, mas em revistas de divul-
médico a bordo, por favor, se apresente’. É certo gação, às vezes aparecem histórias de situa
que não se trata de nenhuma homenagem. Ao ções angustiantes. Há uns anos, um médico
contrário, provavelmente é galho, um problema russo, a bordo de um submarino, operou-se
que não será fácil de resolver. a si mesmo de apendicite, o que deve exigir
Em primeiro lugar, os aviões têm o de- uma coragem monumental. Num submarino
sagradável hábito de trafegar muito acima ocorreu outra apendicectomia: foi na Segun-
da terra firme, onde ficam os hospitais e os da Guerra mundial, e quem fez foi o enfer-
ambulatórios. Depois, o equipamento de que meiro de bordo, orientado pelo rádio pelos
dispõem é necessariamente restrito. Ninguém médicos da base.
esperará encontrar ali um eletrocardiógrafo, Por isso é que é bom contar com médico
ou mesmo um esfigmomanômetro. a bordo. O que lembra a história daquela mãe
Mas, mesmo contando apenas com o ra- judia que, em pleno voo, levantou-se, gritan-
ciocínio e as mãos nuas, o médico não pode se do: ‘Um médico! Há algum médico a bordo?’
omitir. Ele tem de se levantar e acenar, desam- Levantou-se um doutor e veio correndo: ‘Eu
parado, para a aeromoça. Foi o que aconteceu sou médico, minha senhora. O que é?’ E ela,
comigo num voo Porto Alegre-Rio. sorridente, mostrando a filha: ‘Ah, doutor, se
‘Se há algum médico a bordo...’. Olhei o senhor soubesse que noiva eu tenho aqui
ao redor: não, não havia médico nenhum, para o senhor...’”
Sandra Bagno
Professora associada do Dipartimento di Studi Linguistici e Letterari (DiSLL)
da Università degli Studi di Padova
“Mutati i tempi e pur migliorate le cose, sado a liberdade de injuriar e zombar a Itália
permane tuttavia l’abitudine festaiuola per tendo como pretexto seus carnavais.
ogni occasione, lieta o triste che sia” (“Mu-
Land of carnival
dados os tempos e mesmo que melhoradas
as coisas, permanece, todavia, o hábito fes- Um segundo fato é que em seguida, com
teiro para todas as ocasiões, sejam elas ale- o amadurecimento de sua experiência de le-
gres ou tristes”).11 xicógrafo, Panzini modificaria, entre as de
outros verbetes, a definição também deste
Ora, é mesmo de um modelo de defi-
verbete. Mas não para desmentir sua linha
nição, em certos aspectos, de época (se
política, firmemente adotada desde 1905,
relacionado às atuais concepções lexico-
de “defesa da honra da nação”, como lem-
gráficas) que depreedemos interessantes bra Alfredo Schiaffini (p. V).13 Em verdade,
elementos para refletir, do ponto de vista na edição do Dicionário Moderno de 1927
brasileiro, sobre a tempestiva reação de um (então em pleno fascismo), Panzini atualiza-
Jorge Amado com apenas dezoito anos, a ria a definição, registrando, após a primeira
um possível enraizamento, no português do expressão Carnival-nation (desta vez enri-
Brasil de 1930, de novos títulos depreciati- quecida por uma transcrição fonética), uma
vos contra seu país. segunda expressão, land of carnival, juntan-
Um primeiro dado é que nos esclareci- do-a de fato à anterior como seu sinônimo;
e, deixando agora de lado os preconceitos
mentos de natureza política do lexicógrafo
“indolência”, “hábitos festeiros” etc., ele
italiano (“mudados os tempos e mesmo que
adiciona algumas anotações de ordem enci-
melhoradas as coisas”) aparece evidente
clopédica geográfica:
toda sua carga patriótica. Referindo-se ao já Carnival-nation o land of carnival (câni-
consolidado processo de unificação nacional, val-néiscen). Epiteto già dato dagli Inglesi
e implicitamente também à expansão colo- all’Italia: nazione festaiuola e celebre un tem-
po per i suoi carnevali (Roma, Milano, Vene-
nial italiana da qual talvez se orgulhasse,12
zia). Ora le cose sono cambiate!” [“Alcunha
Panzini os salienta de propósito: como irre- desprezavelmente injuriosa, já impingida pe-
futável certificação, embora condicionada los Ingleses à Itália: nação festeira e célebre
a preconceitos como “indolência”, “indife- no passado por seus carnavais (Roma, Milão,
rença”, “hábitos festeiros”, de um resgate Veneza). Agora, as coisas mudaram!”]14
político agora adquirido. Então, na definição Esta definição, que revela um orgulho
de Panzini percebe-se também uma orgulho- patriótico ainda maior (“Agora, as coisas
sa resposta, do alto de uma grande tradição mudaram!”), seria confirmada também
cultural cujas raízes recuam na antiguidade na última edição publicada (póstuma) em
clássica, a quantos tinham tomado no pas- 1950, acrescentada pelos já mencionados
11 Idem,Ibidem.
12 SCHIAFFINI, Alfredo. “Proemio”, apud PANZINI, Al- 13 V. supra nota 12.
fredo. Dizionario Moderno Nona Edizione con un Pro- 14 PANZINI, Alfredo. Dizionario Moderno Supplemento
emio di A. Schiaffini e un’Appendice di B. Migliorini. ai dizionari italiani. 5ª Edizione aggiornata ed aumenta-
Milano: Editore Ulrico Hoepli, 1950, pp. V-XVI. ta. Milano: Hoepli, 1927, p. 108.
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o • 109
inédita, com que uma festa tão antiga es- que o diplomata “Sorriu patrioticamente,22
tava incontestavelmente se inovando no pagou a despesa e despediu-se para ir dar
Mundus Novus brasileiro, a ponto de atrair ao deputado Fancisco Ribeiro, que passava
um número crescente de turistas estrangei- na occasião, os seus parabéns pelo “notá-
ros. Conforme documentou em 2004, entre vel discurso”.23 Mas nem o teor da resposta
outros estudiosos, Felipe Ferreira, no ensaio do compatriota, que demonstra claramen-
O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro.19 te não gostar que seu país seja denegrido,
De fato, Amado consegue transformar em nem o seu sorriso patriótico convencem
positivo o que nascera como uma alcunha Paulo Rigger, o qual reafirma suas intenções
injuriosa. Tanto que, nessa ótica, visto por de escárnio, por fim zombando de novo:
quem chega ou parte, o Brasil torna-se “o “– Paiz dos grandes homens... dos grandes
paiz do carnaval” por antonomásia: por es- homens... e do Carnaval...”24
tar em nível de já competir no cenário inter-
nacional com as grandes tradições carnava- O Paiz do Carnaval no terceiro
lescas de outros países. capítulo
Ainda pela voz de Paulo Rigger, “o Paiz
O Paiz do Carnaval no segundo do Carnaval” reaparece no terceiro capítulo
capítulo
numa cena que se desenvolve no estado da
Todavia, mudando o ângulo do foco, “o Bahia, onde Rigger é proprietário de uma
paiz do carnaval” continua a revelar-se uma fazenda de cacau. No clima da campanha
locução-chave, pois nos permite reconhe- pelas eleições presidenciais, depois de ha-
cer outras dinâmicas atuantes na sociedade ver assistido ao discurso feito na rua por um
brasileira do começo dos anos 30. Assim, a “bêbado” que mal parava sobre as pernas,
antonomásia retorna já no segundo capítu- que se identificou como “o maior orador
lo, mas desta vez pela boca de um específi- do Paiz” e que “agradeceu, emocionado, a
co personagem: Paulo Rigger. saudação dos cegos, dos aleijados, das ra-
A cena se desenvolve num Rio de Ja- meiras e da lama das ruas...”, “Paulo Rigger
neiro em que, na expectativa do início da disse a Julie: – Minha filha, este é o Paiz do
grande festa, “a multidão acotovelava-se Carnaval. E sentiu-se estranho, muito estra-
numa grande alegria”.20 Observando o vai nho ao seu povo. E começou a pensar que
e vem e dirigindo-se a José Augusto da Silva seria capaz de fracassar no Brasil...”25
Reis, um compatriota diplomata de carreira, O desprezo do fazendeiro Rigger pela
“Rigger disse: – O Brasil é o Paiz do Car- realidade dos marginalizados (ao invés de
naval.”; mas “José Augusto acrescentou: se sentir de alguma forma movido pela
– E dos grandes homens! E dos grandes compaixão) o leva novamente àquela úni-
homens...”.21 Logo em seguida, porém, ca conclusão. Desta vez, quem o escuta
como narrador onisciente, Amado enfatiza é sua amante francesa, mas que parece
indiferente à questão. Por outro lado, des- pelo melhor do que se podia aprender da Ve-
de o primeiro encontro, nem mesmo Rigger lha Europa, chegam ao ponto de tornarem-
alimentara ilusões sobre o perfil humano e -se veículos de categorias interpretativas (com
moral de Julie, come lê-se no capítulo I.26 relativo léxico) até mesmo difamatórias contra
Ora, enquanto Amado deste jeito reitera seu próprio país. Segundo um processo que
que é Paulo Rigger quem recorre ao signifi- há pouco havia levado, por exemplo, à publi-
cado pejorativo daquela locução, ao mes- cação em 1928 de Retrato do Brasil, o ensaio
mo tempo aponta também para um dado de Paulo Prado que suscitara, como lembra
biográfico/psicológico de seu personagem Carlos Augusto Calil, uma “furiosa reação”.28
principal. Paradoxalmente, não é um es- A essa altura do romance, portanto,
trangeiro, mas sim um brasileiro quem re- torna-se claro o diagnóstico do fenômeno
corre novamente a “o Paiz do Carnaval” de que Amado pretende denunciar: a adoção
forma estritamente depreciativa contra seu de alcunhas e expressões ofensivas contra
próprio país. E se repararmos bem, trata-se o Brasil não era responsabilidade de algum
de um brasileiro de uma específica classe estrangeiro (como acontecera no caso ita-
social: aquela que opta, para seus filhos, liano), mas sim de um tipo específico de
por uma formação europeia, acreditando compatriotas, infelizmente.
que a educação no país não estaria à altura
do seu status, segundo uma prática ainda Do inglês “carnival-nation” ao
bem comum, obviamente, à época de Ama- português “povo carnavalesco”
do. E vale a pena lembrar que, ao contrá- Em face às atestações panzinianas de
rio do que afirmam alguns estudiosos, esse duas versões em inglês da mesma “alcu-
não fora o caso de Jorge Amado.27 nha desprezavelmente injuriosa”, nos ques-
A tese do escritor, capítulo após capítu- tionamos se no romance, além de “o Paiz
lo, vai se delineando cada vez mais. Como do Carnaval” (que interpretamos como a
chegara o momento em que o próprio Rig- tradução literal em português de land of
ger teve que admitir para si mesmo que se carnival), haveria também uma tradução da
reconhecia “muito estranho ao seu povo”, outra locução, Carnival-nation.
não são por certo as longas viagens para No capítulo VII, o leitor se depara com
países como a França que podem incenti- o relato do escritor sobre discussões acirra-
var o surgimento de uma real consciência das que, com o precipitar da situação polí-
nacional, especialmente entre os mais ricos. tica depois da “Revolução”, ocorrem entre
Assim, implicitamente, são destacados por Ricardo Braz e Paulo Rigger. Das palavras
Amado os parâmetros a partir dos quais se usadas por ambos, surgem críticas muito
poderia reconhecer quantos, ao invés que pesadas em relação ao país, sob a insígnia
entre estrangeiros, mesmo entre compa- dem um sarcasmo de fato cáustico.29 Mas é
triotas, seduzidos pelo pior ao invés de que
28 CALIL, Carlos Augusto. “Introdução”, apud PRADO,
Paulo. Retrato do Brasil Ensaio sobre a tristeza brasilei-
26 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., p. 9 e segs. ra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Organiza-
27V. CASTELLO, José. “Romance de deformação”, ção de Carlos Augusto Calil, p. 8.
apud AMADO, Jorge. O País do Carnaval. São Paulo: 29 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., p. 81
somente em um novo diálogo (capítulo X) do: “Sabe, dr. Rigger, quem parte hoje para
entre o diplomata José Augusto, agora já o exilio?”36
preocupado com o rumo que tomava conta Mas é o que lê-se em outro trecho do
dos eventos, e Paulo Rigger, que este, fazen- mesmo capítulo que acaba dissipando do
do por fim cair o nível da conversa, desfere leitor qualquer dúvida (se é que alguma
outra expressão depreciativa. Observemos permaneceu) acerca dos verdadeiros sen-
as várias passagens: “Paulo Rigger notou timentos de um compatriota como Paulo
que o povo30 não estava satisfeito. Mas o Rigger:
povo não pedira a revolução? Ele mesmo, “[Paulo Rigger] Leu os jornais. O povo es-
Paulo Rigger, assistira a meetings em que tava aborrecido, porque o Governo não que-
ria dar aos clubs carnavalescos a “ajuda” de
os oradores berravam pela revolução, ‘que
praxe. Paulo riu: – Paiz do Carnaval! Paiz do
tiraria o Brasil da beira do abysmo’...”31
Carnaval! Eu, se fôsse Presidente ou Dictador,
Desoladora é a resposta do diplomata: decretaria um Carnaval de 365 dias... Adorar-
“Enterrou-o, meu amigo. Enterrou-o”.32 -me-iam...”.37
Mas Rigger, sentindo-se decepcionado com
José Augusto, rebate irônico: “– Como era Consideremos alguns aspectos dessas
que, agora, poucos mêses depois, o povo duas passagens cruciais no romance. Na pri-
já clamava contra o estado de coisas? Que- meira, a palavra povo aparece cinco vezes
riam, com certesa, que em dois mêses os antes que, a título de conclusão do raciocínio
governantes endireitassem o Paíz?...”33 do diplomata, Rigger a retome, mas para in-
Por sua vez, também José Augusto recor- duzir uma nova versão – “Um povo carnava-
re à ironia, porém mais para explicar as coisas lesco” – de “o Paiz do Carnaval”, alcunha já
a um compatriota que vivera tanto tempo no ouvida por José Augusto, sempre da boca de
exterior: “Não é isso. O senhor não conhece Paulo Rigger. E esta nova versão pode sem
as virtudes do povo brasileiro. O nosso povo dúvida ser interpretada como uma tradu-
só applaude os que estão na opposição. ção para o português (embora menos literal
Nunca apoiou, por melhor que ele fôsse, um do que a italiana “nazione carnascialesca”)
Governo.”34 A esse ponto, diante das consi- do tal “epiteto” carnival-nation que, desde
derações feitas, embora amargamente, por 1905, Panzini documentara. Mesmo nesse
seu interlocutor, Rigger não hesita em reba- último caso, a reação à alcunha é de uma
ter passando a ofender, zombando: “Virtu- recusa óbvia: José Augusto prefere, inclusive
de, não é? Um povo carnavalesco...”35 O como diploma que é, distanciar-se de tanto
incômodo, porém, novamente sentido pelo gratuito desprezo, deixando que aquelas in-
diplomata por tais atitudes se faz agora tan- júrias caiam no vazio, e mudando o rumo da
gível, tanto que muda a conversa perguntan- conversa para outra preocupante questão
política, o “exílio”, a que um conhecido em
30 Nossos os grifos desta palavra também nos dois tre- comum estava sendo forçado, devido ao cli-
chos seguintes. ma que já se tornara autoritário.
31 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., pp. 129-130.
32 Idem, Ibidem, p. 130.
33 Idem, Ibidem.
34 Ibid. 36 Ibid.
35 Ibid. Nossos os grifos. 37 Idem, Ibidem, pp. 133-134.
114 • Sandra Bagno
miscigenação ou por uma presumida “tris- (que, reconhecendo-se estranho ao seu povo,
teza brasileira”. prefere retornar à Europa) nos seguintes ter-
Nessa ótica, paradigmático se torna o mos: “A gente deve arranjar um princípio, um
epílogo do romance, cujas metáforas são ideal, para iludir-se, pelo menos. Eu me iludo
cada vez mais explícitas ao confirmar dois com esse negocio do communismo. Por isso
conceitos básicos. Para expressar o primei-
fujo de você. Você me mostra a realidade e
ro, Amado recorre a um último diálogo
me carrega de tristesa [...]”.40
entre José Lopes e Paulo Rigger. Enquanto
Ou seja, Amado conta com um intelec-
“constrange” o próprio Rigger a formular o
segundo conceito. E isso acontece no mo- tual que formara-se, normalmente, no país a
mento em que Rigger parece lembrar de sua tese: chegara a hora de despedir, de fato,
ter reconhecido, em outra ocasião: “Eu não quantos, tendo em conta suas condições so-
tenho o sentido de Pátria. Só me senti brasi- ciais privilegiadas, acabavam por desprezar,
leiro duas vêzes. Uma, no Carnaval, quando antes de tudo, seu próprio povo. Pertence a
sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, eles a verdadeira “tristesa”, não ao povo, e
depois que ella me traiu.”38 menos ainda ao que advém do Carnaval: do
Quem irá definitivamente sancionar a não qual, ao contrário, isso agora eles têm que
aceitação no Brasil, após as ideias dos Nina aprender. Conceito este de que mesmo Rig-
Rodrigues, também as de Paulo Rigger – ou ger, por fim, teve que tomar conhecimento,
seja, metáfora à parte, de Paulo Prado, do até implicitamente rever a sua postura e pre-
qual o protagonista amadiano é em parte conceitos sobre a importância daquela comu-
homônimo – seria um personagem cuja tra- nidade em festa, enquanto pela última vez,
jetória humana, no romance, se enquadra antes de partir, “ia abrido caminho a sôccos
num clássico percurso de formação. Na ver- e cotoveladas”41 para conseguir embarcar.
dade, o XVI e último capítulo assim se inicia: Aquela multidão disposta, apesar de tudo, a
“Rápida, a transformação de José Lopes.”39. celebrar a vida – simplesmente do jeito que
Sempre presente ao longo dos capítulos, mes- lhe fora permitido, em pleno domingo de
mo que inicialmente em segundo plano, José Carnaval – levou-o a admitir para si mesmo:
Lopes surge como símbolo daqueles patriotas “Afinal, talvêz este povo esteja com a razão.
que com lúcida decisão acabam por escolher, No Carnaval talvêz esteja tudo...”.42
na crítica contingência política de 1930, a li-
nha de um empenho político para combater A patriótica e apaixonada recusa
a iniquidade que vitimava grande parte da de rótulos caluniosos por parte
de um jovem de dezoito anos
população. Ao contrário de intelectuais ana-
cronicamente estrangeirados, como revelara- Ora, ao lermos O Paiz do Carnaval sob esta
-se Paulo Rigger. De fato, na despedida de- ótica, podem também ser explicados mais
finitiva é José Lopes quem se dirige a Rigger dois elementos: de um lado, uma importante
40 Idem, Ibidem, p. 213.
38 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., p. 82. 41 Idem, Ibidem, p. 216.
39 Idem, Ibidem, p. 205. 42 Ibid.
116 • Sandra Bagno
declaração dada pelo escritor e, de outro, a ridicularizar a Itália usando como pretexto
violenta reação da censura varguista. o seu carnevale, analogamente na América
De fato, em primeiro lugar se compreen Latina Jorge Amado reage com O Paiz do
de porque, na célebre entrevista concedida Carnaval. Romance que, graças à amplitu-
à Alice Raillard em 1990, Jorge Amado, de de soluções oferecidas pela dimensão
agora em uma fase de balanço de uma vida narrativa, torna-se o veículo com que aler-
inteira em dar voz aos humildes, reivindica tar seus compatriotas sobre os reais objeti-
sem meio-termo: vos, ao invés de algum estrangeiro (como
“Assim, o Paulo Rigger de O País do Car- “os Ingleses” em relação à Itália), de inte-
naval é, de todos os heróis dos meus roman- lectuais brasileiros como Paulo Rigger.
ces, aquele em que eu menos me projeto, o
Portanto, longe de ser responsável por
que me é mais estranho. É uma exceção, por-
certa imagem da identidade nacional bra-
que creio que em todos os meus outros livros
meus personagens, meus heróis sempre têm sileira no estrangeiro, é razoável interpretar
algo a ver comigo.”43 o único romance amadiano baseado num
estereótipo como uma tomada de posição
Por estas inequívocas palavras é lógico para que se chegasse à total reprovação
presumir que, ao invés de Paulo Rigger, é de teorias indignas. Como aquelas pelas
antes José Lopes – o que se ilude “com esse quais “luxúria”, “cobiça”, “melancolia” e
negócio do comunismo” – o personagem “tristeza” deveriam caracterizar “genetica-
que, na verdade, “tem algo a ver” com Jor- mente” a grande parte do povo brasileiro.
ge Amado. Aspecto do romance que certa- Por isto, O Paiz do Carnaval deve ser lido,
mente não deve ter escapado aos persegui- a nosso ver, como uma patriótica e apaixo-
dores de Jorge Amado, e que explica, em nada recusa de um jovem escritor, à frente
segundo lugar, o pesado preço que, entre de uma nação inteira, no que se refere a
o cárcere e o exílio, mesmo enquanto po- categorias interpretativas e alcunhas inacei-
liticamente engajado desde O Paiz do Car- táveis. E isso à luz, primeiramente, ao invés
naval, ele logo começou a pagar. Incluído o de um nacionalismo gratuito, mais simples-
preço de uma censura que se manifestara mente, da dignidade humana que deve
de uma forma horrivelmente inquisitória, a ser reconhecida a cada indíviduo e a cada
ponto de fazer uma fogueira em praça pú- povo. Assim como desde jovem Amado os
blica com seus primeiros romances. Foguei- entendera partindo de seu Nordeste: região
ra que neste 2017 completa oitenta anos, que se torna símbolo de quantas outras, em
e que fez com que a primeira edição de O 1930, olham desconfiantes para o poder
Paiz do Carnaval seja quase impossível de esmagador paulista, não apenas político. O
se encontrar. romance, portanto, é uma clara resposta,
Por conseguinte, enquanto na Euro- articulada e propositiva, a ser enquadrada
pa Alfredo Panzini continuava a tomar no contexto das várias formas de reação a
posição abertamente, através de seu Di- Retrato do Brasil. Pois, antes que algures,
zionario Moderno, contra quem quisesse encontrava-se mais uma vez em casa a ori-
43 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. gem real de alguns males que voltavam a
Rio de Janeiro: Editora Record, 1990, p. 47. afligir o Brasil.
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o • 117
de contemplar com “novos ollos” a morte como transparente em relação ao real. Não
aparente da natureza outonal. A menção a obstante, isso não deve ser confundido
“novos ollos” é, aqui, importantíssima: tra- com um apagamento da linguagem, o que
ta-se do explícito reconhecimento de uma a esvaziaria de seu próprio sentido poético;
nova forma de percepção do mundo, deri- mais pertinente é pensar em uma concep-
vada não de um planejamento racional, mas ção nova de poesia como imediatamente
sim de uma experiência espontânea, propi- derivada da realidade quando experien-
ciada por uma nova relação com o mundo ciada como tal, para além dos falseamen-
constituída a partir de abertura irrestrita. Se tos instituídos por um ego que se percebe
os “novos ollos” efetivam, nessa medida, como instância superior ou autossuficiente.
uma ruptura, isso não decorre de um proces-
so deliberativo ou de uma decisão racional III.
que possibilite a constituição de uma sub- Já uma primeira leitura permite vislumbrar
jetividade nova, em oposição a um modo a dimensão epifânica de um poema como:
de subjetivação anterior; com efeito, cabe
A primavera
compreender os “novos ollos” como uma
foi chocada nos ovos
metáfora que alude a um olhar que prescin-
que puxo o inverno
de, tanto quanto possível, de uma instância
subjetiva – o que viabiliza o processo criativo Não há novidade em afirmar que a for-
demandado pela forma poética do haiku. çosa submissão contemporânea à tempo-
Cabe compreender nesse mesmo senti- ralidade do trabalho e da produção leva a
do a afirmação segundo a qual os poemas um obscurecimento da percepção do tem-
de Pálpebra azul nasceram em uma “longa po como devir; por outro lado, a recusa da
temporada nun círculo de silencio e recol- precisão do relógio, o retorno à dinâmica
lemento especial, nun verdadeiro exercicio essencial da natureza pode suscitar uma
para o espírito”. O exercício espiritual em redescoberta do real como um espaço de
questão consiste na adesão voluntária a um incessantes transformações. Primavera e
rigoroso regime cujo intuito é a máxima inverno não são, por conseguinte, dois as-
supressão de condicionamentos subjetivos pectos fundamentalmente diversos da rea-
que, necessariamente arbitrários – enquan- lidade – como pode supor uma percepção
to projeções de um ego ilusório –, acabam fragmentária ou parcelar –, mas dois mo-
ensejando um falseamento da realidade. mentos de uma realidade que é sempre
Ainda que a posterior elaboração da experi- a mesma, mas jamais permanente (o que
ência, no âmbito da linguagem, envolva um obsta qualquer tentativa de encerrá-la, de
conjunto de elementos contingentes (no modo definitivo, no âmbito da linguagem).
que tange, por exemplo, à seleção vocabu- Dizer o agora implica, portanto, remeter
lar ou à seleção de estruturas gramaticais ao que ele foi outrora (e ao que ele será, do-
específicas), fundamental é perceber que o ravante); e as ideias de uma primavera “cho-
ethos derivado de todo esse processo de- cada” e de um inverno capaz de pôr “ovos”
termina uma relação com o discurso poéti- aludem à ciclicidade que ultrapassa as frontei-
co segundo a qual este pode ser concebido ras da repetição, como pode fazer parecer a
Em busc a de “ novo s o l l o s ”: s o b r e P álpebra azul , d e H e l e n a V i l l a r J a n e i ro • 121
percepção limitada à mera rotina. Com efei- devir, possa prescindir da apreensão do pre-
to, a imagem do “ovo” pode, aqui, remeter sente é um erro crasso; com efeito, apenas a
a seu sentido simbólico primordial, enquanto plena abertura para o presente pode revelar
síntese de todas as potencialidades – o que concretamente a inconstância da realidade.
é especialmente relevante por denunciar o É o que revela uma composição como:
quanto essa mencionada redução da percep-
ção à rotina resulta num empobrecimento da Festín de ocaso:
experiência do real. Nada nos autoriza supor, polo dentes da serra,
afinal, que a transformação do inverno em sangue de sol
primavera implica qualquer tipo de ruptura, a
não ser que (arbitrariamente) desejemos per- Há aí não a síntese de um processo –
cebê-la dessa forma; o que há, efetivamente, caso dos poemas anteriores –, mas o re-
é uma continuidade – sendo legítimo, assim, gistro de um instante transposto para uma
afirmar que o inverno já é a primavera, e que linguagem que, conquanto incapaz de en-
a primavera continua a ser o inverno. cerrá-lo, opera como assinalamento da oca-
Outro dos haikus constantes de Pálpe- sião em que a experiência do real foi resga-
bra azul sugere um processo similar: tada em toda a sua singularidade. É o que
encontramos também em um haiku como:
Caeu a folla
e as raíces preparan Ventre de mar:
un novo ascenso por entre ondas pilosas,
orgasmo azul
A queda da folha não é aqui descrita
meramente como o fim de um processo, Pode-se objetar, por um lado, que a pre-
mas como alusão ao início de outro – resga- sença de elementos metafóricos, não pura-
tando a ciclicidade há pouco mencionada, mente descritivos, constitui uma intromissão
obscurecida pela percepção restrita ao ego desmedida da subjetividade na tessitura líri-
que tudo reduz à sua própria parcialidade. ca – sobretudo no que tange às imagens do
Pode-se evocar, aqui, o conceito budista de festim e do sangue, num dos poemas, e do
interdependência, precioso por revelar o ventre e do orgasmo, no outro. Penso, não
quanto cada elemento mencionado no po- obstante, que há aí uma admissão da (neces-
ema (a folha, as raízes, a ascensão de uma sária) contingência à qual aludi anteriormen-
nova planta) não pode ser concebido sem te, da qual é impossível escapar, uma vez que
os outros – a não ser que se abdique da- se trata do recurso à linguagem. Nessa me-
queles “novos ollos”, reduzindo o olhar a dida, o que faz Helena Villar é explicitar essa
um fragmento arbitrariamente interpretado limitação – sem que, a meu ver, isso implique
como síntese de toda a realidade. algum tipo de fracasso. Não se trata, afinal,
de recusar intransigentemente uma instân-
cia subjetiva, mas de procurar uma “expe-
IV. riência pura” que seja soberana perante as
Supor que a percepção da ciclicidade do demandas daquela, dispensando a noção
existente, associada à dinâmica própria do tradicional de eu lírico em prol de um modo
122 • Henrique Marques Samyn
Flávia Rocha
F
lávia Rocha é jornalista, poeta, tradutora jornalista, foi repórter das revistas Bravo!,
e roteirista. Autora dos livros de poemas República, Carta Capital e Casa Vogue, e co-
A Casa Azul ao Meio-Dia (Travessa dos laboradora de diversas publicações. Na área
Editores, 2005), Quartos Habitáveis (Con- de cinema, foi uma das fundadoras – e hoje
fraria do Vento, 2009) e Um País (Confraria dirige o departamento de comunicação – da
do Vento, 2015). Tem mestrado (M.F.A.) em Academia Internacional de Cinema, escola
Writing/Poetry pela Columbia University e de cinema com unidades em São Paulo e no
por 13 anos editou a revista literária norte- Rio de Janeiro; é corroteirista e coprodutora
-americana Rattapallax. Já teve seus poemas do longa-metragem Birds of Neptune (Esta-
e traduções publicadas em antologias e re- dos Unidos, 2015), e de outros projetos que
vistas no Brasil, Estados Unidos, Reino Unido, estão em fase pré-produção. Vive e trabalha
Itália, Romênia, entre outros países. Como entre Brasil e Estados Unidos.
124 • Flávia Rocha
Hic et nunc
O rosto entre-
visto no espe-
lho da espe-
lunca brinca
como se nunca
tivesse visto
o rosto adunco
que se divide
em meio à trinca.
Mas o outro,
posto que entre-
vendo o que di-
viso, já nem
espera algum
rosto que seja
mero avesso
de outra nuca,
mas este, hic,
agora ou nu c .
n
a
Júlio Machado • 133
É isso um osso?
O teste-
munho
cego de
Primo
Levi
dizendo
aos seus:
acaba-
remos
como
os Pig-
meus,
levou-
me ao
fundo
do poço.
Como se
de um
rede
-munho
de des-
troços
emergisse
não a voz
de um
colosso
de Rodes,
mas o humor
maligno
de um Pig-
malião
sem ossos.
134 • Júlio Machado
In media res
Parei
atônito
esperando
a morte
que não
viria
se eu não
tivesse
parado.
(E o anjo
que inter-
pelei
perguntando
o que era
afinal
a vida
forneceu-me
o formicida.)
Júlio Machado • 135
Da solidão de Sócrates
Se o que sei
é o sabor
de não saber
o que sei;
e se o Sol
já não sai
sem saber
por que sai;
prefiro ser,
no escuro,
o que não se vê
de uma gruta;
ou, no claro,
qualquer som
que soa e não
se escuta.
Pois se a certeza
de saber
é o acicate
da disputa,
antes beber
o acinte dos céus
que dorme
na cicuta.
136 • Júlio Machado
A montra
N
asceu em Santo André, São Paulo, no Espace Krajcberg e no Club des Poètes.
aos 2 de janeiro de 1978. Autor Desde 2014 edita a revista digital de poesia
dos livros de fotografia A Árvore e Arvoressências [www.arvoressencias.com].
a Estrela (2008), Angola Soul (2011), e do Em maio de 2018 apresentou na Em-
livro de poesia Árvoressências (2014). Expôs baixada Brasileira de Paris a mesa-redonda
poemas e fotografias no SESC e no Instituto La Découverte de l'Autre dans les Textes de La
Moreira Salles. Participou do Raias Poéticas Découverte.
(Portugal), da Flipoços (MG) e do Printemps Publica em Portugal pela editora Glaciar
Littéraire Brésilien (França). Em 2017 apre- em julho de 2018 o livro de poesia Manual
sentou a peça La Lyre Africaine em Paris Onírico de Jardinagem.
138 • Mauricio Vieira
Catedral
pedra vertical
vertigem projetada
pedra sobre pondo pedra
torre de catedral
é pedra projetada
na horizontal
contra quem viola a lei
que na pedra foi gravada
anjos gárgulas
ângulos de uma projeção
a escolhida a rejeitada
todas as pedras estão manchadas
o
divino
habita
outra verticalidade
órgão de vastos
tubos e teclas
hostes de anjos de
inumeráveis asas e trombetas
morada dos velhos deuses
anteriores ao rito da pedra
a
árvore
Mauricio Vieira • 139
Húmus
A
F_lha _o sol_
Tecid_ q_e _e de_faz
Ca_comida_ _or micró_ios
Câma_as esf_cela_as
A_é _a _asa _ada _obrar
P_lavra esf_liada
Co_sumida a m_mória
Semen_e na _erra
R_gene_ará
?
140 • Mauricio Vieira
A pedra e a flor
A folha e o pássaro
O monstro
Josué Montello
Quarto ocupante da Cadeira 29 na Academia Brasileira de Letras.
J
erônimo tinha acabado de vestir o pa- gélica Nogueira, Salvador, Bahia.
letó, quando o correio chegou. – É mais uma facada, como se eu fosse
– É registrada – esclareceu o cartei- a própria Casa da Moeda pronta a sangrar
ro, ao ver que ele, com um gesto, e sorrin- em dinheiro – suspirou, deixando a carta fe-
do, assim que recebeu a carta, pedia licença chada no mármore do consolo, e resolvido
para fechar a porta do apartamento. a só abri-la à noite, depois de tomar o seu
Ali mesmo Jerônimo assinou o recibo, chá.
apoiando o papel contra a parede, e logo Não queria aborrecer-se no momento
devolveu o papelucho ao carteiro, descul- de sair para a repartição. Além do mais,
144 • Josué Montello
tinha acabado de almoçar. Deixaria a con- escondida por um renque de casas antigas
trariedade para quando estivesse de pijama ou por um velho muro coberto de hera,
e chinelos. Desta vez – calculou – a mãe de- teve o dom de restituir a serenidade ao Je-
via estar aflita, visto que a carta, além de rônimo, assim que se aboletou no seu lugar
vir registrada, trazia a indicação de urgente, costumeiro do lado da vista para o mar, e
carimbada pelo Correio. deu com a figura jovial do cobrador, um
Ficou um instante imóvel, sobrancelhas velhote rosado e magro, que lhe fez uma
travadas, enquanto recolhia os óculos no es- vênia, equilibrado no estribo, tirando rasga-
tojo de couro, sem desviar da carta os olhos damente o boné:
aborrecidos, quase cedendo à vontade de – Para servi-lo, Senhor Barão...
abri-la. Por fim, encheu o peito, reprimindo Jerônimo sorriu, abrindo bem as boche-
a curiosidade, e foi apanhar no cabide junto chas, ao mesmo tempo que revolvia a algi-
da porta o chapéu de feltro com que agasa- beira, em busca do dinheiro da passagem.
lhava a calva nos dias de frio. O título falso, embora em tom gaiato,
Na esquina da rua, enquanto esperava o sabia-lhe bem aos pendores monarquistas.
seu bonde, tentou distrair o espírito, relan- Além do mais, era gordo, plácido, fronte
ceando o olhar pela paisagem descortinada alta, nariz grosso, uns fios grisalhos saindo-
do alto da ladeira – com o riso dos beirais -lhe das orelhas, pequeninas mãos cabe-
de telhado, por entre o verde das árvores, ludas, e dois olhos castanhos levemente
e o azul do mar ao fundo, na amplidão da tocados de melancolia, com uns longes de
baía cercada de montanhas. certas figuras anafadas do tempo do Im-
– É dinheiro. Não há dúvida que é di- pério, intactas e tristes nas suas molduras
nheiro – voltou a dizer, após um silêncio doiradas, e que habitualmente se veem nos
longo, descendo para o rosto fechado a aba Museus Históricos, como de castigo à espe-
do chapéu. ra dos visitantes.
No correr da enfermidade da irmã, O corpo cheio, gestos vagarosos, dava-
tinha-lhe mandado uma boa ajuda, aten- -lhe ainda um ar nédio de gato preguiçoso
dendo aos sucessivos apelos da mãe, e ain- e bem tratado, que ama o sossego de seu
da tivera de acudir com uma ordem tele- borralho.
gráfica, remetendo importância ainda mais O borralho, no caso, era o aconchega-
gorda para as despesas do funeral. Teria de do apartamento de três peças – uma sala
comprar-lhe agora a sepultura perpétua? e dois quartos, com o corredor ladrilhado
Ou pagar o luto de toda a família? que conduzia à porta de entrada – na colina
– Está parecendo – resmungou Jerôni- de Santa Teresa. Vivia ali a seu gosto, fazia
mo, de má sombra. já dezoito anos, e não compreendia que se
Ainda bem que o bonde se anunciava escolhesse outro local para morar, no Rio de
com o tinido da sineta e o ranger áspero das Janeiro.
rodas nas voltas dos trilhos. De todos os bairros da cidade, era aque-
A viagem lenta, quase toda em curvas, e le que menos se modificara com o tempo.
sempre a mostrar a mesma paisagem, que O próprio edifício onde residia – o único
desaparecia e voltava, momentaneamente que se ajustara à modéstia de seus recursos
O m o ns t ro • 145
– tinha a imponência dos casarões antigos, Em lugar da casa, Jerônimo teve de con-
com três andares espaçosos, a fachada ma- tentar-se com um modesto apartamento,
nuelina, e os dois lampiões laterais de ferro como se contentou também com um Be-
batido no portal. Em redor tudo parecia re- chstein pequeno, em vez do Essenfelder de
troceder ao Século XIX – o largo do fim da cauda, próprio para concertos, que tanto
rua, as casas de beiral saliente, um sossego desejara possuir. Enfim – reconheceu, sus-
de província nas calçadas desertas, as árvo- pirando – realizara o seu ideal: morava em
res que se esgalhavam por cima dos muros Santa Teresa, e o apartamento era seu, com
de pedra roída. De noite, nas calçadas tran- a condição de pagá-lo em vinte anos, pela
quilas, as crianças ainda brincavam de roda. tabela Price.
E mais tarde, se havia luar, não era estranho Aos poucos, sem pressa, graduando
ouvir-se o choro de um violão boêmio, repe- as compras pela magra bolsa, mobiliou os
tindo as serenatas do Eduardo das Neves ou três aposentos à feição de seus devaneios,
do Catulo da Paixão Cearense. só deixando de comprar o serviço da Com-
Das janelas da rua, batidas de sol nas panhia das índias, que nem sequer conse-
horas da tarde, a vista não podia ser mais guiu descobrir, nas muitas buscas pacientes
bela, com uma nesga do Flamengo e outra por leilões e antiquários. Em compensação,
da Glória, e o mar a espreguiçar-se entre para consolar-se dessa lacuna, adquiriu
montanhas, o mesmo mar que se escon- uma secretária de mogno, com gavetas de
dia por trás dos velhos muros e das velhas segredo, e uma porção variada de peque-
casas, quando o bonde serpenteava pelo nos objetos de arte, que foi dispondo pelos
declive das ruas no caminho do centro da cantos, móveis e paredes, até se convencer,
cidade. após a compra de uma floreira de Sèvres,
Antes de se instalar nas três peças de de que ali não caberia mais uma cabeça de
seu apartamento, Jerônimo costumava su- alfinete.
bir a Santa Teresa nas tardes de domingo, A floreira, assim que Jerônimo a com-
sempre só, paletó abotoado, e passeava a prou, andou uns tempos em lugar discreto,
pé, vagarosamente, pelas ruas de seu agra- quase escondida; depois é que ele se de-
do, sonhando viver numa daquelas casas cidiu a colocá-la ao centro da mesa de ja-
antigas, servido por um preto velho, entre carandá, debaixo do severo lustre de cristal
gravuras de Debret, móveis de jacarandá, da sala, ao considerar que sendo solteiro,
retratos da família imperial, pratos brasona- não havia inconveniente em deixar à vista a
dos, e um serviço da Companhia das índias obscenidade daquele fauno ébrio e daquela
adornando o mármore do aparador. Teria bacante nua, enlaçados na mais exaltada e
também o seu piano de cauda, para tocar completa comunhão carnal.
nas horas felizes um trecho de Mozart ou Embora se desse com muita gente, ape-
de Chopin. nas recebia em casa, vez por outra, uma vi-
Infelizmente, porém, o destino não nos sita discreta quase sempre à noite: a de uma
havia o sonho pela medida das encomen- antiga companheira de repartição, já viúva,
das, sempre nos dando a menos o que lhe com a qual repetia a seu modo a cena da
pedimos a mais. floreira, e que passava no prédio como sua
146 • Josué Montello
irmã por entre o malicioso olhar desconfia- – Há de chegar a hora – dizia, nessas
do do síndico e do porteiro. ocasiões, convictamente, correndo os olhos
Tirando as horas de trabalho na Direto- mansos pelas manchetes dos jornais – em
ria da Despesa Pública, além do tempo gas- que o Exército subirá a Petrópolis para en-
to nas viagens de bonde, o mais de seu dia tregar o governo à família imperial, e não
calmo e despreocupado Jerônimo o passava vai tardar.
no confiado do síndico e do porteiro. Enquanto essa hora não chegava, es-
Tirando as horas de trabalho na Direto- palhava nas folhas de papel pautado o co-
ria da Despesa Pública além do tempo gasto chicho de sua letra extremamente miúda,
nas viagens de bonde, o mais de seu dia informando processos.
calmo e despreocupado Jerônimo o passa- Nas férias, deleitava-se em repetidos
va no apartamento. De manhã muito cedo, passeios às paineiras, senão ia a São Cristó-
ainda com um pouco da escuridão da ma- vão recompor em imaginação, caminhando
drugada, ele próprio preparava o seu café a pé, vagarosamente, o ambiente austero
com a meticulosidade de um ritual. Antes do Paço Imperial.
das dez, chegava-lhe o almoço da pensão, Agora, ali no bonde atulhado de passa-
trazido por um moleque. E à noite, como geiros, após deixar para trás as ladeiras tor-
não jantava desde que fizera quarenta anos, cidas de Santa Teresa, via-se por cima dos
contentava-se com um chá e torradas, já de Arcos, sentindo a cidade a seus pés, e volvia
pijama e chinelos. a experimentar a sensação feliz da vida re-
Nas noites em que telefonava chamando alizada, como se pairasse muito acima das
a viúva, tirava da geladeira o queijo e os frios, agruras do mundo, ao receber no rosto plá-
punha na mesa uma toalha de linho, com os cido e bochechudo o afago da última brisa
respectivos guardanapos, sem esquecer de matinal.
espevitar o pavio das velas nos dois castiçais Graças a Deus, gozava excelente saúde.
de prata portuguesa, ladeando a floreira de Tinha o seu teto, a sua paz e o seu empre-
Sèvres. Enquanto esperava pela companhei- go. Que mais podia almejar? Chegara ao
ra, sentava-se ao piano, para tocar baixinho Rio sem dinheiro, fazia quase trinta anos, e
o bailado das Sílfides ou uma sonata de Mo- subira devagar, degrau a degrau, até à che-
zart, ou punha na vitrola um de seus discos fia de uma seção na Despesa Pública, sem
preferidos, o ouvido atento ao rumor aba- dever favores a ninguém. Sua única irmã,
fado de uns passos de mulher no corredor. educada com muito mimo, monopolizara
Na repartição, era em geral benquisto. desde cedo os desvelos da mãe, que certa-
Suas convicções monarquistas deixavam-no mente agora acabaria de lhe criar os filhos.
à margem das discussões políticas. Obriga- De sua infância, por isso mesmo, conta-
do a votar ao tempo das eleições, votava ria pelos dedos as recordações generosas,
invariavelmente em branco, somente se com as quais o homem teria saudades do
regozijando quando as crises políticas se menino. Se acaso um amigo ou compa-
sucediam, o que lhe proporcionava um ar- nheiro de trabalho, sabendo-o nascido em
gumento a mais em favor da restauração da Salvador, lhe perguntava quando voltaria
Monarquia. à Bahia, limitava-se a erguer os ombros, o
O m o ns t ro • 147
lábio inferior espichado, num grunhido sur- Ainda bem que, minutos depois, ao aco-
do, que só ele entendia. Voltar para quê? modar-se no seu banco, deu com o velhote
Só se fosse para rever a sepultura do pai. E rosado e magro, que lhe tirou jovialmente
como, para cumprir esse gesto de piedade o boné:
filial, teria fatalmente de ouvir, já de cabelos – Para servi-lo, Senhor Barão...
grisalhos, os inevitáveis azedumes da mãe,
logo arredava de si a ideia da viagem. Para
que aborrecer-se, àquela altura da vida? O A onda de frio que envolvera a cidade,
pai, que muito sofrera, saberia perdoar-lhe. coincidindo com o começo do outono, ti-
No Largo da Carioca, assim que saltou nha feito o termômetro descer, desde a
do bonde, teve de afastar com a mão a in- Véspera, em Santa Teresa, a uma tempera-
sistência do vendedor de bilhetes de lote- tura de inverno.
ria, que se empenhava a todo custo em lhe A noite, mais gelada que o cair da tarde,
oferecer a Sorte Grande, ainda para aquela com o vento úmido a esfuzar pelas frestas
tarde: das rótulas, obrigara Jerônimo a deixar fe-
– É a borboleta, patrão! Vinte milhões! chadas as janelas da sala, enquanto prepa-
O número da sorte! Corre hoje! De noite, rava o seu chá.
o senhor estará rico! Compre, patrão! É só O pijama folgado fazia-o mais gordo,
este que me sobra! Dinheiro certo! Muito com o paletó a lhe dar nos joelhos. Assim
dinheiro! à vontade, os pés nos chinelos de tranças,
Voltou a lembrar a carta da mãe. Só po- parecia também mais velho, movendo-se na
dia ser novo pedido de dinheiro. Que fosse! cozinha espaçosa, onde cada coisa tinha o
Mandaria o que pudesse, contanto que ela seu lugar.
ficasse por lá, ocupada em criar os netos! Quase uma hora levou à mesa, mastigan-
Parou à borda da calçada, chamou o do devagar as torradas depois de tocá-las
vendedor de loteria. com a ponta da faca untada de manteiga,
Durante o resto da tarde, enquanto en- e sorvendo cada gole de chá sem pressa, no
chia as laudas de papel de ofício, com a sua discreto regalo de sua solidão. Em seguida,
letra miúda e limpa, embolsou de cabeça a sentindo-se bem alimentado, levou para a
Sorte Grande, pagou o empréstimo da Cai- cozinha a louça que deveria lavar, guardou
xa Econômica, saldou o resto da hipoteca o açucareiro, a manteigueira e o frasco de
do apartamento, e reservou ainda uma boa geleia como se cumprisse um ritual.
soma para acudir à carta da mãe, na manhã Por fim, de volta à sala, afundou na pol-
seguinte, logo que recebesse o prêmio. trona junto à janela, acendeu o abajur ao
De volta a Santa Teresa, antes de tomar seu lado e ficou a ouvir o vento, sem saber
o bonde, buscou o número da borboleta, se iria ler, para esperar a hora de deitar um
no cartaz que anunciava o resultado da dos velhos Almanaques Laemmert, que se
loteria, no Largo da Carioca. E ali mesmo, perfilavam no tampo da secretária de mog-
desforrando-se do desapontamento no no, ou se volveria à infindável biografia de
gesto irritado, começou a rasgar em peda- Beethoven que os companheiros de reparti-
cinhos o bilhete branco. ção lhe tinham dado pelo Natal.
148 • Josué Montello
Com os braços descansados nos braços e mandar uma ajuda para o enxoval de tua
da cadeira, derramou a vista à sua volta, de- irmã, que casa daqui a dois meses. Manda-
teve o olhar por um momento nos retratos -lhe o dinheiro, e não te esqueças também,
de D. Pedro II e D. Teresa Cristina, que do- seu ingrato, de lhe pedir perdão por teu
minavam a parede à sua frente, e mais uma longo silêncio.”
vez reconheceu que o País seria outro, se O filho não se lembrava, durante anos e
Deodoro não houvesse cometido o erro de anos de espaçada correspondência, ter sido
derrubar a Monarquia. outro o tom das cartas que ela lhe enviara.
– Outros galos nos cantariam! – suspi- Sempre a censura e o pedido de dinheiro.
rou. Agora, de um dia para outro, não podia ter
Afinal, decidiu-se pela biografia. Não mudado.
morria de amores por Beethoven. Preferia – Parece que ela adivinhou – concluiu,
Bach, embora não trocasse este por Mo- caminhando para o consolo – que estou
zart ou Chopin; mas estava interessado em tratando de reformar o meu empréstimo na
conhecer-lhe melhor a vida atormentada. E Caixa.
já ia tirar o livro da estante ao pé da janela, No entanto, assim que rasgou o envelo-
quando se lembrou da carta sobre o consolo. pe, de volta à poltrona, tornou a preocupar-
– É verdade: a carta! -se com o carimbo de urgente em letras ver-
Como não tinha dúvidas sobre o seu melhas adiante do selo. A ideia de que um
conteúdo deixou-se ficar mais uns minutos infortúnio qualquer o esperava atravessou-
na poltrona, distraído em recordar a figura -lhe o espírito. Com a mão trêmula, tirou
do pai, muito pálido, dias antes de morrer, fora a carta, ao mesmo tempo que buscava
arquejante, a abanar-se com um jornal, en- a melhor incidência da luz sobre o papel.
quanto lhe dizia: “Não sei o que será de ti Sem demora, sobrancelhas contraídas, cor-
quando eu fechar os olhos. Deus é grande reu os olhos nas quatro páginas cobertas
e não há de te desamparar.” pela mesma letra espalhada e oblíqua do
Ainda de luto por ele, tinha saído de sobrescrito, lívido, dedos crispados, e dei-
casa à primeira ameaça de pancada, deci- xou cair pesadamente o punho no braço da
dido a abrir o seu próprio caminho, longe cadeira, levantando-se:
da tirania materna. Tinha dezesseis anos, – Valha-me Deus! gritou, fora de si.
não era mais um menino para viver apa- E veio mais para perto do abajur, quase
nhando. E a verdade é que só dera notícias a amarfanhar as duas folhas da carta, no
à mãe cinco anos depois, já empregado na impulso da cólera que lhe arroxeava os lá-
Despesa Pública. A resposta dela ainda hoje bios, os olhos à tona do rosto.
o irritava, teimando-lhe na memória: “Não Mordendo o lábio inferior, narinas cres-
penses que a notícia do teu emprego apa- cidas, sempre a segurar iradamente as bor-
ga o que me fizeste sofrer com a estupidez das do papel, viu confirmada a surpresa
de tua fuga. Dá graças a Deus por estares brutal da primeira leitura, com a sensação
longe de minhas mãos. Do contrário, ia-te nítida de que a mãe alteava a sua voz rouca
às orelhas, para me pagares novos e velhos. ali na sala, falando e gesticulando na letra
O que deves fazer; com a máxima urgência, espalhada que lhe tremia nas mãos: “Sei
O m o ns t ro • 149
que és um refinado egoísta e só vives para fez sofrer a tua desgraçada irmã (a quem
ti” – dizia ela, num cursivo mais forte, logo Deus dê a merecida paz), para lhe provar
na primeira página da carta – “mas o que que ainda tenho um filho a quem posso re-
te venho pedir é pouco e não há de ser por correr. Não me decepciones, Jerônimo. Tua
muito tempo: quero que me dês uma tábua mãe, que te abençoa, ansiosa por sair desta
para dormir e um pedaço de pão para en- provação. Angélica.”
ganar a minha fome. Aí ao teu lado, moran- Jerônimo passou da ira à estupefação,
do contigo, espero não te ser pesada. Em boca entreaberta aparvalhado. A assinatura
véspera de completar setenta anos, espero da mãe, tomando a página de lado a lado,
que Deus, como justo prêmio a esta vida com uma barra por baixo, traço forte, se-
de sofrimento e incompreensões (sobretu- guida de uma espécie de gancho à feição
do de tua parte), não há de demorar a me de imensa vírgula, recompunha-lhe a figura
chamar para a sua glória, aliviando-te dos magra e alta, grandes mãos transparentes,
incômodos de minha presença na tua casa. nariz pontudo, pescoço longo e fino, e ele
Chorei muito antes de me decidir a esta hu- de pronto a viu entre as paredes que o cerca-
milhação de te escrever. Não era eu, como vam. Assim que ela chegasse, faria sentir-lhe
tua mãe, que devia te pedir um agasalho, o seu gênio. E adeus, paz. Adeus, tranqui-
às portas da morte; eras tu, como filho, que lidade. Nunca mais teria um dia de sossego
devias ter tomado a iniciativa de me abrir os – como um barco na procela ou uma pluma
braços, sabendo que, com a morte de tua na ventania.
irmã, fiquei aqui sem ninguém. Meu genro, Depois, cedendo novamente ao impulso
ainda cheio de vida, não tardará a procurar da cólera, abriu e fechou a mão, sucessi-
outra mulher, e eu não quero, com a minha vas vezes, até reduzir a carta a uma bola
presença aqui, ser para ele um trambolho. de papel rasgado, e a arremessou no tape-
Por outro lado, não tenho mais paciência te do chão, quase ao mesmo tempo que
para aturar menino, e meus netos, sobretu- afundava na poltrona, os olhos crescidos,
do o menor, são uns verdadeiros demônios, sempre a imaginar o que ia ser de sua vida
feitos de encomenda para me atormentar. com a mãe ali dentro. Aos poucos, como se
Se tiveres um minuto de hesitação em me juntasse devagar os pedaços de si mesmo,
dar o merecido amparo (bem sei que sem- endireitou o corpo na poltrona, chegou a
pre pensas primeiro em ti e depois nos ou- cabeça para cima, deu firmeza às mãos nos
tros), lembra-te que foi com dores que eu braços da cadeira, reagindo à desorientação
te trouxe ao mundo. És um homem rico. que o atordoara:
Não hás de querer que esta pobre velha – – Aqui, não! De modo algum! replicou,
sou tua mãe, Jerônimo! – estenda a mão à falando em voz alta para si próprio – É mi-
caridade pública. Fico esperando o dinhei- nha mãe, reconheço, mas não nos enten-
ro para a passagem. E manda mais alguma demos. Ela tem um gênio, eu tenho ou-
coisa, para outras despesas da viagem. Por tro. Foi por isso que saí de casa. Além do
favor, não te mostres novamente sovina. mais, somos dois estranhos. Há quase trinta
Preciso esfregar um gordo maço de cédulas anos que não nos vemos – ela lá, eu aqui.
no nariz do senhor meu genro que tanto Nesta idade, não posso me submeter aos
150 • Josué Montello
caprichos dela; nem ela aos meus. Seria um planta dos pés, que Jerônimo encontrou,
inferno! Juntos, não podemos ficar! simultaneamente, as chinelas de trança e
Pôs a andar, nervoso, da sala para a a solução do problema da véspera. E tudo
cozinha, batendo com o punho direito na lhe pareceu muito simples, à claridade des-
palma da outra mão, a procurar debalde ta inspiração feliz deixaria de responder à
uma saída. Com deixar a mãe em Salvador, carta da mãe, como se não a houvesse re-
já em luta aberta com o genro? E como fu- cebido.
gir ao encargo de recebê-la, se era agora o – Cartas registradas, e urgentes – racio-
seu único filho? Pensou colocá-la num asilo cinou, levantando-se, fisionomia risonha, a
de velhos, depois numa irmandade, por fim dar o laço no cordão do pijama – também
num pensionato, e logo mudou de ideia, se extraviam...
reconhecendo que a mãe, em hipótese al- Entre o quarto e o banheiro, voltou a
guma, aceitaria essas soluções. anuviar o rosto, aproximando as sobrance-
– É capaz de fazer um escândalo dos lhas, com uma pontada nas têmporas. De
diabos, indo até aos jornais dar entrevistas que adiantava deixar de responder a carta,
contra mim! – exclamou. se a mãe não lhe daria sossego, insistindo
O medo de seu nome impresso, com a com outras e passando ainda rádios e tele-
pecha de mau filho, fê-lo parar à entrada da gramas, no mesmo tom agastado e ríspido,
sala, olhos arregalados, um suor frio a lhe até se ver atendida?
descer pelas têmporas. E logo se viu apon- Depois de escovar os dentes e banhar
tado nas ruas e execrado pelos companhei- o rosto, começou a barbear-se defronte
ros de repartição: do pequeno espelho sobre a pia. E nisto a
– Valha-me, Deus! Que horror! lâmina afiada, resvalando pela camada de
Correu ao armário de remédios em bus- creme, fez um filete de sangue apontar na
ca de um calmante. No espelho do banhei- espuma, por baixo da papada que lhe en-
ro, deu com seu rosto devastado, a barba grossava o pescoço:
a apontar, os olhos pisados, um vinco mais – Não respondo a carta nem mando o
forte nos cantos da boca. E receou ter o dinheiro! – decidiu-se, adiantando a ponta
mesmo destino do pai, vítima de sucessivas da toalha para comprimir o ferimento.
amarguras, com o coração a doer, as costas E à medida que o rosto escanhoado en-
apoiadas no travesseiro, arquejante, sem trou a aparecer no espelho, com o fio da
poder dormir. navalha a remover-lhe a camada de espu-
Felizmente o calmante lhe fez bem. E ma, Jerônimo firmou no espírito a sua de-
quando voltou a ouvir o vento, no seu largo terminação. Em hipótese alguma enviaria
leito D. João V, a primeira nesga de sol mati- dinheiro à mãe, ainda que recebesse chuvas
nal, coada pelas vidraças da sala, começava de cartas e telegramas! De início, fechar-
a diluir as sombras do quarto. -se-ia em silêncio como se não houvesse
recebido a primeira carta. Depois, caso a
mãe insistisse, dir-lhe-ia que, no momento,
Foi sentado à borda da cama, no mo- ainda estava pagando as dívidas contraídas
mento de tatear o tapete do chão com a com a doença e o funeral da irmã.
O m o ns t ro • 151
– Ela que vá ficando por lá, tomando com as figuras excitantes de um baralho
conta dos netos – rematou, umedecendo o francês, que tirava de uma das gavetas da
rosto com a loção. secretária de mogno para a claridade sensu-
E o certo é que, às dez e meia, ao to- al de uma das lâmpadas da alcova.
mar o seu bonde costumeiro, voltou a sorrir No domingo, já com a tarde a esmore-
para o cobrador, que lhe tirava o chapéu cer, estava ele sentado ao mano, para tocar
chamando-o de Barão: uma das sonatas de sua predileção, quan-
– Obrigado, amigo, obrigado. do a campainha da porta, premida com
Uma semana passou, mais outra, e ou- inusitada violência, começou a tocar estri-
tra mais, sem que D. Angélica, habitual- dentemente, como se o dedo que a calcava
mente desensofrida, voltasse a afligir o filho estivesse decidido a só afrouxar a pressão
com nova carta patética. impaciente quando viessem atender.
– Era fogo de palha – admitiu Jerônimo. – Um momento, um momento – gritou
E sua vida continuou a fluir à maneira de Jerônimo, caminho do corredor.
um riacho escondido que não se despenha Àquela hora, não podia ser o carteiro.
em grandes quedas nem transpõe grandes Era telegrama da mãe! – concluiu. E logo o
obstáculos, rolando serenamente para o medo que D. Angélica lhe inspirava, repri-
mar. Tudo à hora certa como o nascer e o mido por tantos anos de separação, refluiu
pôr do sol. à tona de sua consciência, levando-o a atra-
Na última quinta-feira, a antiga com- palhar-se com os chinelos, ao mesmo tem-
panheira de repartição viera vê-lo, pouco po que um começo de tremor se apoderava
depois do cair da noite, e enchera a casa de sua gorda mão cabeluda no momento
com a suavidade de seu perfume, de que de segurar a maçaneta da porta.
impregnara sobretudo os lençóis da cama, – Já estou abrindo – gritou dando volta
ainda machucados com as repetições ar- à chave, irritado com a estridência contínua
dentes da cena da floreira. da campainha.
– Ah, que delícia de mulher! – reconhecia E deu com uma senhora alta, magra,
Jerônimo, recordando no canto da poltrona cabelos grisalhos penteados para o alto da
o regalo de sua nudez confiante enquanto cabeça e presos por um pente de tartaru-
Stravinski espalhava na sala os compassos vi- ga, rosto comprido, olhos empapuçados,
brantes da História do Soldado. – Não quero abotoada num costume preto, ainda com a
outra! Nem há outra igual! – acrescentava, a mão agressiva no botão da campainha.
espreguiçar-se, esticando as pernas. – Não me venhas dizer que não sabes mais
Até nisso fora feliz. Além de retraída e quem sou eu – disse ela, numa voz áspera,
discreta, a Noraldina não lhe dava cuidados: deixando cair o braço que torturava o botão.
sempre que a desejava, ia ao telefone, cha- E Jerônimo, lívido, quase sem fala:
mava-a, e ela não tardava a empurrar a por- – Mamãe! A senhora?
ta do apartamento, discretamente, pisando Ela demorou uns momentos a olhá-lo
de leve os ladrilhos do corredor. dos pés à cabeça.
Enquanto esperava por ela, ouvido aten- – Ainda bem que me reconheceste. Eu é
to ao ranger da porta, Jerônimo se distraía que acabo de levar um susto contigo. Estás
152 • Josué Montello
um velho, Jerônimo. Mais velho do que eu. tua mãe. Hem, Jerônimo, por que não me
Velho e acabado. Um verdadeiro caco. respondeste?
E mudando de tom: Jerônimo, repentinamente apavora-
– Mas não vamos ficar aqui no corredor do, com receio de que a mãe desse com
a olhar um para o outro! Minha mala está os olhos na floreira de Sèvres, postara-se
ali no carro. Por favor, trata de pagar o táxi. diante da mesa, escondendo com o corpo o
Deu um passo para dentro do aparta- fauno e a bacante, e torcia as mãos úmidas,
mento, pisando forte, e logo parou, olhan- com um suor frio a empapar-lhe as costas
do para um lado e para outro, procurando do pijama.
orientar-se, enquanto o filho, atordoado e E D. Angélica, mais irada:
obediente, corria para a porta do edifício, – Hem, Jerônimo: por que não respon-
com a sensação de ter sido apanhado em deste minha carta? Anda, fala!
cheio por uma rajada. Jerônimo, com esforço, levantou a ca-
Quando Jerônimo entrou, vergado ao beça:
peso de uma imensa mala de couro, D. An- – Quem lhe disse que não respondi?
gélica, parada ao centro da sala, olhava à Respondi, sim senhora – mentiu, sustentan-
sua volta, com o lornhão de madrepérola do o olhar.
por cima do nariz comprido. E assim que – E a resposta foi registrada?
viu o filho: – Registrada – confirmou ele.
– Já me tinham dito que moravas num – E onde está o recibo?
palácio. Estou vendo que não mentiram. – Acho que botei fora.
Meus parabéns. Sim senhor. Meus para- D. Angélica atirou a cabeça para trás,
béns – repetiu, cerrando os dentes – E eu, sacudida pelo riso ferino, e logo endireitou
tua mãe, lá na Bahia, morando de favor na o corpo, exaltando-se:
casa do genro, sem o menor conforto, dor- – Aí está a prova de tua mentira, Jerô-
mindo no duro colchão de uma cama tur- nimo! Não tens recibo nenhum. Eu te co-
ca, enquanto o senhor meu filho, instalado nheço, e não é de hoje. Sei do que és ca-
aqui como um nababo, se fazia de surdo paz, com o teu egoísmo! Por ti, eu ficava
aos apelos desta pobre velha que lhe deu a mesmo na Bahia, torturada pelos netos e
vida! Sim senhor! Sim senhor! desfeiteada pelo genro até exalar meu últi-
Continuou a esmiuçar a sala por mais mo suspiro!
alguns minutos, a testa franzida, muito sé- Jerônimo, sempre a esconder a florei-
ria, como interessada nos quadros, móveis e ra, contraiu as sobrancelhas, os braços por
bibelôs em seu redor, e de repente se voltou cima do peito:
na direção do filho, fuzilando olhar azul por – Por favor, não comece brigando – pe-
trás das lentes: diu. – Assim, como podemos viver juntos?
– Por que não respondeste minha carta? – acrescentou, subindo um pouco a voz.
Ainda bem que eu tomei o cuidado de exi- D. Angélica formalizou-se:
gir de volta o recibo do registro. Do contrá- – Que é que pretendes insinuar? Se não
rio, vinhas atirar a culpa ao correio, como se me queres aqui sê franco, para que eu te dê
não houvesses recebido as linhas aflitas de a merecida resposta.
O m o ns t ro • 153
Jerônimo fechou ainda mais o rosto, de desagrado – muito contra a minha von-
torcendo o cabelo das sulcas com a mão tade. Com o tempo – advertiu, franzindo
irritada: enojadamente o nariz – vamos dar um jeito
– A senhora não é criança, eu também neste apartamento. Para palácio pode ser
não sou. Acalme-se, e pare com as suas re- muito bonito, com tantos cacarecos – mas
criminações que de nada adiantam. não para se morar.
D. Angélica encordoou as veias o pesco- Jerônimo tinha corrido à sala para es-
ço, gesticulando: conder a floreira. E agora de volta a alcova,
– Quem tem o direito de se irritar nesta com as mãos atrás das costas, via a mãe
nossa conversa – sou eu. Eu é que fui destra- apossar-se de seus aposentos parado na
tada pelo teu silêncio. Não sou ingênua para moldura da porta, cada vez mais atônito e
deixar de saber que não me queres aqui. Mas alarmado.
o teu dever como meu filho, é me receberes De noite, quando viu o filho acomodar
na tua casa, assim como a minha obrigação, um travesseiro na marquesa de palhinha da
como tua mãe, é ficar perto de ti. Não me sala, para ali passar a noite, D. Angélica es-
respondeste a carta para não me mandares cancelou os olhos espantados:
o dinheiro da passagem, pensando que com – Tu vais dormir nesse sofá, Jerônimo?
isso te livrarias de mim. Pois te enganaste Então tu não sabes que é aí que se deita de-
mais uma vez, Jerônimo. Diante do teu egoís- funto, lá na Bahia? Não, tem paciência: não
mo fiz valer o meu espírito de sacrifício: vendi me venhas com esse mau agoiro. Amanhã
minhas joias, paguei minha passagem, fiquei mesmo, manda esse sofá embora; o que
sem nada – mas aqui estou. fica bem aí é um sofá-cama, desses moder-
E espichando o olhar para o corredor: nos que se abre de noite e fecha de dia. Se
– Não vamos gastar mais tempo em não quiseres comprar, compro eu, pagan-
palavras: Qual é o lugar de minha mala? E do em prestações, com a mensalidade que
onde é que eu vou ficar? naturalmente hás de me dar. Mensalidade,
aliás, que não será favor, porque vou tomar
conta da casa.
Os dois quartos amplos, ligados por um E na manhã seguinte, ao dar com o re-
grande arco, formavam praticamente uma trato de Pedro II na parede da sala, a velha
só peça com a cama D. João V, o guarda- levou uns momentos a examinar-lhe a figu-
-roupas, a cômoda, o oratório barroco, uma ra, enquanto Jerônimo, trombudo, depois
arca de couro, duas cadeiras coloniais, e foi de tomar um comprimido para a dor de
ali que se instalou D. Angélica, não sem an- cabeça que lhe fazia pulsar as têmporas, re-
tes franzir nariz: moía a sua ira da noite em claro, simulando
– De onde te veio esta mania de só ter arrumar papéis na secretária.
em casa coisas velhas? De mim não foi. Te- – Quem é este barbudo de olho azul?
nho horror a velharias e cacarecos. Velhice, Jerônimo não respondeu.
basta a minha, e assim mesmo – pilheriou, – Precisas com urgência examinar esse
sempre a esmiuçar em seu redor com as len- teu ouvido, Jerônimo: estás ficando surdo.
tes do lornhão numa expressão crescente Responde: quem é este barbudo?
154 • Josué Montello
via olhando esse sofá. Ah, Jerônimo, não – Foi para este senhor. E ele quer com-
queiras chegar à minha idade. Estou velha, prar tudo, Jerônimo! – a mesa, as cadeiras,
sei que não ficarei muito tempo neste pla- os retratos dos velhos, os santos, a arca,
neta, mas não quero passar o dia a me lem- a cama, os pratos das paredes, o piano, a
brar da morte, com esse móvel de defunto escrivaninha, e paga à vista! Bem que eu
aqui na sala. Pelo amor de Deus, Jerônimo, estava inclinada a fechar o negócio. Mas
dá um sumiço nesse sofá! achei que era melhor falar antes contigo.
E volvidos dois dias, como Jerônimo tar- Aproveita, meu filho! Outro bobo, disposto
dasse tomar uma providência para tirar da a levar tudo, garanto que não encontras.
sala o móvel fúnebre, D. Angélica, na au- Além de te livrares destas velharias, montas
sência do filho, chamou o primeiro antiquá- um apartamento em condições, com o bom
rio que encontrou na lista telefônica, e fez a gosto de tua mãe.
Jerônimo, de volta do trabalho, uma terrível Quase verde de cólera, Jerônimo apa-
surpresa: no lugar da marquesa de palhi- nhou o cartão, deu às costas à velha, sem
nha, um sofá-cama de pau-marfim exibia o uma palavra, e em silêncio saiu à rua, depois
mau gosto de seu couro escarlate. de bater a porta com estrondo, desapare-
A velha, feliz, assim que o filho entrou cendo na noite fria. Só regressou bastante
na sala, tomou posição para contemplar a tarde, acompanhado por um carregador,
sua obra, assestando o lornhão na direção que trazia de volta a marquesa de palhinha.
do sofá: E após recolhê-la ao depósito de trates
– O ambiente ficou outro, Jerônimo. do edifício com a ajuda do porteiro, disse
Mais alegre. Mais vivo. Dando gosto para à mãe, que o interrogou com o olhar por
se ficar aqui. cima dos óculos, na poltrona da sala, assim
E Jerônimo, com um brilho sinistro no que o viu chegar:
olhar, após longo silêncio, o pomo de adão – O móvel que a senhora vendeu por
a subir e descer: uma ninharia e que eu acabo de reaver com
– O que foi que a senhora fez do sofá? o auxílio da polícia, levei anos para comprar.
– Passei-o adiante, ora essa! Sempre tive E sabe a quem pertenceu? Ao Barão de Sa-
tino para negócio. Com o que apurei por quarema!
aquela almanjarra, já paguei a primeira pres- D. Angélica, sem se impressionar com a
tação dessa maravilha. E eu que estava resol- revelação do filho, continuou a olhá-lo no
vida a dar de graça o teu móvel de defunto! rosto, sem deixar de mover as agulhas de
Jerônimo contraía os maxilares, sofre- seu tricô:
ando a ira. E depois de outro silêncio, mais – E eu sou capaz de apostar contigo que
vermelho de cólera: foi nele que espicharam o Barão quando
– Veja se se lembra a quem foi que ven- morreu. Tu precisas acabar com essa mania,
deu o sofá. Jerônimo. Isso em ti é doença. Procura um
D. Angélica, lépida, na ponta dos pés, médico enquanto é tempo.
apanhou um cartão de cima da secretária, Jerônimo, de tão nervoso, pôs-se a
e o exibiu triunfante, a fisionomia risonha- amassar com ambas as mãos o chapéu, uma
mente aberta: chispa estranha nos olhos empapuçados:
156 • Josué Montello
– Tudo quanto eu tenho aqui, fique a – Que é que há com o meu amigo? Não
senhor sabendo – afirmou no mesmo tom é de hoje e que lhe sinto a mudança. Algu-
ríspido – é de muitíssimo valor. Todas estas ma coisa lhe aconteceu.
peças são autênticas, ouviu? Jerônimo bateu-lhe no ombro, reconhe-
– Ouvi. Não sou surda. cido:
E ele ainda exaltado: – A vida não é como a gente quer – sus-
– Tive de trabalhar muito para pagar pirou.
tudo isto. Só eu sei quanto estas coisas me Estava mais magro, o corpo a dançar
custaram. Por favor: não tire mais nada da- dentro do paletó, ar vencido, as mãos apoia-
qui. É uma caridade que a senhora me faz. das no cabo do guarda-chuva, o chapéu des-
Angélica suspirou, levantando os peitos: cido até às orelhas.
– Nós, na Bahia, a levar uma vida de Muito cedo, saía à rua. E só voltava tar-
apertos, e tu aqui a gastar uma verdadei- de da noite ralado de desgostos, arrastando
ra fortuna em cacarecos! Dá graças a Deus o passo no aclive da ladeira. Adeus, noites
por me teres agora a teu lado, Jerônimo. E calmas de inverno, com o vento úmido a
ouve bem o que vou te dizer: se me apare- gemer lá fora, e ele a ouvir Mozart e Cho-
ces mais aqui com uma só destas velharias, pin, gozando o fumo de seu cachimbo.
jogo tudo isto pela janela, tenha ou não te- Adeus, tardes de sábado a repassar na me-
nha valor. Precisas aplicar o teu dinheiro em mória a nudez da Noraldina, já com as velas
coisas úteis. Não vais fazer mais nada agora nos castiçais para a ceia noturna, o ouvido
sem me ouvir! atento ao rumor cauteloso de seus passos
Depois, sempre a olhar por cima dos no corredor.
óculos, inspecionou à sua volta, rosto fe- E enquanto ele se deixava abater, cada
chado, até se deter por uns momentos na vez mais enfezado e sucumbido, D. An-
parede fronteira, adornada pelos retratos gélica transbordava de felicidade e saúde,
de D. Teresa Cristina e Pedro II: como se a nova vida lhe houvesse restituído
– Eu não quero ser desmancha-prazeres – em grande parte a lepidez da juventude.
advertiu, voltando a fitar o filho. – Se não po- Levantava-se bem-disposta, cantarolava na
des viver sem estes horrores, está aqui quem cozinha preparando o café, e ria, e falava
não te fará morrer. O que aqui está pode ficar. sozinha, e pilheriava com o filho, assim que
Só não consinto é que aqueles dois velhos Jerônimo, arrastava as chinelas, caminho do
passem o dia inteiro me olhando. Tira eles banheiro, a reprimir os queixumes da noite
dali, Jerônimo. Por aqueles dois, eu não me mal dormida:
responsabilizo. Ou escondes esses velhos, ou – Estás tão velho que há quem pense,
eu dou um sumiço neles – e a meu jeito. aqui no edifício, que és meu pai – zombava
ela, acompanhando a mordacidade do re-
paro com um risinho miúdo. – Quando te
O velhote rosado e magro, depois de levantas da cama, assim barbado, só não
tirar o boné, na vênia de todos os dias, me metes medo, porque já me acostumei
aproximou-se de Jerônimo, no balaústre do contigo. Como estás medonho! Medo-
bonde, recolhendo o sorriso: nho e acabado. Teu pai também era feio,
O m o ns t ro • 157
reconheço, mas não chegava a teus pés. tentando ler em vão o jornal da tarde. Por
Não sei a quem foi que saíste. fim, sentindo silêncio na sala, saiu do ba-
Trancado no banheiro, Jerônimo abria a nheiro, rosto mais carrancudo.
ducha para abafar a voz da mãe no ruído da – Já sei que estás pegando fogo porque
água caindo. encontraste visita em casa – acudiu D. Angé-
– Precisas me deixar um pouco mais de lica, ao vê-lo passar calado, cabeça baixa. –
dinheiro para as despesas da casa – recla- Querias que eu vivesse trancada aqui, a con-
mava D. Angélica, à hora do café, com a versar com as paredes, enquanto passas o dia
insistência de uma mortificação. O que me na cidade, gozando as delícias da rua? Posso
dás não chega. E eu não estou aqui para saber que crime cometi, para permanecer in-
fazer milagres. comunicável nesta prisão? Pois fica sabendo
– Já sei, já sei – resmungava Jerônimo, que a condenada reconquistou a liberdade.
mais irritado, abrindo de ímpeto a carteira e Acabou-se o cativeiro, Jerônimo! Não me
tirando fora outras cédulas. – Aqui tem mais. fazes mais de boba. Tudo quanto me disses-
E arrastava a cadeira, saindo da mesa. te dos nossos vizinhos é mentira. A D. Lola,
Todo o seu ordenado era consumido ago- aqui do lado, não é a megera que me pin-
ra nas despesas da casa, sem nada lhe sobrar taste. Nem a D. Binoca, do segundo andar,
para o costumeiro depósito da Caixa Econô- é amigada com o Major: são casados, e bem
mica, com o qual refazia, todos os meses, o casados, Jerônimo. Quem te meteu na ca-
seu sonho de uma viagem à Europa quando beça que o velho Lobão tem um crime de
se aposentasse. morte nas costas? E como foi que soubeste
Como não tinha o que fazer até à hora que a Alzirinha do terceiro andar não é flor
da repartição, perambulava por quase toda que se cheire? Tudo mentira, Jerônimo! E
a manhã nas ruas da cidade, as mãos en- mentira saída de tua cabeça, para eu não me
terradas nos bolsos laterais do paletó, ou dar com ninguém aqui no edifício! O que tu
permanecia num banco de jardim, cigarro querias era ter a tua mãe em cárcere privado,
no canto da boca, a remoer em silêncio a como se eu fosse uma doida ou uma crimi-
amargura de sua vida arruinada, para a qual nosa! E para quê? Para ver se eu assim mor-
não via um remédio ou uma solução. ria mais depressa! Mas a mim não enganas,
– Que é que eu faço, meu Deus? – in- Jerônimo. Hoje tirei tudo a limpo!
terrogava, de si para si a olhar a brasa do Jerônimo, sentado à secretária, de cos-
cigarro, soprando a fumaça. tas para a mãe, ainda de paletó, comprimia
Uma noite, de volta a Santa Teresa, ao os lábios, no esforço para se conter, as mãos
abrir a porta do apartamento, ouviu vo- trêmulas apanhando a esmo pequenos ob-
zes na sala. Ficou à escuta, intrigado. Não jetos, que logo abandonava.
querendo entrar no quarto, para não olhar De repente, levantando-se, deu um
as modificações que a mãe havia feito ali, murro na mesa:
trancou-se no banheiro, à espera de que a – Por favor, pare com isso!
visita fosse embora. E D. Angélica, aproximando-se:
De paletó e gravata, permaneceu qua- – Quando foi que te ensinei a gritar co-
se uma hora sentado no tampo da privada, migo? Não penses que tenho medo de teus
158 • Josué Montello
gritos! Ainda sou muito mulher para te ar- a velha, instalada na poltrona, e munida de
rumar um pau na cabeça e te obrigar a me barulhento rádio de pilha, erguia a voz de
respeitar! contralto por cima da do locutor da música
Parou a um passo da secretária, as veias popular, repisando os seus antigos azedu-
do pescoço engrossadas, olhos fuzilantes, mes, sempre a mover as agulhas do seu tricô.
medindo o filho. Foi numa dessas ocasiões que ela per-
– De agora em diante – prosseguiu, ven- guntou ao filho:
do Jerônimo afundar na cadeira, submisso – Jerônimo, diz-me uma coisa: que irmã
– recebo aqui quem eu quiser. Se o teu pro- era essa que vinha de vez em quando aqui
pósito era me enlouquecer nesta solidão, te visitar?
podes mudar de ideia. E não penses tam- Jerônimo simulou não ter escutado,
bém que me botas para fora de casa com o ao mesmo tempo que se punha a arrumar
teu egoísmo. Daqui, só para o cemitério. E apressadamente os papéis no tampo da
não há de ser tão cedo! mesa, vermelho, uma sensação de ardor nas
O apartamento, outrora tão quieto, daí orelhas e na raiz dos cabelos, olhos baixos.
por diante não teve mais sossego, com a – Não finjas que não estas me ouvindo
frequência dos vizinhos. Volta e meia ba- – volveu D. Angélica, diminuindo o volu-
tiam à porta, solicitando o empréstimo de me do rádio e sustando o movimento das
utensílios caseiros, e até mesmo de artigos agulhas.
de cozinha, ou pedindo licença para usar o – Que irmã era essa que vinha aqui te
telefone. E D. Angélica, sorridente, a dizer visitar, antes de minha chegada? – insistiu,
que sim, muito prestativa. num tom mais firme, a olhar o filho por
Sábado à tarde, a velha reunia à mesa cima dos óculos.
da sala as novas amigas, num biriba anima- Jeronimo atirou os papéis numa gaveta,
do e ruidoso, que lhe dava ao rosto compri- girou depressa a chave, mais vermelho, ore-
mido uma tonalidade sanguínea de saúde. lhas em fogo.
E o jogo entrava pela noite, enquanto Jerô- – Estou esperando que me respondas
nimo, entediado da rua e com a repartição – volveu a velha, chegando o corpo magro
fechada, permanecia numa cadeira da cozi- para a borda da poltrona.
nha, reprimindo a vontade de entrar na sala E ele, a perguntar a si mesmo, com os
para expulsar dali os importunos com uma olhos apertados, qual teria sido a vizinha
estralada de todos os demônios. que viera pôr nos ouvidos da mãe as visitas
– Dá-me paciência, meu Deus! – gemia da Noraldina.
ele, apertando a cabeça entre as mãos, com – Deixe-me em paz – suplicou.
receio de praticar um desatino. – Já começas a que fugir da pergunta.
E quase seis meses durava já o seu tor- Não se trata de te deixar em paz. Quero
mento, sem um dia de paz, sem uma hora apenas que me esclareças um mistério que
de alegria. Aos domingos, por não saber desde ontem está me intrigando. Até onde
como empregar as horas vadias do dia inter- vai minha memória, eu só dei à luz dois fi-
minável, ensaiava concentrar-se nos papéis lhos: tu e a Creusa. Teu pai, que conhecia
da secretária, de costas para a mãe. Logo a mulher com quem tinha casado, nunca
O m o ns t ro • 159
ousou me trair, nem era homem para ter Da secretária passara à estante, face
filho fora do lar. Agora, pergunto: se teu pai afogueada, e fora aos livros, numa inspe-
não me enganou na rua nem eu dei à luz ção de afogadilho, adivinhando orgias e
por conta própria, onde foste encontrar a bacanais nas palavras estranhas que não
tal irmã que vinha aqui te visitar? Sim se- conseguia entender. Volvera ainda uma vez
nhor, Jerônimo: irmã. Pelo menos ela passa- à secretária, apoderando-se do maço de
va aqui no edifício como tua irmã. cartas, e lera-as uma a uma, ali na poltrona
Jerônimo franziu a testa: da sala, por entre exclamações e esconju-
– Já lhe disse que me deixasse em paz – ros, tomada de uma alegria estranha e má,
voltou a pedir. que lhe aguçava as pupilas com um brilho
– Quem precisa ficar em paz sou eu, de triunfo, ante as provas manuscritas das
Jerônimo – replicou D. Angélica, fechando devassidões do filho ali no apartamento.
ainda mais o cerco. – Fiz uma pergunta, – Que porco! Que grandíssimo porco!
quero uma resposta. Tu aumentas a família E à noite, daí por diante, ao recolher-se
por tua conta e risco, envolvendo a minha para dormir, não se limitava a encostar a
reputação ou a reputação de teu pai, e não porta do quarto: depois de duas voltas na
quer eu tire a limpo o que foi que aconte- chave, experimentava a fechadura.
ceu? Não senhor. Tens de pôr o preto no – Vamos: responde! – tornava a dizer
branco. Vamos: responde! agora a Jerônimo, a olhar-lhe as costas
Durante três dias a velha soubera repri- abauladas que se curvavam sobre a escri-
mir-se, à espera do momento melhor para vaninha.
interpelar o filho. E agora as mãos ossudas Jerônimo, depois de um momento de
nos joelhos, fisionomia tensa, não desviava hesitação, cerrou com estrondo o tampo
o olhar duro de Jerônimo, que se curvara da secretária. Depois, como já estava pron-
mais sobre a mesa, ombros e ar da figura to para sair, atravessou rapidamente a sala,
encolhidos. para apanhar o chapéu no cabide do cor-
Na última quarta-feira, ao ensaiar uma redor.
nova arrumação dos móveis da sala, D. An- – Com esse teu ar de puritano – atalhou
gélica havia encontrado por trás de um ar- prontamente D. Angélica, levantando-se
mário a floreira obscena. também, antes que o filho lhe escapasse –
– O que é isto? – interrogara, agachan- levavas aqui uma vida de devassidão. Os de-
do-se. – Oh. Que horror! Valha-me Deus! pravados não eram os teus vizinhos – eras
E estimulada pela curiosidade malsã, en- tu! Tu, Jerônimo! Tinhas aqui uma floreira
trara a revolver as gavetas da secretária, certa indecente, que já reduzi a farelos, e um ba-
de que iria encontrar outros testemunhos da ralho imoral, que piquei e botei na lata do
indecência de Jerônimo. E retraiu-se, olhos lixo! Tinhas ali nas gavetas uma porção de
esbugalhados, quando descobriu, debaixo cartões medonhos, que me arrepiaram os
de um maço de cartas, o baralho francês. cabelos, e umas cartas e bilhetes, que me
– Que horror! É inacreditável! – voltara deixaram de queixo caído. Um horror, Je-
a exclamar, mão espalmada sobre o rosto, o rônimo! E como se tudo isso não bastasse,
olhar coado por entre os dedos. ainda recebias no teu apartamento uma
160 • Josué Montello
vagabunda que fazias passar aqui como tua centrais do Passeio Público para ler o seu
irmã. E para quê, Jerônimo? Para verdadei- jornal.
ras bacanais! Ali, rodeado de altas árvores, a dois pas-
Jerônimo alargou o passo, já com a mão sos da pequena ponte de cimento, sobre
estendida para abrir depressa a porta. E da um laguinho sem água, tinha um pouco
janela da rua, quando ia descendo a calça- de paz nas primeiras horas da manhã. Em
da, ainda ouviu a mãe sussurrar-lhe pela breve, porém, o bulício da cidade crescia
fresta de uma das rótulas: nas ruas circunjascentes, com o estridor das
– Além de devasso – incestuoso! buzinas, os deslizar dos carros no asfalto e
a música das lojas, e esses rumores vinham
até o seu refúgio, por entre o espaçador ba-
Mas foi em dezembro, quando princi- ter de um sino com a torre do relógio fron-
piou a animação da cidade para as festas do teiro dava as horas.
Natal, que Jerônimo sentiu ainda mais a mi- Ultimamente, para atenuar os seus de-
séria e o desespero de sua condição, a ponto sesperos, recorria ao tranquilizante que um
de supor, uma tarde, que iria enlouquecer. companheiro de repartição lhe recomenda-
Todos os anos, por esse tempo, passava ra. Mas o certo é que, cessado o efeito da
ele dias e dias, nas horas que lhe sobravam pílula, experimentava uma sensação mais
da repartição, a armar na sala do aparta- aflitiva de angústia e ficava de pálpebras
mento um vistoso presépio, a que não semicerradas e sem ânimo para se levantar
faltava o brilho móvel de uma estrelinha do banco, tomando de repentina vontade
conduzindo os Reis Magos à manjedoura de morrer.
do Menino Jesus, enquanto uma caixa de Na repartição, mostrava-se áspero e
música repetia a melodia de Noite Feliz. intragável, e isolava-se mais no seu canto,
Este ano, desanimado de tudo, via- calado, carrancudo, os olhos parados numa
-se num banco do Passeio Público, pernas folha de processo, a pena distraída apon-
cruzadas, a olhar a biqueira do sapato, na tando o papel.
esplêndida manhã de sol, sem ter sequer – Que é que você tem, Jerônimo? – per-
aberto os gavetões da cômoda onde jaziam guntara-lhe um colega – Você não é o mes-
as peças do presépio. mo. Está magro, abatido, quase não fala.
Cada vez mais estrangeiro na sua casa, Nem cumprimentar a gente se cumprimen-
ganhava a rua ao aportar do dia, para só ta. Trate de reagir. Seus nervos não andam
voltar à noite, cabisbaixo, em silêncio, en- bem. Tive um amigo que ficou assim. Como
tediado da vida. E a rua agora o atordoava não se tratou em tempo, acabou numa casa
com o ar festivo das lojas, o bulício das cal- de saúde, e de lá não saiu até hoje. Tire uma
çadas e as músicas de Natal. licença. Você precisa mudar de ares.
O contraste entre a amargura que o Jerônimo, numa explosão:
consumia e a alacridade que o rodeava, – Meta-se com a sua vida. Não lhe estou
logo ao descer do bonde de Santa Teresa pedindo conselhos.
na animação do centro da cidade, impelia Até a leitura do jornal, com que de iní-
Jerônimo a refugiar-se numa das alamedas cio ainda se distraía, agora facilmente o
O m o ns t ro • 161
enervava, sobretudo nas ocasiões em que, eterno tricô, D. Angélica não perdera a vaza
logo à primeira página, dava com a notícia para um novo azedume:
de um crime, no estardalhaço das manche- – Precisas soltar os cobres para os pre-
tes. O assassinato de uma velha, misterio- sentes de festas de teus sobrinhos. Para
samente estrangulada num sobradinho da mim, vou logo avisando: não quero nada.
Rua Riachuelo, deixara-o absorto, os olhos Basta-me estar viva e gozando saúde. Mas,
no ar, enquanto um leve tremor se apode- para meus netos, faço questão de mandar
rava de suas mãos. Irritado, sacudira longe alguma coisa. Esperei que tomasses a inicia-
o jornal: tiva de me dar o dinheiro, sem eu te pedir.
– Devia ser proibido contar essas bar- Estou vendo que, se eu for esperar por ti,
baridades! – exclamara, alteando a voz e adeus presentes para aquelas pobres crian-
gesticulando – O crime é contagioso! O ças. Acima delas, colocas o teu egoísmo.
governo está na obrigação de tomar pro- Mas fica tu sabendo que, ou dás por bem
vidências! o dinheiro até terça-feira, não respondo por
E refugiara as mãos nos bolsos laterais dois ou três destes teus cacarecos. E tu sa-
do paletó, dedos crispados, como se o pa- bes, Jerônimo, que eu, o que digo – faço.
vor de si mesmo repentinamente o domi- Sempre dei presentes aos meus netos, mes-
nasse, ao mesmo tempo que a figura da mo no período da mais negra necessidade.
mãe crescia no seu espírito, alta, magra, as Não há de ser agora, quando moro no Rio,
veias no pescoço encordoadas. e na casa de um filho rico, que vou deixar
De tarde, na repartição, apertara a ca- aqueles quatro infelizes sem uma lembran-
beça entre as mãos geladas, muito pálido, ça de Papai Noel!
com a impressão instantânea de que o vi- E depois de um silêncio:
nham prender. Chegara a ouvir o rangido – Por que não me deixar vender meia
das botas dos soldados nos degraus da dúzia daqueles santos velhos lá do quarto?
escada, por trás de suas costas, e logo se Rezar, tu não rezas. Tens santos ali para en-
levantara pronto a dizer que não matara feite. Eu, com a minha Nossa Senhora do
ninguém! Rosário e o meu Senhor do Bonfim, estou
Durante quase uma semana deixara de servida. Os outros santos podem ir embora,
ler jornais. Tinha de consultar um médico – que não me fazem falta.
reconhecia. Ou então mudar de ambiente, Jerônimo, no dia seguinte, cedo, no mo-
indo para uma pensão ou um hotel. mento de sair, deixou sobre a mesa, bem à
Logo, com um lápis e um papel punha- vista, sem uma palavra, o dinheiro reclama-
-se a fazer contas, para chegar por fim a do da mãe.
mesma evidência: não podia arcar agora E D. Angélica, à noite, quando o filho
com a nova despesa. chegou:
E em seu redor, agravando-lhe o deses- – Achei graça quando vi a miséria que
pero, a animação das ruas, com o repique deixaste para as lembranças dos teus sobri-
dos sinos e os cânticos de Natal. nhos, Jerônimo, olha bem pra mim: quan-
Dias antes, na poltrona da sala, moven- do morreres, teu dinheiro não irá contigo
do com incrível agilidade as agulhas de seu no caixão, fica é aqui mesmo na terra, seu
162 • Josué Montello
egoísta. Põe isso na tua cabeça. Para deixares D. Angélica baixou o olhar para o tricô:
de ser um unha de fome. Irra! Aposto que, – Isso não depende de mim, bem sabes.
se fosse para a vagabunda com que saciavas Escorrupicha os cobres para os presentes de
aqui os teus baixos instintos, abrias a cartei- teus sobrinhos, como é de teu dever e obri-
ra, sem tugir nem mugir. Mas, como é para gação, e eu garanto que deixo inteirinha a
dar alegria a quatro crianças órfãs de mãe, o tua corte celeste. Até terça-feira eu espero.
que soltas é uma verdadeira miséria, como E na terça-feira, ao levantar-se, foi em
se estivesses dando uma esmola! Deus pode vão que a velha procurou pelo filho. Em
te castigar, Jerônimo. Hoje estás na opulên- compensação, sobre a mesa da sala, encon-
cia, com a tua boa casa e o teu gordo empre- trou um gordo envelope, que abriu num im-
go, mas amanhã podes estar por baixo, com pulso, rasgando-lhe um dos cantos.
uma mão na frente e outra atrás. Já vi muita – Ainda bem que não se esqueceu do
gente despencar de alturas maiores. E com dinheiro – reconheceu contando as cédulas.
qualidades que tu não tens, Jerônimo! – E deixou a quantia exata, sem um centavo
Jerônimo abriu a carteira: sequer para a pobre mãe, como se eu não
– Veja o que me sobrou para passar o existisse! Ah, ingratidão humana!
resto do mês. Jerônimo, a essa hora, perlongava a
E D. Angélica a olhá-lo por cima dos Praia do Flamengo, indiferente às ondas
óculos: que se esbororavam na muralha de pedra, e
– Pensas que eu sou trouxa? Teu dinhei- molhando a calçada. Na véspera, ao retirar
ro está é na Caixa, bem aferrolhado, e ren- uma parte de seu depósito na Caixa Econô-
dendo juros. E é dinheiro grosso, Jerônimo. mica, voltara-lhe o pavor de si mesmo, e se
Sei de fonte limpa. Não adianta quereres me vira obrigado, por duas vezes, a recorrer ao
enganar com o gesto teatral de arreganhar tranquilizante para não ceder à crise de ner-
a carteira diante de mim. Sou vivida demais vos que o faria chorar. Agora, caminhando
para cair nessa. Inventa coisa melhor. ao léu, cabeça baixa, tentava espairecer na
Riu baixo, em tom de mofa. E depois de fadiga física o mesmo temor, cada vez mais
um muxoxo: forte e obssessivo. De madrugada, acordara
– Já tenho um comprador para os santos. sobressaltado depois de ter visto no sonho
Arranjei uma boa oferta. Até pensei que o o seu retrato na primeira página dos jornais.
homem tinha se enganado e fiz ele repetir. Logo saltara da cama vestira-se às pressas,
Era verdade. Nem vais acreditar. Basta te dizer às pressas ganhara a rua, com receio de se
que, só com a Santa Rita e o Menino Deus, defrontar com a mãe, assim que o dia raias-
eu compro os presentes das crianças e ainda se. No primeiro bonde, descera de Santa Te-
sobra dinheiro para a ceia do Natal. resa sem olhos para a luz sanguínea que co-
Jerônimo redobrou de esforços para não loria o horizonte para os lados do nascente.
explodir. E falando baixo, dentes cerrados, E na cidade, em vez de se refugiar no Pas-
as mãos refugiadas nos bolsos do paletó: seio Público, rumara para a igreja da Lapa,
– Deixe os meus santos em paz. Ali há onde permanecera ajoelhado por mais de
raridades que só eu tenho. Por favor, não hora. Ao sair dali, ainda não de todo apazi-
me faça perder a cabeça! guado, resolvera andar ao léu, andar muito,
O m o ns t ro • 163
para ver se conseguia pelo cansaço físico me disseram que o senhor não tinha ido tra-
atirar de si a ideia do crime. balhar. Mandei meu filho à cidade para ver se
De volta a Santa Teresa, já noite entrada, o encontrava. Pensei mesmo em dar um avi-
deteve-se em meio da ladeira, estranhan- so pelo rádio. Felizmente o senhor chegou. Já
do o aglomerado de gente à porta de seu está na hora de tratar do enterro. Meus pê-
edifício. E mais intrigado ficou ao ver o ar sames.
festivo de seu apartamento, com todas as Sem tirar os olhos da mãe, Jerônimo
luzes acesas e as janelas da rua escancara- permanecia junto ao sofá, fisionomia fe-
das. Retardou mais o passo na lentidão da chada, ombros caídos, sempre em silêncio.
subida, assaltado por novo fluxo de cólera. Parecia abismado na tragédia, assim mudo
Dar-se-ia o caso de que a mãe, com o di- e imóvel. Na verdade, porém, tinha voltado
nheiro destinado aos presentes dos netos, ao domínio de si mesmo, com a instantâ-
ter optado por uma festa aos vizinhos? Pa- nea consciência de que era novamente um
receu-lhe que sim. E estugou a caminhada, homem livre, senhor de seus atos e de sua
levado agora pela ira cega. casa, e ia tratando de esconder por trás do
Por isso não reparou, à entrada do pré- semblante circunspecto, sempre cabisbaixo,
dio, na expressão severa das pessoas que o ombros caídos, a crescente sensação de que
fitavam, ao mesmo tempo que retrocediam se reintegrava na sua antiga paz.
em silêncio, para lhe dar passagem. E so- Obrigado – agradeceu por fim à vizinha,
mente se deteve à porta da sala, boca entre- numa voz desolada.
aberta, as mãos caídas ao longo do corpo, E saiu a providenciar o enterro.
os olhos perplexos diante da figura magra Em menos de duas horas tudo estava ar-
de D. Angélica, rigidamente estendida no ranjado: a capela, o ataúde, a remoção do
sofá escarlate, com duas velas à cabeceira. corpo, e essa, os tocheiros, muitas flores e
– Estamos cansadas de procurar o senhor uma coroa. Não regateou preços nem dis-
– disse-lhe uma das vizinhas, antes que ele se pensou formalidades. E a verdade é que D.
refizesse da surpresa. – Fui com D. Angélica Angélica, embora marcada pela lividez mor-
à cidade fazer as compras de Natal. Anda- tuária, readquiriu boa parte de seu ar teatral
mos muito, tivemos de subir várias escadas, no grande caixão de cedro, com fechos de
ela sempre bem-disposta, cheia de vida. De bronze, que o filho lhe comprou.
repente me disse que estava tonta, com uma – Agora posso descansar – suspirou Je-
dor nas costas. Tomamos logo um táxi e cor- rônimo.
remos para casa. No caminho, ela se sentiu E como se achava sozinho na capela,
melhor. Mas, quando chegou aqui, levou a acomodou o corpo na poltrona, estirou as
mão ao peito, deu um grito e caiu para trás. pernas e dormiu até de manhã. Acordou
Chamei a assistência, que não demorou a sobressaltado com o raio de sol que entrava
chegar. Mas o médico, assim que a examinou, pela vidraça, abriu bem os olhos para ter a
disse logo que nada podia fazer: D. Angélica certeza de que não havia sonhado, e tratou
já estava morta. Coitada, tão alegre, tão sa- de ir a Santa Teresa.
tisfeita, como se vendesse saúde! Telefonei Ali, antes mesmo de se barbear, cha-
imediatamente para a sua repartição, mas lá mou o porteiro, deu-lhe de presente os
164 • Josué Montello
pertences da mãe, inclusive o rádio de pi- antiga de cada peça. Com as sombras da
lha com que esta ouvia as suas novelas e os noite, deu por findo o seu trabalho. De
seus programas de música popular, e ainda si para si, lamentou a falta da fIoreira de
o sofá-cama escarlate, que lhe servira de Sèvres, com o fauno e a bacante enlaça-
essa por algumas horas. Ao mesmo tempo dos. E logo uma ideia lhe acudiu, lúbrica
determinou a volta imediata da marquesa e obsessiva, levando-o a acercar-se do tele-
de palhinha e dos retratos imperiais, para fone em passos lépidos, um fulgor mais vivo
que os encontrasse nos seus antigos lugares nas pupilas castanhas.
ao regressar do cemitério. – És tu, querida? – perguntou, em tom
– E dá uma limpeza em regra na casa, de ternura feliz. – Obrigado por tuas flores.
João – acrescentou, pondo-lhe na mão ca- Sim, correu tudo bem. Graças a Deus. Não,
losa a nota mais alta que trazia na carteira. não estou cansado. Dormi à tarde. Por que
– Ao meio-dia, estou de volta. não vens passar a noite aqui? Vem. Preciso
Voltou mais tarde, porque preferiu al- muito de ti. Tu também? Ótimo! Toma um
moçar no centro da cidade, um pouco lon- táxi. Vou deixar a porta encostada, como
ge do Passeio Público, enquanto em seu re- antigamente. Não te demores. Até já.
dor ressoavam os sinos acompanhando os Assim que repôs o fone no gancho, cor-
cânticos de Natal. Como tinha direito a oito reu à cozinha, inspecionou a geladeira, viu
dias de luto na repartição, apanhou des- que nada faltava e tornou à sala, depois de
cansadamente o seu bonde, na estação do compor o lençol da cama numa entrada rá-
Largo da Carioca, já depois de uma hora, pida na alcova.
como se subisse às Paineiras, para gozar E então, dominado por uma lentidão
uma tarde de sábado ou domingo entre ve- metódica, a que se mesclava o crescente
lhas alamedas do tempo do Imperador. renascer da sensualidade longamente repri-
– Hoje o senhor está com outra cara, Ba- mida, compôs a mesa com os dois lugares
rão – observou o velhote rosado, depois da para a ceia, espevitou a vela nos castiçais de
vênia festiva com o boné. prata, levou a chama do palito de fósforo
E Jerônimo, pagando a passagem: aos pavios, apagou as outras luzes da sala.
– Mais vale quem Deus ajuda ... Antes de sentar na poltrona, com o ou-
No apartamento, depois de uma vista vido apurado na direção do corredor, teve
de olhos à sala, já restituído ao seu ar de uma nova inspiração. Escolheu um dos seus
abade gordo no pijama folgado, deixou-se concertos prediletos, ligou a vitrola, fez o
afundar na paina do colchão do largo leito braço da agulha deslizar por uma das so-
D. João V para dormir regaladamente a sua natas de Mozart, e a música encheu a sala,
sesta. docemente, suavemente, enquanto ele en-
trecerrava as pálpebras, levado pelo roçar
do arco do violino.
Quando despertou, a tarde esmore- E de repente, profanando com o seu ru-
cia. Levantou-se, esticou os braços, ainda ído a diafaneidade da melodia, estrondou
um pouco sonolento, e começou a dar os no apartamento a campainha do telefone.
retoques na recomposição da fisionomia De um salto, Jerônimo acudiu ao aparelho:
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