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Revista

Brasileira
fa s e i x
• abril-maio-junho 2018 •

ano i • n.° 95
Ac a d e m i a B r a s i l e i r a R e v i s ta B r a s i l e i r a
de Letras 2018
Diretoria Diretor
Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni
Secretária-Geral: Alberto da Costa e Silva
Conselho Editorial
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Arnaldo Niskier
Segundo-Secretário: Merval Pereira
Merval Pereira
Tesoureiro: José Murilo de Carvalho
João Almino
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Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin
Alberto da Costa e Silva, Alberto Evaldo Cabral de Mello
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
Produção Editorial
Ana Maria Machado, Antonio Carlos
Secchin, Antonio Cícero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Arnaldo Niskier, Arno Wehling, Candido Revisão
Mendes de Almeida, Joaquim Falcão, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Carlos Nejar, Celso Lafer, Cícero Sandroni, Projeto Gráfico
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domicio Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
Editoração Eletrônica
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Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
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Nelson Pereira dos Santos, Paulo Coelho, E-mail: publicacoes@academia.org.br
Rosiska Darcy de Oliveira, Sergio Paulo site: http://www.academia.org.br
Rouanet, Tarcísio Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário
Ed i torial
Cícero Sandroni  7

D os siê N e lso n P e r e ira d o s S a n to s


Ana Maria Machado  Tributo à Nelson 9
Antonio Carlos Secchin  Adeus, Nelson. 10
Antonio Cicero  O cineasta brasileiro, Nelson Pereira dos Santos 11
Antônio Torres  O Nelson que conheci 12
Arnaldo Niskier  Nelson Pereira dos Santos e a fome de amor 14
Arno Wehling  Um intérprete do Brasil 16
Candido Mendes de Almeida  Cinema: Uma janela para Nelson 17
Carlos Nejar  Nelson Pereira: Saudades 18
Celso Lafer  Homenagem a Nelson Pereira 19
Cícero Sandroni  A literatura no Cinema 20
Domicio Proença Filho  A arte cinematográfica e Nelson 24
José Murilo de Carvalho  Nelson Pereira dos Santos: Cinema e Literatura 25
José Sarney  Nelson, cineasta da cultura universal 26
Marco Lucchesi  Nelson Pereira dos Santos (Alocução) 27
Marcos Vinicios Vilaça  Um homem de Cinema 29
Rosiska Darcy de Oliveira  O Brasil pelos olhos de Nelson 30
Sergio Paulo Rouanet   Nelson, saudade 31
Cacá Diegues  Nelson Pereira dos Santos é uma luz que não se apaga 32
André Miranda  Nelson Pereira dos Santos, cineasta do povo 34
Jan Niklas  “Não é possível falar de cinema sem o nome Nelson Pereira dos Santos”, diz Walter Salles 36
Darlene J. Sadlier  Nelson Pereira dos Santos: In memoriam 37

en s aio
José Murilo de Carvalho  Machado de Assis e Joaquim Nabuco: Patriotas belicosos 39
João Almino  Medeiros e Albuquerque: Irrequieto inovador 45
Ana Maria Machado  Jovita & Companhia 53
Edmar Lisboa Bacha  Os Lisboa: Fragmentos de memória 57
Eduardo Portella  Anotações sobre o cânone 65
Evaldo Cabral de Mello  A sombra de Pombal 67
Sergio Paulo Rouanet  Marcuse e o movimento de maio de 1968 71
Flávio Ricardo Vassoler  Os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa: Crítica e apologia
sociais em Pai contra mãe, de Machado de Assis 75
Floriano Martins  Algumas anotações sobre a vanguarda na República Dominicana: La poesía sorprendida,
Eugenio Granell e Freddy Gatón Arce 81
Márcio Seligmann-Silva  Plurilinguismo, tradução e errância nos poemas de Moacir Amâncio 89
Gabriel Oliven  Medicina e literatura: O encontro das palavras na trajetória de Moacyr Scliar 99
Sandra Bagno  O Paiz do Carnaval: A alcunha recusada por Jorge Amado 105
Henrique Marques Samyn  Em busca de “novos ollos”: Sobre Pálpebra azul, de Helena Villar Janeiro 119

P O ESIA
Flávia Rocha  123
Júlio Machado  131
Mauricio Vieira  137

co n to
Josué Montello  O monstro 143
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Editorial

Cícero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras

E
sta é a edição 95 da Revista Brasilei- do passado e do presente, sejam brasileiros
ra, relativa aos meses de abril/maio/ ou estrangeiros, em relação analítica com
junho. Tal número ainda uma vez hon- questões caras à contemporaneidade. Rea-
ra a tradição da Casa ao trazer grafada em firma-se assim o que nos diz Graça Aranha:
suas páginas o diálogo, o debate vigoroso “A Revista Brasileira teve o dom da tolerân-
em torno do pensamento filosófico, históri- cia e da concórdia. Nas suas páginas e nas
co e artístico, além de apresentar momen- suas salas uma verdadeira confraternidade
tos de expressão criativa. espiritual entre os homens, os mais diver-
Sua primeira seção, “Dossiê Nelson Pe- gentes, floresceu docemente.”
reira dos Santos”, dedica-se ao Acadêmi- As seções “Poesia” e “Conto” seguem
co, ocupante da Cadeira 7, no período de em consonância com a organização edito-
julho de 2006 a abril deste ano, e conta rial por mim adotada. O leitor encontra-
com textos de seus confrades, bem como rá uma narrativa de Josué Montello, mais
de críticos e cineastas de relevante expres- tarde levada para o cinema com o título
são, por meio dos quais se reafirma a nota- “O monstro de Santa Teresa”.
bilidade do saudoso Acadêmico no campo Os interessados na essência da Institui-
do cinema. ção e no pensamento de seus pares encon-
Na seção “Ensaios”, apresentamos in- trarão nestas páginas farto material de pes-
quietantes debates em torno de escritores quisa para ler e rememorar.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   9

D o s s i ê N e l s o n P e r e i r a d o s S a n to s

Tributo à Nelson
Ana Maria Machado
Ocupante da Cadeira 1 na Academia Brasileira de Letras

E
u gostava muito de Nelson Pereira dos Capaz de, já com obra consagrada e quase
Santos. se despedindo, ousar fazer um longa-me-
Nesta hora passam pela lembran- tragem sem locução, diálogos, ou voz em
ça muitos encontros ao longo da vida. Não off, como “A música segundo Tom Jobim”.
vou evocá-los mas começam muitos anos E capaz de dar significado sutil até mesmo
antes do dia em que fui a seu escritório e aos créditos ou ao letreiro inaugural pro-
conversamos sobre a possibilidade de que jetado na tela. Desde seu primeiro longa,
ele se candidatasse à Academia. Primeiro quando já começa a projeção anunciando
foi preciso convencê-lo, evocando a presen- a protagonista que se apresenta. Em vez
ça de Jean Renoir na Academia Francesa. do nome de uma grande estrela a atrair as
Depois, para Nelson chegar a nós, foi um atenções, o espectador lia na tela, após o
caminho longo, trilhado com paciência, de tradicional letreiro em que A produtora x
forma discreta e disciplinada. apresenta: A cidade do Rio de Janeiro em
Revelou-se então o acadêmico de conví- “Rio quarenta graus”.
vio agradabilíssimo e participante no nosso Anos depois, nos brindou com o ines-
dia a dia, assíduo, apresentando propostas, quecível início de “El justicero”: aparece
supervisionando o setor do audiovisual e o a imagem do Condor que caracterizava a
ciclo de Cinema na ABL, desempenhando distribuidora Condor Filmes, toda a plateia
missões junto a universidades no exterior. faz a gracinha de sempre, gritando XÔ, a
Não vou evocá-lo em termos pessoais, ave levanta voo (como sempre, claro), mas
todos aqui o conhecemos e lhe queríamos então a câmera se afasta e aparece o prota-
bem. gonista, vivido por Arduíno Colassanti, sen-
Mas quero celebrar o grande artista que tado numa plateia de cinema, gritando xô!
fica. Aquele que foi, para mim, nosso cine- para uma imagem de condor que levanta
asta maior, agregador, formador de equipes voo... Composição em abismo – classificam
e professor e animador de novas gerações. os teóricos. Brincadeira com a linguagem
Criador inteligente e agudo, em perma- audiovisual, ensinava o diretor.
nente diálogo com a literatura e a música, Era assim Nelson. De múltiplas facetas e
atento à linguagem visual de forma sempre cheio de camadas inesperadas – sérias, di-
consistente, quase clássica, cerebral, sem vertidas, ternas. Por tudo isso sua obra fica e
pirotecnias, mas flexível e criativo, incluindo por tudo isso vamos lembrá-lo sempre com
a moldura em que um filme se apresentava. carinho.
10   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Adeus, Nelson.
Antonio Carlos Secchin
Ocupante da Cadeira 19 na Academia Brasileira de Letras

A
ssisti a mais de uma dezena de fil- Tive a alegria de desfrutar de sua com-
mes dirigidos por Nelson Pereira de panhia, sempre ao lado da querida Ivelise,
Santos, e não hesito em dizer que foi em encontros de que também costuma-
através de sua arte que aprendi, na década de vam participar Edla Van Steen e Sábato
1960, a amar o cinema brasileiro, com “Boca Magaldi.
de Ouro“ (1962) e “Vidas secas“ (1963). Sem nenhuma pompa, sempre acessí-
Evoco também, entre tantas outras, a vel, era exemplo de cortesia e consideração
magnífica adaptação de Memórias do cárce- para com todos que o procuravam.
re, de 1984. Nelson saiu-se igualmente bem Participei, ao lado de vários outros aca-
na transposição de ficcionistas cujos universos dêmicos, de seu filme “Português, a língua
são quase antagônicos: o sertão despojado do Brasil“, de 2009, e comprovei seu dom
de Graciliano Ramos e a Bahia exuberante de de sempre deixar à vontade os entrevistados.
Jorge Amado, de quem Nelson filmou “Tenda Nelson Pereira, de todos os santos e de
dos milagres“ (1977) e “Jubiabá“ (1987). todas as crenças, Nelson, de “O amuleto de
Nele votei quando, em 2006, candidatou- Ogum“. Agora, quando o letreiro da pa-
-se à ABL, e aqui desenvolveu um profícuo lavra “Fim” se projeta na tela em meio à
trabalho em prol da arte cinematográfica, escuridão da sala, estou certo de que seu
organizando um cineclube e incentivando a empenho por um cinema ao mesmo tempo
criação do prêmio para melhor roteiro basea­ comunicativo e elaborado não foi em vão. O
do em obra literária. brilho de sua obra continua a nos iluminar.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   11

O cineasta brasileiro,
Nelson Pereira dos Santos
Antonio Cicero
Ocupante da Cadeira 27 na Academia Brasileira de Letras

N
a verdade, não tenho nada a acres- uma grande produção de Hollywood basea­
centar ao que foi dito sobre Nelson da na obra de Tolstoi. Foi, para mim, uma
Pereira dos Santos. Mas vou contar decepção terrível. Achei que o filme não
rapidamente uma experiência pessoal que chegava aos pés do livro. E decepções se-
tive com a obra dele. Quando eu era ado- melhantes me aconteceram algumas vezes,
lescente, era um tanto esquisito. Morava na ao assistir filmes baseados em livros que eu
Avenida Vieira Souto, em frente à praia, mas, havia lido. Pois bem, quando assisti ao filme
em vez de ir à praia, preferia ficar em casa, de Nelson Pereira dos Santos “Vidas secas”,
lendo. Meu pai tinha uma biblioteca muito baseado no livro de Graciliano Ramos, de
grande e eu lia, quando adolescente, os ro- que eu gostava muito, tive uma experiência
mances clássicos, tanto brasileiros quanto inteiramente diferente. Esse filme me emo-
estrangeiros, que ela continha. O maior que cionou muito e achei que ele não ficava, de
eu tinha lido, tanto do ponto de vista físico maneira nenhuma, atrás da obra literária em
quanto do ponto de vista literário, havia sido que se inspirara. Foi a primeira experiência
Guerra e paz, de Tolstoi. Fiquei entusiasmado, desse tipo que tive e jamais a esquecerei.
encantado com esse romance. Algum tem- Percebi então a grandeza do diretor Nelson
po depois, assisti ao filme “Guerra e paz”, Pereira dos Santos.
12   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

O Nelson que conheci


Antônio Torres
Ocupante da Cadeira 23 na Academia Brasileira de Letras

E
ssa tarde lembra o Glauber Rocha, a menor informação. Mas o Nelson, que
quando dizia “que o nosso povo can- era o Nelson, com aquela paciência que
ta alegre uma terrível alegria de triste- Deus lhe deu, sentou-se à minha frente e
za”. Essa sessão lembra um pouco isso. Há ele fez a entrevista. Ele me disse tudo que
uma tristeza por trás e uma grande beleza era preciso dizer e acabei não passando ver-
por tudo que foi dito aqui e que não deixa gonha perante o meu chefe, fazendo uma
mais espaço para se falar do Nelson. Quem matéria publicável. Iria conhecê-lo melhor
ele foi, a pessoa, o Acadêmico, o artista, o muitos anos depois, não sei como, num
homem completo e que para mim deixou a tempo em que havia uma interlocução en-
impressão de ter sido o cinema novo com tre todas as artes. Música, cinema, teatro,
público. Eu pude ver isso na estreia de “Vi- literatura, tudo se intercambiava. Eu acho
das secas”, em São Paulo, em 1963, que que aqui todos viveram isso, passaram por
assisti num cinema popular, completamente esse tempo, por essa história e foi muito fá-
lotado, às cinco horas da tarde. Coisa que cil chegar ao Nelson e conviver com ele, a
não era comum, a não ser nos filmes de ponto de ele ser um interlocutor privilegia-
chanchada ou nos filmes do Mazzaropi, e do em pesquisas que eu andava fazendo,
o Nelson quebrou essa hegemonia popular sobre o Rio de Janeiro do tempo dos índios,
da narrativa fácil. Ele trouxe outra narrativa, que conhecia muito. E para finalizar, recor-
mas com público. do aqui um episódio do ano 2000, quando
Conheci Nelson no ano de 1960, na fui convidado para um festival literário na
Bahia, quando ele fez uma incursão frustra- Holanda, com participantes da Argentina,
da ao sertão para a primeira tentativa de Guatemala, Colômbia e, por causa desse
filmar “Vidas secas”, e as condições climá- convite, veio outro, para participar do júri
ticas não permitiram. Ele acabou fazendo do Festival de Roterdã para a escolha dos
outro filme, o “Mandacaru Vermelho”, e vinte melhores filmes latino-americanos do
apareceu na redação do Jornal da Bahia, século XX, porém de cine-literatura. O voto
onde um foca estava lá, há poucos dias, era defendido em dez linhas, não mais do
e o editor-chefe o trouxe até mim para eu que isso, e eu defendi “Vidas secas”. Che-
entrevistá-lo. Eu acho que todo mundo que gamos a Roterdã, o diretor do palácio do
começou em jornal passou por essa angús- festival me deu um livro que ele fez com os
tia de ser escalado para fazer uma entre- vinte premiados, escolhidos, com fotogra-
vista com alguém do qual você não tinha ma dos filmes, o voto de cada um em inglês
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   13

e holandês, e eu vi que do Brasil, além de me disse: “É, fizemos uma exceção para o
“Vidas secas”, tinha “Deus e o Diabo na Glauber, porque ele merece. Afinal ele era
Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade con- um cineasta que escrevia. Mas ainda bem
tra o Santo Guerreiro”, do Glauber Rocha. que alguém votou no ‘Vidas secas’, por-
Eu perguntei para o Diretor a razão, pois que teria sido uma grande vergonha para
se tratava de um festival de cine-literatura. esse festival se o ‘Vidas secas’ não estivesse
Claro que eu votaria em “Deus e o Diabo entre os melhores filmes latino-americanos
na Terra do Sol”, se não fosse um festival do século XX.” Enfim, tudo que foi dito so-
de literatura. O João Ubaldo, que não foi, bre Nelson é comprovável, é perfeito. Uma
mas era jurado, votou em “Deus e o Dia- pessoa maravilhosa e tenho uma grande
bo na Terra do Sol” e o cubano Senel Paz, frustração de, ao entrar nessa Casa, não ter
autor de “Morango e chocolate”, tinha vo- desfrutado da sua companhia aqui nesta
tado no outro filme do Glauber. E o Diretor sala. Esta é uma tristeza que eu carrego.
14   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Nelson Pereira dos Santos e a fome de amor


Arnaldo Niskier
Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras

M
embro da ABL desde 2006, o predestinado a dedicar a maior parte de sua
cineasta paulista do Brás Nelson vida ao cinema. Produziu “Rio, zona norte”,
Pereira dos Santos sentava ao filmou documentários sobre a seca do Nor-
meu lado nas sessões plenárias da Casa de deste e, em termos de contracultura, filmou
Machado de Assis. Era um convívio extre- “Fome de amor”, “Quem é Beta” e a co-
mamente amável e, por isso, inesquecível. média carioca “El justicero”, sem esquecer
Seu amigo e admirador, Cacá Diegues, o clássico histórico “Como era gostoso meu
afirmou que Nelson inventou um cinema francês”.
que somente poderia ser feito no Brasil. Le- Nelson Pereira dos Santos foi fundador
vado a assistir a longa-metragens por sua do curso de cinema da Universidade de
mãe, no Cine Teatro Colombo, em São Pau- Brasília e lecionou na Universidade da Ca-
lo, acostumou-se com as obras de autores lifórnia e na Universidade de Columbia, em
como Graciliano Ramos (levou à telas obras Nova York. Como se vê, um intelectual de
como “Vidas Secas” (1963) e “Memórias múltiplas qualidades, que o país perde e la-
do Cárcere”), Machado de Assis (“Azyllo menta profundamente.
muito louco”), Jorge Amado (“Tenda dos Apesar de ter se dedicado também ao
milagres” e “Jubiabá”), Guimarães Rosa (“A jornalismo, participou de atividades de ci-
terceira margem do rio”), Nelson Rodrigues neclubes e de teatro amador, além de se
(“Boca de ouro”), Gilberto Freyre (“Casa- envolver com política, tendo se filiado ao
-Grande & senzala”) e Castro Alves (“Guerra Partido Comunista Brasileiro, do qual se
e liberdade”). Nelson costumava afirmar que desligou em 1956. Em 1949, viajou a Paris.
era de uma geração formada por esses e ou- Durante dois meses, frequentou a Cinema-
tros escritores do modernismo. teca Francesa, de Henri Langlois. Ao voltar,
Vindo para o Rio de janeiro, tornou-se filmou “Juventude”, média-metragem des-
pioneiro do Cinema Novo, com o seu notá- tinado ao Festival da juventude que ocor-
vel “Rio 40 graus”, de 1955. Foi influencia- reria em Berlim. Em 1952, foi assistente de
do pelo neorrealismo italiano, de cineastas Alex Viany em “Agulha do palheiro” e foi
como Roberto Rosselini e Luchino Viscon- acumulando experiências necessárias.
ti. Mesmo tendo feito o curso de Direito Extremamente criativo, Nelson Pereira
na USP (concluiu em 1953) e exercendo dos Santos filmou, em 1976, o seu “Amu-
atividades de jornalista no Jornal do Brasil leto de Ogum”, quando analisou as reli-
e na Manchete, no Rio de Janeiro, estava giões afro-brasileiras e, em 1980, filmou
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   15

o musical “Estrada da Vida”, baseado na do cinema brasileiro”, até ter a sua vida in-
trajetória da dupla Milionário e José Rico. terrompida por um câncer fatal. Deixou a
Ganhou muitos prêmios internacionais e mulher Ivelise, quatro filhos e cinco netos,
herdou de Humberto Mauro o título de “pai além de uma saudade infinita.
16   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Um intérprete do Brasil
Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras

G
ostaria de me associar à homena- Por isso mesmo devemos vê-lo como
gem que a Academia Brasileira de um dos “intérpretes do Brasil”. O conceito
Letras presta ao Acadêmico Nelson ficou associado à redescoberta de nossa
Pereira dos Santos, destacando o que me pa- sociedade pelas obras seminais dos anos
rece ser contribuição essencial de sua obra à 1930, mas certamente houve antes e de-
cultura brasileira. pois muitos intérpretes valiosos da expe­
Quando pensamos em sua vasta e di- riência histórica brasileira. E outro não foi o
versificada produção, o primeiro aspecto a sentido da contribuição de Nelson Pereira
chamar a atenção é a profunda brasilidade. dos Santos. Sua filmografia produziu obras
De início retratou o Rio de Janeiro dos anos de densa leitura – iconológica, no seu caso
50, que acelerava a urbanização, e sua di- – do país e da sociedade brasileira. E para
ferenciação social e geográfica, de que são além do valor intrínseco dessa leitura está,
emblemas “Rio 40 graus” e “Rio Zona Nor- pelo veículo em que se apoia – a imagem
te”. Depois apresentou-nos a herança cul- –, a disseminação social que o filme per-
tural africana no “Amuleto de Ogum”, a te- mite, com um potencial pedagógico mul-
mática nordestina na releitura pela imagem tiplicador, sobretudo num país em que o
da obra de Graciliano Ramos, a percepção percentual de leitores é significativamente
de nosso passado no “cinema histórico” e baixo.
nos documentários, a ironia machadiana e a Intérprete do Brasil, e pioneiro de sua
dele próprio no “Azillo muito louco”. leitura pela imagem, esta a sua marca na
Perpassa em sua obra a brasilidade, cultura brasileira.
sempre acompanhada de um humanismo
empático.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   17

Cinema: Uma janela para Nelson


Candido Mendes de Almeida
Ocupante da Cadeira 35 na Academia Brasileira de Letras

E
u quero salientar o aspecto, usando Os companheiros falaram da sucessão
o conceito de Lévi-Strauss de “arte de obras do nosso homenageado. Mas eu
fundadora”, do nosso reverenciado. quero, voltando a Lévi-Strauss, mostrar em
Digo isto porque cabe a ele a revelação quanto o nosso homenageado realmente
de uma paisagem. Ou seja, ele entrega e chega a um cânone, a partir do contrapon-
funda na nossa literatura a noção da geo­ to que tem nove anos de destaque entre as
grafia urbana, no seu sentido mais rico e suas duas obras antológicas, que são “Rio,
denso. E aí ele começa, ao mesmo tempo, 40 graus” e depois “Vidas secas”. É impor-
e é a marca dessa sua originalidade, o seu tante, no seu conjunto de obras, marcar
pioneirismo. essas duas. E retomo o conceito de Lévi-
Não se pode esquecer o trabalho cria- -Strauss de cânone, porque Nelson chega
dor e inicial de “Juventude”, trabalhando a uma situação absolutamente inimitável
as ruas e as favelas do Rio, ele, paulista, que do que seja o Rio de Janeiro naquele mo-
nunca tivera o choque de conhecer a fave- mento, o que é extremamente importante
la. À favela vai uma premissa do lado ca- para quem iniciou a vida em São Paulo, mas
rioca do nosso homenageado, e ele a viveu se transformou num carioca obcecado, se
profundamente na estupefação, do que era eu assim pudesse dizer. E depois, evidente-
juntar essas ruas, essas favelas. Dizia ele: mente, trabalhando como ninguém a obra
“Em São Paulo, a horizontalidade da pro- e o insight de Graciliano Ramos, no que foi
gressão urbana nos impediu de saber o que o seu trabalho de “Vidas secas”.
era o espanto e o choque das favelas.” A Presidente, a perda do nosso homena-
favela é uma revolução e um choque, que geado em nada reduz a voracidade com
necessariamente ele traz para a nossa estu- que chega a um cânone brasileiro. O impor-
pefação. Digo isso, porque ao mesmo tem- tante foi a sua capacidade de definir uma
po, como em todo grande escritor, não só situação limite da reflexão brasileira e que,
se marca o seu pioneirismo, mas também a sobretudo, a meu ver, “Juventude” estabe-
sua capacidade de chegar ao cânone. lece desde as suas premissas.
18   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Nelson Pereira: Saudades


Carlos Nejar
Ocupante da Cadeira 4 na Academia Brasileira de Letras

N
ão digo que gozei nesta Casa de silenciosa de “Vidas Secas” e a exuberância
Machado, da intimidade de Nelson de “Terceira Margem do Rio”. Tinha, sim, a
Pereira dos Santos, mas o quis bem, exuberância na secura, como Graciliano Ra-
admirando seu jeito de existir na quietude, mos, tinha a vertente exuberante de tentar
de criar sem ruído, de sonhar no dia claro atingir a terceira margem do rio da lingua-
ou ser o que inventou para si – um poeta gem, como Guimarães Rosa.
das imagens do povo. Farejava o aconteci- Os olhos das imagens não são os olhos
mento, deixava-o cansado, polido, tinha o das palavras. Nelson distinguia a diferença
clima de sua época, respirava o que via. e, ao retratar obras-primas literárias, criava
Generoso, objetivo, sem expansão (a um horizonte, que aprendera a manejar a
tudo abrigava no cofre de imagens), como distância das almas. Ou a alma da distância
se fora hábito da infância. Sentava nas ses- entre os seres.
sões da Academia nesta nossa fileira de Era o País na imagem, era uma vontade
maré, à esquerda. Falava pouco, já que ima- coletiva de sonhar. Ao retratar os margina-
ginava demais. lizados, os humilhados e ofendidos, engen-
Nelson, como é sabido, marcou a nos- drou nova paisagem, carregada de tempo
sa cinegrafia. Com “Zona Norte, “Rio 40 humano.
graus”, “Como era gostoso o meu francês” Falava na retina da república, falava de
e outros. Dois filmes, no entanto, o defi- dentro, falava com a coragem de haver trans-
niram para sempre. A contensão e beleza formado o cinema em sua morada eterna.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   19

Homenagem a Nelson Pereira


Celso Lafer
Ocupante da Cadeira 14 na Academia Brasileira de Letras

É
com admiração e saudade que asso- Permito-me concluir lembrando que os
cio as minhas palavras à dos confra- estímulos iniciais de sua sensibilidade cria-
des nesta sessão dedicada a evocar a dora deitam as suas raízes na polivalência
grande figura de Nelson Pereira dos Santos. das vertentes dos que em São Paulo vive-
Reitero o óbvio ao destacar o seu papel ram e estudaram na Faculdade de Direito
de mestre desbravador e consolidador do do Largo de São Francisco.
cinema brasileiro que soube, de maneira Essas origens foram por ele registra-
única, transcriar, com originalidade e força, das no seu belo e abrangente discurso ao
na linguagem própria do cinema os valores assumir a Cadeira n.º 7. Cicero Sandroni
da literatura brasileira. Desta maneira, alar- apontou-as no seu discurso de recepção, e
gou os horizontes e aprofundou o significa- eu mesmo as evoquei mais adiante no meu
do da nossa cultura e da nossa gente. discurso de posse.
20   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

A literatura no Cinema
Cícero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras

E
ste é um momento difícil. É sempre e então, acredito, o de Letras foi esquecido,
difícil prantear o amigo, lembrar sua talvez de propósito.
vida, seu trabalho, sua amizade, os Além de expoente em sua arte, Nelson
momentos que passamos juntos, as tarefas foi escritor de imagens construídas na base
às quais nos dedicamos em colaboração, a da literatura brasileira, tanto na ficção como
cozinha de Nelson, com o seu nhoque sem nos documentários. Era um dos nossos, se
rival no Rio de Janeiro, seja em casa de ami- posso me incluir entre os operários da pa-
gos ou restaurantes, suas lembranças dos lavra, e repito, além de cineasta, foi jorna-
primeiros tempos, conversas em mesa de lista, trabalhou no copy desk do JB quando
bar onde sempre encontramos motivo para este jornal abrigava a fina flor do moderno
outra dose, enfim um homem comum, mas jornalismo brasileiro. Neste sentido também
com uma ideia na cabeça: fazer filmes. um dos nossos nesta Casa onde desde a
E não simplesmente fazer filmes, mas fundação, em 1827, os jornalistas estiveram
fazer filmes baseados em histórias do povo presentes.
brasileiro, contadas por escritores brasilei- Recordo: embora o falar de si seja sem-
ros. Assim ele realizou obra completa, que pre odioso, nos meses finais de 2003, o
sua morte não atinge, ao contrário, preser- poe­ta Ivan Junqueira, presidente desta Aca-
va enquanto houver vida inteligente neste demia, pediu aos seus colegas de diretoria,
planeta. o Acadêmico Evanildo Bechara e este ora-
A época em que ingressei nesta Casa, dor, um programa de conferências para o
graças à generosidade dos acadêmicos de ano seguinte. Lembrei-me então que, em
então, sempre me senti atraído pela posição 2004, o filme “Rio 40 graus”, de Nelson
de Nabuco, o grande defensor da presença Pereira dos Santos, completaria meio sécu-
de expoentes da nossa cultura na Acade- lo de existência, e que o cineasta, no curso
mia. Não terá sido por outra razão que a de sua carreira, realizara pelo menos uma
geração liderada por Afrânio Peixoto colo- dezena de filmes baseados em romances e
cou no pórtico do Petit Trianon, em 1923 contos de autores brasileiros. Sugeri então
(quando recebemos cópia perfeita desta a inclusão, no nosso programa de palestras
joia da arquitetura francesa), a expressão das terças-feiras, de um ciclo dedicado à
Academia Brasileira, omitindo o de Letras. obra de Nelson, homenagem da Academia
Se observarmos bem, veremos que haveria ao cineasta por todos os méritos, já o pa-
espaço para pelo menos mais uma palavra, triarca do cinema brasileiro. Exibimos seus
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   21

filme antes das palestras, o ciclo obteve boa Seu depoimento: “A minha primeira re-
frequência e a partir de então aconteceu lação com o cinema foi essa. Aos dez anos
um caso de amizade entre o cineasta e a eu já estava vendo filmes para adultos, com
Academia, um encantamento das acadêmi- a família. Depois veio o cineclube, o desejo
cas e acadêmicos com aquele senhor gentil, de fazer cinema e as dúvidas sobre a possi-
afável, engraçado, inteligente, culto, enfim, bilidade de fazer cinema no Brasil.” Neste
um candidato perfeito à nossa enganosa transe, aos vinte anos, viajou para a Europa
imortalidade. num cargueiro italiano e foi acolhido com
A mãe de Nelson, dona Angelina Binari amigos em Paris pelo pintor e gravurista
dos Santos, filha de pais italianos da região Carlos Scliar, tio de Moacir Scliar. Em Paris
do Veneto, deu à luz um menino no 22 de frequenta a Cinemateca e recebe a influên-
outubro de 1928 em São Paulo. Ela queria cia do documentarista holandês Joris Ives,
que o filho se chamasse Marco Antonio, mas que valorizava o conteúdo dos filmes e pre-
o pai, o alfaiate Antônio Pereira dos Santos, gava a transmissão de mensagens de con-
preferia que Nelson. Apaixonado por cinema, fiança para os homens na luta por uma vida
cujas salas frequentava todas as noite, se en- melhor. Nelson absorveu bem essas ideias
cantara com um filme do cinema mudo, base- e incorporou-as em seus filmes mais tarde.
ado na vida do Almirante Nelson, o intrépido De volta a São Paulo em 1950, dirige
marinheiro inglês que derrotou a esquadra “Juventude”, documentário em 16 mm
francesa de Napoleão em Trafalgar. E assim sobre os jovens paulistas levado ao Festival
o menino foi batizado Nelson, pequeno equí- de Cinema da Juventude de Berlim onde
voco do seu Antônio, pois Nelson era nome foi bem recebido. No ano seguinte, convi-
de família, o primeiro nome do Almirante era dado por Rodolfo Nanni, foi assistente de
Horácio. Mas não terá sido apenas o nome de direção em “O Saci” baseado no livro in-
batismo inspirado no filme “The Divine Lady”, fantil de Monteiro Lobato. Logo depois veio
dirigido por Frank Lloyd com H. B. Wamer no para o Rio e trabalhou como assistente de
papel do almirante, a marca de sua vocação. direção em “Agulha no Palheiro”, de Alex
O pai de Nelson adorava cinema, todo o do- Viany, filme que recebeu boa crítica, estre-
mingo levava a família para assistir a marato- lado pela cantora Doris Monteiro. Foi tam-
na de filmes à tarde. Ele alugava um camarote bém assistente de Paulo Wanderley no filme
no cineteatro Colombo, no Brás. Nelson, o “Balança, mas não cai”, baseado no popu-
caçula, também ia, embora ainda fosse um laríssimo programa humorístico da Rádio
bebê. Sua mãe, além da mamadeira para o Nacional. Na função de assistente aprendeu
futuro cineasta, levava garrafas de água, leite, com bons mestres, mas não esqueceu ja-
queijo, pão, salame e guaraná. Quatro horas mais a leitura: “Eu acho que aprendi muito
de sessão, de uma às cinco, durante anos. com a literatura. Ao filmar ‘Rio 40 graus’,
Lembrança de Nelson: “Vimos todos aqueles procurei a construção no estilo de James
filmes considerados hoje grandes clássicos da Joyce em Ulisses, criando um dia no Rio de
época. Sempre começava com um documen- Janeiro com muitos personagens, com mui-
tário, e as comédias – o Gordo e o Magro, tas crianças vagando pela cidade. É como
Harold Lloyd, Chaplin e por aí ia.” um mosaico, um mosaico da cidade, e seus
22   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos

habitantes, do que eles poderiam estar pen- A proibição de “Rio 40 graus” gerou
sando ou sonhando.” polêmica; o escritor Orígenes Lessa, mais
Nelson tinha uma ideia na cabeça, e tarde membro desta Academia, também
uma boa ideia, mas faltava uma câmara na publicitário e, portanto, conhecedor das
mão, isto é, recursos para financiar aquele leis do mercado, afirmou que a proibição
filme pleno de calor e crítica social no Rio do filme era burra, mas teria um benefício,
de Janeiro, imaginado por um paulista que pois quando liberado, bateria recordes de
quando não pensava no filme, passava o bilheteria. E assim aconteceu. Quando o
tempo lendo, especialmente os autores filme pôde ser exibido em fins 1956, no
brasileiros de esquerda, que os banqueiros, primeiro ano do mandato do presidente
possíveis financiadores, queriam ver bem Juscelino Kubitschek.
longe, e se possível na cadeia. Cacá Diégues:
Obstinado, Nelson conseguiu alguns re- “Mais até do que uma experiência artísti-
cursos e começou a filmar em 1954, ano de ca, ‘Rio 40 Graus” era um programa de vida ao
qual seu autor nunca seria infiel, mesmo que
grande convulsão política e social marcado
seu cinema passasse por tantas transformações
pelo suicídio de Getúlio Vargas, e o traba-
no futuro. Um programa de vida ao qual aderiu
lho só terminou em 1956. Quando estava toda uma geração de adolescentes e universitá-
pronto para a exibição, “Rio 40 graus” foi rios cinéfilos que juntos se tomariam, em breve,
denunciado como filme comunista. O Che- cineastas brasileiros que marcariam a história
fe da Polícia do Distrito Federal proibiu sua de nosso cinema de modo seminal. Se as telas
exibição sob alegação de que era perigoso do país, tomadas pela produção internacional,
por mostrar apenas os aspectos negativos e sobretudo americana, eram as janelas através
das quais esses jovens aprendiam a amar o ci-
do Brasil e dessa forma seu conteúdo tinha
nema, ‘Rio 40 graus’ foi a porta luminosa pela
potencial para gerar convulsões populares.
qual eles o invadiram.”
E além disso, afirmava o Chefe de Polícia, a
temperatura do Rio de Janeiro chegara aos Depois de “Rio 40 graus”, nunca mais a
40 graus centígrados e dessa forma o títu- cultura brasileira poderia ser a mesma. Ela
lo do filme do cineasta paulista suspeito de tinha sido levada para as ruas em busca da
pertencer ao Partido Comunista começava verdade e da compaixão, em nome da justi-
com o propósito de ofender a Cidade Mara- ça e da beleza, dos sonhos que alimentaram
vilhosa. Acontece que uma antiga portaria o que de melhor fizemos em nosso cinema.
municipal estipulava que quando os termô- Se sua contemporânea bossa-nova era, na
metros da cidade alcançassem os 40 graus música, um projeto de harmonia e elegância
seria automaticamente decretado ponto fa- musical para um país miserável e em grande
cultativo, e os termômetros oficiais estavam mudança social, o cinema inaugurado por
preparados para registrar apenas até 39,9 e “Rio 40 graus” nos exibia a face dolorosa do
jamais chegar aos 40 graus. Assim, quando Brasil que não queríamos mais que existisse,
o ar-refrigerado era um luxo só acessível a mas que não devíamos esquecer.
poucos, a temperatura podia chegar aos 45 E assim continuou Nelson, infatigável em
graus à sombra que, oficialmente, o Chefe sua atividade, sempre com um livro e uma
de Polícia continuava com a razão. ideia nas mãos e uma câmara ainda em
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   23

sonho, na sua cabeça, até que encontrasse o vemos como é indispensável pensar o cine-
financiamento para o filme. Sua trajetória na ma brasileiro além da arte, técnica, indústria
cultura brasileira conquistou os corações dos e comércio e também um fator de identida-
brasileiros e as plateias do Brasil e no exterior, de nacional. O termo lembra um clichê, é
onde seus filmes foram exibidos. certo, mas o cinema é a arte que, por sua
Em mais de meio século de atividades popularidade e caráter global, acessível a
ininterruptas, Nelson não foi apenas o cine- bilhões de seres humanos, pode oferecer,
asta comparável aos grandes, de Lumière a em um instante, o reconhecimento de uma
Eisenstein, ou de Buñuel a Stanley Kubrick. civilização, em escala doméstica e universal.
Além de jornalista e autor ou coautor de livros Civilização e cultura com muitos problemas,
sobre cinema foi conferencista cujas reflexões mas estampando uma face própria, única,
ajudaram a encontrar caminhos para o desen- com seus pecados e virtudes, sua originali-
volvimento do audiovisual no Brasil. Fundador dade e os efeitos da globalização sobre ela,
de cursos de cinema em três universidades e seu dinamismo ou seu marasmo, nas telas
brasileiras, foi professor desses cursos onde do Brasil e de todo o mundo.
se formaram numerosos cineastas hoje em Neste momento de saudade de Nelson
atividade. Produtor de cinema que ofereceu Pereira dos Santos não posso deixar de pen-
emprego a centenas de atores, cinegrafistas, sar como seria bom se o cinema nacional
iluminadores, técnicos, artesãos e operários. chegasse a todos os brasileiros, como se-
Seus filmes apresentados no exterior de for- ria bom se os nossos filmes estivessem ao
ma restrita, como toda produção brasileira, alcance de todos os bolsos e não de uma
receberam prêmios e produziram divisas para parte mínima dos brasileiros e encontras-
a nossa balança comercial. Um artista que sem forma de expandir-se pelo mundo para
contribuiu, portanto, ao seu modo, como mostrar que sim, nós existimos, vivemos no
tantos outros, a economia nacional. mesmo planeta, estamos aqui, e fazemos
Diante de trajetória tão fecunda, deste cinema de qualidade, e este é o nosso retra-
exemplo seguido por tantos realizadores, to sem retoque.
24   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

A arte cinematográfica e Nelson


Domicio Proença Filho
Ocupante da Cadeira 28 na Academia Brasileira de Letras

C
onheci pessoalmente Nelson Perei- Stein, trabalhar junto com ele na elabora-
ra dos Santos nesta Casa. Antes, ção do roteiro e no acompanhamento das
seu nome e sua figura mítica in- gravações, conviver com a magia da sua
tegravam a minha admiração pelo notável criação foi uma revelação e um grande pra-
cineasta revelador de Brasil na arte de seu zer entusiasmado que me fez um adepto
raro talento e paixão totalizante. Logo des- bissexto dessas andanças. E mais. O início
cobri que o Acadêmico discreto, de poucas de uma amizade sólida e fraterna que se es-
palavras, desestruturava a imagem de lenda tendeu a sua dedicadíssima e companheirís-
viva e a distanciava com a sua simpatia, a sima Ivelise, minha irmã. Perdi mais que um
naturalidade nos tratos das coisas, a firme- grande amigo, autêntico, sincero. Sentirei
za de suas convicções a sua simplicidade, saudade da simplicidade com que ele via a
sem prejuízo da consciência plena do traba- vida, com que vivia a vida, do seu encanto
lho a que se dedicava. Nelson parecia viver com os passarinhos, convivas da sua varan-
cinema vinte e quatro horas por dia e foi da à sombra do Cristo Redentor e de sua
pelo cinema que nos aproximamos. Quan- imensa alegria. Em respeito a ela, não choro
do ele aceitou o convite para dirigir o filme a sua partida. Ele cumpriu com galhardia o
“Português, a língua do Brasil”, idealizado seu percurso na inexorável navegação das
por esse que vos fala e por Maria Eugênia águas desse rio fatal, chamado vida.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   25

Nelson Pereira dos Santos:


Cinema e Literatura
José Murilo de Carvalho
Ocupante da Cadeira 5 na Academia Brasileira de Letras

N
elson Pereira dos Santos passou a foi eleito em 2006. Sua eleição deveu-se em
existir para mim em 1963, quando boa parte à grande proximidade que sempre
assisti a “Vidas Secas”. Era estudan- manteve com textos literários, fossem eles de
te da Universidade Federal de Minas Gerais. Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de
Na Belo Horizonte da época, havia intensa Assis, Guimarães Rosa. Creio que Nelson foi
atividade cineclubista coordenada por um unanimidade entre os acadêmicos no que se
Centro de Estudos Cinematográficos. Os ci- refere ao convívio social. Nelson era amável,
neastas da Nouvelle Vague francesa e do ne- alegre, expansivo, dono de sonoras gargalha-
orrealismo italiano eram os mais influentes. das. Enquanto pôde, deu substancial contri-
Os Cahiers du Cinema eram nossa bíblia. Foi, buição à vida cultural da Casa ao promover
então, que assisti a “Vidas Secas”, o primeiro sessões de cinema abertas ao público.
filme de Nelson que via. Foi uma revelação. Estreitamos as relações quando ele ma-
Ajudado pelo texto de Graciliano Ramos, to- nifestou o desejo de fazer um filme sobre
mando de empréstimo alguns traços do ne- d. Pedro II e me procurou para consultas.
orrealismo italiano, e fugindo do excesso de Ivelise deve lembrar-se. Escreveu um exce-
intelectualismo da Nouvelle Vague, Nelson lente roteiro, mas o projeto foi incialmente
tinha produzido um clássico do cinema bra- retardado por falta de financiamento e ago-
sileiro, um clássico que me marcou para sem- ra definitivamente cancelado por sua parti-
pre. Admiração repetiu-se mais tarde, embora da. Fico a imaginar que, em sua permanen-
sem o mesmo impacto, na outra colaboração te preocupação com a injustiça, ele esteja
da dupla Nelson-Graciliano, as “Memórias do agora tentando fazer algum documentário
Cárcere”. Duas pessoas tão diferentes enten- sobre as reclamações dos anjos contra o ex-
diam-se perfeitamente tanto na forma enxu- cesso de trabalho a que possam estar sendo
tas do texto e da imagem como no conteúdo submetidos. Sem problemas de financia-
imbuído de preocupação social. mento, suponho. Nelson ficou a dever-me
Pessoalmente, só nos viemos a conhecer um filme, mas o Brasil todo é seu devedor
na Academia Brasileira de Letras para a qual por sua obra grandiosa.
26   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Nelson, cineasta da cultura universal


José Sarney
Ocupante da Cadeira 38 na Academia Brasileira de Letras

N
elson foi antes de mais nada um ci- de ver durante o Festival de Cinema de Ber-
neasta da cultura universal, da qual lim (hors-concours), quando eu era Cônsul-
ele participou plenamente, seja em -Geral.
festivais internacionais, seja como professor A relação de Nelson com a ensaística
em universidades como a UCLA e a Colum- deu-se através de filmes documentários
bia. Mas sobretudo cineasta da cultura bra- como “Raízes do Brasil”, baseado em Ser-
sileira em seus diversos segmentos: literatu- gio Buarque de Holanda, e “Casa-Grande e
ra, ensaística, música, entre outros. senzala”, de Gilberto Freyre, para mencio-
Com a literatura, o vínculo é dos mais nar apenas dois dos que me pareceram os
estreitos. Nelson se especializou nos últimos mais impactantes.
tempos em dirigir o seu olhar cinematográ- Passemos agora a novo segmento da cul-
fico para a adaptação de roteiros baseados tura, a música, com o filme “A música de Tom
em obras de ficção e ensaística. Menciono Jobim”, de 2011, dedicado ao pai da bossa
apenas alguns exemplos, dando preferência nova, concluído quando Nelson já era mem-
àqueles que tive o privilégio de assistir em bro da ABL. A importância da música para
minha vida errante de diplomata. Nelson já ficara evidente desde 1955, com o
De Machado de Assis, Nelson Pereira filme “Rio 40 graus”, com trilha de Zé Keti.
dos Santos extraiu o roteiro para “Um Azyllo Enfim, ficaria faltando, para completar
muito Louco”; de Jorge Amado, “Tenda de a relação de Nelson com a cultura moder-
Milagres” e o “Amuleto de Ogum”; de Gra- nista, um filme sobre a pintura de Tarsila do
ciliano Ramos “Vidas Secas”, “Memórias do Amaral, que talvez encontremos algum dia
Cárcere“; de Guimarães Rosa “A Terceira entre as obras póstumas da filmografia de
Margem do Rio”, que tive a oportunidade Nelson Pereira dos Santos.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   27

Nelson Pereira dos Santos (Alocução)


Marco Lucchesi
Ocupante da Cadeira 15 na Academia Brasileira de Letras

É
um momento de não rara dificuldade, Nelson teve a ousadia não apenas de
querida Ivelise, colegas e familiares denunciar, mas de criar uma estética da
de Nelson Pereira dos Santos, porque denúncia, humanista, corajosa, que trans-
se espera que o Presidente cumpra o rito, cendesse leituras fundamentalistas. A de-
pronuncie poucas palavras, corifeu de um sigualdade nítida. Uma estética para com-
coro antigo, que traduza, quanto possível, preendê-la e uma ética para denunciá-la:
o sentimento da Casa, dos companheiros e instância permanente de emancipação.
de quantos se reúnem em torno da figura À direita de Nélson, nesta sala dos poe­
luminosa de Nelson Pereira dos Santos. tas românticos, encontra-se Castro Alves. A
Querida Ivelise, somos testemunhas de Cadeira de Nelson não é uma contradição
seu amor a Nelson, vivido de modo intenso, no adjetivo. Nelson e Castro Alves possuem
de parte a parte, e cuidadoso. Prova desses não raras convergências, sob uma perspec-
atributos consolidou-se na travessia recente, tiva generosa, batendo-se para o fim de
cheia de desafios, dolorosa, partilhada pela modos assimétricos, contra a injustiça, no
família, tornada pelo afeto algo mais leve. cinema e na praça, que é do povo, integra
Meu caro Nelson, a emoção não tem mé- e não separa, sob uma ótica republicana in-
trica, estamos cercados de lágrimas-nuvens, contornável.
saudade, comoção. Ao mesmo tempo, tris- Nelson amou como poucos a cultura po-
tes e feridos, mas consolados, na dimensão pular, antes que muitos percebessem essa
fraterna que organiza a presente cerimônia riqueza. Criou imagens antológicas, que até
de adeus. Não se contava com a sua morte. hoje povoam nossas retinas. A sua obra não
Certas pessoas não deviam partir, sobretudo pertence a seu autor, é propriedade de nos-
em momentos ásperos da História. sa gente e do futuro. O autor viverá para
Como disse Tarkovsky, o cineasta escul- sempre. Esse “escultor do tempo” está de
pe o tempo. Nelson Pereira dos Santos, ao viagem e leva um amuleto, no dia da festa
cinzelar imagens vigorosas de nossa iden- popular de São Jorge, a poucos passos da-
tidade, quando o Brasil ainda mal se co- qui, onde o povo se reconhece, nos terrei-
nhecia, deu protagonismo à cidade, como ros e igrejas. “O amuleto de Ogum” é um
conversamos Ana Maria Machado e eu, ci- filme que todos conhecem, todos celebram,
dade multiforme, dando início a um diálogo porque é um símbolo de nosso amigo Nel-
raro de uma cidade nada transitiva, alvejada son, um amuleto de partes dispersas que se
pela desigualdade. integram a partir de uma obra generosa, de
28   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos

um olhar temperado e produtivo, dedicado gino desde já suas conversas intermináveis,


ao povo brasileiro. sem maiores cerimônias, como o reencontro
Querido Nelson, é difícil falar de você de irmãos, entre Rossellini e De Sica, Leon Hir-
sem perder o fio de uma razão, conter as lá- szmann e Joaquim Pedro de Andrade.
grimas. Ouço de algum canto da sala a sua Mas o meu coração, Nelson, vai com
gargalhada tão sonora, tão independente, você. Sem mágoa, seu coração, isento de
salvo-conduto por tantos e diversos territó- rancores e das paixões tristes. Aceite, Nel-
rios que você atravessou sem se fixar. Uma son, a saudade de todos, dos que viveram e
ode à sua independência. Em todos os es- dos que estão para chegar ao mundo. Você
paços, você jamais negociou a sua verdade, é nosso, enquanto houver Brasil, enquanto
simples e altivo, suave e corajoso. houver defesa da arte e inquietação para in-
Nelson foi um poeta da luz, esculpiu na tegrar as partes dispersas da República.
luz a “forma mentis” de chegar ao Brasil. Ima- Adeus, querido Nélson. Adeus.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   29

Um homem de Cinema
Marcos Vinicios Vilaça
Ocupante da Cadeira 26 na Academia Brasileira de Letras

E
u quero focar no Nelson revelador um a falar das coisas do Nordeste, mas de
do Nordeste. Otávio de Farias escre- saber interpretá-las, recriá-las, sem que elas
veu um longo artigo pouco antes da perdessem a sua significativa significância.
publicação de Vidas secas que é uma bo- Eu tenho esse sentimento muito do
bagem completa. Ele disse que o Nordeste meu chão relacionado a Nelson, mas sem
como tema de literatura estava esgotado. esquecer o quanto foi agradável conviver
Esgotado coisa nenhuma. Veio o livro Vidas com ele. Era uma pessoa convivial, disse há
secas, e veio o filme “Vidas secas”. O filme pouco para Ivelise, mesmo quando ficou
não é, para nós nordestinos, uma disserta- surdo. Ele era extremamente comunicati-
ção sobre o Nordeste. Longe disso ou além. vo. Sabia se comunicar, sabia sentir o que
É um renascimento da vida do Nordeste, a gente queria, e a gente sentia também o
das coisas que formam a nossa cabeça. que ele queria dizer. Eu creio agora que a
Nelson não foi, como muitos outros, um Academia deve ter muito cuidado na suces-
dissertador, nem sei se essa palavra existe, são de Nelson. Para que venha alguém com
mas ele não fez uma dissertação sobre o o estofo dele. Não necessariamente porque
Nordeste. Ele fez uma reinvenção do Nor- a Academia deva privilegiar Capitanias He-
deste. Isso é que me parece muito significa- reditárias nas suas Cadeiras. Não tem nada
tivo e deve ficar para Ivelise e para os filhos a ver uma coisa com outra, mas espero que
como o grande contributo dele. A grande Nelson tenha um sucessor que seja igual a
herança que ele deixou foi a de não ser mais ele nas suas virtudes extraordinárias.
30   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

O Brasil pelos olhos de Nelson


Rosiska Darcy de Oliveira
Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras

N
elson foi um artista que se deu oportunidade de dizer isso a ele aqui, quan-
como destino a tarefa de apresen- do nos tornamos colegas, como uma forma
tar o Brasil a si mesmo. Não é uma de gratidão. E se eu repito hoje exatamente
pequena tarefa. Um país complexo em que tudo que disse a ele, lá na sala do Castori-
cabiam as imagens ásperas de “Vidas Se- no, entre as câmeras, que ele trabalhava, é
cas”, mas também a exuberância tropica- porque esses jovens que estão aqui e que
lista de um desfile de escola de samba, que são seus netos, devem realmente se orgu-
termina com o maestro Jobim numa espécie lhar muito desse homem que afinal de con-
de trono tropical, uma das mais belas cenas tas fundou uma geração. Não é pouco não,
do cinema brasileiro, no meu entender. Essa na história de um artista. Não é pouco não.
complexidade do Brasil, esse retrato difícil Nelson Pereira dos Santos fundou uma arte
foi talvez a arte maior de Nelson, desse líder que foi no seu tempo, no momento em que
de uma geração de cineastas que chamou começou uma arte precária no país, que mal
a si o destino do Brasil, de mudar o Brasil. começava, e que ele fez existir com um ta-
Nelson nunca concebeu a sua arte como lento extraordinário, sobretudo com esse
uma manifestação puramente individual, amor pelo Brasil, essa capacidade de trans-
mas ele tinha esse destino, que se dirigiu a mitir esse amor através da diversidade de
uma geração que era a minha, quando eu imagens. Foi essa gratidão que eu quis dizer
tinha a idade desses jovens aqui presentes a ele e que eu repito hoje para vocês. É espe-
hoje. Nelson nos apresentou o Brasil, e tive a cialmente a vocês que eu estou me dirigindo.
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   31

Nelson, saudade
Sergio Paulo Rouanet
Ocupante da Cadeira 13 na Academia Brasileira de Letras

O
Brasil perdeu o primeiro nome meu francês”. Sua obra, em grande parte
do seu cinema moderno. Foi Nel- vinculada à nossa literatura, mostrou sem-
son Pereira dos Santos que, de pre uma profunda percepção de nossa re-
maneira genial, dirigiu alguns filmes que alidade. Na Academia Brasileira de Letras o
marcaram a arte nacional, como “Rio 40 recebi como uma grande contribuição para
graus” e “Vida Secas”, baseada na obra a trajetória de nossa Casa.
de Graciliano Ramos. Como presidente do Sinto profundamente sua morte e junto-
Festival de Cinema de Brasília, entreguei- -me a sua família e a todos os acadêmicos
-lhe os prêmios por “Como era gostoso o por essa perda irreparável.
32   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Nelson Pereira dos Santos é


uma luz que não se apaga
Cacá Diegues
Cineasta

C
omo todo grande artista, Nelson (1958), foi bem compreendido pelos cineas-
Pereira dos Santos é uma luz que tas mais jovens, aqueles que logo formariam
ilumina a criação de um povo, um o Cinema Novo. Era preciso se interessar pelo
marco cultural na história de seu tempo e ser humano mais próximo, sem piedade e
do tempo que virá depois dele. Uma luz que sem demagogia, como se se estivesse desco-
não se apaga. brindo o povo através de sua própria cultura.
No período de aproximação com seus
Morre aos 89 anos o jovens discípulos, no início dos anos 1960,
cineasta Nelson Pereira Nelson iria montar “Barravento”, primeiro
longa-metragem de Glauber Rocha; “Pe-
dos Santos
dreira de São Diogo”, o episódio de Leon
Nelson pertence a uma família de ar- Hirszman em “Cinco vezes favela”; e “O
tistas modernos que escolheram carregar, menino da calça branca”, de Sergio Ricar-
como suas, as dores à sua volta. Que fa- do. Montando meu episódio do mesmo
bricaram um projeto de solidariedade uni- “Cinco vezes favela”, eu e Ruy Guerra, que
versal, capaz de levar sua luz às multidões, estudara em escola europeia de cinema,
com um único sagrado segredo: o da pró-
aderíamos ao grupo. Vivemos tardes e noi-
pria vida que deve ser vivida por todos, em
tes de euforia, à mesa de edição, ouvindo
sua total inteireza. Nelson foi o barqueiro
as explicações sobre como devia ser do jeito
que levou a canoa do gênio modernista ao
que, suavemente, Nelson sugeria.
porto instável do cinema.
Apesar da importância de seus filmes
Apesar da importância de seus filmes
anteriores, “Vidas Secas” (1963) era o
anteriores, “Vidas Secas” (1963) era o re-
resul­tado de tudo aquilo que Nelson nos
sultado de tudo aquilo que Nelson nos en-
sinara, mais o que havíamos aprendido por ensinara, mais o que havíamos aprendido
nossa conta. por nossa conta. O gosto por um realismo
O que ele propunha com seus dois fil- não necessariamente naturalista, voltado
mes inaugurais, “Rio, 40 graus” (1955) e para costumes inéditos, fazia de seus he-
“Rio, Zona Norte” (1957), e o que produzira róis seres dos quais não devíamos sentir
para Roberto Santos, “O grande momento” pena como superiores a eles, mas com os
quais devíamos nos solidarizar. Impressiona-
Cacá Diegues. Publicado em O Globo em 23/4/2018. dos pela luz inédita de Luiz Carlos Barreto,
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   33

sentíamo-nos responsáveis pelas vidas secas Ainda que não saibam disso, cada fotogra-
dos heróis, mas não culpados por elas. ma dos filmes de cineastas brasileiros de
É tão imensa a sua importância funda- qualquer idade estará sempre impregnado
dora, que mesmo o jovem cineasta de hoje, pelo rastro de luz deixado por Nelson Pereira
que nunca tenha visto um filme de Nelson, dos Santos. Nelson é um marco eterno no
é necessariamente tributário do que ele fez. cinema e na cultura do Brasil.
34   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

Nelson Pereira dos Santos,


cineasta do povo
André Miranda
Crítico de Cinema

Diretor foi um sóbrio observador número 7, cujo patrono é Castro Alves, o


do Brasil, retratando os excluídos poeta da resistência, o poeta do povo. Foi o
sem demagogia. assento apropriado: Nelson, com seu cine-
ma, também foi um poeta do povo.

E
m 2011, Nelson Pereira dos Santos me
ligou. “Oi, André, aqui é o Nelson, avô Bem-vindo, Cinema Novo
da Mila.” Ele queria falar sobre seu fil-
Paulistano, formado em Direito na USP,
me “A música segundo Tom Jobim”. Era um
ele foi o cineasta que retratou os margina-
cineasta de 80 e tantos anos, reconhecido e
lizados, os excluídos, os retirantes. Foi o di-
admirado por uma carreira brilhante, ligando
retor de “Rio, 40 graus” (1955), filmando
para um crítico 50 anos mais jovem. Ele não
a favela ao som de Zé Ketti muito antes de
se apresentou como o Nelson do Cinema
alguém inventar o horroroso termo “favela
Novo, como o imortal que adaptou clássicos
movie”. O neorrealista “Rio, 40 graus” nas-
da literatura brasileira ou como o cineasta de
ceu da admiração que Nelson desenvolvera
“Rio Zona Norte” (1957) e “Como era gos-
pelos filmes dirigidos por Roberto Rossellini
toso o meu francês” (1971).
e pelos roteiros escritos por Cesare Zavattini.
Era apenas o Nelson, um avô que gos-
A Vera Cruz fora fechada em 1954, e a
tava de se sentar na varanda de seu apar-
Atlântida se aproximava do fim.
tamento no Largo dos Leões, no bairro do
A proposta de Nelson, ao narrar a histó-
Humaitá, para tomar uma cachaça – nos úl-
ria de meninos pretos e favelados que ven-
timos anos, mudou para saquê –, servir um
diam amendoim nas ruas quentes do Rio,
nhoque que ele próprio cozinhava e trocar
foi fazer um novo cinema brasileiro. Pouco
uma prosa.
depois, não à toa, ele foi o montador do
É aquele Nelson, o avô da minha amiga
primeiro longa-metragem de Glauber Ro-
Mila, e também de Thalita, Bruno, Carolina
cha, “Barravento” (1962). A mensagem
e Gabriel, quem será velado nesta segun-
ecoava: adeus chanchadas, bem-vindo o
da-feira, na Academia Brasileira de Letras
Cinema Novo.
(ABL), a partir das 9h (o corpo será enter-
Nelson foi o precursor. Antes de “Rio,
rado às 16h no cemitério São João Batista).
Ele foi eleito imortal em 2006, na Cadeira 40 graus”, ele já indicava a trajetória po-
lítica que marcaria sua carreira. Foi filiado
André Miranda. Publicado em O Globo em 23/4/2018. ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, em
D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   35

1950, fez o curta “Juventude”, sobre traba- margem do Rio” (1994), a partir de Guima-
lhadores de São Paulo. No ano seguinte, es- rães Rosa. Fora dos sets, foi um dos articu-
creveu na antiga revista Fundamentos que ladores para a criação da Lei do Audiovisual,
era preciso criar uma cinematografia que que permitiu que a produção retomasse seu
reproduzisse “na tela a vida, as histórias, as curso abalado pelos anos Collor.
lutas, as aspirações de nossa gente”. Se hoje o Brasil faz mais de cem filmes por
Ao longo das décadas, o cinema de Nel- ano, Nelson Pereira dos Santos, morto neste
son manteve-se fiel àquela regra. E não era sábado aos 89 anos, merece todos os agrade-
preciso roteiro para que desse certo, era pre- cimentos. Nelson deixou, ainda, dois roteiros
ciso apenas observar o Brasil. O improviso era prontos, ambos sobre a cultura nacional que
comum em seus filmes, como da vez que ro- tanto lutou para preservar: um sobre o impe-
dou “Mandacaru vermelho” (1961) na Bahia rador Pedro II e outro sobre o poeta Castro
quando se preparava para filmar Vidas secas Alves, o patrono da tal Cadeira 7 da ABL.
(1963), mas foi impedido pela chuva.
Pouco depois, desta vez em Alagoas,
Dia de São Jorge
onde a história original foi concebida, Vidas
secas, o livro de Graciliano Ramos, virou um É lá, na Academia Brasileira de Letras,
filme em preto e branco, com fotografia que se dará a despedida de Nelson. Ele não
contrastada e a câmera bem próxima da devia acreditar em destino, mas é incrível a
miséria do protagonista Fabiano e de sua coincidência de que seu velório esteja marca-
família de retirantes. O cinema, sim o cine- do para um 23 de abril, dia de São Jorge, o
ma, expunha as dores do brasileiro. Ogum da mitologia iorubá. Em 1974, Nelson
lançou “O amuleto de Ogum”, no qual o
santo protegia o protagonista Gabriel, inter-
Papel na retomada pretado por Ney Santanna, seu filho. Exibido
Seu olhar para o país seguiu presente no Festival de Cannes, “O amuleto...” tinha
num filme experimental como “Fome de trilha sonora de Jards Macalé e terminava
amor” (1968), uma crítica ao isolamento de com a música “Revendo amigos”.
intelectuais de esquerda; ou numa comédia A letra diz: “Eu vou, eu mato, eu morro,
como “Azyllo muito louco” (1970), obra eu volto para curtir.”
inspirada em “O alienista”, de Machado de Nelson, definitivamente, sempre curtiu.
Assis, que ironizou o dito progresso da dita- Houve uma vez, não faz muito tem-
dura militar. Nelson buscou em Jorge Ama- po, em que o bloco de carnaval Me Beija
do um campo para tratar da miscigenação que sou Cineasta presenciou uma fantasia
brasileira em “Tenda dos milagres” (1977); que teoricamente apenas cinco pessoas no
e retornou a Graciliano Ramos para abordar mundo poderiam usar. Dizia a camisa, usa-
o período da redemocratização com o pre- da por Bruno: “Me beija que eu sou neto
miadíssimo “Memórias do cárcere” (1984). do Nelson Pereira dos Santos”.
Quando o cinema brasileiro teve sua Com sua morte, o cinema brasileiro não
Retomada, no início dos anos 1990, ele perdeu um diretor. Apenas ganhou uma
se manteve presente e dirigiu “A terceira fantasia, muitas lembranças e um avô.
36   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos 

“Não é possível falar de cinema sem o nome


Nelson Pereira dos Santos”, diz Walter Salles
Jan Niklas
Jornalista e pesquisador

O
corpo do cineasta Nelson Pereira dos Santos influenciou não só sua própria
dos Santos foi velado, na manhã obra, como a de todo cinema nacional:
desta segunda-feira, na sede da “Nelson Pereira dos Santos está presente
Academia Brasileira de Letras (ABL), no Cen- toda vez que se pega numa câmera no Bra-
tro do Rio de Janeiro. Artistas e familiares se sil. Ele deu régua e compasso para o moder-
despediram do diretor, que morreu aos 89 no cinema brasileiro. Foi e é uma bússola
anos, no sábado. O corpo foi enviado ao para diversas gerações de diretores.”
cemitério São João Batista para o enterro. Para o diretor, Nelson é um divisor de
O diretor Luiz Carlos Barreto destacou a águas na cultura brasileira: “Assim como
importância de Nelson para a cinematogra- não é possível falar de literatura sem passar
fia nacional: “Ele deixa o legado para o Bra- por Guimarães Rosa e Graciliano Ramos,
sil de que o cinema é uma coisa útil, e não não é possível falar de cinema sem o nome
uma futilidade. Ele engrandecia o especta- Nelson Pereira dos Santos.”
dor, provocava reflexão crítica e emoções Para a atriz Regina Cazé, seu cinema é
verdadeiras. Se Glauber Rocha era o profe- eterno: “Fica uma grande obra que mudou
ta, Nelson era o feiticeiro” – disse Barreto. o cinema nacional.”
O presidente da ABL Marco Lucchesi des- Mila Chaseliov, neta do cineasta, lem-
tacou o caráter simbólico do velório ocorrer brou de Nelson como o "avô flamenguis-
no dia de São Jorge: – O Nelson é um amu- ta", indissociável de sua arte: “A familia res-
leto, um muiraquitã, pois nesse mesmo dia pirava cinema a partir dele. Ele deixa para o
as pessoas estão celebrando o santo, ogum, Brasil um olhar único para nossa identida-
nas ruas e nos terreiros. E essa vida cultural de, para a formação do nosso povo”, disse
foi a que ele retratou de forma inaugural, Mila. Sob o corpo de Nelson, além das flo-
dando visibilidade a toda pluralidade cultu- res, pousa uma vaquinha malhada, uma de
ral do Brasil. Foi um grande homem, e deixa suas manias, lembra Mila. “Ele coleciona-
uma guia ética para nós. va essas vaquinhas, era aficcionado. Tinha
Emocionado, o cineasta Walter Salles prateleiras inteiras cheias dessas figuras”,
afirmou que o trabalho de Nelson Pereira explica a neta.

Jan Niklas. Publicado em O Globo em 23/04/2018.


D o ss i ê N e l so n P e r e i r a dos S a n to s   •   37

Nelson Pereira dos Santos:


In memoriam
Darlene J. Sadlier
Professora Emerita no Departamento de Espanhol e Português na Indiana University-Bloomington

E
ncontrei Nelson pela primeira vez em retrospectiva Fifty Years of Brazilian Cine-
Los Angeles, em 2002, quando ele ma com sete filmes de Nelson, incluindo o
foi agraciado com o Gabriel Figue- recém-lançado “A música segundo Antônio
roa Lifetime Achievement Award no Festi- Carlos Jobim”. Esse filme atraiu um públi-
val Internacional de Cinema Latino. Já nos co enorme – muitos na assistência de nossa
conhecíamos nesse período, mas só por Faculdade de Música, que é reconhecida in-
e-mail. Na época eu estava escrevendo um ternacionalmente.
livro sobre seus filmes, e ele mandou res- Nelson e Ivelise foram convidados e
postas a perguntas que enviei para uma en- passaram uma semana conosco em Bloo-
trevista que faria parte do volume Nelson mington. Ficaram hospedados no Metz
Pereira dos Santos (2003). Mas Nelson fazia Suite, um apartamento enorme no hotel no
parte de minha vida muito anos antes des- campus que a universidade só utiliza para
te encontro na Califórnia e de nossa cor- receber dignitários como o presidente Gor-
respondência. Eu era grande aficionada de bachev, a família Kennedy e o Dalai Lama.
Nelson e durante mais de trinta anos mos- Nelson almoçou e conversou com os alunos
trei pelo menos um a dois de seus filmes de pós-graduação, falou em sessões com o
em cada um de meus cursos sobre cinema. público depois de cada mostra, e ele e eu
Um pouco antes de me aposentar, crei um tivemos uma longa conversa no palco do
curso intitulado “Literatura e Adaptação” cinema onde ele contou histórias – umas
para focalizar o grande talento de Nelson muito engraçadas – sobre suas experiências
(e outros diretores) na área de adaptação. como diretor. Falou também dos desafios e
Além de “Vidas secas”, “Como era gos- dificuldades de fazer cinema no Brasil. Ele
toso o meu francês” e “O alienista”, que deu uma longa entrevista à prestigiosa re-
comentamos na aula, os alunos escreveram vista Black Camera cuja editora está aqui.
trabalhos finais sobre os pouco comentados O número em que a entrevista saiu tem
“Boca de outro” e “Tenda dos milagres”. lindas imagens de muitos de seus filmes.
Sem exceção, os alunos de cinema adora- Creio que Nelson e Ivelise gostaram de sua
vam os filmes de Nelson. Para aqueles alu- visita – a primeira de duas que fizeram a
nos que líam os romances que ele adaptou, nossa cidade universitária no meio-oeste.
essa admiração tornava-se ainda maior. A visita foi a primeira parada de Nelson
Em 2013 organizei com Jon Vickers, numa turnê pelas universidades nos EUA
o diretor do Indiana University Cinema, a organizada pelo Indiana University Cinema.
38   •  D oss iê N els on P e r e i r a d os S a n tos

Nesse mesmo ano, o presidente da India- amizade; a última num restaurante italiano
na University, Michael McRobbie, visitou a em Copacabana que tem uma linda foto de
Academia Brasileira de Letras para assinar Nelson pendurada na parede. A foto, que
o convênio entre as duas instituições. Nessa ficava perto de nossa mesa, surpreendeu
cerimônia, McRobbie, que é cinéfilo, con- todos, inclusive Nelson, e resultou em gran-
cedeu a Nelson a Medalha Thomas Hart des risos e muita alegria.
Benton em reconhecimento a sua grande Embora Nelson já não esteja conosco, ele
contribuição ao cinema mundial. permanece mais do que presente em seus
Tive o grande prazer de entrevistar muitos filmes e entrevistas publicadas e fil-
Nelson no Brasil quando a Editora Papirus madas, e nos ensaios e depoimentos impe-
lançou a tradução em português de Nelson cáveis e perspicazes que ele escreveu duran-
Pereira dos Santos na Livraria Travessa, em te toda a vida. A obra completa escrita de
Ipanema. Lá conheci amigos e fãs de Nelson Nelson ainda espera coleção e publicação.
enquanto assinávamos exemplares do livro. São documentos de inestimável valor não só
Sempre havia uma festa depois de nossos para a história do cinema brasileiro e mun-
encontros profissionais para celebrar nossa dial, mas também para a história do Brasil.
en s a i o

Machado de Assis e Joaquim Nabuco:


Patriotas belicosos

José Murilo de Carvalho


Ocupante da Cadeira 5 na Academia Brasileira de Letras

A
contece com frequência na pesqui- contraste, embora com população muito
sa histórica que ao procurarmos in- menor, o Paraguai, desde que Francisco
formações sobre um tema nos de- Solano Lopez assumira o poder em 1862,
paramos com coisas interessantes que não vinha aumentando o exército, comprando
procurávamos. Foi o que se deu comigo re- armas e construindo sólidas fortalezas com
centemente. Buscava nos jornais da década ajuda de engenheiros ingleses.
de 1860 informações sobre uma jovem vo- Para sanar o problema, o governo criou,
luntária da pátria, Jovita Alves Feitosa, que no início de 1865, os Corpos de Voluntá-
queria ir para a guerra matar paraguaios, e rios da Pátria. Logo a seguir, convocou 15
acabei encontrando a mesma belicosidade mil guardas nacionais, estabelecendo cotas
onde menos a esperava: entre dois futuros para cada província. Para se ter ideia da im-
membros da Academia, Machado de Assis e portância dessas duas medidas, basta dizer
Joaquim Nabuco. que cerca de 60 mil guardas nacionais e 55
Relembro brevemente a situação políti- mil voluntários lutaram na guerra, número
ca na década de 1860, quando o país se muito superior aos 16 mil da tropa de pri-
envolveu em vários conflitos externos. O meira linha, mesmo se somados a estes os
primeiro foi com a Grã-Bretanha no que se 8 mil conscritos.
chamou de Questão Christie. Depois foi a A convocação de guardas nacionais e
vez do atrito com o Uruguai, que resultou voluntários despertou de início grande entu-
na invasão do país vizinho em outubro de siasmo patriótico. Foi o primeiro movimento
1864. Finalmente, veio a guerra da Tríplice cívico de alcance nacional, e surpreendente,
Aliança contra o Paraguai, iniciada em de- dadas as grandes distâncias e as dificuldades
zembro de 1864. O Brasil não tinha exérci- de comunicação. A imprensa da época con-
to preparado para a guerra. Compunha-se tém abundantes provas desse entusiasmo.
apenas de uns 16 mil homens mal treinados Em todo o país, apresentaram-se pessoas
e mal armados. A Guarda Nacional era nu- dispostas a lutar: ricos, pobres, homens, mu-
merosa, mas sem treinamento bélico. Em lheres e crianças. Foi intenso o envolvimento
40   • José Murilo de Carvalho

das mulheres. Em Minas, certa dona Bár- Nação livre, é nossa glória
bara, a exemplo das mães espartanas, teria Rejeitar grilhão servil;
dito ao filho voluntário, ao lhe entregar um Pa[e]reça a nossa memória
Salva a honra do Brasil.
escudo, que voltasse carregando-o ou carre-
gado sobre ele. Até mesmo em Pernambuco Em 1865, ele voltou à carga, agora con-
apareceram voluntários e voluntárias para tra os paraguaios, em longo poema de 87
defender a pátria brasileira. Dona Mariana versos, que os jornais chamaram de monó-
Amália do Rego Barreto, de 18 anos, volun- logo, intitulado “O acordar do Império”. O
tariou-se e discursou em praça pública, exor- monólogo foi declamado no Ginásio Dramá-
tando todos a seguirem seu exemplo. No tico em maio de 1865. Nas Obras Comple-
Ceará, engajou-se dona Joana Francisca Leal tas, ele aparece com o título de “A cólera do
Sousa. Nessa mesma província, um menino Império”. Cito alguns versos:
de uns 9 anos apresentou-se como voluntá-
rio ao presidente, o futuro barão Homem de De pé! – Quando o inimigo o solo invade
Melo. Paternalista, o presidente ofereceu-lhe Ergue-se o povo inteiro; e a espada em punho
uns doces. Má ideia. O garoto retrucou com É como um raio vingador dos livres!
Que espetáculo é este! – Um grito apenas
altivez que o que queria era pólvora.
Bastou para acordar do sono o Império!
O entusiasmo inicial foi compartilhado
[...]
pela elite intelectual do país. Os jornais da
época estão repletos de poemas patrióti- Então (nobre espetáculo, só próprio
cos escritos por homens de letras, alguns já De almas livres!) então rompem-se os elos
De homens a homens. Coração, família,
consagrados, outros iniciantes. Entre os pri-
Abafam-se, aniquilam-se: perdura
meiros estavam Pedro Luís Pereira de Sousa, Uma ideia, a da pátria. As mães sorrindo
Francisco Muniz Barreto, Franklin Távora, Armam os filhos, beijam-nos; outrora
Bernardo Guimarães. Sobretudo, estava Ma- Não faziam melhor as mães de Esparta.
chado de Assis. Entre os novos, destacou-se Deixa o tálamo o esposo; a própria esposa
Joaquim Nabuco. É quem lhe cinge a espada vingadora.1
Machado de Assis já publicara versos
belicosos contra os ingleses em 1863, por Joaquim Nabuco, por seu lado, então
ocasião da Questão Christie. Escreveu então com 16 anos, escreveu um Hino que foi pu-
um Hino Patriótico, cujo estribilho rezava: blicado na Semana Illustrada (15/10/1865,
p. 6), cujo estribilho rezava:
Brasileiros! Haja um brado
Nesta terra do Brasil:
HINO
Antes a morte de honrado
Do que a vida infame e vil! “Levantai-vos, soldado da pátria;
Ide avante vingar a nação!
Cito mais duas estrofes: E voltai glorioso da luta
Ou morrei abraçado ao pendão!”
Quer estranho despotismo
Lançar-nos duro grilhão; 1 Os dois poemas de Machado de Assis podem ser
Será o sangue o batismo encontrados na Obra Completa publicada pela Nova
Da nossa jovem nação. Aguillar em 2008, volume III, pp. 763-64 e 768-70.
M ac h a d o de A ssi s e J oaq u im N a b uc o : P at r i otas b e l ic o s os  •   41

Cito mais algumas estrofes: beirava a irreverência. Cito um samba sobre


uma guerreira:
“Levantai-vos, soldado da pátria!
Clama ao longe o rufar dos tambores! Sinhá Mariquinha,
E em ondas de sangue e poeira Da tropa de linha,
Rojam mortos cruéis invasores. Tem crista de galo
Cai ao longe o poder dos tiranos, Com pé de galinha.
Vence ao longe o brasíleo sinal!
E a metralha varrendo os imigos [sic] A duração da guerra muito além do
Planta ao longe o pendão liberal! previsto, com altos custos financeiros e em
Rolam negras as ondas do Prata,
vidas humanas, arrefeceu o entusiasmo ini-
Pisam bravos a imiga [sic] bandeira; cial, sobretudo a partir da derrota de Curu-
Mas, chamando o universo a combate paiti em setembro de 1866. O próprio barão
Só não cai a nação brasileira. de Cotegipe, ministro da Marinha em 1868,
Levantai-vos, soldado da pátria etc. taxou o conflito de maldito. O entusiasmo
Onde o bravo mais forte cair; inicial desapareceu. Ninguém mais se vo-
Onde o bravo mais forte vencer,
luntariava e o recrutamento passou a ser
Ali há de o pendão brasileiro
todo ele coercitivo. Na historiografia, esta
Entre nuvens de fumo se erguer.
Levantai-vos, soldado da pátria etc. visão do recrutamento foi aplicada à guer-
Lá resplende entre mares de sangue ra como um todo, apagando a memória do
O soldado que rola entre os bravos; entusiasmo inicial. Apagando, especialmen-
E que morre, na morte afrontando, te, a reação de dois patriotas que estariam
Como em vida o poder dos escravos. mais tarde entre os principais fundadores
Levantai-vos, soldado da pátria etc.
da Academia. Nem Machado nem Nabu-
O Amazonas no leito estremece;
co pensaram em ser voluntários. Machado
Mede altivo o horizonte de anil;
Os Andes as grimpas elevam pode mesmo ter esgotado no esforço todo
A saudar o gigante Brasil. o seu estoque de entusiasmo. Nabuco man-
Levantai-vos, soldado da pátria etc. teve grandes reservas de entusiasmo, que
Mas ao longe afrontando os espaços. foram aplicadas mais tarde em outra guerra
E chamando o universo ao terreiro; muito mais importante. Mas não se pode
Entre nuvens de fumo e de glória
excluir de suas biografias a atitude que to-
Se ergue ovante o pendão brasileiro.
maram na década de 1860.
Levantai-vos, soldado da pátria etc.
À peleja restruge a metralha Não terminou aí minha surpresa. Ela
Clama ao longe o estridente clangor; continuou quando encontrei na história da
Ninguém dorme no lar quando o trono voluntária Jovita Feitosa referências a vários
Despertou ao rufar do tambor. futuros acadêmicos. Jovita foi na época a
Levantai-vos, soldado da pátria etc. mais famosa entre os voluntários, a mais
1 de outubro de 1865.
falada, a mais exibida na imprensa, a mais
Joaquim Nabuco.
festejada nos teatros, a mais fotografada,
Na poesia popular, naturalmente, foi a mais exaltada, ou vitimada, em versos.
ainda maior a incidência de poemas. O Era uma cearense de 17 anos que, vestida
tom era em geral menos solene e às vezes de homem, voluntariou-se para ir à guerra.
42   • José Murilo de Carvalho

Aceita como voluntária no Piauí, fez um per- Partir sozinha à guerrilha


curso glorioso até a corte, aclamada como a Ingênua, modesta filha
Joana d’Arc brasileira em São Luís, Paraíba, Qual desenvolto rapaz!
Percorro os sagrados templos
Recife, Salvador. Na capital, os empresários
Do mundo dos panteões,
teatrais esmeraram-se em homenageá-la.
E vejo de tais exemplos
Não sendo aceita como combatente, ela Raros nas outras nações;
permaneceu na cidade e se prostituiu. Dois Só no livro desta terra,
anos depois, tendo sido abandonada pelo Em tempos assim de guerra
amante galês William Noot, ela se suicidou Eu leio que a história encerra
na cama que ele usara em sua residência Esses portentos de ações!
na Rua do Russell, cravando um punhal no
coração. Seu nome foi incluído no panteão A tudo quanto me ouça,
A todos que estão aqui,
dos heróis da pátria em 2017.
Peço palmas para a moça,
O primeiro futuro acadêmico a aparecer
Que ocupa um lugar ali;
em sua vida foi Franklin Dória, futuro barão De Deus humanada ideia
de Loreto, fundador da Cadeira 25. Dória Ela vale uma epopeia!
era o presidente do Piauí quando a aceitou Erguei-vos nobre plateia:
como voluntária, mesmo depois de revelada Essa Amazona aplaudi!
sua identidade feminina. Uma rara e precio-
sa brochura sobre Jovita publicada na época O terceiro foi Lafaiete Rodrigues Pereira,
pode ser encontrada no arquivo da barone- sucessor de Machado de Assis na Cadeira
sa de Loreto doado ao IHGB. 23. Foi ele quem, como presidente do Ma-
O segundo futuro acadêmico foi outro ranhão, recebeu Jovita e a levou a um espe-
Franklin, o romancista e poeta Franklin Tá- táculo teatral.
vora, patrono da Cadeira 14. Távora com- O quarto foi o cearense Gustavo Barro-
pôs e recitou no Teatro Santa Isabel do so, da Cadeira 19, que dedicou um artigo à
Recife, em 1/9/1865, um longo poema em conterrânea na revista O Cruzeiro em 1950,
homenagem à voluntária. com o título de “Uma cearense voluntária
da pátria”.
O que me espanta é a força O quinto, ou melhor, a quinta, foi Dinah
De um feminil coração; Silveira de Queirós, da Cadeira 7. Ela escre-
É ver num peito de corça
veu um conto intitulado “Jovita”, publicado
Brio, valor de um leão!
em 1957 na coletânea As noites do Morro
É sob a forma delgada
De uma mulher delicada do Encanto. Inezita Barroso gostou da his-
Ver uma alma alimentada tória e achou que dava filme. O diretor Os-
Do fogo de uma explosão! valdo Sampaio entusiasmou-se, mas parece
que não deu em nada.
Isto, sim; isto é sublime!
Franklin Dória e Lafaiete tiveram contato
Vale arcos triunfais!
É grande arrostar o vime pessoal com Jovita na condição de políticos
Nortadas e vendavais! e administradores. Mas Franklin Távora,
É coisa que maravilha Gustavo Barroso e Dinah Silveira de Queirós
M ac h a d o de A ssi s e J oaq u im N a b uc o : P at r i otas b e l ic o s os  •   43

viram na trágica história da Joana d’Arc público em uma sociedade patriarcal, e à


brasileira motivo de interesse histórico e atração da paixão e da tragédia na vida dos
ficcional. O interesse de tantos acadêmicos povos. Há na curta e trágica vida dessa Jo-
pela história de Jovita pode dever-se ao fato ana d’Arc frustrada dimensões que podem
de que ela se prende ao impacto da guerra atrair o interesse do historiador, do poeta,
do Paraguai na gestação entre nós de uma do ficcionista, do cineasta, do criador de
ideia de pátria, às ambiguidades e conflitos mitos. Por ser polissêmica, Jovita tornou-se
gerados pela atuação da mulher no espaço poliacadêmica.
Medeiros e Albuquerque:
Irrequieto inovador

João Almino
Ocupante da Cadeira 22 na Academia Brasileira de Letras

P
olêmico polemista, irrequieto ino- professor da Escola de Belas Artes (desde
vador, José Joaquim de Campos da 1890) e presidente do Conservatório Dra-
Costa Medeiros e Albuquerque foi o mático de 1890 a 1892.
fundador da Cadeira 22 desta Academia, a Homem erudito, foi jornalista de grande
mesma a que pertenço. Por isso, no meu destaque, à frente de O Clarin; durante o
discurso de posse, pronunciado em 28 de governo Floriano Peixoto, na direção do jor-
julho último, já tive a oportunidade de fa- nal O Fígaro; mais tarde, do jornal A Folha
lar sobre ele. Mas agradeço ao Acadêmico e, finalmente, com colaborações diárias no
Alberto Venancio Filho e à Acadêmica Ana jornal A Gazeta, de São Paulo. Sobretudo
Maria Machado pelo convite para, uma foi escritor prolífico. Escreveu romances, pe-
vez mais, discorrer sobre aquele que, em ças de teatro, livros de contos, de poesia,
seu tempo, exerceu grande influência nos de ensaio, de crítica literária, além de confe-
meios literários do Brasil. rências e discursos, que lhe deram especial
Nasceu no Recife em 4 de setembro de celebridade e que, reunidos, compõem pelo
1867. Comemoramos, portanto, o sesquis- menos uma dúzia de volumes. Foi deputa-
centenário de seu nascimento. Estudou em do federal por Pernambuco, eleito pela pri-
Lisboa de 1880 a 1884. De volta, fez no Rio meira vez em 1894. Em 1923 foi Secretário-
de Janeiro um curso de História Natural com -Geral desta Academia, que veio a presidir
Emílio Goeldi e foi aluno de Sylvio Rome- em 1924.
ro. Com a vitória da República, foi nome- Crítico feroz de Dom Pedro II, fez opo-
ado secretário do Ministério do Interior e, sição à instituição da monarquia e foi mili-
em 1892, vice-diretor do Ginásio Nacional, tante republicano, sendo inclusive o autor
havendo ocupado em 1897 a Direção Geral da letra do Hino da República. Mas, pro-
da Instrução Pública do Distrito Federal. Foi clamada a República, atacou os governos
republicanos especialmente de Prudente de
Conferência na Academia Brasileira de Letras, em 12 de Morais, durante cuja presidência foi forçado
dezembro de 2017. a pedir asilo à Embaixada do Chile, de Nilo
46   • João Almino

Peçanha, de Hermes da Fonseca e de Epitá- parlamentar com um voto da Câmara.” Na


cio Pessoa. melhor das hipóteses e em raras exceções,
Sobretudo não compactuou com o re- admitindo-se que um presidente tenha sido
publicanismo presidencialista. Em 1914 bem escolhido, ele chegaria sempre ao fim
publicou seu livro O Regime Presidencial de seu mandato diminuído de prestígio. O
no Brasil. Na “Nota Preliminar” à reedição regime presidencial teria trazido, “como
de 1932, com o novo título de Parlamenta- consequência fatal do seu mecanismo, uma
rismo e Presidencialismo no Brasil, afirma, corrupção moral inominável”. Seria “o regi-
talvez ao referir-se tanto à vitoriosa Revo- me das adesões e traições”, pelo interesse
lução de 1930 quanto à fracassada Revo- do parlamentar em se associar a um poder
lução Constitucionalista de 1932, que “os de duração fixa.
acontecimentos atuais provam de um modo Esta foi apenas uma das muitas polêmi-
decisivo a superioridade do regime parla- cas em que se envolveu. Gostava de pole-
mentar. Se fosse nele que estivéssemos, mizar e foi figura polêmica por excelência.
não se precisaria, em caso algum, recorrer à Em 1917 polemizou sobre o projeto de uma
Revolução. Na absoluta normalidade do re- Faculdade de Letras, que João do Rio jul-
gime, um ministério teria caído, outro teria gava inoportuno, pois o momento era de
subido e o Brasil continuaria em paz.” Para trabalho prático; de plantar, desenvolver
ele, o parlamentarismo seria o regime que a produção, proteger as indústrias e de se
mais facilmente poderia corrigir seus erros. construir o Brasil por sua própria energia.
Já no presidencialismo, “desde que o Presi- Chamando João do Rio de “um dos nos-
dente se obstine em uma direção má,” afir- sos escritores mais fecundos e brilhantes”,
ma, “basta que ele tenha o apoio” de um desfere sua característica ironia e mesmo
terço dos senadores “para poder contrapor sarcasmo ao acrescentar que aquele escri-
a sua vontade à de toda a nação”. O regi- tor “se tem mostrado ultimamente grande
me presidencialista seria estável para o mal professor de energia”. Sem recusar a neces-
e instável para o bem, ao atribuir o mesmo sidade de multiplicação das escolas práti-
prazo aos bons e maus governos. Seria o cas, defende os estudos voltados para a alta
regime da irresponsabilidade dos depositá- cultura literária e científica.
rios do poder, já que “o presidente”, diz, Ateu, usou sua língua ferina contra as
“só pode ser condenado por dois terços dos religiões em geral, contra o cristianismo e
senadores presentes à sessão do julgamen- em especial contra o catolicismo. Em suas
to”. Se um presidente chegasse a ser pro- memórias vai referir-se à “estupidez do Cal-
cessado pelo Congresso, não se lhe poderia vário”. “Aceitemos o ponto de vista cató-
infligir senão pena da perda do cargo e, em lico e proclamemos que foi uma cousa su-
alguns casos, a da impossibilidade de exer- blime”, diz ele. “Que foi o que dessa vez
cer qualquer outro cargo. “Assim, depois obteve o já experimentado Deus, que no
de um longo e laborioso processo, que teria dia seguinte ao da Criação teve de reconhe-
perturbado a marcha dos negócios públicos cer que o Homem por ele criado na véspera
e suspendido toda a vida administrativa, era um animal desobediente, o Deus que
chegar-se-ia apenas ao que chega o regime afogou a Humanidade no Dilúvio, o Deus
M e d e i ros e A l b u q u e r q u e : I r r e q u i e to i n ova d o r  •   47

que mandou o filho salvar, redimir a Huma- em 1928 com o Professor Sousa da Silveira.
nidade? Não salvou nada, não redimiu coisa Medeiros e Albuquerque diz que quando a
alguma. Um novo fiasco!” Academia Brasileira fez sua primeira refor-
Afima ainda que “dos vários deuses ma, seu erro fora o de não modificar tudo,
que disputam a imbecilidade dos crentes, mas tudo o que modificou havia obedecido
nenhum tem maioria.” E é especialmente ao critério fonético. Já na ortografia por-
cruel com a religião católica: “No fim de 20 tuguesa, com a reforma de 1911, a regra
séculos, depois de sua segunda errata, ten- obedecia ora ao princípio da simplificação,
do feito matar o Filho, o Deus dos Católicos ora da etimologia, ora da fonética. Ao que
não conseguiu ainda a maioria para os seus Sousa da Silveira responde que a ortografia
crentes!... O grande ridículo é essa religião oficial portuguesa submete-se a uma orien-
inteira, tão absurda no seu conjunto como tação única. E aqui vem a explicação dessa
nas suas partes.” orientação única nas palavras de Sousa da
Já em 1928 entrara em polêmica com o Silveira, citadas por Medeiros: “simplificar e
Padre Pedro Gaston R. da Veiga. Medeiros uniformizar, dentro da medida da prudên-
criticara o que chamou de “indução sim- cia e de acordo com a história da língua e a
plória” em que incorrera o livro de Tasso observação da sua fase atual, tendo sempre
da Silveira, Alegria Criadora, quando dizia em vista a etimologia do vocábulo.” Ora,
que, se o relógio pressupõe um relojoeiro, contesta Medeiros, esta frase demonstra
o mundo pressupõe um autor inteligente. que não houve critério fixo. Em alguns ca-
À defesa teológica então apresentada pelo sos se fez a simplificação. Noutros se recuou
Padre Pedro Gaston da Veiga em resposta dela por causa da prudência. Nuns casos se
a seu artigo, contra-argumenta que “sen- respeitou a etimologia. Mas como não se
do Deus absolutamente perfeito, absolu- diz que ela deve ser respeitada, apenas que
tamente completo, já não podia ter razão se deve tê-la em vista, noutros casos ela foi
alguma para criar nada”. Se adquiriu uma desrespeitada.
nova perfeição com a criação, seria sinal de Suas ideias de reforma ortográfica não
que antes não a tinha. E finalmente pergun- encontraram paralelo em ousadia e malo­
ta: E “quem criou Deus?” Se foi ninguém gro nem no Glauber Rocha de Riverão Sus-
e há, portanto, quem não tenha sido cria- suarana, que criou uma ortografia própria
do, “por que não acreditar que foi o Mun- substituindo “c”, “i” e “s” por “k”, “y”,
do”? Cita um poema de Antero de Quental “z” e “x”. As de Medeiros eram mais sim-
no qual os deuses, com voz triste, dizem: ples: se tivessem prevalecido, com o empre­
“– Homens! Por que é que nos criastes?” E go radical do critério fonético, nenhuma
conclui afirmando: “Se 2 e 2 são realmente criança em início de aprendizado teria dú-
4 – não sei muito bem. Mas de que Deus vida sobre se Mossoró, minha cidade, se es­
não existe – tenho a mais absoluta certeza.” creve com cedilha ou com um ou dois esses;
Outra das questões polêmicas em que se Brasília se escreve com esse ou com zê.
se envolveu diz respeito à reforma ortográ- Por outro lado, não deixariam de provocar
fica em Portugal e no Brasil. A mais famo- choque e mesmo riso em quem prezasse
sa de suas polêmicas nesse campo ocorreu sobretudo as tradições da escrita da língua
48   • João Almino

portuguesa. Carlos de Laet, fundador da desejo de empreender alguma façanha no


Cadeira 32 da Academia, aliás, procurou gênero das de Sherlock Holmes”. A histó-
demonstrar o ridículo a que chegaria a escri- ria se passa num jantar no qual o anel de
ta fonética de Medeiros. Publicou uma carta brilhantes da dona da casa é roubado. Para
sarcástica no Jornal do Brasil, endereçada a o conto, Medeiros e Albuquerque cria um
“Maxadu Dasis”. Referindo-se à “invenção personagem amigo do narrador, o delega-
do Medeirus Albukerke”, pergunta: “Não do auxiliar Alves Calado, que volta noutro
axas tu ke para uma revolusão é muintu conto do mesmo livro, O assassinato de D.
pôku, i para uma desorden já é demais?” Heloisa, juntamente com outro delegado,
Além disso, a palavra “dias”, acrescento Sinfronio Etéocles, que afirma nunca ter
esse exemplo, somente no Nordeste do Bra- sido seduzido pela literatura policial. Conan
sil teria de ser escrita de três maneiras distin- Doyle lhe parecia “um pouco idiota”. Já de
tas, correspondendo à pronúncia “dias” em Edgar [Allan] Poe “ele só conhecia a poesia
Mossoró, “dgias” em Fortaleza e “diash” mais célebre – o Corvo. Nunca lera seus ma-
em Recife. Mas, se o padrão utilizado fosse ravilhosos contos policiais.”
o do Rio, a grafia não seria qualquer dessas Ainda no capítulo das inovações, ele
três, já que aqui a pronúncia é “dgiash”. foi apontado como tendo introduzido o
Não se pode negar a Medeiros e Albu- Simbolismo no Brasil. De fato, já em 1887
querque – convenhamos – que estivesse havia feito circular entre amigos livros
atento às inovações – e mais: que preten- simbolistas trazidos da Europa. Publicou,
desse ele mesmo inovar. E não falo apenas em 1889, o livro de poemas Canções da
dessa defesa de uma reforma ortográfica Decadência, que, pelo menos na superfí-
radical. cie, sofreu influência de poetas simbolis-
Como Deputado Federal, fez votar em tas franceses, antes, portanto, que Cruz e
1898 a primeira lei brasileira sobre direitos Sousa publicasse seu manifesto “A arte”,
autorais (conhecida na época como Lei Me- em 1890, e seu livro Broquéis, em 1893.
deiros e Albuquerque), apresentou o pri- Além disso, revelou conhecimento da esté-
meiro projeto sobre acidentes do trabalho tica simbolista com sua “Proclamação de-
e projeto de lei para a criação do Ministério cadente” noutro livro de poemas, Pecados,
da Instrução Pública e das Belas-Artes, entre do mesmo ano de 1889, e que recolhia po-
outras iniciativas. emas escritos a partir de 1887.
Hoje ele é ainda relativamente lembrado Ambos os livros de poesia foram alta-
por ter sido o primeiro – ou, dependendo mente apreciados em seu momento. Com
do critério, pelo menos um dos primeiros – o tempo, contudo, foi Cruz e Sousa, e não
a introduzir a literatura policial no Brasil. No Medeiros e Albuquerque, quem obteve o
livro de contos Se eu fosse Sherlock Holmes, reconhecimento de real afinidade com o
publicado em 1932, dois dos maiores auto- movimento simbolista. De fato, a poesia
res do gênero, Conan Doyle e Edgar Allan de Medeiros não chega a transpor as fron-
Poe, são citados. Na primeira frase do conto teiras do parnasianismo, poesia “vasquei-
que dá nome ao livro, o narrador afirma: ra e sensualona” no dizer do Acadêmico
“Os romances de Conan Doyle me deram o Alfredo Bosi, a propósito de Pecados. E foi
M e d e i ros e A l b u q u e r q u e : I r r e q u i e to i n ova d o r  •   49

o próprio Medeiros quem contribuiu para Medeiros e Albuquerque também foi


que sua produção poética de juventude (ti- um crítico literário respeitado, segundo
nha apenas 22 anos quando aqueles livros Agripino Grieco um “crítico por excelên-
foram publicados) fosse lida sob o crivo de cia”, que “tudo compreende e tudo sabe
suas confissões, publicadas postumamente. expor com maravilhosa lucidez”. Sucedeu
A elas voltarei. Aqui quero apenas lembrar a Sylvio Romero e a José Veríssimo numa
o que ele afirmou sobre esses seus livros em coluna de crítica literária no Jornal do Com-
Quando eu era vivo: que havia neles versos mercio, que, depois de um intervalo de vá-
de uma sensualidade extrema. Um poema rios anos, veio a ser escrita pelo Acadêmico
do primeiro livro, por exemplo, diz: “Há nos Eduardo Portella. Nas Páginas de Crítica,
meus versos... contorções da Fêmea nua/ em livro publicado em 1920, defendeu uma crí-
que a Carne rija estua/ em desesperos afoi- tica “impressionista”, ou seja, na qual “o
tos/ pelos coitos...” Segundo ele, seriam me- apreciador dos trabalhos diga a impressão
ros exercícios literários a serem contrastados que eles lhe produziram”. Vejamos se esse
com as experiências relatadas na parte rela- método impressionista ainda tem o poder
tiva aos amores de suas memórias já citadas. de nos impressionar quando aplicado por
José Veríssimo, nos seus Estudos de Li- Medeiros ao criticar e ao defender Macha-
teratura Brasileira, diz que a diferença que do de Assis.
a poesia de Medeiros e Albuquerque possa Comentando o livro em que Alfredo Pu-
ter na poesia brasileira se deve a seus “dons jol reuniu suas próprias conferências sobre
de prosador brilhante, versátil, original, im- o bruxo do Cosme Velho, faz primeiro a
previsto, espirituoso, ligeiro”. São, de fato ressalva de que “todos nós, que frequen-
– podemos ainda hoje reconhecer – quali- tamos Machado de Assis, estamos muito
dades de parte de sua prosa de não ficção. perto de sua memória para poder julgá-lo
Foi no campo da psicologia que ele mes- com imparcialidade.” Apesar disso, o jul-
mo se considerou um inovador ao sugerir ga. Para ele, Machado é retraído e tímido.
que seu livro “Tests”, de 1924, que tinha Por isso “deixou uma obra de tímido; não
como subtítulo “Introdução ao estudo dos há nela nenhuma vibração forte, nenhuma
meios científicos de julgar a inteligência e a grande criação.” Não deixou, segundo ele,
aplicação dos alunos”, fosse a primeira pu- nenhum tipo literário que possa por si mes-
blicação brasileira sobre avaliação psicológi- mo viver, como Dom Quixote, de Miguel
ca. Tratava da utilização de testes de inteli- de Cervantes, Tartarin, o personagem do
gência individuais e coletivos e da aplicação romance Tartarin de Tarascon, de Alphonse
de testes na avaliação da aprendizagem. Daudet, e o Conselheiro Acacio, de O Primo
Ainda no campo da psicologia, “poucos Basílio, de Eça de Queiroz. Para Medeiros,
estudos”, segundo ele, o “ocuparam tan- portanto, o Conselheiro Aires, Brás Cubas
to” quanto o hipnotismo. Sobre o assunto ou Bentinho/Dom Casmurro não têm a for-
publicou em 1921 o livro precisamente inti- ça literária desses grandes personagens e
tulado O Hipnotismo, prefaciado pelo Aca- não podem viver por si mesmos. Machado
dêmico e renomado médico Miguel Couto de Assis seria um “apóstolo do meio-termo,
e que veio a contar com várias edições. da moderação, da surdina”. “Pintava a
50   • João Almino

pequenas pinceladas, juntava pormenor a enquanto as obras de Flaubert “tinham


pormenor.” uma gestação laboriosa e ruidosa”, “Ma-
O problema estaria na própria biografia chado punha nisso... a máxima discrição.”
de Machado de Assis. Aludindo ao verso de Na verdade aquilo que parecia uma des-
Francisco Otaviano, diz que Machado “só vantagem da sua biografia, viver do empre-
passou pela vida, não viveu”, medroso que go público, teria contribuído para as gran-
era “de tudo o que era forte”. Não viveu da des qualidades de seu estilo. “Ser-lhe-ia
literatura nem do jornalismo, e sim do em- talvez”, diz ele, “um suplício se [Machado]
prego público. Citando Lawrence Sterne, precisasse viver da literatura, porque assim
para quem o homem é “incapaz de amar teria necessidade de produzir mais intensa-
uma só mulher,” afirma que Machado, vi- mente. Sem pressa, escrevendo por amor à
vendo na mais pura das vidas conjugais, arte, lentamente, pausadamente, lapidou,
“não podia ser... um grande analista de como um joalheiro, o estilo admirável que
corações femininos.” Menospreza, assim, a criou”.
extraordinária caracterização de uma Capi- Medeiros, que, como creio ter mostra-
tu, de uma Sofia ou uma Virgília, para não do, podia ser dialético, senão contraditório,
falar de outros tantos personagens femini- critica Sylvio Romero por cobrar de Macha-
nos da obra do maior escritor brasileiro de do de Assis exatamente o mesmo que ele
todos os tempos. Seria “lícito até suspei- próprio cobra. Páginas de Crítica se abre
tar”, diz Medeiros, “que ele nunca soube o com um ensaio em que, ao teorizar sobre
que era realmente o amor”. O sentimento “A Crítica Literária”, acusa “o crítico sergi-
para com Carolina teria sido “antes uma pano” de só compreender “os sentimentos
dessas firmes e sólidas amizades”. Para Me- fortes. O que constituía o ideal para Ver-
deiros e Albuquerque, que ainda não podia laine: ´pas la couleur´, rien que la nuance´
conhecer um Jorge Luis Borges, “corra-se [“não a cor, somente a nuance”], escapa-
a história literária e não se achará nenhum va absolutamente à compreensão de Sylvio
grande escritor de ficção que tenha sido um Romero. Daí a sua incapacidade”, conclui,
homem exclusivamente de gabinete.” “O “de apreciar” o humor “fino de Machado
escritor de ficção”, diz, “precisa misturar-se de Assis.”
à vida corrente, senti-la, experimentá-la por Se a Machado de Assis faltaram expe-
si mesmo.” riências, especialmente experiências amo-
Se de um lado é o crítico severo de rosas, elas sobraram em Medeiros, a crer
Machado, recriminando Alfredo Pujol por no que ele conta. Na nota introdutória a
considerá-lo “gênio”, de outro reconhe- Quando eu era vivo, no prefácio escrito em
ce que “nenhum homem de letras do seu 1921 e no postscriptum de 1932, garante
tempo e da sua terra o igualou”; que seu que “só disse a verdade” naquelas memó-
estilo é inconfundível, puro, correto, claro, rias. “O capítulo dos amores”, afirma, “é o
de impecável bom gosto, que se impõe pela que escrevo com maior prazer, não por cau-
simplicidade e beleza. Comparar Machado sa de meus possíveis leitores, mas porque
a Flaubert como faz Pujol seria “elogio não a evocação do que nele conto... me diver-
só justo, mas também insuficiente”, pois te intensamente”. Também diverte o leitor
M e d e i ros e A l b u q u e r q u e : I r r e q u i e to i n ova d o r  •   51

– admitamos – com um estilo inegavelmen- longe de dedicar-se ao grande brasileiro


te saboroso, que até hoje lhe assegura um como fará um ocupante futuro da mesma
reconhecido lugar de memorialista. Cadeira 22, Luís Viana Filho, biógrafo por
Afirma que a leitura de seu livro “é excelência. Verdade também que, mesmo
absolutamente proibida em conventos de aqui, o que talvez mais divirta o nosso au-
freiras e recolhimentos de meninas...”. Que tor sejam as deliciosas trivialidades, como
“as pessoas pudicas devem” evitá-lo. E aquela de que a papelada do Barão, traba-
ainda deixa um aviso: “este livro é todo de lhador prodigioso e prodigiosamente anár-
uma futilidade desoladora”. quico, “ia crescendo, crescendo tanto, que
Porém nem tudo são futilidades. Suas ele acabava por ter de mudar-se...” Quando
memórias cobrem períodos de sua infância, faleceu, “descobriram-se entre os papéis de
relatam seu aprendizado precoce (com qua- suas diversas mesas nada menos de 17 reló-
tro anos já lia) e seus tempos de Colégio gios e várias dúzias de lenços!”
Pedro II. Contêm páginas sobre seu pai, um Por causa das histórias picantes das me-
modelo para ele, até no capítulo dos amo- mórias, que na parte relativa aos amores
res. Fazem descrições vívidas da Escola Aca- descreve principalmente os anos trepidan-
dêmica de Lisboa, onde estudou dos 13 aos tes de 1912 a 1916, quando Medeiros mo-
17 anos, participando de travessuras e de- rou em Paris dos 45 aos 49 anos, o editor
senvolvendo o hábito de procurar respostas somente aceitou satisfazer seu desejo de
e soluções não previstas nos compêndios publicar o livro depois de muitas hesita-
escolares. Ali nasceu seu interesse por estu- ções. Ainda assim atribuiu ao autor “plena
dos de filosofia e – pasmem! – de religião, responsabilidade”. Ao que este comenta:
certamente munição para as diatribes que “Mas um defunto, que estará, quando tu
viriam. Descobriu um Tratado de Magne- leres isto, leitor amigo ou inimigo, em pleno
tologia, ao qual atribui seu futuro fascínio inferno, com 100.000 graus de calor à som-
pelo hipnotismo e o ocultismo. O livro dis- bra (se é que no inferno há sombra), faz lá
corre também sobre os últimos tempos da casos de responsabilidade...” Não está, se-
campanha republicana, da qual participou. gundo ele, inspirado nas Memórias de Ca-
Exprime as opiniões do autor sobre vários sanova, que somente leu muito tempo de-
presidentes da república. Há um capítulo pois de escritas as suas, ou seja, em 1930,
sobre o Acadêmico Rui Barbosa. Outro so- “quando”, diz com seu estilo espirituoso,
bre o Acadêmico Barão do Rio Branco. “o governo de Getúlio Vargas, apiedado de
Tendo conhecido de perto o Barão, Me- minha ignorância, obrigou-me a asilar-me
deiros faz referência a diálogos que tiveram na Legação do Peru, para afinal com esse
e que são, em alguns casos, reveladores de longo ócio forçado achar tempo a fim de
questões de fronteiras, às quais o chance- ingerir” aqueles “oito grossos volumes.”
ler tanto se dedicou. Afirma que “a política Medeiros e Albuquerque podia esperar
interna” “desinteressava absolutamente” que seu livro fosse, para muitos, chocante;
àquele diplomata, algo também destacado, para outros, revelador de coragem e ousadia.
digo eu, por Álvaro Lins em sua biografia Hoje não será uma coisa nem outra. Os críti-
sobre Rio Branco. Bem verdade que está cos atuais não vão querer esborrachá-lo por
52   • João Almino

não ser um Nabuco ou um Chateaubriand, que sua atividade donjuanesca se concen-


diferentemente do que previa. Suas minucio- trou num período de tempo relativamente
sas anotações de amanuense sedutor, numa curto e foi dividida com outras tarefas, de
Paris transformada em celeiro de mulheres natureza intelectual. Diz ele textualmente:
cujos maridos partiam para a guerra, reve- “Certo dia, eu li que Don Juan, gabando-se
lam um trabalho organizado, metódico, en- de ter tido 1.003 amantes, fora um pregui-
volvendo bom planejamento e anotações do çoso... De fato. Dedicando-se unicamente
fluxo diário de resultados, ao qual não faltam às seduções, indo das criadas às princesas,
fichas individuais com descrição de vestido e vivendo nesse torvelinho mais de vinte anos
chapéu de cada conquista. Fosse todo esse – só ter tido 1.003 amantes é uma miséria.”
trabalho para um batalhão e não para um Talvez sua conclusão não fosse outra tives-
só homem; fossem as mulheres profissionais se ele levado em conta que esse número –
do sexo e não, como na história de nosso 1.003 – correspondia apenas às conquistas
acadêmico, senhoras casadas, outras noivas, na Espanha.
viúvas, estaríamos diante de um outro Pan- Jamais, diz Medeiros, foi desrespeitoso
taleão e as Visitadoras. Segundo sua defini- com qualquer dessas que chamou de suas
ção, algumas eram mulherzinhas, outras re- caças. Portanto, não terá sido falta de res-
finadas, elegantíssimas, esbeltas, formosas. peito a utilização de estratagemas que in-
O ateu convicto não passava aperto diante cluíram o hipnotismo, o recurso a informa-
de uma católica fervorosa: faziam sexo sob ções de um detetive e as mais distintas e
a proteção de Santo Onofre ou de Santa Te- deslavadas formas de mentira.
resinha do Menino Jesus. Muitas vezes havia Imaginemos que estivesse redondamen-
três encontros por dia. Eis o que ele diz: “al- te enganado quanto à inexistência de vida
moçava com uma, passava a tarde, das três após sua morte no Rio em 1934 e que, do
às seis, com outra e levava uma terceira ao além, se visse confrontado com o argumen-
teatro. A primeira e a terceira eram distra- to semelhante ao daquela personagem Son-
ções. O expediente sério (!) fazia-se entre as ja (Diane Keaton) no filme de Woody Allen
três e as seis”. “A última noite de Bóris Grushenko”, de
Não houve mulher que, ao fim e ao 1975, quando diz que “sexo sem amor é
cabo, não tenha gostado das experiências uma experiência vazia”. Responderia como
amorosas deste Don Juan brasileiro, segun- Bóris, interpretado por Allen: “Sim, mas, en-
do seu relato. Até mesmo aquela que se tre as experiências vazias, é uma das melho-
deixou levar relutantemente num encontro res.” Sobretudo não escaparia hoje em dia
casual reuniu-se de bom grado três vezes à censura severa pela forma como tratava e
mais com ele, sempre a partir de encontros se referia às mulheres. Talvez não consideras-
casuais e sem revelar seu nome nem ende- se razão para se intimidar. Acharia divertido
reço. Falei que ele era um Don Juan brasi- participar de outra polêmica, que lhe servi-
leiro, porém – diga-se de passagem – mais ria de sombra naquele inferno de mais de
produtivo do que o original, considerando 100.000 graus ao qual fora condenado.
Jovita & Companhia

Ana Maria Machado


Ocupante da Cadeira 1 na Academia Brasileira de Letras

N
a última sessão, quando o Acadê- medieval ibérico. Talvez reverberação dos
mico José Murilo de Carvalho nos feitos históricos de Joana d’Arc e da força
trouxe sua rica colaboração sobre mitológica das guerreiras amazonas. E com
Jovita Feitosa – que se vestiu de homem origens em motivos asiáticos muito antigos.
e se apresentou como Voluntária da Pá- Mas o fato é que o assunto se manteve
tria para ir lutar na guerra do Paraguai –, o muito forte em nossa tradição popular – em
presidente Marco Lucchesi em seguida fez prosa e verso. São exemplo disso as inúme-
uma referência brincalhona a mim, evocan- ras variantes de histórias como a de Dom
do eventual contribuição minha ao tema, Varão, com seu obsessivo estribilho,
ocorrida em uma conversa paralela a uma “Os olhos de Dom Varão / são de mulher.
reunião da diretoria. De homem, não!”
Hoje venho esclarecer melhor, ao menos
para que não se pense que também estou Sua influência em nossa literatura con-
pensando em pegar em armas quando nos temporânea culmina, evidentemente, em
reunimos. Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, mas
Acontece que há muito tempo me inte- se trança também com as raízes africanas
resso, ainda que de forma periférica e sem o fortíssimas da Rainha Ginga, ecoa em Luzia
rigor histórico de nossos confrades, pelo tra- Homem e no Memorial de Maria Moura.
dicional tema literário da mulher que se ves- Foi admiravelmente estudada por Leonar-
te de homem para ser soldada. E quando, há do Arroyo e por Walnice Nogueira Galvão.
algum tempo, José Murilo mencionou que Por vezes se mescla com reverberações de
estudava a figura de Jovita Feitosa, eu lhe figuras históricas, de Maria Quitéria a Anita
trouxe menção a outros casos, fora de nos- Garibaldi, mesmo se sabendo que esta não
sas fronteiras, notadamente na Guerra da precisou se vestir de homem nem se marcar
Secessão dos Estados Unidos. como donzela.
Na verdade, o tema da Donzela Guerrei- Em nossa história, entre as que não pu-
ra é um tópos onipresente no romanceiro deram se mostrar sem os trajes masculinos,
54   • Ana Maria Machado

talvez a primeira conhecida seja Maria Ur- ao dar a volta ao mundo, incluindo sua pas-
sula de Abreu e Lencastre, nascida em 1682 sagem pelo Rio de Janeiro. (Publicado ape-
no Rio de Janeiro. Fugiu de casa aos 18 nas em 1927). Nesse subconjunto de uma
anos e foi para Portugal, onde se alistou no coleção pessoal eclética, alguns nomes me
exército. Lutou na India como soldado, sem atraem especialmente, ainda que nem to-
nunca revelar que era mulher, até que em dos ligados ao Brasil. Cito inicialmente,
1714 deu baixa e se casou com um tenen- como amostra, duas ou três dessas mais
te. Seus feitos militares foram reconhecidos distantes.
pelo rei Dom João V que lhe deu honrarias Por exemplo, a belgo-francesa Alexan-
e uma pensão vitalícia. dra David-Neel (née Louise Eugenie Alexan-
Interessa-me, especialmente, o aspec- drine Marie David), anarquista e budista,
to de uma mulher ter de se disfarçar para viveu de 1868 a 1969. Em sua vida centená-
sair de casa, quebrar as amarras do papel ria interessantíssima, influenciou filósofos,
imposto ao gênero, ganhar o mundo, viver como Alan Watts, e autores beatnicks como
experiências mais amplas que conduzissem Jack Kerouac e Allen Ginsberg, e se nota-
além dos limites domésticos. Nesse sentido, bilizou especialmente por ter largado uma
um ramo decorrente desse tronco é o que carreira de sucesso como cantora de ópe-
se afasta das mulheres guerreiras e desem- ra para sair viajando. Furou o bloqueio que
boca nas mulheres viajantes. Mais sob a vedava o acesso de estrangeiros ao Tibete,
égide de Palas Atena e do chamado para por onde viajou disfarçada de peregrino,
o estudo, a ciência e a cultura, do que sob o lá viveu vários anos, ficou amiga do Dalai
impulso de Ares e das artes marciais. Lama e escreveu sobre isso. Outra pioneira
Pelo Brasil, tivemos vários casos de mulhe- em furar o bloqueio e entrar no Tibete, essa
res viajantes que não se vestiram de homens vestida de freira tibetana, foi Annie Taylor,
mas se puseram sob a capa de preceptoras que lá viveu um bom tempo.
de filhos de famílias abastadas, ou segui- Muito interessante também foi a inglesa
doras de companheiros que viajavam e nos Isabella Bird (1831-1904), grande viajante
deixaram registros vívidos de sua expe­riência pelos mais variados países do mundo. Na-
e suas observações de viajantes – como Ina turalista, estudou medicina, era elogiadíssi-
von Binzer, Adele Toussaint-Samson, Maria ma como excelente amazona, foi a primeira
Graham, Mme. Langley Dufresnoy, Virginie mulher da Royal Geographic Society, mem-
Leontine, Marie Robinson Wright, a Baro- bro da Royal Photography Society.
nesa de Langsdorf. Um bom levantamento Entre várias outras damas dessa estirpe
desses nomes foi feito por Miriam Moreira (que não é o caso de esmiuçar aqui, mas são
Leite. Uma dessas autoras, Rose de Freycinet inúmeras e interessantíssimas), há etnólo-
(viajante entre nós, de 1817 a 1820) embar- gas, cartógrafas, arqueólogas. Várias foram
cou clandestinamente para o Brasil, vestida recentemente homenageadas com uma
de homem, no navio comandado por seu exposição e um belo catálogo na National
marido Louis de Freycinet. Nascida Rose Pi- Portrait Gallery de Londres. Delas destaco a
non (aparentada de nossa Nélida?), deixou botânica Marianne North, que percorreu o
um diário com o relato de suas experiências Brasil de norte a sul, pintando e registrando
J ov i ta & C o m pa n h i a  •   55

diversas plantas brasileiras, muitas até en- o futuro conceito do Bom Selvagem, que
tão desconhecidas. Tem algumas nomeadas Rousseau desenvolveria em seguida. Mas
em sua homenagem, como pode ser visto acabaram sendo deixados para trás no Tai-
num magnífico pavilhão permanente, todo ti (ou em uma das ilhas Mauricio, segundo
dedicado a sua obra, erigido no Kew Gar- outros relatos), após a tripulação descobrir
dens, o Jardim Botânico de Londres. que ela era mulher. Tiveram de seguir via-
Mas volto o foco para uma viajante que gem anos mais tarde, em outro navio, após
aqui esteve disfarçada de homem, e encerro outras descobertas botânicas. Os dois têm
esta evocação com a francesa Jeanne Baret, uma vida meio rocambolesca, segundo vá-
a primeira mulher a completar uma viagem rios registros, que incluem um filho e o tes-
de circum-navegação. Era alfabetizada, de tamento de Commerson que a deixa como
família hugenote, e tinha uma boa forma- sua herdeira universal.
ção como botânica, trabalhando por mui- Mas o que nos importa aqui é consig-
tos anos como assistente do médico, natu- nar que essa Jeanne, naturalista vestida de
ralista e ictiologista Philibert Commerson, marinheiro, foi quem trouxe para bordo, na
muito ligado a Lineu, e responsável por um escala que fizeram no Rio de Janeiro, vários
programa de estudos da Marinha francesa. ramos e mudas de uma planta trepadeira
Sob o nome de Jean Baret, ela se alistou lenhosa com “flores” miúdas e brancas en-
em 1765 na tripulação do Étoile, para dar voltas em brácteas exuberantes, vivamente
a volta ao mundo junto com seu patrão, coloridas, hoje conhecida entre nós como
que deixava em terra a esposa. É provável primavera, pataquinha, rosa-do-campo ou
que o capitão soubesse ou desconfiasse de três-marias, e mais uma dezena de nomes
algo, pois Commerson alegou problemas registrados pelo dicionário Houaiss, e que
de saúde e, para aceitar o convite recebido ganhou o mundo com o nome de buganvília
e participar da expedição científica, obteve ou Bougainville, em homenagem ao capitão
o direito de ter uma cabine exclusiva para da expedição e comendante do navio Étoile.
ele e seu “assistente e enfermeiro”, a pre- E não como tributo a ela, Jeanne Baret, que
texto de necessitar de tratamento constan- a descobriu e fez as mudas transportadas
te. O casal se notabilizou por uma mirada para a Europa pelo capitão, segundo registra
protoantropológica sobre os povos que ob- Commerson, e cujo nome apenas é reconhe-
servavam, notavelmente aberto para aceitar cido em outra planta, Solanum baretiae. Daí
costumes diferentes, ajudando a embasar meu registro agora em nossos anais.
Os Lisboa: Fragmentos de memória

Edmar Lisboa Bacha


Ocupante da Cadeira 40 na Academia Brasileira de Letras.

A
ceitei prontamente o gentil convite Natural de Campanha, minha avó Sinhá
do Acadêmico Rogério Faria Tavares casou-se com meu avô Lisboa em Lambari,
para falar nesta Academia sobre com apenas 14 anos e meio de idade. (Ele
meus tios Henriqueta, Alaíde, José Carlos e tinha 23). Passou os próximos 21 anos dan-
Lourenço. Sabia não caber a um economista do seus 14 filhos à luz e o resto da vida ze-
como eu discorrer neste recinto sobre a obra lando por meu avô e pelos nove filhos que
literária de meus tios. Dei-me conta, entre- sobreviveram. Psicóloga inata e com ideias
tanto, de que, se era para fazer um roteiro avançadas para a época, vó Sinhá fez ques-
afetivo, não poderia deixar de mencionar ou- tão de dar às filhas mulheres uma educação
tros filhos de meus avós maternos que exer- primorosa: todas fizeram o curso normal no
ceram importante influência em minha vida. Colégio Sion de Campanha.
João de Almeida Lisboa e Maria Rita (Si- Abigail faleceu muito jovem aos 27 anos.
nhá) Vilhena Lisboa tiveram 14 filhos, dos Maria, minha mãe, ficou em Lambari para ca-
quais nove sobreviveram para a idade adulta: sar-se com seu “sheik árabe” (chamado Felí-
João, Maria (minha mãe), Henriqueta, José cio Bacha e não Rodolfo Valentino...) e tor-
Carlos, Alaíde, Oswaldo, Abigail, Waldyr e nou-se diretora do Grupo Escolar da cidade
Pedro. (Figura 1) (Figura 2). Henriqueta e Alaíde vieram com
Precisaria de um dia inteiro para fazer jus- os pais para Belo Horizonte, e aqui se torna-
tiça a esse conjunto. Não se preocupem, não ram as acadêmicas que todo o país conhece.
vai ser hoje. Por isso, o subtítulo “fragmen- Dos irmãos, João se formou em medicina;
tos de memória”. Nesse processo não vou José Carlos graduou-se primeiro em farmácia
poder deixar de falar de mim mesmo – e, e depois em direito; também em direito se
por isso, talvez o melhor título para o que se graduaram Oswaldo, Waldyr e Pedro.
segue seja simplesmente: “meus tios e eu”. Todos nasceram em Lambari. Ali, meu
avô Lisboa, quando chegou de Macaé, RJ,
Conferência na Academia Mineira de Letras. Belo Hori- exerceu o ofício de farmacêutico antes de
zonte, 28 de junho de 2017. se casar com minha avó e entrar na política.
Figura 1: Bodas de Ouro de João e Sinhá Lisboa. Lambari, 27/12/1943.

Figura 2: Felicio Bacha e Maria Lisboa.


O s L i s b oa : F r ag m e n to s de memória  •   59

Foi deputado federal na 1.a República. Em


1934, eleito deputado estadual, mudou-se
para Belo Horizonte, onde faleceu em 1947,
como Presidente do Conselho Administrativo
de Minas Gerais. Minha avó lhe sobreviveu
até 1957, na companhia de Henriqueta e de
minha prima Maria Antonia, filha de Abigail, Figura 3
Alaíde Lisboa
que minha avó criou desde bebê – e a quem
de Oliveira,
também deu uma educação primorosa. Ciranda.
Educação e cultura foram desde sempre
cláusulas pétreas na família Lisboa. Minha e priminhos eram os meus pais e irmãos.
Formação, de Joaquim Nabuco, era o livro Mas eu mesmo não estava nessa listagem,
de cabeceira de meu avô. Além de uma ra- e muito menos participava das gostosas tra-
zoável biblioteca de obras clássicas, meus quinagens que ocorriam durante a visita.
pais tinham em casa a coleção completa Numa viagem que fiz com meus pais a
das Seleções do Reader’s Digest. Numa bus- Belo Horizonte em 1947 protestei com Ala-
ca inglória por algum tema picante, quando íde por esse “esquecimento”. Não aceitei
criança eu lia avidamente as piadas e his- suas explicações de que o livro tinha sido
torietas que se seguiam aos textos princi- escrito antes de eu nascer. Como podia ser
pais dessa revista. Lembro-me também do assim, lhe disse, se o livro continuava lá com
medo que me causava um livro em francês os mesmos “priminhos” de sempre e àque-
intitulado Luto em 24 Horas (Deuil en 24 la altura eu já sabia até ler e escrever!
Heures), do qual meu tio João era um fã en- Tia Alaíde não se esqueceu dessa bron-
tusiasmado. O que me assustava era o título ca. Em 1983, quando eu estava em Nova
do livro; só agora, reavivando minha me- York como professor visitante da Universi-
mória no Google, foi que me dei conta que dade de Columbia, recebi pelo correio um
meu medo tinha boa razão de ser: trata-se envelope grosso vindo de Belo Horizonte.
de um romance de Vladimir Pozner situado Ao abri-lo, vi que continha um manuscrito
nas 24 horas que antecedem a invasão da precedido de uma carta de minha tia que
França pela Alemanha em 1940. dizia mais ou menos assim: “Querido sobri-
Claro, as leituras de infância que minhas nho, espero que não se incomode com o
tias me propiciavam eram bem mais ame- título que dei a esse meu novo livro, na ten-
nas. Além do Menino Poeta, de Henriqueta tativa de lhe compensar da frustação que
Lisboa, deliciava-me com Ciranda, de Alaíde lhe causei anos atrás”. O título do livro era:
Lisboa. (Figura 3) Edmar, esse menino vai longe1. (Figura 4)
Deliciava-me até certo ponto. Só até Muitas lágrimas derramei por essa ho-
quando os personagens Pedrinho (meu tio menagem que me trouxe de volta a minha
Pedro, o caçula dos Lisboa) e Toninha (mi- primeira infância em Lambari.
nha prima Maria Antonia) recebem a visi-
ta de seus tios e priminhos do interior, que 1 Ediçãooriginal pela Editora São Vicente, Belo Horizon-
estão lá nomeados. Ocorre que esses tios te, 1983. Reeditado pela Editora Peirópolis, 2006.
60   • Edmar Lisboa Bacha

a essas alturas era secretária executiva na


Assembleia Legislativa –, consegui um em-
prego inicialmente também de datilógrafo
no legislativo estadual. O que foi um passo
decisivo em minha vida, pois, algum tempo
depois, aprovado em concurso interno, fui
promovido ao pomposo cargo de Redator
Figura 4 de Anais e Documentos Parlamentares. Na
Alaíde Lisboa Assembleia, tive o prazer de conviver com
de Oliveira, Esse
menino vai longe. o então deputado estadual Murilo Badaró,
futuro presidente desta Casa.
Boa parte da explicação de por que con- A essa altura já havia entrado na Faculda-
seguira chegar ali em Nova York, tão longe de de Ciências Econômicas, onde tive a sa-
de minha terra natal, foi o apoio que recebi tisfação de ter como professores dois outros
de meus tios. Meu pai faleceu precocemente membros desta Academia, o poeta Emilio
em Lambari, em maio de 1951, quando eu Moura e o crítico literário Fabio Lucas.
tinha nove anos e estava no último período Mesmo antes de entrar na faculdade,
do grupo escolar. No final do ano, minha dei-me conta de que, se queria progredir na
mãe e seus sete filhos, inclusive este seu vida, precisava aprender inglês. Tia Alaíde
caçula, nos mudamos para Belo Horizonte, me sugeriu que tomasse aulas particulares
onde podíamos contar com o apoio de vó com duas vizinhas suas que ensinavam inglês
Sinhá e dos irmãos de minha mãe que aqui para seus filhos. Essas aulas se estenderam
viviam: Alaíde e Lourenço, Henriqueta, e talvez por dois anos e me foram muito úteis,
Waldyr e Edna. Com a ajuda de uma bolsa mas a parte que me interessa contar aqui é
parcial de estudos, cursei então admissão, gi- que, em seguida a elas, eu ia sempre tomar
nasial e científico no Colégio Santo Antonio. um delicioso lanche na casa de Alaíde.
Como meus irmãos mais velhos se casa- Foi quando me aproximei de tio Lou-
vam um atrás do outro, mesmo antes de ter- renço. Isto é, em termos. Porque Lourenço,
minar o científico decidi que estava na hora talvez por ser a hora de sua siesta, vestido
de começar a trabalhar. Meu tio Waldyr, num elegante pijama de listas azuis, estava
então deputado estadual, conseguiu-me quase sempre numa espécie de subsolo da
uma colocação como datilógrafo na Fertisa casa, onde tinha seu escritório e sua biblio-
– Fertilizantes Minas Gerais S.A. Para meu teca. Para chegar lá era preciso descer uma
azar, a Fertisa logo virou Camig e o empre- escadinha de madeira. Uma das pessoas
go passou a requerer tempo integral. Wal- que compartilhava sem limites esse redu-
dyr conseguiu-me então um emprego tam- to, onde tinha seu próprio quarto, era meu
bém de datilógrafo no Banco Hipotecário tio José Carlos. Ele vinha do Rio para Belo
e Agrícola de Minas Gerais. Trabalho duro, Horizonte de trem para dar aulas de espa-
aquele. Felizmente, durou pouco, porque nhol na UFMG, e sempre se hospedava com
– com a ajuda de minha irmã Marcia, que Alaíde e Lourenço.
O s L i s b oa : F r ag m e n to s de memória  •   61

Apesar dos evidentes sinais de “não ul-


trapasse”, lembro-me de ter descido aquela
escada algumas vezes, desde sempre com
alguma dúvida gramatical relevante. Esclare-
cida essa dúvida, entretanto, a conversa com
Lourenço fluía sobre temas do momento.
Face a essa experiência, não me causou
surpresa quando anos depois um ex-aluno
de Lourenço na UFMG me contou que o
professor começava suas aulas exatamen-
te às 7 da manhã, com o quadro negro já
cheio de frases e diagramas em latim, pois
Figura 5
ali chegava às 6 da manhã para agilizar o José Lourenço de Oliveira, o Mestre em sala de aula.
expediente2. (Figura 5)
Os alunos ficavam naturalmente ator- Meu problema era como financiar essa
doados sem saber se acompanhavam as nova empreitada, uma vez que as bolsas de
explicações do professor ou copiavam o que estudos disponíveis, tanto no Rio como nos
estava escrito no quadro-negro. Começaram EUA, eram bem magras. A solução quem me
então a chegar à faculdade às 6h45, para ter deu foi outro de meus tios, Oswaldo, que na
tempo de copiar o quadro antes que a aula época era diretor do Instituto Brasileiro do
começasse. Quem então ficou temporaria- Café no Rio de Janeiro.
mente aturdido foi Lourenço, mas logo en- Ele convenceu o então presidente do
controu uma solução. Passou a chegar à fa- IBC, Leonidas Bório, a solicitar que a As-
culdade às 5h45 para ter o quadro pronto às sembleia Legislativa de Minas Gerais me
6h45. Não creio, entretanto, que tenha pas- pusesse à disposição do Instituto, primeiro
sado a começar a aula nesse novo horário, no Rio de Janeiro e em seguida em Nova
porque, se o fizesse, ele e seus alunos iam York. Dois parênteses, antes de eu prosse-
terminar era sem dormir na noite anterior. guir com tio Oswaldo. O primeiro é que,
há poucos anos, cruzei com Leonidas Bório
em um restaurante no Rio de Janeiro e ele,
Quando terminei a faculdade, passei nos me reconhecendo, exclamou: “e não é que
exames de admissão para o Centro de Aper- seu tio Oswaldo tinha razão?”. O segundo
feiçoamento de Economistas da Fundação é que esse apoio financeiro ajuda a expli-
Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro (o embrião car minha decisão, na tese de doutorado,
da atual Escola de Pós-Graduação em Econo- de construir um modelo econométrico do
mia da FGV-Rio). Era um curso de pós-gradua­ mercado internacional do café. Tinha a es-
ção latu sensu, que dava acesso a programas perança que ele pudesse ser de utilidade
de mestrado e doutorado nos EUA. para o IBC ou para a Organização Interna-
cional do Café. Não fui bem-sucedido nessa
2 Cf. Johnny José Mafra, “O Latim na Faculdade de Le-

tras”, AletriA, v. 18, jul.-dez. 2008: 77-79, para uma


ambição tecnocrática, mas, anos depois,
afetiva descrição das aulas de Lourenço. em 1992, redigi uma monografia, desta vez
62   • Edmar Lisboa Bacha

em língua de gente e não em “economês”,


com uma avaliação histórica do impacto do
café sobre a economia brasileira3. (Figura 6)
A monografia ressalta o fato notável de
o café ter-se mantido por mais de um século
como a principal fonte de divisas estrangeiras
para o país. Isso se deveu à chamada política
Figura 6
de valorização do café, que data de 1906, e
Monografia
cujo sucesso teve como contrapartida a ex- sobre a política
pulsão de outros produtos da pauta de ex- de valorização
do café.
portações do país. Essa valorização do café
esteve desde sempre associada a uma políti-
advogado que insistia em lhe fazer a corte.
ca de reserva do mercado doméstico para a
Oswaldo então alugou um teco-teco e pas-
indústria nacional. Beneficiada por sucessivos
sou a dar voos rasantes sobre a fazenda em
dispositivos legais que efetivamente vedaram
que Maria Celia morava, sempre lhe jogando
a importação de produtos com similar nacio-
um ramalhete de flores lá do alto.
nal, a indústria local pôde dispor das divisas
Conquistou-a finalmente, e, juntos, for-
do café para atender suas necessidades de
maram um dos casais mais harmoniosos
bens de capital e insumos importados. Dessa
que já vi em minha vida.
forma, o binômio valorização do café e pro-
teção à indústria gerou o país que hoje te-
mos: uma economia altamente introvertida, Cheguei ao Rio para cursar o programa da
desligada das cadeias internacionais de valor, FGV em janeiro de 1964. Além de tio Oswal-
e com uma enorme concentração de renda do, que tinha um apartamento no Leblon, no
no estado de São Paulo. Rio também morava tio José Carlos, no mes-
Fecho aqui esse parêntese de economis- mo bairro de Botafogo em que eu iria estu-
ta e volto a meu tio, que foi o responsável dar. José Carlos não só localizou para mim um
por meu interesse pelo café. apartamento no próprio conjunto de prédios
Tio Oswaldo era muito bem-humorado em que vivia, como foi o fiador de meu alu-
e tinha uma enorme persistência. Casou- guel. Lá, na rua Voluntários da Pátria, me ins-
-se e enviuvou muito cedo. Passado o luto, talei com outros quatro colegas nos seis pri-
apaixonou-se por Maria Celia, que também meiros meses de 1964, antes de seguir para o
muito jovem havia enviuvado de um fazen- doutorado na Universidade de Yale.
deiro de café em Baependi, no sul de Minas. O apartamento de José Carlos tinha estan-
Mulher formidável, casamenteira que nem tes cheias de livros em praticamente todos os
ela só, Maria Celia adorava promover casa- cômodos; só sobrava espaço para uma mesa
mentos entre os jovens de suas relações fa- de pingue-pongue que também servia para as
miliares. Só não dava muita bola para aquele refeições. E as visitas se sucediam; lembro-me
particularmente de Cavalcanti Proença, seu
3 Trata-se de “Política brasileira do café: uma avaliação

centenária”, reproduzida como Capítulo 12 em E. Ba-


grande amigo, e de Marlene Correia, sua as-
cha, Belíndia 2.0. Civilização Brasileira, 2012: 305-408. sistente dileta. Tomei conhecimento também
O s L i s b oa : F r ag m e n to s de memória  •   63

do “sobrinhato”, o conjunto de ex-alunos e


ex-assistentes que se reunia todos os sábados
no apartamento de meu tio, a las cinco en
punto de la tarde. Entre eles, os atuais mem-
bros da ABL, Ana Maria Machado, Domicio
Proença Filho e Zuenir Ventura. Figura 7
José Carlos
Apesar de seu amor pela língua espa-
Lisboa: “Prefiro
nhola, José Carlos nunca esteve na Espa- a espanha de
nha. Não admitia essa possibilidade en- minha alma”.
quanto Franco estivesse vivo. Depois da
morte do ditador, explicou a uma ex-aluna: a data de nascimento de minha tia poeta.
“Minha filha, se a Espanha que eu tenho na Ali constava a data não só de sua carteira
alma não for igual à Espanha que eu encon- de identidade, como a que ela levou para o
trar, vou ter uma decepção tremenda. En- túmulo: 1904.
tão eu não vou. Prefiro a Espanha de minha Ocorre que, quando tia Alaíde fez 90 e
alma”4. (Figura 7) poucos anos e temeu que talvez não che-
gasse aos 100, revelou aos filhos e sobri-
Antes de concluir com Henriqueta, que- nhos um segredo familiar que datava do
ria dizer duas palavras sobre tio João, o pri- final dos anos 1920, quando minha mãe se
mogênito da família, e tio Pedro, o caçula. casou com seu “príncipe árabe”.
Além de me assustar com suas preferên- Na preparação dos papéis para o casa-
cias literárias, tio João foi prefeito e médi- mento, meu avô Lisboa constatou que Felicio
co em Lambari. Em minha infância, era de era um ano mais novo do que Maria. Ele, de
1899; ela de 1898. Meu avô decidiu que isso
longe a principal personagem da cidade,
não estava certo. E simplesmente mudou a
amigo dos Vargas e de outras eminências
certidão de nascimento de minha mãe para
que ali veraneavam. Meu pai trabalhou com
19035. Mas isso criou um problema para as
ele na prefeitura. Tio João mudou-se com
filhas que vinham em seguida. Meu avô não
a família para Belo Horizonte pouco depois
teve dúvidas: mudou o nascimento de Hen-
de minha mãe, e ali encerrou sua carreira
riqueta de 1901 para 1904, o de Alaíde de
como médico da Mannesmann.
1904 para 1909, e o de Abigail de 1906 não
Tio Pedro, advogado brilhante, estabe-
sei bem para quando.
leceu-se em Lambari, mas morreu cedo, aos
Quando Alaíde finalmente revelou o se-
42 anos, deixando-me escassas lembranças.
gredo, Maria, Henriqueta e Abigail já não
estavam entre nós. Ela, Alaíde, entretanto,
Sobre Henriqueta, queria inicialmente pode comemorar com tranquilidade seu
lhes contar que pedi ao Acadêmico Rogerio centenário – tendo na verdade chegado aos
Faria Tavares que corrigisse no site da AML 102. (Figura 8)
4 Depoimento de Célia Therezinha da Veiga Oliveira em 5 Em cópia posterior da certidão (com data de 1952),
Abigail de Oliveira Carvalho e Guy de Almeida (orgs.), com os números claramente rasurados o ano “oficial”
José Carlos Lisboa: O Mestre, O Homem. Belo Horizon- de nascimento de minha mãe passou a ser 1900, que
te: Editora UFMG, p. 192. foi o que constava de sua carteira de identidade.
64   • Edmar Lisboa Bacha

Figura 8
Centenário de
Alaíde Lisboa de
Oliveira. Figura 10
Henriqueta Lisboa,
Pousada do Ser.
Vejam assim que, indo bem além do re-
cato mineiro, as irmãs Lisboa tinham uma
Lembro-me também de sua devoção
boa razão para não quererem conversar so-
por Mario de Andrade. Em sua escrivaninha
bre a idade que tinham.
tinha uma foto dele num porta-retratos,
protegida por uma cortininha de renda.
Henriqueta Lisboa foi uma pessoa espe- Com esse mesmo recato, determinou que
cial. Não só por sua poesia, que é admirada as cartas do autor paulista para ela somen-
mundo afora. Também por sua figura frá- te fossem publicadas 50 anos após a morte
gil que parecia ser feita de porcelana, e sua dele.
personalidade a um tempo forte e reclusa. Não foi Henriqueta diretamente, mas
Ao contrário de minha mãe, que adorou a sua poesia que teve um impacto funda-
experiência do Sion, Henriqueta a detestou, mental em minha vida. Quando comecei a
mas tanto assim que da madre superiora namorar Maria Laura, vi em sua mesa de
ganhou a alcunha de la petite orgueilleuse, cabeceira um exemplar de Pousada do Ser –
a pequena orgulhosa. (Figura 9) que ela jura que realmente lia mesmo antes
Irritava-se quando a chamavam de “po- de me conhecer! De qualquer modo, foi o
etisa”, e me dizia algo assim: “só mesmo sinal inequívoco de que havia encontrado a
homens para quererem se apoderar de um mulher de minha vida. (Figura 10)
substantivo terminado em ‘a’, como ‘poe-
ta’, para relegar as mulheres poetas a um
diminutivo ‘poetisa’”. Foi não só por Henriqueta, mas por ela,
por Alaíde, Lourenço e José Carlos que abri
meu recente discurso de posse na ABL com
um poema seu sobre o Caraça6.
Quis, naquela ocasião, sentir meus tios
literatos bem perto de mim. É ainda mais
perto que os sinto aqui hoje, na homena-
gem que lhes faço nessa também minha
Belo Horizonte.
Figura 9
Presença de 6 Disponível em: http://www.academia.org.br/academicos/

Henriqueta. edmar-lisboa-bacha/discurso-de-posse.
Anotações sobre o cânone

Eduardo Portella
Sexto ocupante da Cadeira 22 na Academia Brasileira de Letras

H
á figuras de verdade na história do scholar, no seu recorte institucional ou na sua
Ocidente que se comprazem em cul- avidez apropriativa, vem sendo o dedicado –
tivar e proteger a canonização do tão dedicado quanto sedentário – zelador do
cânone. Outras, como a literatura em perío- cânone.
dos não canônicos, preferem investir as suas
energias na profanação do cânone. Por isso, O grande escritor não é o que preserva
talvez seja válido percorrer esse terreno mo- ou protege o cânone. E o que implode. Ha-
vediço, que configura o outro do cânone. rold Bloom se engana redondamente.

A historiografia preserva, com todo zelo, A rigidez do cânone se choca com o


o cânone canonizado. Abraça, sem muito es- trabalho da linguagem, e denega certas re-
crúpulo e com alguma firmeza, a concepção
ferências que, sendo legítimas, não foram
apropriativa e patrimonial do mundo e dos
ainda legalizadas. São referências como a
entes. Já a história emerge da inesperada
instabilidade, a suspeita, a instância parce-
trama do tempo, muito mais simultânea do
lar, o insólito, o desacordo, que, em geral,
que sucessiva.
provém do outro lado do cânone.
O guardião compulsivo da historiografia
é o scholar. Ele desempenha papel relevante, É possível falar-se na transgressão anár-
embora de alcance paradoxalmente restrito. quica, necessariamente produzida, e na
O seu conhecimento seria revelador, se não transgressão laboriosa, consequência qua-
fosse protecionista. Porque hoje a erudição do se natural do trabalho (livre) da linguagem.
scholar se expõe como acontecimento quase Ambas são observadas pelo olhar canônico
(se não totalmente) confidencial. Por isso o com severa desaprovação. É quando a lín-
gua se dedica à sabotagem da linguagem.
“Propostas para discussão”, apresentadas e trabalha-
das reflexivamente no curso O cânone literário, minis-
trado pelo autor em 1996, Faculdade de Letras da UFRJ.
O texto “A canonização do cânone” foi publicado na
Quando a literatura absorveu o efême-
Revista Tempo Brasileiro n.º 124, jan./mar., 1996. ro, e incorporou a velocidade, a parafernália
66   • Eduardo Portella

canônica registrou um imprevisível descon- Os problemas lançados à fortaleza do


certo. O pacto assinado, com ingênua con- cânone se agravaram consideravelmente na
fiança, entre o caso e o acaso, não produziu era da desestetização. Sobretudo um certo
os resultados esperados. Talvez tenhamos desafio parece perturbar ainda: o que vem
de avançar mais sobre as aporias da norma- a ser a experiência da arte quando a expe­
tividade canônica. riência perde a sua coesão, ou a sua vertica-
lidade, ou o seu eixo ético?
O cânone é quase igual ao conceito de
paradigma, e é o contrário do paradigma O cânone, que já foi a síntese, a ab-
silencioso. Porque o cânone corresponde à sorção atenta do espetáculo, é hoje a sua
norma. E toda norma vive de sua explicita- contrafação – o desprazer da forma. Ou a
ção. Em certo sentido o paradigma silencio- euforia do formato. A onipresença ou onis-
so vem a ser o anticânone. ciência do cânone formatou a forma.

À medida em que avança a tradição mo- Quando falamos na substituição da for-


derna, as suas marchas e contramarchas, a ma pelo formato, estamos nos referindo a
ideia do cânone vai perdendo o seu poder uma virada radical, à dissolução do sistema
judicativo. As formas, que pareciam pere- representativo que o cânone, um dia, con-
nes, passam a reproduzir o zigue-zague da seguiu encarnar.
própria “experiência de verdade”.
Podia-se falar da poética da forma. É im-
Na tradução romântica, no Schiller das possível, e desaconselhável, insistir em uma
Cartas sobre a educação estética, preservava- poética do formato.
-se a superior função de reunir e unir, sob os
auspícios do sujeito, a diversidade do univer- Não é difícil perceber que o espólio ca-
so. A arte era autônoma porque o sujeito o nônico da última modernidade, ou da pós-
era. Do mesmo modo que o sentido que os -modernidade, ou da baixa-modernidade, se
produzia, e era por ele produzido. As senten- encontra amplamente desvalorizado. Como
ças canônicas do sujeito, ministradas pelo tri- se não bastassem os extravios teóricos, a
bunal da razão, fixaram o hegemônico “direi- velocidade da mídia desestabiliza o poder
to de verdade”. Foi quando nos instalamos no do cânone. O tempo interior das metáforas
interior de um círculo cada vez mais vicioso. se vê subvertido. A eloquência, o canto, as
representações da voz na retórica consa-
Assim foi, assim tem sido. O cânone pre- grada, que já não resistiram a tratamento
fere ignorar o horizonte intersubjetivo da eletrônico, resistem menos ainda à concor-
linguagem. Por isso confia tanto na individu- rência multimidiática. O impasse engendra
alidade, no atletismo do sujeito, e em seus interrogações jamais formatadas: como sair
produtos mais acabados ou mais confinados. da representação sem resvalar, pura e sim-
O desenvolvimento estético desvincularia a plesmente, no simulacro?
arte do seu processo de legitimação.
A sombra de Pombal

Evaldo Cabral de Mello


Ocupante da Cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras

S
ebastião José de Carvalho e Meio, pode até vir montado a cavalo, mesmo se
conde de Oeiras e marquês de Pombal alquebrado por uma dispneia, como Deodo-
(1699-1782), é, na tradição autoritária ro naquela manhã do 15 de novembro. Ao
luso-brasileira, uma figura totêmica. Tanto passo que restabelece e consolida a ordem,
a direita quanto a esquerda acolheram-se o herói pombalino instrumentaliza o Estado
confortavelmente à sua sombra. Uma, em para modernizar o país, fomentar sua pros-
nome da manutenção da ordem: o regime peridade e defendê-Io dos predadores exter-
salazarista ergueu lhe um monumento numa nos, sempre na tocaia.
das principais praças de Lisboa. E a outra, em Ao ascender ao poder em 1750 como
nome da intervenção do Estado na econo- ministro del-Rei D. José, Carvalho e Meio
mia: os nacionalistas deste lado do Atlân- viera encontrar bem avançada, graças ao
tico viram na sua luta contra o predomínio meio século de reinado de d. João V, a
britânico no comércio português como que transformação da monarquia portuguesa
uma prefiguração de sua própria luta contra num regime de tipo absolutista, como os
a hegemonia americana. Da fortuna historio- que já predominavam em outros países da
gráfica do marquês, pode-se, portanto, dizer Europa. Politicamente, Pombal completou a
que teve “o melhor dos dois mundos”. obra iniciada no meio século anterior, gra-
A vertente conservadora de seu mito é a ças ao apoio irrestrito que, por fraqueza
do homem forte, que, no nosso imaginário ou preguiça do monarca, nunca lhe faltou.
político, tem a função providencial de colo- Destarte, ele pôde enfrentar a alta nobreza
car a casa em ordem depois da bagunça que e o clero, mandando executar por alta trai-
os maus inquilinos tendem periodicamente ção os chefes de uma das principais famílias
a promover. Esse homem forte pode ser um do reino, os Távoras, e expulsar os jesuítas
paisano, como no seu caso, no de Salazar ou de Portugal e dos seus domínios, algo im-
no de Getúlio, ou mesmo um militar, como pensável antes dele.
ocorreu mais frequentemente, que, de prefe- Mas a vertente da ação do marquês que
rência, para aumentar o efeito cenográfico, mais interessa ao leitor de hoje é eviden­-
68   • Evaldo Cabral de Mello

temente sua política econômica, esta de- Pombal teve de enfrentar por fim o eter-
cididamente muito século XX. Tratou-se no problema que confronta os grandes re-
aqui de um ambicioso programa de refor- formadores: o de fazer durar suas reformas,
mas visando à proteção e ao fomento das no que teve menos êxito do que na sua luta
atividades nacionais, fossem elas agrícolas contra os jesuítas, os nobres ou os ingleses.
ou manufatureiras. Elas atacaram também A oposição ao regime do marquês cultivara
as estruturas sociais que tendiam a estorvar assiduamente a herdeira do trono, a futura
o processo de acumulação, como sejam os dona Maria I. A expectativa de que, pela pri-
preconceitos religiosos, nobiliárquicos e de meira vez na história portuguesa, uma mulher
raça que discriminavam o homem de negó- viesse a assumir a chefia do Estado por direito
cios ou por ser cristão-novo ou por desem- próprio, e não como simples regente, levou à
penhar ofícios ditos então mecânicos, isto suspeita de que Pombal estivesse planejando
é, manuais, e, por conseguinte, considera- um golpe palaciano mediante o qual se ado-
dos vis sob a ótica senhorial. Ao contrário taria no reino a lei sálica, praticada na França,
que afastava automaticamente as pessoas do
de muito reformador do século XX, para
sexo feminino da sucessão ao trono. Destarte,
quem o crescimento econômico era uma
a Coroa teria passado ao príncipe d. José, pri-
questão de investimento físico, Pombal
mogênito de D. Maria I e de cuja educação o
compreendeu a importância dos aspectos
marquês tratara com especial cuidado. O fato
institucionais, como o sistema educacional,
é que, se manobra houve, ela não vingou. Fa-
que secularizou e expandiu na esteira da ex-
lecido o monarca, Pombal foi despedido da
pulsão dos jesuítas.
corte sem maiores cerimônias e exilado nas
Havendo derrotado a aristocracia, os
suas terras da Beira Alta.
jesuítas e até o Vaticano, restava a Pombal
Mas a grande burguesia que Pombal in-
enfrentar os ingleses. Era inevitável que ele
centivara sobreviveu ao seu criador e até se
entrasse em choque com a Grã-Bretanha,
beneficiou da nova situação, na medida em
que desde os meados de Seiscentos torna-
que o enfraquecimento da máquina buro-
ra-se o grande aliado político e o principal crática lhe permitiu passar de instrumento
parceiro comercial do país. Como salientou do Estado a seu manipulador. Politicamente,
Kenneth Maxwell, Pombal nunca teve a ve- contudo, os amigos e protegidos do marquês
leidade nem incorreu no irrealismo de pre- tiveram de esperar a regência do príncipe
tender retirar Portugal do sistema estratégi- d. João, o futuro d. João VI, para fazer um re-
co inglês, para aderir ao sistema continental torno discreto às posições de poder. Quanto
ou muito menos para assumir uma atitude ao marquês, gastou os últimos anos de vida
independente. Para ele, tratava-se, muito na tarefa de se defender de um processo
pragmaticamente, de aumentar a capacida- que o acusava dos crimes de corrupção e
de de manobra de Portugal dentro da área de abuso do poder, de que só o resgatou
da aliança inglesa, de modo a melhor pre- a rainha, pretextando sua idade avança-
servar as vantagens econômicas que dela da, incompatível com os castigos de que,
auferia, sobretudo em termos de segurança segundo dizia, ele se tornara merecedor.
do império ultramarino. Aliás, no poder, Pombal e a família haviam
A sombra de P o m b a l  •   69

enriquecido enormemente. Muito à maneira decênio que vai da aclamação de dona Ma-
luso-brasileira, a lei que criara a Companhia ria I aos primeiros rugidos revolucionários
dos Vinhos do Alto Douro estabelecera uma na França constitui um período dourado,
exceção em seu favor, ao prever que seus vi- embora medíocre, da história portuguesa.
nhedos de Oeiras, nas cercanias de Lisboa, Quem sente a nostalgia dessas épocas co-
poderiam beneficiar-se das vantagens do letivamente felizes deve ler os relatos dos
monopólio que, em princípio, só eram reco- viajantes estrangeiros, sobretudo ingleses,
nhecidas ao vinho do Porto. que visitaram o país nesses anos de omis-
Retirado Pombal em suas terras, Portu- são e complacência, quando os melômanos
gal adormeceu docemente, embalado por iam deliciar-se com o canto dos castrati da
um sistema que já não era a autocracia Patriarcal, os marialvas promoviam suas ar-
pombalina mas que já não podia voltar a ruaças no Bairro Alto, os privilegiados vera-
ser a monarquia tradicional. Se, por outro neavam em Sintra; e todos, passada a hora
lado, já não se tratava daquela nação de da sesta, fossem ricos ou pobres, iam aos
meio século antes, em que, na queixa de touros e às festas de igreja. Pois consoan-
um embaixador inglês, “metade da popula- te um ditado então corrente, em Lisboa, às
ção esperava pelo Messias e a outra metade duas horas da tarde de um dia de verão, só
por D. Sebastião”, Portugal tampouco tor- se topava nas ruas com os cachorros e com
nara- se uma nação moderna. E, contudo, o os ingleses.
Marcuse e o movimento
de maio de 1968

Sergio Paulo Rouanet


Ocupante da Cadeira 13 na Academia Brasileira de Letras

H
á exatamente 50 anos um abalo por expulsar essa dimensão, petrificando-se
sísmico sacudiu os fundamentos do na imanência absoluta.
mundo civilizado. O epicentro desse Com isso, a sociedade bidimensional
cataclisma, de não sei quantos graus na es- tornou-se unidimensional. O homem não
cala Richter dos terremotos sociais, situava- mais percebe o caráter alienado do seu tra-
-se em algum lugar no meridiano de Paris. balho. Não se dá conta de que a sobrevida
Usando uma linguagem menos metafórica, do sistema impõe a manipulação totalitária
quero me referir aos chamados aconteci- das necessidades, a fim de forçar a absor-
mentos de maio de 1968, período durante ção dos bens supérfluos sem os quais a eco-
o qual estudantes e operários vieram à ruas, nomia não poderia funcionar em condições
primeiro em Paris e depois no mundo intei- de pleno emprego. As necessidades supér-
fluas são criadas e multiplicadas pela mídia,
ro, gritando palavras de ordem contra to-
que bombardeia metodicamente o público
das as formas de autoritarismo, embutidas
com um fluxo contínuo de mensagens pu-
em macroinstituições como as burocracias
blicitárias. O objetivo é internalizar no indi-
estatais, ou em micropoderes disciplinares,
viduo, sob a forma de falsas necessidades,
como os exercidos nas famílias, nas escolas
os comportamentos objetivos indispensá-
ou nas fábricas.
veis à prosperidade e autorreprodução do
Entre os autores que influenciaram os
sistema.
participantes do movimento de maio de Na sociedade moderna, esse processo
1968 um lugar de destaque cabe ao alemão chega a seu clímax. As necessidades não
Herbert Marcuse, colaborador de Adorno são mais sentidas como heterônomas e sim
Institut fiier Sozialforschung, de Frankfurt. como impulsos e desejos radicados no pró-
Para Marcuse, o sistema capitalista, que prio indivíduo. O capitalismo fica blindado,
no início ainda permitia uma dimensão de porque a repressão que o sustenta se torna
transcendência em direção a formas extra-­ ao mesmo tempo total e invisível. Todos os
capitalistas de organização social, acabou dualismos se dissolvem. A utilidade pessoal
72   • Sergio Paulo Rouanet

e os interesses do todo convergem. A ten- capitalista, a realidade social é a de um sis-


são entre a esfera privada e a esfera públi- tema altamente produtivo, que reduz de
ca se relativiza. Em consequência, temos forma inimaginável o tempo de trabalho so-
que redefinir o conceito de alienação. Em cialmente necessário, e aumenta com isso
sua formulação clássica, devida a Hegel, ao as possibilidades de tempo livre. Essa nova
jovem Marx e a Lukács, a alienação ocorre etapa permite pensar o fim da repressão, ou
quando o produtor se sente separado do pelo menos um conceito tão diferenciado
produto do seu trabalho, separado do mun- de repressão, que permita distinguir entre a
do social e separado da natureza. Ora, na repressão mínima, necessária em qualquer
sociedade industrial avançada desapareceu sociedade, e a sobrerrepressão, ou repres-
a consciência dessa separação. A alienação são excedente, indispensável para manter
perdeu seu pathos, e a falsa consciência, um tipo especifico de sociedade, baseado
correlato cognitivo da alienação, não é mais em assimetrias de riqueza e de poder.
acompanhada de angústia. O homem vive Toda essa construção está sob o signo
sua condição alienada como se a alienação da utopia, uma utopia na grande tradição
estivesse superada. As pessoas, as coisas e da Teoria Crítica, inspirada no Principio Es-
as relações não se confrontam mais com o perança, de Ernst Bloch. Na versão de Mar-
homem como entidades reificadas, impes- cuse, trata-se de uma utopia não repressiva,
soais e hostis: são entidades cordiais num cujos traços estão prefigurados nos mitos
mundo humanizado. de Orfeu e Narciso. Orfeu se comunica pelo
Essa análise, feita por Marcuse segun- canto com as árvores e os animais. O Eros
do categorias marxistas, é completada com órfico libera as forças latentes nas coisas
outra análise, em que ele aplica categorias animadas e inanimadas, na natureza orgâ-
freudianas. O ponto de partida é a meta-­ nica e inorgânica. O canto de Orfeu pacifi-
psicologia de Freud, segundo a qual a ativi- ca o mundo animal e reconcilia o homem
dade psíquica do homem é regida por duas com a natureza e com os outros homens.
pulsões básicas: a pulsão amorosa (Eros) e a Narciso é uma afirmação da energia erótica
pulsão destrutiva (Tanatos) e por dois prin- não reprimida. Pois o Eros narcísico não sig-
cípios: o princípio da realidade e o princípio nifica necessariamente a negação do amor
do prazer. Tanto a pulsão amorosa quanto a dois. Ao contemplar-se no rio, Narciso
a destrutiva tendem para uma gratificação não sabia que estava contemplando a sua
imediata, o que é perigoso para o indivíduo própria imagem. Além disso, o narcisismo
e para a espécie. sugere a possibilidade de uma nova forma
É por isso que, em nome dos impera- de sexualidade. Segundo Freud, na fase
tivos da realidade, o ser humano é força- infantil do narcisismo primário, o mundo
do a impor limites a essas duas atividades exterior é uma extensão do Ego, e este é
psíquicas. Em outras palavras: ele reprime definido, mais tarde, como o resíduo que
ambas as manifestações. Acontece que resulta da desanexação do mundo exterior,
o princípio da realidade, à luz do qual se operada sob o império do princípio da rea-
realiza essa dupla repressão, varia historica- lidade. Ora, nessa fase do narcisimo primá-
mente. Na etapa atual do desenvolvimento rio existe um pansexualismo: todo o corpo
M a rc u se e o m ov i m e n to d e m a i o d e 1968  •   73

e o mundo inteiro estão investidos de um Como atingir essa utopia? A resposta


conteúdo erótico, não genital. A sexua­ marxista ortodoxa é que são os próprios
lidade é polimorfa quanto ao seu objeto, proletários que se autoliberariam, enquanto
isto é, não foi ainda reduzida ao erotismo principais vítimas do capital. Mas para Mar-
genital, associado à reprodução. Assim en- cuse essa solução está excluída, porque a
tendido, Narciso representa a promessa de classe trabalhadora cooptada pelo sistema
uma nova relação com as coisas e de um converteu-se em aristocracia operária. No
novo princípio da realidade. Eros e Narciso entanto, há uma perspectiva de emanci-
são a negação da sexualidade organizada pação, porque a sociedade unidimensional
repressivamente segundo as exigências do gerou suas próprias contradições, criando
princípio da realidade em sua forma con- outras formas de luta social. Hoje em dia
temporânea. o principal protagonismo revolucionário é
A ordem nova, introduzida pela mo- exercido por novos agentes políticos: estu-
dificação do princípio da realidade, é uma dantes e intelectuais, o que não surpreende,
considerando-se a importância crescente da
ordem órfico-narcisista. Nesse mundo, a
ciência e da técnica na economia capitalis-
natureza estaria definitivamente pacifica-
ta. Mas mesmo que essas novas formas de
da. A relação antagonística com o mundo e
luta não se concretizem de todo, o homem
com os homens desapareceria. O trabalho,
novo não tem por que demitir-se da histó-
liberto da alienação pelo desenvolvimento
ria. Resta, para Marcuse, a solução heroica
tecnológico, seria uma atividade estética,
da Grande Recusa, comandada por Orfeu
vivida ludicamente. Deixaria de ser instru-
libertador.
mento de sofrimento e se transformaria
Seriam os acontecimentos de maio de
em prazer: o trabalho se sexualizaria. As
1968 uma revolução, uma revolução cul-
relações atualmente não libidinais seriam
tural, no mesmo sentido em que a revo-
erotizadas. Todo o corpo se converteria em
lução francesa fora uma revolução polítlca
objeto de catexis, a sexualidade transborda-
e a revolução bolchevista uma revolução
ria da faixa estritamente genital, e a própria social? Certamente não. Dias depois do
natureza, entendida como uma projeção li- discurso radiofônico do Presidente da Re-
bidinal do Ego, seria anexada por Eros. Este pública anunciando a volta à normalidade,
se autossublimaria, sem necessidade de os estudantes regressaram às universidades
freios repressivos. Simultaneamente, o po- e os operários às fábricas. Sem dúvida, as
der de Tanatos se enfraqueceria. A expan- relações internas dentro das universidades
são de Eros recalcaria a pulsão de morte. Ao se tornaram menos autoritárias, como nos
mesmo tempo o telos da pulsão da morte informou Habermas quando o chamamos
não seria a cessação da vida, mas a cessa- de Herr Professor, em entrevista que ele
ção do esforço, do sofrimento, e a procura concedeu a Barbara e a mim mesmo. Essa
do repouso. Sob o império de uma realida- fórmula respeitosa, explicou Habermas, es-
de finalmente pacificada, Tanatos não se- tava fora de uso na Alemanha, desde maio
ria mais a morte, mas sensação de prazer de 1968. Os próprios professores passaram
numa existência não antagonística. a tirar as cópias xerox de que necessitavam
74   • Sergio Paulo Rouanet

em seu trabalho. Ficou mais rara a cena raivosas de seu filho Jacques, de 12 anos;
caricata do jovem professor-assistente car- em cada página, Jacques rabiscara um in-
regando a pasta do catedrático. Tudo isso sulto. Meu amigo perguntou severamente:
é um progresso, mas não um progresso re- “Jacques, qu’est-ce que c’est ça?” O peque-
volucionário, porque as estruturas do poder no vândalo respondeu: “C’est Ia révolution
real permaneceram inalteradas. Note-se, culturelle!”
por exemplo, que a proporção de mulheres Sem saber disso, Jacques estava per-
no corpo docente universitário continua re- sonificando o próprio movimento da re-
presentando apenas cinco por cento do to- volução cultural. Em grande parte, ela foi
tal e que os desníveis salariais entre homens uma revolta pubertária, uma rebelião dos
e mulheres realizando as mesmas tarefas jovens contra os adultos. Com seus 12 anos
são gritantes. de vida, o rapazinho estava na idade certa
Gostaria de terminar narrando um pe- para contestar a sabedoria e o bom gosto
queno episódio pessoal. Um amigo meu, en- dos mais velhos. Mas por que Flaubert?
tão residente na França, tinha encomendado Enquanto autor reverenciado por várias
as obras de Flaubert, na edição da Pléiade, e gerações, Flaubert era o símbolo da tradi-
passou o dia antegozando o momento em ção, aquela mesma tradição que os jovens
que chegaria em casa, depois do trabalho, maoístas estavam desafiando nas ruas de
para examinar suas aquisições. Mas em casa Paris e de Pequim, brandindo O Livro Ver-
encontrou os livros profanados pelas unhas melho do Presidente Mao.
Os inimigos do homem serão as
pessoas de sua própria casa: Crítica
e apologia sociais em Pai contra
mãe, de Machado de Assis
Flávio Ricardo Vassoler
Doutor em Letras pela FFLCH-USP, com estágio doutoral junto à Northwestern University (EUA)

Não julgueis que vim trazer a paz à Terra. Vim da natureza humanas. Ora, mas e se a du-
trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer biedade do olhar de cigana oblíqua e dissi-
a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mulada de Capitu – dubiedade com a qual
mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do
só conseguimos entrar em contato por
homem serão as pessoas de sua própria casa.
meio do relato deveras enviesado de Ben-
M ateus , 10, 34-36
tinho, o Dom Casmurro potencialmente
traído por Capitu – pudesse se confundir
Preâmbulo com a própria estrutura narrativa de “Pai
contra mãe”? Nesse caso, apologia e crítica
No princípio era o verbo?
sociais estariam umbilical e incestuosamen-
Não.
te enredadas, o que nos permitiria insinuar
No princípio eram o choro e o ranger de
que o narrador machadiano, para quem o
dentes.
grotesco e o cruel seriam as balizas (o ara-
Como um obstetra que nos dá as boas-
me farpado) de nossa história, seria dialeti-
-vindas a este mundo com um tapa que nos
camente pessimista: no ventre do conto a
faz chorar – bem-vindos ao nosso vale de
arremessar o pai contra a mãe, haveria tam-
lágrimas –, o narrador machadiano de “Pai
bém a possibilidade de revelar (e criticar) a
contra mãe” (1906) rasga o ventre de seu
ordem social que pressupõe o grotesco e o
conto sentenciando que “a ordem social e
humana nem sempre se alcança sem o gro- cruel como sentinelas inequívocas.
tesco, e alguma vez o cruel”1. Analisemos, então, como o joio da apo-
Estaríamos, então, inequivocamente en- logia e o trigo da crítica sociais se fundem e
voltos por um ethos – ou melhor, um pa- se confundem em “Pai contra mãe”. (Ape-
thos – machadiano a referendar a (e a se nas não percamos de vista que a tentativa
resignar diante da) iniquidade da história e de separar o joio do trigo, isto é, o ímpeto
de arregimentar Machado de Assis, inequi-
1 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “Pai contra mãe”.

In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Ja-


vocamente, ou como menestrel do niilismo,
neiro: Nova Aguilar, 1997, v. 2, pp. 659-667; aqui, p. 659. ou como estandarte da revolução, tende a
76   • Flávio Ricardo Vassoler

empobrecer o caráter polissêmico de sua poderia sofrer ao avariar sua mercadoria es-
estrutura narrativa a acompanhar as con- crava. Ora, nós bem poderíamos ler essa ver-
tradições de uma ordem social e humana dadeira chicotada – “dinheiro também dói”4
que, até hoje, ainda não conseguiu prescin- – como uma crítica sumamente epigráfica à
dir do grotesco e do cruel como sentinelas ordem social que administrava seres huma-
de nossa história.) nos como coisas. Mas, como em Machado
de Assis a ordem social é (retro)alimentada
pelo legado de nossa miséria ontológica, o
Em meados do século XIX, na cidade do capitalismo à brasileira também poderia ser
Rio de Janeiro, o narrador cinicamente críti- a luva a calçar a mão da natureza humana.
co – e/ou criticamente cínico – de “Pai con- Como tal ferida histórica não apenas não
tra mãe” nos diz que “os escravos fugiam foi cicatrizada como parece expelir cada vez
com frequência. Eram muitos, e nem todos mais pus – a dubiedade machadiana bem
gostavam da escravidão. Sucedia ocasional- poderia insinuar que as tentativas reformis-
mente apanharem pancada, e nem todos tas e/ou revolucionárias de amenizar nossas
gostavam de apanhar pancada”2. Ora, se os feridas históricas com mertiolate também
escravos fugiam com frequência, muitos re- visaram provocar ainda mais agonia e ardên-
pudiavam os aguilhões da escravidão – mas, cia no corpo social –, a atualidade da crítica
ainda assim, como nem todos gostavam da social apologista de “Pai contra mãe” parece
escravidão e como nem todos gostavam de residir em sua capacidade de escarafunchar
apanhar pancada, podemos deduzir que ha- contradições ainda não superadas – para um
via também, sempre segundo as (contra)in- sem-número de personagens machadianas,
formações do narrador machadiano, aqueles trata-se de contradições insuperáveis.
que rezavam segundo o discurso da servidão Paridos a fórceps o grotesco e o cruel
voluntária. O curioso (e sintomático) é que do conto machadiano que arremessará o
grande parte dos escravos fujões era apenas pai contra a mãe, ficamos sabendo que, em
repreendida, já que poderia haver “alguém meio à sociedade brasileira oitocentista en-
de casa que servia de padrinho [ao escra- cimada por uma exígua cúpula de senhores
vo]”, e talvez o dono não fosse “mau; além e assentada sobre o dorso prostrado da es-
disso, o sentimento de propriedade modera cravidão, “pegar escravos fugidios era um
a ação, porque dinheiro também dói”3. As- ofício do tempo”5. Mas, ora, quem eram
sim, a moderação da ira senhorial – mode- os atores sociais que se aventuravam por
ração que, por vezes, lançava mão do chi- tais veredas esguias e o que os levava a um
cote e do pelourinho como instrumentos de ofício tão incerto? Nosso narrador pronta-
catequese – ocorria não pela mediação da mente nos revela que ninguém se metia em
Declaração dos Direitos do Homem e do Ci- tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a
dadão, cujo conteúdo emancipatório ainda necessidade de uma achega, a inaptidão para
outros trabalhos, o acaso e, alguma vez, o
não chegara ao Brasil escravocrata de então,
gosto de servir também, ainda que por outra
mas pelo prejuízo pecuniário que o senhor
2 Ibidem. 4 Ibidem.
3 Idem, p. 660. 5 Idem, p. 661.
Os i n im i g os d o h om e m s e r ã o a s p e ss oa s d e s ua p r óp r i a c a s a   •   77

via, davam o impulso ao homem que se sentia ademais, que, desde a Idade Média, [o nome
bastante rijo para pôr ordem à desordem6. Mônica] tem sido associado ao termo latino
É assim que, para Cândido Neves, des- moneo, que quer dizer conselheiro, e ao ter-
cendente do ethos macunaímico de Leonar- mo grego monos, que significa um, único.
do Pataca, o anti-herói – ou, por outra, o No século IV d.C., esse nome surge a partir
da santa norte-africana Mônica de Hipo, mãe
herói à brasileira – de Memórias de um sar-
de Santo Agostinho, a quem ela converteu ao
gento de milícias (1854), de Manuel Antônio
cristianismo8.
de Almeida, o ofício – ou melhor, o biscate
Como a crueldade machadiana e o gro-
– de captor eventual de escravos era como
tesco da realidade social parecem não ter
a ocasião que faz o ladrão, já que Candinho
fim, a Mônica do nosso conto é a conselhei-
era acometido pela síndrome do caiporismo,
ra singular que traz a divisão entre o pai e a
isto é, o rapaz não parava quieto nos (sub)
mãe – na paródia de Machado de Assis, o
empregos que, vez por outra, ele amealhava
nome da mãe de Agostinho de Hipona, ca-
entre um fiado e outro no boteco, entre um
nonizado pelas Confissões (397-398 d.C.) do
jantar e outro na casa de parentes e amigos.
teólogo católico, invoca o anátema de que o
Assim, como os donos dos escravos fugidos
filho de Cândido e Clara seja conduzido não
prometiam gratificações generosas para
à pia batismal, mas à Roda dos enjeitados.
os captores em seus anúncios nos jornais,
No princípio era o verbo – abortar.
o caiporismo e o dinheiro fácil faziam com
Diante da crescente concorrência com
que Candinho ressignificasse o anátema di-
a legião de caiporas/captores de escravos
vino do Velho Testamento: Ganharás o pão
e costureiras que faz minguar os ganhos
sem o suor do teu rosto.
já exíguos de Candinho e Clara; diante da
Não deixemos de notar que, em meio
ordem de despejo iminente do locatário do
ao darwinismo social à brasileira, a lei dos
casebre; diante da comida cada vez mais ir-
senhores brancos só fazia legar o salve-se
regular e escassa, a tia e apóstata Mônica
quem puder à legião de espoliados pardos,
prega o 11.o Mandamento: Abortarás.
mestiços e negros. Assim, a crueldade ma-
Eis, então, o que o narrador machadiano
chadiana faz com que o (anti-)herói de “Pai
nos revela em um trecho que parece extraído
contra mãe” seja submetido à dupla euge-
do Evangelho segundo Mônica Iscariotes:
nia de se chamar Cândido Neves. E, como A situação era aguda. [Candinho e Clara]
se tal tentativa de arrefecer/embranquecer Não achavam casa nem contavam com pes-
a negritude como destino social não fosse soa que lhes emprestasse alguma; era ir para
suficiente, o grotesco machadiano faz com a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica
que Candinho se apaixone pela costureira teve a arte de alcançar aposento para os três
Clara. Em face do casamento do caipora em casa de uma senhora velha e rica, que
lhe prometeu emprestar os quartos baixos da
com a costureira, Mônica, tia de Clara, não
casa, ao fundo da cocheira, para os lados de
tem muita dificuldade em fazer as vezes de
um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer
pitonisa: “Vocês, se tiverem um filho, mor-
rem de fome”7. Não deixemos de notar, 8 Behind the Name: The Etymology and History of First
Names [Por detrás dos nomes: a etimologia e a histó-
6 Ibidem. ria dos nomes]. Mônica: https://www.behindthename.
7 Idem, p. 662. com/name/mo13nica. Consulta feita no dia 22/4/17.
78   • Flávio Ricardo Vassoler

nada aos dois, para que Cândido Neves, no antes de chegarmos à vitória de Pirro – ao
desespero da crise, começasse por enjeitar o vencedor, as batatas – do filho do captor de
filho e acabasse alcançando algum meio se- escravos Candinho sobre o filho da escrava
guro e regular de obter dinheiro; emendar a
Arminda; antes de chegarmos, a bem dizer,
vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem
a um dos desenlaces mais cruéis da obra
as repetir, é certo, mas sem as consolar. No
dia em que fossem obrigados a deixar a casa, de Machado de Assis, voltemos ao calvário
fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e dos pais Cândido Neves e Clara, já que o
iriam dormir melhor do que cuidassem9. filho do casal acaba de nascer. “Notai que
era um menino, e que ambos os pais dese-
Para abrigar Candinho e Clara, tia Môni- javam justamente este sexo”11. Escarra na
ca Iscariotes espera que o casal seja despeja- boca que te beija: o narrador machadiano
do; para que Candinho abandone de vez o faz com que tal afeição tenha a dupla (e
caiporismo, tia Mônica Iscariotes espera que dúbia) função de enternecer o coração dos
o pai enjeite o filho; ainda que tenha uma pais ao mesmo tempo em que torna ainda
carta na manga para impedir que Candinho mais árdua a via crucis do filho rumo à Roda
e Clara durmam ao relento, tia Mônica Is- dos enjeitados. Mas, ora, diante da penúria,
cariotes ouve as queixas de Clara, mas não que fazer? Para que consigamos oferecer a
consola a sobrinha. Se, para a tia Mônica dos outra face, é preciso que todos e cada um
Anjos, a mão que afaga é a mesma que ape- de nós tenhamos um rosto – o espectro da
dreja; se, para a tia Mônica Citotec, é preciso tia Mônica Iscariotes só faz sentenciar que
jogar o bebê fora junto com a água do ba- o velho dito de que onde comem dois tam-
nho para salvaguardar a banheira; se, para a bém comem três não compra a fiado nem
tia Mônica Maquiavel, os fins legitimam os na mercearia do irmão do padre. Então,
meios, bem podemos entrever por que, no diante da penúria, que fazer?
Evangelho segundo Mônica Iscariotes, Judas Fazer, executar. 11.o Mandamento: Abor-
trai Jesus Cristo com um beijo. tarás.
Ocorre que, mesmo com todo o caipo- Assim, Clara e Candinho mal puderam
rismo de Candinho, o rapaz parece ter ver- dar algum leite ao bebê – chegara a hora
dadeira afeição por Clara e, antes mesmo de enjeitá-lo de vez. Mas, “como chovesse
do nascimento do bebê, Candinho já parece à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na
amá-lo enternecidamente. Neste momento, noite seguinte”12.
os leitores escolados de Machado de Assis Repleto de comiseração pelo filho, Can-
já tentam encontrar alguma fissura no amor dinho aproveita a noite derradeira para ler
paterno de Candinho por conta da utilização e reler, um a um, os últimos anúncios que
do verbo parecer. Na verdade, logo veremos prometiam recompensas para captores de
que o amor de pai – amor que não deixa de escravos fugidos. A maioria lhe pareceu fo-
ter seus laivos narcísicos – se afirmará, gro- go-fátuo – meras promessas ou gratificações
tescamente, contra o amor de mãe, já que escassas. Uma recompensa por uma mulata,
“nem todas as crianças vingam”10. Mas, no entanto, subia à polpuda soma de cem
9 MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”, p. 663. 11 Idem, p. 664.
10 Idem, p. 667. 12 Ibidem.
Os i n im i g os d o h om e m s e r ã o a s p e ss oa s d e s ua p r óp r i a c a s a   •   79

mil-réis. Na manhã seguinte, Candinho se ‘mente dourada’, a partir dos elementos ar,
embrenhou pelo centro do Rio de Janeiro à que quer dizer ‘ouro, dourado’, e mend, que
caça de pistas da escrava fugida, mas nada quer dizer ‘mente’”16. Como a escrava Ar-
logrou descobrir. Quando do triste retorno minda não pertence a si mesma, sua mente
ao casebre em que morava de favor após o a remete primeiramente ao arbítrio de seu
despejo, Candinho encontra tia Mônica com senhor; depois, durante os momentos con-
o bebê já pronto para ser levado à Roda dos tingentes de fuga e liberdade condicional,
enjeitados. Diante da miséria patente e da a mente de Arminda é alienada em função
resignação cabisbaixa de Clara, o pai decide da legião de captores de escravos, dentre os
abortar o filho. quais desponta nosso caipora Candinho. E
Reparemos que a Roda dos enjeitados Arminda, é claro, vale ouro – mais precisa-
ficava “na direção da rua dos Barbonos”13, mente, cem mil-réis, quantia polpuda que,
cujo nome alude aos “membros da Ordem ao menos por ora, revogaria o aborto do fi-
dos Frades Menores Capuchinhos, [uma] or- lho pelo pai. Assim, no Largo da Ajuda, o
dem religiosa franciscana e reformada”14. darwinismo social daquele Brasil grotesco e
Como uma faca só lâmina – a mesma faca cruel sentencia que a sobrevida do filho de
que degolará o filho de Candinho –, a cruel- Candinho pressupõe os aguilhões contra os
dade machadiana e o grotesco da ordem so- pulsos e tornozelos de Arminda – isso para
cial e humana só fazem abortar a bondade e não mencionarmos a suma tortura com a
a compaixão que remontam a São Francisco “máscara de folha-de-flandres, (...) [que] ti-
de Assis. nha só três buracos, dois para ver, um para
Candinho fizera com que Clara amamen- respirar, e era fechada atrás da cabeça por
tasse o filho uma última vez antes de enjeitá- um cadeado”17.
-lo; o pai queria levar o filho de volta para Se terminasse com a captura de Armin-
casa enquanto percorria a via crucis rumo da e a sobrevida (momentânea) do filho do
à Roda dos enjeitados; o pai agasalhava o caipora Candinho, o conto já seria grotesco.
filho e lhe cobria o rosto para preservá-lo Ocorre que tanto o niilismo quanto a crítica
do sereno. Súbito, “na direção do Largo da e a apologia sociais de Machado de Assis de-
Ajuda, [Candinho] viu do lado oposto um legam à crueldade o papel de revelar por que
vulto de mulher; era a mulata fugida”15. o conto se intitula “Pai contra mãe”. Assim,
Tomado por enorme comoção, o pai pede a enquanto se contorcia para tentar escapar
um farmacêutico que cuide do filho por um das mãos robustas de Candinho, Arminda lhe
instante e dispara rumo à captura da escrava implorou “que a soltasse pelo amor de Deus.
Arminda, cuja condição reificada desponta ‘Estou grávida, meu senhor!’, exclamou. ‘Se
desde o próprio nome, já que, “possivel- Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por
mente, Arminda é a forma feminina de Ar- amor dele que me solte; eu serei tua escrava,
mend, nome masculino albanês que significa vou servi-lo pelo tempo que quiser’”18. Pobre
13 Idem, p. 665. 16 Behind the Name: Arminda: https://www.behindthe-
14 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Aurélio: o dicioná- name.com/name/armend/submitted. Consulta feita no
rio da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo, 2004, dia 23/04/17.
p. 167. 17 MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”, p. 659.
15 MACHADO DE ASSIS, “Pai contra mãe”, p. 665. 18 Idem, p. 666.
80   • Flávio Ricardo Vassoler

Arminda: é por amor de seu próprio filho que Mas, ora, que importava a Candinho
Candinho não pode soltá-la; é por amor de o filho morto da escrava se seu filho pôde
seu próprio filho que Candinho não pode voltar para casa? Que importavam a Can-
permitir que Arminda tenha o ventre livre. dinho as palavras duras da tia Mônica con-
No Brasil oitocentista, ser senhor de escravos tra a fuga da escrava e contra o aborto de
é condição para muito poucos. Se Candinho Arminda? (Segundo a liturgia do poder, a
mal consegue alimentar Clara e seu filho, vítima, por ser vítima, já é culpada; afinal,
como é que o caipora arcaria com os custos não é o pássaro que busca a proteção da
de manutenção de Arminda? Assim, com a gaiola?) Beijando o filho (e as duas notas
frieza aguçada pelo darwinismo social da de cinquenta mil-réis) entre lágrimas ver-
guerra de todos contra todos, Candinho grita dadeiras, Cândido Neves abençoa a fuga
para Arminda: “Você é que tem culpa. Quem de Arminda – a bem dizer, Cândido Neves
lhe manda fazer filhos e fugir depois?”19 abençoa a escravidão que também o agui-
Quem lhe manda fazer filhos e abortar lhoa. Afinal, sentencia o pai embalando o
depois, Candinho? filho sobrevivente, “nem todas as crianças
A obra de Machado de Assis bem po- vingam”22.
deria responder: a ordem humana, como Por ora, Candinho venceu. Por ora, seu
legado de nossa miséria, e a ordem social, filho sobreviveu. Mas, além de os cem mil-
reproduzindo a miséria como nosso legado. -réis não serem eternos, o caiporismo pau-
Duas faces da mesma moeda que compra e pérrimo de Candinho e Clara precisa rezar,
vende legiões de Armindas. de fato, pelo pão nosso de cada dia. O nar-
Quando, após muito choro e ranger rador de “Pai contra mãe” bem poderia sus-
de dentes, Candinho chega com a escrava surrar para Candinho: amanhã, meu caro,
à casa de seu dono, uma cena ainda mais há de ser outro dia, já que pau que bate no
dantesca é parida: filho de Arminda também bate no filho de
Arrastada, desesperada [e] arquejando,
Clara. Afinal, em meio à obra dialeticamente
(...) Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o
senhor da escrava abriu a carteira e tirou os
pessimista de Machado de Assis, nem todas
cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves as crianças vingam.
guardou as duas notas de cinquenta mil-réis,
enquanto o senhor novamente dizia à escrava Referências bibliográficas
que entrasse. No chão, onde jazia, levada do ASSIS, Joaquim Maria Machado de. “Pai contra mãe”. In:
COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Ja-
medo e da dor, e após algum tempo de luta, a neiro: Nova Aguilar, 1997, v. 2, pp. 659-667.
escrava abortou20. BEHIND the Name: The Etymology and History of First
Names. [Por detrás dos nomes: a etimologia e a his-
tória dos nomes]. Disponível em: https://www.behin-
Cúmplice como Candinho – e como os dthename.com/. Consulta feita no dia 23/04/17.
leitores/espectadores –, o narrador macha- Bíblia sagrada. Tradução dos originais mediante a versão
dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíbli-
diano sentencia que, “entre os gemidos co Católico. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1994.
da mãe e os gestos de desespero do dono, FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio: o dicio-
nário da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo,
Cândido Neves viu todo esse espetáculo”21. 2004.

19 Ibidem.
20 Idem, p. 667.
21 Ibidem. 22 Ibidem.
Algumas anotações sobre a vanguarda
na República Dominicana: La poesía
sorprendida, Eugenio Granell e Freddy
Gatón Arce
Floriano Martins
Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura

La poesía sorprendida nosso e é sua beleza que mantém essa fidelida-


de secreta na oculta, interior e grande esperan-
Outubro de 1943 surge em Santo Do- ça. Não sabemos se o mundo louco corre para
mingo o número de estreia da revista La ela, porque precisa agora correr como antes,
poesía sorprendida. Sua formação editorial como sempre ou como amanhã; ou se ela corre
dialoga intensamente com o caráter inter- para ele, porque necessita salvá-lo.
nacionalista que desde o primeiro período
Em fevereiro do ano seguinte, abrindo a
das vanguardas se requeria de artistas e inte-
edição # 5 de La Poesía Sorprendida, lemos
lectuais em todo o mundo. O Surrealismo já
o editorial que, ao fazer menção ao primei-
havia semeado relevantes fortunas por todo
ro centenário da República Dominicana, tra-
o continente, e o quinteto que então dirigia
ta de reafirmar o espírito daquele grupo de
a revista dominicana estava atento ao que se
intelectuais:
passava tanto na Europa quanto na Améri-
La Poesía Sorprendida não tem outro pre-
ca. Havia uma dupla sintonia, de respeito e
sente que esta vida interior do homem ameri-
afinidade. E um espírito de irmandade que cano que busca sua essência americana e uni-
buscava novas perspectivas humanas, am- versal; que ama a própria herança e que, de tão
pliando horizontes magicamente destinados unido e herdeiro dela, é capaz de olhar para
às exigências do grupo de afirmação de um adiante com olhos e alma novos por eternos.
Homem Universal. E tal consonância era pa-
Tal determinação acompanhará a revis-
tente no perfil do quinteto que a dirigia, for-
ta por toda a sua trajetória, o que inclui a
mado por um chileno, um espanhol e três
publicação de 21 números, além de uma
dominicanos. Um deles, Alberto Baeza Flores
série de cadernos individuais, com poemas
(Chile, 1914-1998), abrindo o número inau-
de todo o grupo e também de outros po-
gural da revista, destaca:
Não sabemos se a poesia nos surpreende
etas convidados. Ao lado de Baeza Flores,
com seu deslumbrante destino, se nós a surpre- Eugenio Fernández Granell (Espanha, 1912-
endemos em sua silenciosa e verdadeira beleza. 2001) reforçaria a consistência múltipla do
Não sabemos se ela surpreende este mundo grupo, que contaria com um relevante trio
82   • Floriano Martins

dominicano: Mariano Lebrón Saviñón (1922- Mais do que isto, Trata-se aqui do pri-
2014), Freddy Gatón Arce (1920-1994) e meiro registro em terras americanas de ex-
Franklin Mieses Burgos (1907-1976). Todos periência com escritura automática, além
eles, poetas, exceto por Eugenio Granell, do fato dela envolver uma performance de
que, além da poesia, se destacava como criação coletiva. Tais publicações vitalizam
músico e artista plástico. cada vez mais as afinidades de La Poesía Sor-
Assim estava formado o quinteto de La prendida com o Surrealismo, embora sem
Poesía Sorprendida, e a revista, já em sua tratar-se de adesão formal ao movimento.
estreia, publicava poemas de Paul Éluard, A exemplo do que, na década seguinte, fa-
William Blake, ao lado de poetas domini- riam revistas americanas, tais como a argen-
canos. Também era forte característica sua tina Poesía Buenos Aires, a nicaraguense El
que ao final de cada número viessem algu- Pez y la Serpiente e a mexicana El Cuerno
mas notas que davam ciência de afinidades Emplumado, dentre inúmeras outras, au-
e plena atenção com o que se passava ao tores de distintas tendências conviviam em
redor. Logo na primeira nota deste número um estado vital de aceitação das diferenças.
inaugural encontramos uma confirmação Aos nomes já referidos viriam se juntar os
de caráter da aventura editorial: de André Gide, Paul Claudel, James Joyce,
Somos contra toda limitação do homem, da Paul Valéry, Stephen Spender e Ronald de
vida e da poesia; contra toda falsa insularidade Carvalho, único brasileiro publicado na re-
que não nasça de uma nacionalidade universa- vista.1 Também era evidente a cumplicidade
lizada na eterna profundidade de todas as cul- do quinteto de La Poesía Sorprendida com
turas; contra a permanente traição da poesia e,
os editores de revistas que lhe eram con-
pela curta visão, seus permanentes traidores.
temporâneas, a exemplo da cubana Oríge-
O rol de inquietas afinidades prossegue nes e da chilena Mandrágora.
sendo fiado a cada número, e na edição se- Na edição # 6, de março de 1944, os
guinte podemos ler poemas de Pierre Rever- editores de La Poesía Sorprendida manifes-
dy, Robert Desnos, André Breton e Apolli- tam sua adesão ao movimento surrealista
naire, dentre outros. Este segundo número, chileno. Já em números anteriores vinham
datado de novembro de 1943, destaca um sendo publicados alguns poemas de Jorge
fato da maior importância para a cultura Cáceres (1923-1949), um dos integrantes
dominicana e, em particular, para a confi- do grupo Mandrágora, a vanguarda surre-
guração singular do Surrealismo em terras alista chilena. Agora a revista dominicana
americanas. Diz a nota: destacava a ação do grupo, mencionando
As edições de La Poesía Sorprendida pu-
blicaram Los triálogos – Livro primeiro – e Infi- 1 Uma nota editorial sublinha que Ronald de Carvalho é
nitestética – Livro terceiro – [...] Ambos os ca- “um dos mais fundos acentos da poesia brasileira con-
dernos, que recolhem temas universais, levam temporânea”, e prossegue: “Voz profunda do Brasil
constante. Seu mundo amplo, multiforme, sinfônico,
a epígrafe: “Poesia a três vozes, de Domingo de ‘toda América’, foi por nós escolhido para desta-
Moreno Jiménes, Alberto Baeza Flores e Ma- cá-lo, na versão publicada, como a veia comovida do
riano Lebrón Saviñón”. Obra nova, em fundo Brasil.” Como curiosidade final, acrescente-se que o
poema foi traduzido para o espanhol a partir de uma já
e forma. Nova por sua intenção essencial eter- existente tradução do mesmo para o francês, publicado
na de antes e agora. em 1934 na revista alemã Ulenspiegel.
A lgum as a n ota ç õ es s o b r e a va n g ua r da n a R e p ú b l ic a D o m i n ic a n a   •   83

o “exemplar trabalho dos jovens poetas e poética e existencial. Antes, o que eu co-
pintores surrealistas chilenos, que de ma- nhecia, era fruto bem pequeno de minha
neira tão exemplar e nobre se preocupam correspondência com um crítico romeno
de ampliar o mundo com a criação e a re- que em muito distorceu a realidade do
velação de uma obra e uma conduta”. Tal surrealismo em nosso continente. Para co-
adesão foi bastante ampliada, no número nhecer os milagres da criação nada melhor
seguinte, com a publicação de poemas de do que o convívio com ela mesma. Deste
todos os poetas da Mandrágora, além da modo, Gómez Rosa me pôs em contato di-
redação de uma nota final, ampla, desta- reto com a magia do que se realizou neste
cando o relevante papel desempenhado país em nome de um surrealismo que vai
pela nova vanguarda chilena. muito além do que antes sequer se havia
La Poesía Sorprendida, a exemplo dos imaginado.
cadernos individuais que costumavam edi- Foi justamente Eugenio Granell (1912-
tar, em formato A4, trazia na primeira fo- 2001) quem primeiro chama a atenção para
lha, logo abaixo do título e da ficha técnica, o erro de tratar o surrealismo como sobrer-
as vinhetas tão características de Eugenio realismo. Para ele há que destacar o fato de
Granell. Era uma revista essencialmente de que aquilo que se busca, através do surrea-
criação poética, seja em verso ou em prosa, lismo, é um tipo de realismo total, em que a
o que não impedia a publicação, em alguns criação se realiza em uma dimensão muito
de seus números, de textos críticos, tais ampla que cobre a realidade em todos os
como “Notas sobre a aventura do Surrea- seus ângulos, em todas as suas perspecti-
lismo” (LPS # 12, setembro) e “Poetas, po- vas. É muito interessante porque a ideia
esia” (LPS # 13, outubro), ambos em 1944, de um sobrerrealismo é demasiado ínfima
respectivamente assinados pelo equatoria- e reflete certa leitura formal, limitada ao
no Jorge Carrera Andrade e o cubano Eli- sentido imediato de relação com a criação,
seo Diego. Logo após completar o primeiro a leitura de um poema, o olhar sobre uma
ano de intensa atividade, a revista declara pintura etc. O surrealismo busca a dimen-
a consciência plena de seus feitos, em um são integral dos sentidos, sua festa essen-
dos balanços mais corajosos e reveladores cial alquímica. E isto o havia compreendido
da cultura dominicana. muito bem Eugenio Granell. Assim como
já o havia defendido Juan-Eduardo Cirlot,
a própria palavra “surrealismo” é “uma in-
Poucos minutos com
tensificação do sentimento da realidade”,
Eugenio Granell de modo que o surrealismo é uma revelação
Lembro o dia em que o poeta domini- do homem que levamos dentro de nós. Pela
cano Alexis Gómez Rosa, em um encontro primeira vez a arte compreende que sua
nosso em San Salvador, me presenteou com rea­lização é uma combinação de forças que
a edição fac-similada e raríssima da cole- amplia em nosso íntimo a vontade de ser,
ção completa de La Poesía Sorprendida. de conhecer, de distinguir-se em meio ao
Justamente ali começou a minha viagem universo. O complexo conceito da realida-
pelas veias cósmicas desta imensa aventura de requer um exercício perene de liberdade,
84   • Floriano Martins

um estado transbordante de transição. Re- período de sua vida em Santo Domingo re-
cordo com o mesmo Cirlot que “a concep- sulta parte considerável de sua obra plás-
ção do universo recolhe, portanto, todos tica, quase igual ao de sua residência em
os dados que podem ser isolados em di- Nova York, de permanência ainda mais
versas disciplinas do conhecimento, porém extensa.
em particular a relação viva através da qual A seu respeito, eu recordo umas exatas
o homem se confessa incluído na ordem palavras de Benjamin Péret, ao dizer de sua
do mundo”. pintura que está repleta de formas híbridas,
A realização de uma bem cuidada ex- entre tantos personagens que parecem sair
posição individual, em 1989, poucos me- de um mundo ainda por ser habitado. Disse
ses após a morte de Salvador Dalí, faz com Péret: “Esses espécimes de uma fauna fu-
que a crítica perceba que Granell era então tura – galo-relógio de sol, galinha-máquina
o mais importante surrealista vivo na Espa- de costura – nos fazem evocar os seres
nha. Porém Granell viveu em muitos países fabulosos que os primeiros viajantes reco-
e, em especial, se relacionou com o movi- nheceram na América”. Em sua plástica nos
mento de vanguarda na República Domini- deixamos mesclar por uma profundidade de
cana, de modo que, mais do que espanhol, mitos, uma possessão de fábulas, um caste-
eu o tenho como um desses artistas que lo de máscaras que são deuses que são nos-
estão bem além dos limites geográficos que sas figuras mais íntimas. Em um percurso
costumam definir a vida de alguém. milenar pelas veias mais secretas do Caribe,
Em Granell, o parentesco com a pintu- a selva dançante com suas coxas esculpidas
ra de André Masson e Wifredo Lam, entre pelo suor do entusiasmo, as vozes vibrantes
outros, não cria senão a dimensão familiar e prolixas que descobrem o rosto verdadeiro
mágica que propicia sua força estética. Há das excursões do mistério.
no espanhol uma sintaxe muito singular Granell presenteou a pintura e o surrea-
que faz com que sua criação seja o cenário lismo com essa relação direta com a másca-
de uma revelação do espírito. Em suas pin- ra, o cenário amoroso no qual buscamos o
turas, igual que em seus poemas, o corpo homem no mais íntimo de cada um de nós,
todo é uma máscara, no sentido da afirma- através de formas que são móveis, dinâmi-
ção de um teatro pleno de revelações. cas, musicais. Seu mundo plástico é uma
Sua biografia compreende dois mo- partitura de jazz, é toda uma jam session
mentos bem especiais, o encontro com dos vertigens de nossa aventura existencial.
André Breton e o grupo de La Poesía Sor- Porém também criou no ambiente da
prendida. As duas coisas são frutos de sua amizade, com seu entusiasmo e generosi-
residência na República Dominicana. Com dade. Em suas viagens fez muitos amigos
o primeiro, juntamente com Marcel Du- que testemunham o valor magistral de seu
champ, organizou, em 1947, uma das ex- espírito. Entre esses encontros mágicos,
posições internacionais do Surrealismo, em destaco os momentos passados com o casal
Paris. O segundo caso compreende um dos Susana Wald e Ludwig Zeller, seja na Espa-
mais afortunados momentos do surrealis- nha, Portugal, Estados Unidos ou Canadá.
mo em nosso continente. Deste extenso Neste último país, seus amigos chegaram a
A lgum as a n ota ç õ es s o b r e a va n g ua r da n a R e p ú b l ic a D o m i n ic a n a   •   85

organizar uma exposição sua na Mandref contextualização surrealista no sentido de


Gallery, Ontario. Anos depois, em uma car- firmar o devir de todas as coisas invisíveis,
ta a Ludwig Zeller, anotou Granell: a festa das metamorfoses através da qual
Gosto muito de estar sozinho. Não sei o o homem reconhece a si mesmo. Granell
que é o aborrecimento e cada dia necessita- é um mago da carnalidade do desejo, um
ria ter mais 24 horas para fazer coisas que, bruxo que como poucos penetra as chamas
independentes do valor que possa ter para os
do espírito em busca de sua realização em
demais, fazem parte de minha própria existên-
matéria viva. Descanso nas nuvens, O vul-
cia até o limite de que não sei como poderia
viver sem estar sempre completamente entre- cão de água, Cerimônia da lâmpada tribal,
gue a elas. Eu creio que o aborrecimento em Os espelhos dos adeptos acendem os car-
situações normais é uma espécie de renúncia vões da noite, O balcão das filhas do sol...
à vida. Talvez, uma poupança do ato suicida são como fábulas fantasmais, fantasias oní-
por pura timidez – ou por excessiva modéstia. ricas que expandem nossa compreensão do
mundo.
Este fragmento de carta que reproduzo
Sua técnica refinada de óleos sobre
me foi facilitado por Susana Wald, que, a
lenço e madeira, além da experiência com
meu pedido, escreveu uma memória de sua
têmpera em cartão, traduzem uma sensa-
convivência com Granell para publicação na
ção de entrada no espírito das formas, a
Agulha Revista de Cultura. Há algum tem-
dialética das vertigens, o suntuoso espaço
po tivemos Eugenio Granell como “artista
da conversação entre proximidades e dis-
convidado” desta revista, talvez a primeira
tâncias. Uma metafísica singular, plena de
oportunidade que os brasileiros tiveram de
inquieta profundidade. Granell foi também
conhecer um pouco – 46 obras – da riqueza
escultor, músico, narrador, poeta e cineas-
estética deste infatigável surrealista. Cami-
ta. Em todo o território de sua criação é
nhando por entre suas pinturas, é possível
possível encontrar os mesmos argumentos
perceber o significado das palavras que lhe
analógicos, a consciência do tom múltiplo
dedicou outro crítico, Valery Oisteanu:
da realidade, a voragem poética das incon-
Granell nos revela os mistérios das regiões
ocultas, nos devolvendo a energia para restau- táveis possibilidades de ser.
rar a vida e pôr em dúvida as forças obscuras O mesmo teatro alquímico que encon-
da destruição. Por um reflexo automático, tramos em sua plástica encanta o olhar de
livre associação, ocultismo? Quem sabe! De quem desce ao cenário de sua poesia, como
suas distantes expedições, Granell nos traz uma transmutação da matéria plástica em
a eloquência mágica de novos continentes. magia verbal. E tudo ali se realiza na mesti-
Igual que aqueles índios que percorriam as
çagem de desejos e recordações.
Américas em busca de fortuna e regressavam
com ela, ele se converteu no grande mestre Uma nuvem de harpas sussurrantes
iniciado, o bruxo da tribo que domina uma circunda a carruagem do aroma sabiamente
nova linguagem pictórica, apenas igualado cândido
por Tanguy, Domínguez e Paalen. que transporta entre aparas de mármore e
cortiça
O título de suas pinturas é como cor- o fio delicado
das mágicas que inscrevem no ar uma pente de galhos em vários capítulos
86   • Floriano Martins

Ali está o casal críticos sobre o poeta dominicano, Freddy


esse que se enfrenta rugidor ungido de projetos Gatón Arce (1920-1994), uma vez mais
cada parte silenciosa na carne viva graças à generosidade plena de milagres de
cada um com sua capa de cristais
Ivelisse Altagracia Gatón Díaz de González e
Ali Luz Altagrassia Díaz Gil. Eu venho de um país
os amenos contendentes do encontro em em que os herdeiros em muito obstaculizam
todos os atalhos a circulação das obras de nossos mestres,
sem perder os chocalhos em relevo e o razão pela qual me encanta o modo como
bastão original
encontrei entre vocês esta suma de amor e
O casal respeito pela criação, por essas pontes que
inundado em ilustre furacão de vespas acesas tornam possível a vida.
Bem, agora eu quero primeiramente ler
Não há dúvida que este poeta se tra- minha tradução do parágrafo final de Vlía:
ta de uma pintura. Não há dissimilaridade Não podemos mais. A vida pesa demasia-
de tensão entre o traço e o verbo. E suas do. É uma tristeza dobrada nas cavernas que
cores são de efetiva harmonia semântica. avançam. A noite não pode ser detida em
Suas imagens são paridas na mesma cozi- uma esquina qualquer. Deve ser porque nada
nos une, sequer os pensamentos. Eu deveria
nha alegórica. Granell faz o traslado de dois
ir como cão à sombra das casas, fuçando nas
mundos como se os preparasse para a per-
lixeiras. É impossível ficar sob o azul e ter a
manência de um no outro. Despois de vê-lo ti presente ou estar triste. Tratarei de te dar
ou lê-lo já não é mais possível separar os outra silhueta para te imaginar melhor. Tudo
protagonismos. Sua virtude dialética batiza ficará como árvores ardidas até as veias frias.
as infinitas possibilidades orgânicas de tudo Já que estamos no cemitério, confortaria um
aquilo que cria. É verdadeiramente de um colóquio com os mortos. Aqui tudo é igual.
mago que se trata, um mago que se chama A tradição fria desconhece o sol das transfor-
mações. Se olhas à direita, ninguém ultraja a
Eugenio Granell e segue ainda entre nós.
humanidade do algodão, nem à esquerda um
fraque cria ódios. Aqui devemos ter nascido: a
Umas palavras sobre música sempre é escutada, uma virada para o
Norte ou Sul para agradar com outra melodia,
Freddy Gatón Arce e não fazem falta, ouvidos nem mãos, para
Uma tarefa difícil e apaixonante, traduzir temperar cordas, nem fôlego para sopros es-
Vlía. Em 2011 publicamos minha tradução tridentes. Tudo é nosso, um ritmo muito teu,
desta prosa mágica. Uma primeira edição bi- muito daquele, muito meu, e tudo descansa
em uma serena igualdade. Porém já estamos
língue e virtual que me foi possível graças a
sob a árvore eleita; nossa primeira incursão
Manuel Mora Serrano, que assinou o prólo-
aqui termina.
go. Agora mesmo acabamos de publicar sua
segunda edição, desta vez com mais ampla O que é Vlía? Um secreto ninho de me-
difusão, através da coleção “O amor pelas tamorfoses? Maquiagem amorosa da lou-
palavras”, coordenada por mim e Leda Rita cura? Um teatro de cenas vorazes que se
Cintra, especialmente para a Amazon. Edi- encontram muito além de toda realidade?
ção ampliada no que diz respeito a estudos Na apresentação de sua primeira edição,
A lgum as a n ota ç õ es s o b r e a va n g ua r da n a R e p ú b l ic a D o m i n ic a n a   •   87

pela coleção de La Poesía Sorprendida, en- Arce, sempre um leitor faminto, devorador
contramos que de maravilhas, buscador de inesgotáveis ex-
Vlía é uma confissão ao mesmo tempo periências.
diabólica e crente; angustiada e com um ful- O que um dia ele procurou através da es-
gor interior, uma sinceridade desnuda, densa,
critura automática certamente o encontrou,
obscura, de secreto humor em busca de uma
de modo que não necessita seguir criando
libertação maior. A ética e a poesia se aliam e
digladiam com o acento da dor que se mes-
de acordo com uma receita. Alcançou uma
cla ao desespero. Raro livro amoroso distinto, fluidez carismática que encontramos em
salvadoramente difícil e minoritário, de lenta Son guerras y amores (1980), sobretudo
entrega. no capítulo IV (“Suelo y quebranto de las
cañas”), assim como no capítulo “Desde
Comecemos por recordar a imagem de
antes de las palabras” do livro El poniente
André Breton ao dizer que Lautréamont
(1982). A voragem da linguagem leva em
foi um “transeunte sublime, o grande ser-
suas águas a excelência de transmutações
ralheiro da vida moderna”. Igualmente
como lemos nas páginas destes dois livros,
podemos dizer da linguagem neste livro
assim como nos fragmentos de De paso
tão ousado de Freddy Gatón Arce. A lin-
(1984), até o retorno de Vlía em Mirando el
guagem assume o protagonismo de uma
lagarto verde (1985). Escutemos:
viagem pelas possibilidades amorosas e a Tudo começou com o voo.
exaltação dos sentidos. Por isto a definição Os móveis foram se esboçando
do livro é uma tarefa ociosa, que a nin- Com suas novas solidões,
guém deve importar. Que explicação bus- Enquanto os passos e as vozes da casa
car nos textos bíblicos ou nas evocações Pareciam de outros pés e de outras bocas.
de Maldoror? Não se passa o mesmo com O avião, com a primavera a bordo
E, no entanto, em qualquer direção
Vlía e seu humor refinado e transbordan-
O infinito...
te? Com esse castelo de fogo e os metais
que saltam das chamas como personagens Como dizer que o surrealismo passou
que tratam de nos orientar por novos ca- pela vida de Freddy Gatón Arce uma única
minhos? Não são poemas de viagem, mas vez, ali no passado remoto dos anos 1940?
sim a viagem em si mesma. Como dizer que foi um acidente na cultura
Que Vlía seja um raro exemplar de es- dominicana? É verdade que não houve uma
critura automática no Caribe é outra coisa formalização ortodoxa, porém talvez seja
que requer um novo exame. Certamente justamente isto o que mais importa à saúde
há que se destacar a passagem de André do surrealismo. Já em 1952 dizia André Bre-
Breton por Santo Domingo, assim como a ton que “não deixam de ser produzidas hoje
residência ali de Alberto Baeza Flores e Eu- obras que, sem ser exatamente surrealistas,
genio Granell. Como reflexo natural che- o são mais ou menos profundamente por
gam as vozes plasmáticas do surrealismo e seu espírito”. Certamente que não se trata
a magia entranhável de movimentos poé- da cegueira manifesta no conceito de um
ticos desde Cuba e Chile, sobretudo. Sem parassurrealismo. Com o tempo a criação foi
esquecer a própria natural de Freddy Gatón descobrindo vários matizes para se realizar,
88   • Floriano Martins

como as mil formas vítreas que podemos lírica. Além do mais, na força anímica que
obter soprando a mesma areia. E as vozes caracteriza o poeta, podemos recordar, com
que representam o teatro surrealista não se o argentino Aldo Pellegrini, que o mais atra-
limitam aos ditames de suas técnicas. tivo do surrealismo “foi a crença de que a
Na poesia de Freddy Gatón Arce en- arte não tem uma função em si, mas sim
contramos a presença quase constante do que é um modo de expressão do vital no
humor em seu acento mais agudo, por ve- homem”.
zes disfarçado em afirmações vertiginosas e Deste modo, Vlía é a primeira página de
insólitas. Em contraste com o registro me- um ambicioso projeto de exploração poéti-
nos frequente do automatismo, ali estamos ca da própria vida e suas inesgotáveis pers-
sempre de mãos dadas com a exaltação pectivas.
Plurilinguismo, tradução e errância
nos poemas de Moacir Amâncio

Márcio Seligmann-Silva
Doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e professor titular de Teoria Literária na
UNICAMP. É vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006.

“o que sopra dos abismos do esquecimento é ele afirma que “a obra de Kafka representa
uma tempestade.” um adoecimento da tradição”. (1993: 303)
W alter B enjamin , 1934 (2012:176) Kafka enfatizaria a transmissibilidade, mas
o conteúdo mesmo, a lei, a tradição, estaria
como que esquecida na sua obra.

C
omo dar forma ao esquecido? É fá- Iniciei este trabalho com essa referên-
cil associarmos, e isso tem sido fei- cia à leitura benjaminiana de Kafka por-
to desde a Antiguidade, a poesia à que tratarei aqui de um escritor paulista,
arte da memória. Mas desde a Modernida- Moacir Amâncio, nascido em 1949, mais
de impõe-se outra questão: É possível fazer especificamente de seus poemas, onde
poesia e literatura a partir do esquecimen- percebemos também essa construção po-
to? Walter Benjamin dizia que o esquecido ética em torno do esquecimento. Trata-se
é um dos protagonistas da obra de Kafka, de uma obra que ronda um vazio pleno de
essa verdadeira pérola da literatura moder- sentido, que imanta o presente e as pala-
na. Segundo o filósofo, num pensamen- vras, transformando-as em um recipiente
to, de resto, bem ao gosto de Freud, não que permite vislumbrar esse mesmo vazio.
é porque algo é esquecido que ele não se Não por acaso, portanto, o último livro
manifestaria no presente, pelo contrário: “é de Amâncio, sobre o qual me debruçarei
esse esquecimento que o torna presente”. aqui, se chama Matula (2016). Segundo o
(2012: 168) Mesmo porque trata-se em Ka- dicionário Houaiss, matula significa tanto
fka de um esquecimento coletivo: “o esque- “ajuntamento de gente ordinária; corja,
cimento [...] não é nunca um esquecimento súcia, matulagem”, significados que logo
meramente individual”, enfatiza Benjamin. nos interessarão, como também “alforje,
(2012: 169) Isso ele escreveu em um artigo farnel” e, ainda, “vaso, gamela”, tendo
de 1934 por ocasião dos dez anos da morte também sinonímia com penico. Seria um
do escritor de Praga. Já em 1938, em uma termo derivado de “matalotagem (no sen-
longa carta a seu amigo Gershom Scholem, tido de ‘provisão’)”. Esse sentido de “‘vaso
90   • Márcio Seligmann-Silva

ou vasilha para líquidos”, ainda segundo Maria Torok reinterpretaram o trauma do


Houaiss, permite-nos reconhecer nessa ponto de vista de uma teoria da cripta e do
obra de Amâncio um tal vaso que contém encriptamento de lembranças fantasmáti-
esse vazio de um esquecimento tão prenhe cas. Os gestos judaizantes, como sintomas
de significados. Mas a poética do escritor do passado recalcado, estavam fadados ao
e professor de literatura hebraica não é a desvio e ao travestimento: sugere-se escon-
mesma do autor de A metamorfose. Ao in- dendo, esconde-se sugerindo. Séculos de
vés de mostrar emaranhado ao esquecido tradição dessa antitradição determinaram
elementos primevos de nossa constituição, um estilo único, que guarda desde sempre
ele constrói uma intrigante e até certo pon- um parentesco com a ironia moderna (mo-
to lúdica poética do esquecimento. Esse derna já em Cervantes) e que determina o
jogo poético consiste em salpicar em todo jogo poético reciclado por novos autores
canto a hermenêutica da suspeita. Amân- marranos atuais, dentre os quais se encon-
cio em alguns de seus poemas anteriores e tra o nosso protagonista. O termo marra-
em todos os de Matula brinca de esconde- no, como matula, lembra o Houaiss, traz
-esconde com a tradição para revelá-la. Em em si a marca da perseguição e derrisão:
uma poética que também lembra Kafka por significa tanto judeu ou mouro batizado,
seus traços de escrita de si, ele se apresenta como excomungado, mas também gado
como parte de uma linhagem de herdeiros ruim, imundice, sujeira. Sua etimologia de-
do esquecimento. De que esquecimento se riva de porco, do árabe: muharram, coisa
trata? Antes de mais nada, da origem, ou, proibida, ou seja, carne de porco. O termo
como escreveu Benjamin, da tradição. Essa “judiar”, como Amâncio recorda citando
tradição é, fica evidente, a tradição judaica outro dicionarista, Aurélio, também é um
sufocada desde a Inquisição ibérica. Dentro traço, um memento da violência contra
dessa tradição da cultura marrana, ou seja, uma etnia conservado na língua portugue-
no mundo do ben anussim, ou do filho de sa de modo cristalino: “judiar: (...) tratar
forçados, em hebraico, estabelece-se uma como antigamente se tratavam os judeus
tensão sem solução entre o recordar e o es- escarnecer maltratar escarnecer, mofar,
quecer. Essa é a pedra de toque dessa tra- zombar, judiar com alguém, fazer judiaria,
dição da morte da tradição e o seu encan- fazer sofrer, atormentar, maltratar, judiar
to. No contexto da Inquisição, por séculos dos animais”. Hoje, no entanto, o jogo po-
impuseram-se práticas de escamoteamento ético com essa tradição é totalmente resig-
da judeidade. E justamente nesse contexto, nificado, retraduzido sem perder suas ca-
gestos eram mantidos como autoafirmação racterísticas antigas. Encontramos a tensão
de uma origem cortada, tornada pecado e entre o dizer e o desdizer, a fragmentação,
suja. Como escreve Amâncio em um poe- o jogo com onomásticos e toponímicos, a
ma curto de Matula: “cripto tão críptico/ ironia, o anedotário, referências bíblicas e
que se ignora/ porém guarda”. Temos aqui propensão mística, além de outras tantas
quase uma metáfora do trauma do ponto características, mas acrescidas agora de um
de vista psicanalítico e, não por acaso, os novo desejo de etnogenese, marca de nos-
discípulos de Freud, Nicholas Abraham e sa contemporaneidade. Amâncio constrói a
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o  •   91

sua Eretz Israel reconstruindo uma descen- arca-arquivo: que salva escombros que são
dência em parte imaginária, marcada ao citados, comentados ou parafraseados. É
mesmo tempo pela piedade, pelas fugas e como se o mundo se desfizesse em letras. E
perseguições, mas também pela criativida- o próprio Luís Nunes Tinoco, na apresenta-
de e capacidade inventiva de se disfarçar. ção do referido texto, deixava claro a visão
Isso tudo curtido em altas doses de esque- de mundo mística judaica que se conserva
cimento e recordação. Trata-se de lembrar no poeta paulista. Tinoco lavrou:
do esquecido, mas de um esquecido essen- He o mundo todo hum grande livro de que
cial, que tem seu valor derivado do fato de emana a Sciencia da Orthographia: cujos Tra-
nunca poder existir integralmente. Tornou- tados são as Idades, os Capítulos, os Séulos,
as folhas os annos, os paragrafos os mezes,
-se, portanto, matéria fértil para a poesia
as Regras os Dias e as Letras as Horas. [...] Foy
e é disso que Amâncio sabe se aproveitar
Adam a primeira Letra do Alfabeto Racional
muito bem. Ele coleta os vestígios dessa que Deus tirou e criou do Nada, que hé Ana-
tradição do naufrágio. gramma de Adam na língua espanhola (...)
Matula tem em sua capa uma bela Fênix- Com Estrellas de brilhante ouro escreveu Deus
-tatuagem que faz as vezes de uma guar- as Letras redondas sobre o azul dos Celestes
diã protetora. Ela protege essa obra, que é Orbes: com flores de varias cores formou Al-
na verdade essa ambígua arca da memória fabetos de diferentes matizes na Terra: com
do esquecimento. Amâncio recolheu nela aves de diversas formas delineou vistozas pe-
nadas no Ar. Nesta cristalina lamina desse hu-
os fragmentos da judeidade portuguesa-
mido Elemento abriu o subtil buril da Divina
-espanhola e de seus desdobramentos em
Providencia Letras de prata que posto sejam
Amsterdã, no Recife e pelo mundo afora. A só Mutas, e Líquidas não deixam de se soletrar
Fênix é o pássaro que se renova e renasce a nellas innumeraveis maravilhas da Natureza,
cada ciclo, como os judeus em sua dispersão. que se lêm como Agua. (...) Finalmente nesta
Esse pássaro também estava estampado na Machína do Orbe todas as criaturas são A B C
capa da talvez primeira obra de autor mar- de Deos, como diz Santo Ambrosio, por onde
rano publicada em solo brasileiro, ainda no cada natureza he huma letra cada vínculo
huma sylaba e cada geração muytas dicções:
século XVI, a Prosopopeia de Bento Teixeira
não havendo criatura alguma por pequena
Pinto (1561-1600), conforme indica o pró-
que seja que não sirva de folhano volume do
prio Amâncio em palestra proferida em tor- Mundo.” (Apud Harthely 1999)
no do marranismo e de seu Matula. Ele nota
também que esse mesmo pássaro imortal é É digno de nota que esse tipo de visão
o símbolo da comunidade Nevê Shalom dos escritural do mundo, como também o de-
judeus portugueses de Amsterdã. monstrou Benjamin em seu livro sobre o
O livro-(i)memorial se abre paradoxal- Trauerspiel, é típico do Barroco e de sua
mente com um anexo de Luís Nunes Tinoco alegorese. Um mundo esvaziado de trans-
(1642-1719), um poeta, pintor e calígrafo cendência é resignificado ludicamente pelo
português, autor de “A Feniz (sic) de Por- poeta barroco com seus constructos enig-
tugal Prodigiosa”, com anagramas que ofe- máticos, como no caso dos emblemas.
receu à rainha Maria Sofia Isabel. Tudo no Neles coexistem palavras e imagens que
livro de Amâncio lembra essa metáfora da se tensionam e alimentam mutuamente,
92   • Márcio Seligmann-Silva

produzindo interpretações as mais variadas, silva zacuto câmara zarco ferreira melo e cas-
que projetam um mundo místico onde mui- tro rosa peixoto mesquita pinto mendes preto
tas vezes tem-se na verdade um vazio. Sem magriço corte real campos cardozo frances mo-
reno rodrigues maia bentes rozales rodrigues
dúvidas também Amâncio é tributário desse
mendes rosa pereira carranca sequerra mon-
jogo barroco, como vemos, por exemplo em
santo chaves belmonte etc.
seus inúmeros poemas-nomes. Neles a ten-
dência barroca para aquilo que Benjamin Nesses nomes sobrevivem os filhos e
chamou de “armazenamento” (Magazinie- descendentes dos forçados à conversão e es-
rung) é levada a sua última consequência: quecimento, como que em uma desforra da
O ideal de saber do barroco, o armazena- história de violências. Se o mundo se disper-
mento [Magazinierung], cujo monumento se sa em palavras, como um livro aberto cujas
cristalizou nas bibliotecas gigantes, é realizado
folhas se espalharam, as letras que com-
pela imagem escrita [Schriftbild]. Quase como
põem os nomes lhe dão um lastro. O nome é
na China, é como se uma tal imagem fosse
não signo do que deve ser sabido, mas, antes, o intraduzível por excelência. É o nervo duro
um objeto em si mesmo digno de ser conheci- da linguagem. Segundo a cabala, criada e
do. (Benjamin 1980: 359 s.) seguida por muitos dos autores recordados
por Amâncio, a língua originária foi a língua
E Amâncio compõe seu universo grama-
de Adão, uma língua de nomes que ele deu
tológico-onomástico listando nomes em um
a cada ser, lendo a criptoescita que Deus dei-
verdadeiro arquivo da sobrevivência onde o
xara em suas criaturas. Nomes são fragmen-
Eu (poético mas não só este) se reinventa:
tos robustos do passado. Nomes tornam-se
tu não és
quem pensas
que és as palavras-chave do poema do mundo da
(pergunta pelo primo dirigida a E.M.M.C.) dispersão: são nossas casas, arruinadas, mas
p.s. nas quais encontramos abrigo. Construídas
etc. os câmara zarco ferreira melo rosa com a consciência de que o passado nunca
peixoto mesquita pinto mendes preto magriço pode ser restaurado. Como poeta Amâncio:
corte real bezerra cardozo frances moreno ro- “ninguém pode ir pra casa de novo/ só como
drigues soares bentes rozales rodrigues men-
estrangeiro/ todos nós”.
des roiz pereira carranca sequerra silva zacuto
Amâncio é o catador das palavras e ima-
câmara zarco ferreira melo rosa ferreira peixoto
mesquita pinto mendes preto magriço corte gens que ele reorganiza nesse livro-monta-
real bezerra cardozo frances moreno rodrigues gem, um verdadeiro painel da judeidade e
soares bentes rozales rodrigues mendes roiz da criptojudeidade marrana. Tudo se mistu-
souza pereira carranca brito sequerra silva za- ra aqui, inclusive o mais privado e o mais
cuto câmara zarco ferreira melo rosa peixoto histórico: “marrano de pai mãe e avós eu o
mesquita pinto mendes preto magriço corte sou”, lemos em um verso. E mais: “foi esta
real campos cardozo frances moreno rodrigues
a equação/ tetratetravós judeus/ tetravós
soares bentes rozales rodrigues mendes roiz
marranos/ bisneto ateu”. A história é apre-
pereira carranca sequerra silva zacuto câmara
zarco ferreira melo rosa peixoto pinto men-
sentada como um quiasmo: é um processo
des preto souza brito magriço barbosa roiz sá de afastamento da tradição, mas também,
campos cardozo frances moreno soares bentes o presente é visto como um local de encon-
rozales mendes roiz pereira carranca sequerra tro com os escombros do passado. Tudo
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o  •   93

agora se transforma em traço de memória Matula está cheio também de descrições


nessa poética lúdica que imanta tudo com de rituais e de gestos da tradição judaica,
o tom da alusão e da sobrevivência. O leitor sobretudo no que diz respeito ao culto aos
se transforma em detetive dessa história da mortos: lavar o corpo, colocar a mortalha,
tentativa de apagamento de uma tradição cobrir os espelhos, cortar um pedaço da rou-
e da resistência a esse apagamento. Outro pa, não se barbear por uma semana: “res-
poema: “eu sou o único judeu na minha fa- peita todo aquele que tiver a barba crescida
mília/ toda hoje/ venho do ramo de samuel pois/ está de luto”. Lembra também o banho
usque”: judeu lisboeta autor de “Consola- sabático, varrer a sujeira para dentro, a faxi-
ção às tribulações de Israel” (1553). Esses na do sexto dia, “o abate dessangrento” etc.
judeus, como a família de Espinosa (muito Esses hábitos sobrevivem entre os converti-
presente no livro, aliás) tiveram que enfren- dos muitas vezes como memória inconscien-
tar “seja amsterdã quem sabe hamburgo te de um passado que Amâncio ilumina de
ou mesmo o bósforo/ ainda recife pode modo sútil e até mesmo carinhoso.
ser constantinopla/ onde seremos por de- As línguas se misturam assim como as
mais talvez em rhodes/ faremos lá a nossa vozes de autores que ele cita ou traduz em
língua”. E essas línguas não pararam de uma “plagiotropia” (termo de Haroldo de
ser criadas, como neste belo livro-arca de Campos, 1981: 75) vertiginosa. Ironicamen-
Amâncio que, em sua paixão pelos nomes, te, em um jogo que pode nos lembrar do
sua atração infinita pelas estórias, cria um famoso Chansons de Billiti de Pierre Louÿs,
mundo gramatológico original, pavimen- ele introduz notas e bibliografia em seu li-
tando o que chama de “o mar um ladrilho vro de poemas, misturando o gênero aca-
logos”. Até os cristãos-novos eminentes dêmico com o poético. O texto contém essa
Raposo Tavares (autor de “façanhas assas- teoria da escrita e do mundo como infinitas
sinas”) e Tiradentes têm lugar nesse (anti) reescrituras:
panteão do desterro, desespero e da recria-
teria platão reescrito sócrates
ção: Fênix.
teriam os evangelistas reescrito a bíblia e
Mas o tom geral é profundamente irô-
ieshu
nico, pois recicla de modo livre, aberto e teria moisés reescrito
muitas vezes divertido, séculos de histórias teria espinosa
e narrativas. A polifonia se alia a esse traço
irônico para se aproximar de noções caras E Amâncio ecoa ou saqueia Mallarmé
a Bakhthin, como o carnavalesco. O uni- plantando em seu livro os versos:
versos plurilíngue de Amâncio, que escreve
também em hebraico, espanhol, inglês e se o dado foi tão desfeito
esbarra no ladino, língua da judeidade se- só nos resta o acaso o jogo
fardita, corresponde na verdade ao périplo em que todos são jogados
da dispersão dos judeus, perseguidos pela
Inquisição e sempre tentando sobreviver em O ato de nomear antepassados e cons-
outras terras. A diáspora é uma sequência truir tradições e descendências é ao mes-
de novos encontros e de desencontros. mo tempo instauração de um local, de uma
94   • Márcio Seligmann-Silva

“casa”, e ato reverencial. Na tradição dos que publicou a Gazeta de Amsterdã, o jornal
livros de memória judaicos, faz-se um jazigo da comunidade judaica. Ele era filho de um
de palavras para os que sofreram persegui- cristão novo fugido de Bragança. Abraham
ções. Como o autor escreve em versos: “a Miguel Cardozo (1626-1706) era descen-
costureira de mortalhas/ descobre no passa- dente de marranos, foi médico, cabalista e
do claro – a tecer no passado claro/ o obs- um profeta na linha de Sabbatai Zevi. Esse
curecimento do presente.” Assim, também, poema e o livro estão mesmo cheios de pro-
um pequeno poema homenageia Antonio sopopeias (o mencionado título do livro de
Enríquez Gómez, dramaturgo e poeta espa- Bento Teixeira Pinto), de jogos de máscaras,
nhol, nascido em 1601 em Cuenca e faleci- de inseminação de vida em seres mortos.
do em 1663. Criptojudeu sefardita, teve o De resto, o próprio Sabbatai Zevi aparece na
avô marrano queimado pela Inquisição. pena de Amâncio como uma figura quase
paradigmática das metamorfoses identitá-
de la estrella de Venus tan ajeno rias e mnemônicas que esse livro testemu-
Antonio Enríquez Gómez nha. Afinal, esse judeu otomano, fundador
na ibéria as chamas
de uma poderosa seita mística inspirada na
cresciam das masmorras cabala, acabou se convertendo ao islamis-
com lenha local mo. Em sua lembrança escreve o poeta:
e dos aquém mares
onde dispersava shabtai tsvi o judeu o rabino o messias o com a
se em relva sem nome redenção no bolso esquerdo e todas as heresias
no bolso direito o novo muçulmano convertido
sob ameaça de morte para assim disse seguir
Assim como o barroco Luís Nunes Tino-
no caminho da redenção sob o entulho de
co, Amâncio também faz poesia imagética
todas as humilhações era o judeu muçulmano
como em um poema em forma de X ou de e o muçulmano judeu que o messias se coloca
taça, ou seja, de recipiente, matula, confor- múltiplo marrano e a farsa multiplicidade
me o leitor preferir:
dos brilhos de um astro
juan de prado gracia mendes samuel usque a cair a subir para o fundo
uriel da costa moses mendes espinosa ou rumo à flor em águas do universo
antônio martelo raposo tavares e perguntam que flor é essa de setenta
isaac oróbio de castro e sete nomes
antónio josé da silva e tantas vezes sete a cifra inumerável
barros basto
o pessoa Gershom Scholem, em seu livro sobre o
prosopopeias místico otomano, mostrou como para ele
abraham miguel cardozo
o número sete continha todo o mistério do
menashê ben israel soeiro abraham pereyra
mundo de forma concentrada. (1976: 441)
tartas tartas tartas tartas tartas tartas tartas
crasto tartas Mas Amâncio se apropria desse nome para
fazê-lo renascer no misticismo político portu-
David ben Abraham de Castro Tartas guês: “sebastião/shabtai:sabtai/?” E não sem
(1630-98) foi um impressor de Amsterdam ironia arremata: “o passado nos atualiza”.
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o  •   95

Dentro dessa poética “nominalista” outra, esse gesto de copista que traduz um
Amâncio recorda também um tradutor e tratado em poema ecoa também um ges-
ator, ou seja, um especialista em represen- to semelhante do grande poeta e tradutor
tação como dissimulação, chamado Vitali Haroldo de Campos, que publicou uma tra-
Háim Ferera, cujo nome leva o poeta a um dução em versos de uma passagem da Fe-
encadeamento que o ecoa e desdobra em nomenologia do Espírito de Hegel. (“Hegel
outros nomes da tradição marrana des- Poeta”.)
vendando a tradução como uma ação que O ser nômade da cultura iluminada do
acentua o nomadismo cultural marrano: ponto de vista do marranismo é explicitado
ironicamente no poema em inglês “ETY-
vitali vitale vidal háim herrera MOLOGY”:
ferera de repente perera
pereira ferreira change j for x and read that letter like a
gallego
do fausto dos dons manuéis or a brazilian or a portuguese
moedas falsas or maybe an old spanish reader
nas mãos dos ministros ancestrais sh

[...] a gente da nação e a gente da nação


in order to understand that spanish word
todos os idiomas
you might read it in hebrew
quando traduzes do iídiche ao espanholit
in doing so you’ll get the full meaning of it
a navegar pelo bósforo entre Istambul
qishot or qishut
e jerusalém
in aramaic we have qushta
[...]
truth
qishet
A “falsa moeda”, como no poema em in hebrew
prosa de Baudelaire com esse nome, pode it means to make true
ser também um codinome das palavras e [...]
sobretudo da palavra poética e tradutória,
com seu valor à deriva e a busca de um por- Não podemos deixar de comentar o
to de significação sempre precário. No poe- contexto da obra poética de Amâncio que
ma “AB ETERNO” ele na verdade transcreve desde seu Do objeto útil (1992) (2007: 25-
uma passagem do tratado cabalista neo- 92) vem refletindo sobre alguns dos temas
platônico “Puerta del Cielo” de Abraham que são desenvolvidos de modo quase que
Cohen Herrera (1570-1635), um marrano paroxístico em Matula. Por exemplo, os te-
nascido provavelmente em Lisboa que vi- mas da cópia, reprodução e tradução. Se
veu em Amsterdã. Amâncio picota a prosa em Matula temos a impressão que “tudo
mística de Herrera em versos como um ver- é tradução”, o primeiro poema do livro de
dadeiro “Pierre Menard, autor del Quijote” 1992, “O olho” afirma o oposto: “não se
borgeano. Amâncio ao “repetir” Cohen reproduz/ não se repete” (2007: 27). Esse
Herrera com quatro séculos de decalagem elemento irreprodutível, no entanto, é parte
o resignifica e refunda suas ideias. Ou, por da multiplicação de textos e de “máscaras”
96   • Márcio Seligmann-Silva

do autor que se desdobra para traduzir o máscara da própria literatura e das artes,
intraduzível: da existência e da poesia. As- que Amâncio representa de modo exem-
sim, em outro poema do mesmo volume, plar. Lembrando que em grego prosopon
o poeta escreve: “eu me reparto: todos os é face e máscara, podemos dizer que a li-
possíveis/ ainda que a máscara seja uma e teratura e as artes são também máscaras
só./ [...] Aqui nada matura nem conclui,/ da morte: prosopopeia, personificação do
ninguém informa sobre permanência,/ um “indizível”, onde um personagem (ou al-
saldo de memória ou existência.” (2007: guém em vista já da sua morte) é vivificado
49) Aqui podemos entender como Amân- como uma pessoa real.
cio cria com um jogo de máscara(s), lite- Dentre os jogos de preferência de Amân-
ralmente, uma prosopopeia, um teatro da cio em sua poética de máscara(s) encontra-
memória, uma mise en action dos mortos. mos seu plurilinguismo. Ele possui todo um
Explico-me. Primeiro entendamos por que volume de poesias em espanhol, Colores si-
de certo modo o poeta representa nesse guientes (1999) (2007: 208-256) e outro em
teatro nada menos do que o papel de Per- língua inglesa, At (2007: 431-75). Em Contar
séfone. O nome de Perséfone é derivado a Romã (2001) (2007 257-337) Amâncio, em
por alguns autores de pherein phonon, um longo poema, “O palácio da fronteira (ou
“trazer” ou “causar a morte”. Mas exis- golpes de vista)” faz uma “anotação para
te outra aproximação semântica possível, uma hipótese de mapa” (2007: 289), que
particularmente importante para nos apro- já introduz seu gosto pela pesquisa histórica
ximarmos dessas obras de Amâncio: em com destaque para o tema dos cristãos-no-
etrusco, phersu significa a pessoa que por- vos. A “polifonia” (2007: 313) é explícita nes-
ta uma máscara (originalmente em rituais se livro. É como se diante da intraduzibilidade
fúnebres). Daí vem o termo latino persona, e da necessidade da tradução houvesse a pas-
ou seja, o personagem dramático com sua sagem para a polifonia: a coleção de vozes,
máscara. Perséfone, via phersu, também mesmo que fictícias ou reinventadas. Como
tem sido aproximada de persona. Ela é ora o artista com a sua natureza morta, que pinta
caracterizada por sua extrema e irresistível cada fruto ou cebola como únicas e inimitá-
beleza, ora como terrível, pavorosa (epai- veis. Assim lemos em um poema de At:
né). Como esposa de Hades, ela é a temida
rainha do mundo dos mortos. Além disso, This onion
afirma-se que Perséfone é a mãe das te- is quite different
míveis Eríneas, as deusas que perseguem from all those on the table.
os assassinos para cobrar a “dívida de san-
gue”. Elas são a memória do mal e a jus- Think of each
onion
tiça. A relação tensa de Perséfone com a
as a collection
beleza e com a morte, seu natural “jogo
of tongues.
de máscaras”, sua vida que alterna entre o
Hades e a primavera na terra, tudo isto faz Each one
desta figura mítica uma das mais poten- over and under
tes metáforas para expressar os jogos de another one
P luriling u i smo , t r a d u ç ã o e e r r â nc i a n os p o em a s d e M oac i r A m â nc i o  •   97

in an almost liquid between the consonants prds and you will


agreement get paradise: plain, symbolic, homiletic and
to make a fruit – esoteric Reading.” (2007: 452) Podemos
pensar que, ao circular entre as línguas,
each one proving
como também o fazia o exilado e Heimatlos
the exclusive
Vilém Flusser, ele esteja na busca dessa lín-
position
of uniqueness gua pura que apanharia de uma vez o mun-
do. A tradução é uma parte essencial da po-
to produce esia de Amâncio. Em seu poema plurilíngue
this phrase “Arestas Três”, do volume Abrolhos (2007:
as an example of 477-579), temos um exemplo de poema-
the impossibility -tradução, que é a inscrição e tradução em
to translate it português, inglês e hebraico, como se uma
língua ecoasse e completasse a outra.
into frozen solid marble,
É uma experiência única deixar-se levar
into hot air,
into an Orange. por essa poética à deriva de Amâncio que se
Each onion intensifica em seu último livro, o Matula. Os
Cannot be translated fragmentos de mundo que ela vai desenhan-
Even into the same do fazem-nos pensar que é da tristeza e do
onion. (2007: 435s.) lamento que emana paradoxalmente tanta
beleza. Como em uma elegia – mas deslo-
Esse acordo que faz a fruta pode ser lido cada pela ironia. A autoconsciência dessa
também como uma filosofia da linguagem ambiguidade surge em um pequeno poema:
que vê cada língua como uma perspectiva, “interrompe e/ se torna/ fonte// água e chu-
uma fração da verdade da “cebola” indizível va”. E essa chuva cai e nos molha, fecunda
em uma só língua, filosofia essa que encon- a terra, e novamente nos faz lembrar do es-
tramos em um belo e enigmático texto de quecimento e que “o esquecimento”, como
Walter Benjamin, “Sobre a linguagem em escreveu Benjamin, “diz sempre respeito ao
geral e sobre a linguagem dos homens”, de melhor, porque diz respeito à possibilidade
1916. Neste texto, Benjamin partia de uma da redenção”. (2012: 174)
reflexão sobre a língua pura originária, a lín-
gua do Paraíso, que teria sido repartida nos Obras citadas
cacos que constituem as línguas individuais, Abraham, N.; Torok, M. A casca e o núcleo, trad. Maria José
Coracini, S. Paulo: Escuta, 1995.
desde a Queda. De resto, Amâncio vincula- Amâncio, Moacir. Matula, São Paulo: AnnaBlume, 2016.
-se explicitamente à essa tradição judaica _____. At, Rio de Janeiro: Record, 2007.
Benjamin, Walter. “Franz Kafka. A propósito do décimo ani-
teológico-mística da linguagem ao conectar versário da sua morte”. In: Magia e Técnica, Arte e Po-
lítica. Ensaios sobre literatura e história da cultura, tra-
em seu At os quatro níveis de leitura da Tora dução S. P. Rouanet, revisão técnica M. Seligmann-Silva,
a uma busca dessa língua paradisíaca: “the São Paulo: Brasiliense, 2012, pp. 147-178.
_____. Ursprung des deutschen Truerspiels. In: Gesammel-
original language does exist somewhere te Schriften, org. por R. Tiedemann, Frankfurt a.M.:
beyond the spud (pardes [sic], meaning the Suhrkamp, 1980, vol I, pp. 203-430.
_____. “Über die Spache überhaupt und über die Sprache
four ways to read the torah; put the vowels des Menschen”, in: Gesammelte Schriften, org. por R.
98   • Márcio Seligmann-Silva

Tiedemann, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1980, vol II, Hartherly, Ana. “Experimentos Visuais do Barroco Português”.
pp. 140-157. http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/
Benjamin, Walter; Scholem, Gershom. Correspondência, Barroco/Experimentos_Visuais_do_Barroco_Portugues.
tradução de N. Soliz, São Paulo: Perspectiva, 1993. htm Consultado em 18/08/2017.
Campos, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, Scholem, Gershom. Sabbatai Ṣevi: The Mystical Messiah,
S. Paulo: Perspectiva, 1981. 1626–1676. Princeton University Press, 1976.
_____. “Hegel Poeta”. In: O Arco-Íris Branco. Ensaios de Lite-
ratura e Cultura; Rio de Janeiro: Imago, 
1997, pp. 61-73.
Medicina e literatura: O encontro das
palavras na trajetória de Moacyr Scliar

Gabriel Oliven
Jornalista formado pela PUC/RS, com pós-graduação em
Comunicação Empresarial pela Universidade Candido Mendes.

A
medicina é um mergulho na condi- trajetória do imortal gaúcho, que ocupou a
ção humana. A literatura também. Cadeira n.o 31 da ABL. De um lado, inspi-
Moacyr Scliar (1937-2011) mergu- raram políticas pioneiras de saúde pública,
lhou fundo nas duas atividades, como a des- amparadas na sua visão social da medicina.
cortinar novos horizontes. Em seu processo De outro, deram origem a uma coleção va-
de imersão, marcado por rara sensibilidade e liosa de romances, contos, crônicas, ensaios
um talento incomum, resgatou pequenos te- e artigos. Ele buscou na própria história de
souros que nos ajudaram a compreender os vida as bases dessa relação singular:
dilemas da existência humana. Ou pelo me- “A literatura muitas vezes se inspirou na
nos a entender melhor a sua complexidade. doença e na figura do médico para revelar
obras magistrais. E muitos jovens buscam essa
Esses tesouros fazem parte do rico legado de
profissão por influência dos livros e de seus
Scliar e permanecem vivos, fortes e atuais.
autores.”2
As carreiras de médico e escritor cami-
nharam lado a lado, sempre de modo com- Quando se trata de Scliar, a interseção
plementar. Unidas pelo fio condutor da pa- entre medicina e literatura abriu caminho
lavra, separadas pelo tipo de abordagem. para uma produção vigorosa: autor de mais
“Além do território da emoção humana, de 80 livros, deixou pelo menos 22 roman-
médicos e escritores compartilham um instru- ces e novelas centrados – ou inspirados –
mento comum: a palavra. É claro que nos dois
em temas médicos. Entre eles, O Ciclo das
casos a atitude é diferente. O médico avalia
Águas (1975), Doutor Miragem (1978), So-
a emoção, o escritor utiliza-a como matéria-
-prima”,1 explicava Scliar. nhos Tropicais (1992), A Majestade do Xin-
gu (1997) e Saturno nos Trópicos (2003).
Com a mesma intensidade, medicina Todos se valem da ficção para refletir sobre
e literatura semearam um campo fértil na questões essenciais ligadas à medicina, à

1 SCLIAR, Moacyr. A face oculta. Inusitadas e revelado-


2 SCLIAR, Moacyr. Território da emoção – Crônicas mé-
ras histórias da medicina. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
2001. dicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
100   • Gabriel Oliven

saúde pública e ao progresso da ciência. O Mico foi o apelido que o acompanhou


mesmo recurso é utilizado em romances in- pela vida toda. Quando o Doutor Moacyr
fantojuvenis, tais como “Introdução à práti- ficava com o ego muito inflado, ele tratava
ca amorosa” (1995) e “Aprendendo a amar logo de se lembrar do Mico de sua infância e
– e a curar” (2003). retornava às origens, ao bairro que marcou
Na vasta produção literária de Scliar, crô- sua identidade. Scliar enxergava-se como o
nicas e ensaios sobre medicina e saúde pú- eterno escritorzinho do Bom Fim, que pas-
blica também se destacam. A Face Oculta seava pelo Parque da Redenção, pela Rua
(2001), A Paixão Transformada (1996), Meu Fernandes Vieira e conversava sobre as ma-
Filho, o Doutor (2001) e O Olhar Médico zelas cotidianas com vizinhos e amigos.
(2005) combinam elementos históricos, lite- O interesse pela Medicina veio de um
rários e referências da cultura judaica para sentimento misto de fascínio e pavor de
traçar um amplo painel das ciências médi- doenças. A saúde da família era motivo de
cas. Essas obras de não-ficção evidenciam a preocupação constante. Cada vez que al-
preocupação do autor com a interface entre guém ficava doente em casa, vinha a sen-
medicina e literatura, muitas vezes situadas sação de pânico. O que fazer nessa hora?
em campos opostos ao longo da História Qual o remédio? Chama um médico! É a
(Ciências versus Humanidades). figura do médico, em especial, que desper-
ta interesse do jovem Moacyr. Afinal, que
herói é esse dotado do poder da cura, que
Autobiografia precoce
faz a diferença entre a vida e a morte? O
Scliar tomou gosto pela palavra escrita tema habitaria as obras do futuro escritor.
ainda criança. Os pais eram imigrantes ju- “A medicina opera pequenas ressurreições
deus da Bessarábia, atual Moldávia. A mãe, diante do aguilhão da morte. A última palavra
Sara, tornou-se professora primária. Além de é a da morte. Mas enquanto ela não chega,
alfabetizar os três filhos, incentivou cada um a medicina tem muito a dizer. E a literatura
também.”4
a ler e a escrever desde cedo. O pai, José, era
um grande contador de histórias e foi dele A relação médico-paciente instigou a
que o escritor herdou o prazer da narrativa, curiosidade de Scliar. Ele começou a ler tudo
seguindo uma tradição milenar do judaísmo. o que lhe caía às mãos, não apenas livros
O primeiro texto de Scliar foi uma “au- sobre medicina, mas também romances
tobiografia” escrita aos 7 anos em papel que têm médicos como protagonistas. Um
de embrulhar pão, o único papel disponível deles eles é Olhai os lírios do campo (1938),
em sua casa à época. Frustrou-se porque de Érico Verissimo, que denuncia a comer-
a sua história de vida até então não cabia cialização da medicina. Desgostoso com os
naquela folha. As primeiras linhas são pre- rumos da carreira, o personagem principal,
monitórias: “Quando eu nasci, correu pela Dr. Eugenio, propõe a seguinte solução: um
vizinhança que eu me chamava Mico.”3 sistema socializado, que obrigaria os futuros

4 SCLIAR, Moacyr. A face oculta. Inusitadas e revelado-


3 SCLIAR, Moacyr. O texto, ou: a vida. Uma trajetória ras histórias da medicina. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
literária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 2001.
M edi cina e literatur a : O e nc o n t ro das pa l av r as n a t r a j e t ó r i a d e M oac y r S c l i a r  •   101

médicos a uma triagem. Só seriam aprova- fosse reeditada. Esperou seis anos até pu-
dos aqueles que tivessem vocação. blicar o livro seguinte, O Carnaval dos Ani-
A leitura de clássicos como A Montanha mais6. Mas jamais parou de escrever nesse
Mágica, de Thomas Mann, A Morte de Ivan intervalo.
Ilitch (Tolstói), Arrowsmith (Sinclair Lewis), A partir dos anos 70, a medicina tor-
O Doente Imaginário (Molière) e O Alienis- nou-se peça-chave na produção literária de
ta (Machado de Assis) reforçou a vocação Scliar. Além das raízes judaicas e gaúchas,
de Scliar. Ao concluir o período escolar, era três temas predominaram nas obras do au-
natural que optasse pela carreira médica. tor: a história da medicina, a saúde públi-
Impregnado de ideais socialistas, fez da ca e a Psicanálise. Esta última tem lugar de
medicina sua utopia particular. Nela edifi- destaque em um de seus primeiros roman-
cou seus sonhos e castelos. Acreditava que ces, O Exército de um homem só, publicado
a medicina é a arte e a ciência de cuidar em 1973 e traduzido para dez idiomas. O
da humanidade, um instrumento de justiça livro relata a saga de Mayer Guiznburg, um
social, de redução das desigualdades. Daí o judeu que chega a Porto Alegre ainda me-
seu olhar humanista sobre o tema. nino, vindo da Rússia.
Movido pelo ideal de uma utopia so-
O primeiro livro cialista, Mayer transforma-se em Capitão
Birobidjan, destemido herói do Novo Mun-
Em 1955, Scliar foi aprovado no vesti- do, um Dom Quixote dos trópicos. Para de-
bular da Universidade Federal do Rio Gran- sespero do pai, que o queria rabino, Mayer
de do Sul (UFRGS). Ali começou a escrever tenta construir a Nova Birobidjan em pleno
pequenas crônicas no jornal O Bisturi da Bom Fim, o que gera dúvidas sobre a sua
faculdade de Medicina. Incentivado pelos sanidade mental.
colegas, que elogiavam seus textos, lançou Em uma das passagens memoráveis do
em 1962 seu primeiro livro, ao qual deu o livro, o avião que levava Sigmund Freud
título de Histórias de médico em formação5. para Buenos Aires faz escala em Porto Ale-
Os contos refletiam as angústias e expec- gre. O pai de Mayer vai atrás de Freud no
tativas de um jovem universitário diante da aeroporto e tenta a todo custo convencê-lo
profissão que escolhera seguir. a analisar o filho. O diálogo que segue é
Orgulhosos do filho, Sara e José o aju- impagável. Além da narrativa ágil e precisa,
daram a publicar o livro, convencendo os que costura as várias passagens de tempo,
vizinhos a comprar um exemplar. O resul- a Psicanálise é abordada com toques de hu-
tado, porém, foi decepcionante. Histórias mor judaico, uma das marcas do autor.
de médico em formação era fruto da an-
siedade de um autor imaturo. Após re-
ceber duras críticas, Scliar reconheceu os Escravas judias
defeitos do texto e concluiu que havia se Já O Ciclo das Águas teve como inspi-
precipitado. Nunca mais deixou que a obra ração um caso real vivido por Scliar em sua
5SCLIAR, Moacyr. Histórias de Médico em formação. 6 SCLIAR, Moacyr. O Carnaval dos Animais. Porto Ale-

Porto Alegre: Difusão de Cultura, 1962. gre: Ediouro Publicações, 1968.


102   • Gabriel Oliven

atividade médica. Depois de formado, ele marido não tenho, mas se soubesses como é
foi trabalhar no Lar dos Velhos, um asilo bom um homem. E a vida que eu levo...”7
mantido pela comunidade judaica de Por-
Outro personagem fundamental na nar-
to Alegre. Lá atendia uma senhora em es-
rativa é Marcos, o filho de Esther, que é um
tágio avançado de demência. Vaidosa, ela
pesquisador sanitarista. Ele tenta compre-
vivia cantando pelos corredores, gostava
ender a história de sua mãe prostituta e o
de se maquiar e passava horas em frente
curso de águas fétidas. A água tece uma
ao espelho. Apesar de muito simpática,
rede simbólica que diz respeito à transição
a senhora era discriminada pelos outros
psíquica e emocional dos personagens.
residentes. Ninguém queria a sua compa- Scliar faz um paralelo entre o ciclo das
nhia no refeitório, muito menos dividir um águas e o ciclo de vida dos personagens:
quarto com ela. é uma constante transformação, e a cada
Quando ficava doente e Moacyr ia reviravolta na vida dos personagens, uma
visitá-la, a idosa o convidava para sentar nova fase do ciclo se inicia.
na sua cama e logo tentava uma investi- Em Doutor Miragem, de 1978, Scliar
da sexual. Moacyr descobriu que ela tinha reflete sobre os dilemas e contradições da
sido dona de bordel, uma remanescente profissão que abraçou. Ao narrar o seques-
das antigas polacas, judias do Leste euro- tro de um médico, ele critica a mercantiliza-
peu que eram trazidas ao Brasil sob a falsa ção da medicina em meio a um cenário de
promessa de casamento. Chegando aqui, miséria social. É uma obra que contrapõe o
eram levadas à prostituição e viviam como poder dos médicos e sua autoconfiança por
escravas sexuais. vezes excessiva ao quadro de degradação
Moacyr pesquisou o assunto, que era que encontram em suas carreiras, especial-
tabu na comunidade judaica, e descobriu mente em saúde pública.
que havia uma organização internacional
– a Tzvi Migdal – responsável pelo tráfico Revolta da vacina
dessas mulheres. Essa organização tinha
ramificações em vários países da América Essa degradação também é exposta em
do Sul. A idosa inspirou a personagem Es- Sonhos Tropicais. Ambientado no Rio de Ja-
ther, de O Ciclo das Águas. Esther carrega neiro de 1904, o romance expõe o clima de
as marcas do sofrimento, comum a tantas guerra nas ruas da cidade no início do século
XX. Manifestantes erguem barricadas, derru-
mulheres judias que foram vítimas do mes-
bam postes e incendeiam bondes. Na origem
mo engodo quando vieram para a América.
dos distúrbios está o Dr. Oswaldo Cruz, médi-
Em vez de uma vida melhor, ela encontra a
co sanitarista que, em sua luta para erradicar
humilhação e a dor. Mas não esconde a sua
a febre amarela, acabou provocando a Revol-
sexualidade quando escreve para a família.
“Ah, mãe, tu não me ensinaste, mas
ta da Vacina, uma das mais polêmicas bata-
aprendi ligeiro... E gosto, mãe!... É bom! O lhas sociais e políticas brasileiras.
médico russo...! Prazer assim, tu nunca ti-
veste, nunca terás. Teu marido sabe degolar 7SCLIAR, Moacyr. O Ciclo das Águas. Editora LP&M.
galinhas, mas não sabe te fazer gozar. E eu, Porto Alegre, 1975
M edi cina e literatur a : O e nc o n t ro das pa l av r as n a t r a j e t ó r i a d e M oac y r S c l i a r  •   103

O livro reconstitui o panorama de uma Renascimento era também a época da Pes-


época crucial, fazendo o diagnóstico de te Negra, da caça às bruxas, da reclusão dos
uma sociedade que, travada pela miséria loucos. Esse cenário é, em parte, neutrali-
e pelo atraso, vê com relutância a chega- zado pela euforia da caça às riquezas e da
da da modernidade. Vencedor do Prêmio especulação comercial.
Jabuti 1993 na categoria Romance, Sonhos A sensação de melancolia nascia dessa
Tropicais deu origem ao filme de mesmo conjuntura, mas também de novos hori-
nome, dirigido por André Sturm em 2002. zontes abertos nas ciências e na arte. Scliar
No elenco, Carolina Kasting, Hugo Carvana, incursiona pela literatura, pelas artes plás-
José Lewgoy e Ingra Liberato. ticas, pela medicina e pela política para es-
Em A Majestade do Xingu (1977), Scliar miuçar a melancolia e suas repercussões na
recria a vida do médico e indigenista Noel cultura brasileira.
Nutels (1913-1973), nascido na Rússia e
naturalizado brasileiro. Scliar conheceu Nu-
tels, que assim como ele, era sanitarista e
Humor judaico
filho de imigrantes judeus. A trajetória dele As transformações sociais provocadas
começa em um vilarejo da Bessarábia e ter- pela medicina também habitam o ensaio
mina nas aldeias do Xingu, como médico Meu filho, o Doutor: Medicina e Judaís-
do Serviço de Proteção ao Índio e criador do mo na História, na Literatura e no Humor
Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas. (2000). Aqui Scliar trata de uma relação se-
Scliar sempre quis contar a história de cular: por que tantos médicos são judeus?
Nutels, mas sem o peso da biografia. Em vez De onde vem essa ligação histórica? Ele
disso, criou um personagem fictício: um ga- responde essas perguntas com pitadas de
roto judeu que emigra para o Brasil no mes- humor judaico, relatos ancestrais e casos
mo navio de Nutels e acompanha toda a sua verídicos. É um trabalho que explora tanto
vida, narrando-a sob seu ponto de vista. os bastidores da medicina quanto a própria
“Esse narrador, dono de um armarinho, trajetória do povo judeu.
me permitiu contar a história com toda a li- Em O Olhar Médico (2005), Scliar reú-
berdade que tem um personagem de ficção
ne crônicas sobre medicina e saúde, sem
olhando para um personagem real.”8
deixar de lado as pitadas de humor e ironia
A medicina ganha contornos sombrios que caracterizam seus textos. As atividades
em Saturno nos Trópicos, de 2003. Neste de médico e escritor se entrelaçam em tex-
ensaio, Scliar conduz um estudo sobre a tos que abordam temas variados: doença e
melancolia europeia herdada pelo Brasil. saúde, médicos e pacientes, sexualidade e
O autor retrata três momentos históricos: esporte.
a Antiguidade clássica, a Renascença e o Já Território da Emoção, de 2013, é a
Brasil durante a transição para a moderni- primeira obra póstuma de Scliar sobre te-
dade. A passagem da Idade Média para o mas ligados à medicina. Organizada pela
crítica literária Regina Zilberman, esta co-
8 SCLIAR, Moacyr. O texto, ou: a vida. Uma trajetória
letânea traz crônicas publicadas ao longo
literária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. de mais de 30 anos no jornal Zero Hora.
104   • Gabriel Oliven

O autor trata de médicos escritores (de Ga- ou pelo menos nenhum médico disposto a
leno e Vesálio até Thomas Mann, Tolstói e assumir sua condição. Mas sempre é melhor
Molière); memórias dos tempos de estudan- um médico de saúde pública do que nenhum
médico (e quero dizer que os sanitaristas fre-
te na Faculdade de Medicina da UFRGS; his-
quentemente compensam com o bom senso
tórias da prática médica; escritores doentes
resultante de sua visão global o que lhes falta
e o modo como lidaram com as próprias li- em conhecimento), de modo que me apre-
mitações físicas. Enfim, escritores que escre- sentei.
veram sobre medicina. Felizmente, não era coisa grave: uma senho-
Uma boa mostra desse caldeirão de ra com um pouco de pirose (azia, para falar a
influências está presente na crônica “Há um verdade). Ela mesma fez o diagnóstico, infor-
médico a bordo?”9, que combina o relato pes- mando que a sua hérnia de hiato de vez em
quando incomodava. Havia antiácido na peque-
soal de Scliar ao humor tipicamente judaico.
na farmácia do avião, de modo que minha inter-
“Poucas coisas devem ser mais desconfortá-
veis para um médico do que, estando ele a bor- venção médica terminou com êxito estrondoso.
do de um avião (de um navio é menos provável), Nem sempre as coisas são tão fáceis. Não
ouvir pelo alto-falante o pedido: ‘Se há algum em manuais médicos, mas em revistas de divul-
médico a bordo, por favor, se apresente’. É certo gação, às vezes aparecem histórias de situa­
que não se trata de nenhuma homenagem. Ao ções angustiantes. Há uns anos, um médico
contrário, provavelmente é galho, um problema russo, a bordo de um submarino, operou-se
que não será fácil de resolver. a si mesmo de apendicite, o que deve exigir
Em primeiro lugar, os aviões têm o de- uma coragem monumental. Num submarino
sagradável hábito de trafegar muito acima ocorreu outra apendicectomia: foi na Segun-
da terra firme, onde ficam os hospitais e os da Guerra mundial, e quem fez foi o enfer-
ambulatórios. Depois, o equipamento de que meiro de bordo, orientado pelo rádio pelos
dispõem é necessariamente restrito. Ninguém médicos da base.
esperará encontrar ali um eletrocardiógrafo, Por isso é que é bom contar com médico
ou mesmo um esfigmomanômetro. a bordo. O que lembra a história daquela mãe
Mas, mesmo contando apenas com o ra- judia que, em pleno voo, levantou-se, gritan-
ciocínio e as mãos nuas, o médico não pode se do: ‘Um médico! Há algum médico a bordo?’
omitir. Ele tem de se levantar e acenar, desam- Levantou-se um doutor e veio correndo: ‘Eu
parado, para a aeromoça. Foi o que aconteceu sou médico, minha senhora. O que é?’ E ela,
comigo num voo Porto Alegre-Rio. sorridente, mostrando a filha: ‘Ah, doutor, se
‘Se há algum médico a bordo...’. Olhei o senhor soubesse que noiva eu tenho aqui
ao redor: não, não havia médico nenhum, para o senhor...’”

9SCLIAR, Moacyr. Território da Emoção. Companhia


Ah, Mico, se tu soubesses os leitores
das Letras. São Paulo, 2013 que ainda hoje te abraçam, milhões.
O Paiz do Carnaval: A alcunha
recusada por Jorge Amado

Sandra Bagno
Professora associada do Dipartimento di Studi Linguistici e Letterari (DiSLL)
da Università degli Studi di Padova

A vexata quaestio do Walnice Nogueira Galvão.3 Enquanto isso,


estudiosos como Eduardo de Assis Duarte,
estereótipo na narrativa
no grande sucesso nacional e internacio-
amadiana nal de Amado, reconhecem um fenômeno
Em 2013, Ilana Seltzer Goldstein publica inédito no Brasil: o da “democratização da
um artigo com o significativo título, O Brasil leitura”.4 Ou seja, o surgimento de uma li-
best seller de Jorge Amado. Literatura e iden- teratura capaz de chamar a atenção direta-
tidade nacional, no qual coloca, entre outras mente para o povo, dando-lhe ao mesmo
questões, a do papel que desempenham al- tempo voz e vez.
guns estereótipos ligados à “representação” É à luz das argumentações deste último
do País.1 Pois, como ela chegou a constatar filão interpretativo que retornamos à vexa-
durante uma estadia na Europa, a imagem ta quaestio dos estereótipos na narrativa de
percebida no estrangeiro é de um Brasil Amado. Pois, se ao invés de evocá-los de
tendencialmente reduzido ao “carnaval do forma genérica, como tendem a fazer seus
Rio”, à “miséria” e “violência”, e associado depreciadores, procurarmos localizá-los com
principalmente ao escritor Jorge Amado.2 maior precisão, pode-se pedreender da es-
Por outro lado, se observarmos o pano- crita amadiana uma série de dados do maior
rama da própria crítica brasileira, de acordo interesse.
com os depreciadores de Amado, os seus
romances teriam sido construídos mesmo O estereótipo O Paiz
com “estereótipos e clichês”, além de outros do Carnaval como
“ingredientes” típicos da “ficção ao gosto
objeto de denúncia
do mercado”, segundo uma expressão de
Partamos da hipótese de que Jorge Ama-
1 SELTZER GOLDSTEIN, Ilana. O Brasil best seller de Jorge do, por se sentir parte de seu povo, longe
Amado. Literatura e identidade nacional. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2003, p. 22 e segs. 3 Ibid., pp. 217-218.
2 Idem, Ibidem, p. 19. 4 Ibid., p. 2018.
106   • Sandra Bagno

de fazer do estereótipo o “ingrediente” Jorge Amado, no Rio de Janeiro, pela edito-


para um sucesso fácil, o tenha focado, pelo ra Schimdt.7
contrário, como objeto de denúncia. Descui-
dando, assim, da possibilidade de resultar
Um estereótipo infame
desagradável para alguns leitores, ou mes-
mo desafiadoramente escolhendo caminhar
para a nação que o sofre
para um confronto direto com quantos o O nosso interesse pelo romance de es-
jovem escritor quisesse pôr a ridículo. Pois treia não pode prescindir de um fato ob-
bem, é a partir desta ótica específica que, jetivo. É mais do que provável que mesmo
analogamente a Seltzer Goldstein, também um estereótipo como O Paiz do Carnaval,
nós procuraremos compreender por que se segundo indica o título na capa, não pode-
ouvem muitas vezes, na Europa, estereótipos ria ser percebido de outro jeito (assim na
associados ao nome do escritor baiano, e a altura como hoje) senão como dos mais hu-
um Brasil reduzido, mais especificamete, ao milhantes entre os impingidos a uma nação.
“carnaval do Rio”. Portanto, é lógico imaginar que também
Mas para enfrentarmos tais questões op- Jorge Amado, ao ouvi-lo ou vê-lo associa-
tamos por um percurso analítico baseado em do ao seu país, que além de tudo há pouco
uma irrefutável documentação linguística de tempo celebrara um século de independên-
origem europeia. De fato, ela nos permite re- cia (1922), possa tê-lo interpretado como
ver sob a luz de outras parecidas expressões ainda mais infamante.
o papel, na narrativa amadiana, de alguns Por isso, assumimos como ponto de par-
estereótipos ligados justamente ao carnaval. tida da nossa pesquisa a hipótese de que o
Ou melhor, ao Carnaval com letra maiúscula, romance foi na realidade uma tomada de
assim como a palavra aparece particularmen- posição, com o ímpeto de um escritor ini-
te no contexto modernista paulista. Como ciante de dezoito anos, contra um fenôme-
documenta, entre outras testemunhas signi- no a que Amado tentava opor-se vigorosa-
ficativas, o célebre volume de Manuel Ban- mente: a tendência a deixar que se fixasse,
deira, Carnaval, publicado em 1919.5 na comum consciência linguístico-cultural
A documentação linguística à qual aludi- nacional, um novo e humilhante rótulo que
mos, parcialmente já algures mencionada,6 poderia ser adicionado a outros rótulos di-
será reportada a um específico romance famantes, como aqueles que se referiam à
de Amado, o de estreia, por ser o único inferioridade de algumas raças humanas.
embasado, com toda evidência, num es- Ou seja, depois de terem arraigado umas
tereótipo. Tanto que o escritor escolhe até categorias interpretativas – cuja vítima era a
exibi-lo como título. Sigamos, então, para maior parte do povo brasileiro – como con-
O Paiz do Carnaval, publicado em 1931 por sequência de teorias quais as de Raimundo
Nina Rodrigues, que, afinal, eram aplicações
5 BANDEIRA, Manuel. Carnaval. São Paulo, Global,

2014. 7 Como para todos os outros volumes e autores consi-


6 BAGNO, Sandra. “Revolução de 30 e Carnaval. La car- derados, cada citação tirada desta primeira edição do
navalização ante litteram di Jorge Amado”, apud Rivis- romance amadiano será transcrita no respeito seja da
ta di Studi Portoghesi e Brasiliani XV-2013 Pisa-Roma: ortografia, seja da tipologia dos caracteres em origem
Fabrizio Serra Editore MMXIX, pp. 17-26. adotados.
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o  •   107

ao caso brasileiro de certas teorias de ori- seguiriam), é necessário retornar à realida-


gem europeia. E isso sobretudo onde mais de política e linguístico-cultural do Brasil da
evidentes permaneciam, como nos estados época. Mas para relacioná-la às contempo-
do Nordeste, as feridas sociais deixadas râneas dinâmicas políticas e linguístico-cul-
pelo colonialismo e pela escravidão. turais de um mais extenso contexto interna-
Nessa ótica, Jorge Amado poderia ter cional, particularmente europeu.
escolhido contrariar a alegação alarman- Na verdade, já há tempo haviam sido do-
te, no português do Brasil, do estereótipo cumentadas duas locuções arraigadas como
destacado pelo título, O Paiz do Carnaval, estereótipos no contexto anglo-saxão, e,
com um simples objetivo: ao submetê-lo à portanto, destinados, em virtude do papel
atenção da comunidade nacional, constran- dominante da Inglaterra na época, a se re-
gê-la a uma tomada de consciência. Com verberarem em outros contextos linguísticos
seu romance, portanto, o escritor poderia e culturais, inclusive no Brasil. Como ambos
ter procurado demonstrar, coram populo, os estereótipos – carnival-nation e land of
porque não se deveria permitir que aque- carnival – dizem respeito a uma festa muito
les estereótipos arraigassem impunemente. popular como o carnevale, que, como é sa-
Também porque fosse irresponsável tornar- bido, remete às tradições italianas, eles não
-se até veículo de tal processo, sobretudo poderiam passar despercebidos na Itália.
enquanto se delineavam os contornos de Tanto que a documentá-los seria o lexicó-
um fenômeno inédito: o uso instrumental grafo italiano Alfredo Panzini (1863-1939),
do Carnaval com fins políticos no hinc et autor do Dizionario Moderno Supplemen-
nunc da Revolução de 30. Um fenômeno to ai Dizionari Italiani, obra que teve várias
complexo, de implicações por alguns aspec- edições, mas que desde a primeira registra,
tos alarmantes, e que, percebidas a tempo em 1905, Carnival-nation, verbete cuja des-
por Amado, fez desse romance, como pres- crição começa: “epiteto sprezzantemente
suposto em outro estudo,8 um traçado im- igiurioso, già dato dagli Inglesi all’Italia: na-
prescindível no mapa dos vários paradigmas
zione carnevalesca” (“alcunha desprezavel-
de carnavalização, antecipando categorias
mente injuriosa, já impingida pelos Ingleses
interpretativas que seriam posteriormente
à Itália: nação carnavalesca”).9
colocadas por Mikhail Bakthin.
Outro dado interessante é que, logo
após a entrada e relativo significado, Pan-
A testemunha italiana: zini não se exime de dar sua própria inter-
Alfredo Panzini pretação do fenômeno: “A indolência, a
Carnival-nation indiferença e a natural fertilidade de nosso
Para averiguar, portanto, se O Paiz do povo, especialmente das terras meridionais,
Carnaval, com aquele estereótipo posto a explicam10 a palavra”; e ainda adiciona:
título de provocação, constituía a primeira
9 Alfredo Panzini. Dizionario Moderno. Supplemento ai
denúncia amadiana (às quais muitas outras Dizionari Italiani. Milano: Editore Ulrico Hoepli, 1905,
pp. 80-81.
8 V. supra, nota 6. 10 Nossos os grifos.
108   • Sandra Bagno

“Mutati i tempi e pur migliorate le cose, sado a liberdade de injuriar e zombar a Itália
permane tuttavia l’abitudine festaiuola per tendo como pretexto seus carnavais.
ogni occasione, lieta o triste che sia” (“Mu-
Land of carnival
dados os tempos e mesmo que melhoradas
as coisas, permanece, todavia, o hábito fes- Um segundo fato é que em seguida, com
teiro para todas as ocasiões, sejam elas ale- o amadurecimento de sua experiência de le-
gres ou tristes”).11 xicógrafo, Panzini modificaria, entre as de
outros verbetes, a definição também deste
Ora, é mesmo de um modelo de defi-
verbete. Mas não para desmentir sua linha
nição, em certos aspectos, de época (se
política, firmemente adotada desde 1905,
relacionado às atuais concepções lexico-
de “defesa da honra da nação”, como lem-
gráficas) que depreedemos interessantes bra Alfredo Schiaffini (p. V).13 Em verdade,
elementos para refletir, do ponto de vista na edição do Dicionário Moderno de 1927
brasileiro, sobre a tempestiva reação de um (então em pleno fascismo), Panzini atualiza-
Jorge Amado com apenas dezoito anos, a ria a definição, registrando, após a primeira
um possível enraizamento, no português do expressão Carnival-nation (desta vez enri-
Brasil de 1930, de novos títulos depreciati- quecida por uma transcrição fonética), uma
vos contra seu país. segunda expressão, land of carnival, juntan-
Um primeiro dado é que nos esclareci- do-a de fato à anterior como seu sinônimo;
e, deixando agora de lado os preconceitos
mentos de natureza política do lexicógrafo
“indolência”, “hábitos festeiros” etc., ele
italiano (“mudados os tempos e mesmo que
adiciona algumas anotações de ordem enci-
melhoradas as coisas”) aparece evidente
clopédica geográfica:
toda sua carga patriótica. Referindo-se ao já Carnival-nation o land of carnival (câni-
consolidado processo de unificação nacional, val-néiscen). Epiteto già dato dagli Inglesi
e implicitamente também à expansão colo- all’Italia: nazione festaiuola e celebre un tem-
po per i suoi carnevali (Roma, Milano, Vene-
nial italiana da qual talvez se orgulhasse,12
zia). Ora le cose sono cambiate!” [“Alcunha
Panzini os salienta de propósito: como irre- desprezavelmente injuriosa, já impingida pe-
futável certificação, embora condicionada los Ingleses à Itália: nação festeira e célebre
a preconceitos como “indolência”, “indife- no passado por seus carnavais (Roma, Milão,
rença”, “hábitos festeiros”, de um resgate Veneza). Agora, as coisas mudaram!”]14

político agora adquirido. Então, na definição Esta definição, que revela um orgulho
de Panzini percebe-se também uma orgulho- patriótico ainda maior (“Agora, as coisas
sa resposta, do alto de uma grande tradição mudaram!”), seria confirmada também
cultural cujas raízes recuam na antiguidade na última edição publicada (póstuma) em
clássica, a quantos tinham tomado no pas- 1950, acrescentada pelos já mencionados
11 Idem,Ibidem.
12 SCHIAFFINI, Alfredo. “Proemio”, apud PANZINI, Al- 13 V. supra nota 12.
fredo. Dizionario Moderno Nona Edizione con un Pro- 14 PANZINI, Alfredo. Dizionario Moderno Supplemento
emio di A. Schiaffini e un’Appendice di B. Migliorini. ai dizionari italiani. 5ª Edizione aggiornata ed aumenta-
Milano: Editore Ulrico Hoepli, 1950, pp. V-XVI. ta. Milano: Hoepli, 1927, p. 108.
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o  •   109

“Proémio” de Schiaffini e “Apêndice de Por conseguinte, observada pelo lado


oito mil vozes novamente compilado por B. brasileiro, a abordagem lexicográfica panzi-
Migliorini”, realizado este segundo a linha niana permite que tenhamos um primeiro
lexicográfica mantida por Panzini em todas ponto fechado. De fato, demonstra clara-
as edições de seu Dizionario.15 mente que se hoje, na Europa, o nome de
Ora, as definições panzinianas repre- Amado pode ser associado à palavra carna-
sentam uma significativa reação aos dois val entendida no sentido pejorativo, isso se
estereótipos/alcunhas, e mais ainda com- deve a uma preexistência consolidada pelo
preensíveis numa fase histórica internacio- decurso do tempo de preconceitos linguis-
nalmente caracterizada por fortes impulsos ticamente cristalizados em expressões inju-
nacionalistas. Mas destas definições depre- riosas das tradições carnavalescas italianas,
ende-se também um outro dado esclarece- desprezadas em outros contextos culturais
dor para nossa reflexão sobre as funções do europeus. Não se deve, portanto, como
estereótipo no romance amadiano. Panzini, pelo contrário consideram alguns ensaístas,
na verdade, ao invés de disfarçar as duas a um sucesso que Amado obteria facilmen-
versões do mesmo estereótipo (ambas, se- te por uma suposta adoção, na sua narrati-
gundo sua declaração de testemunho lin- va, de lógicas típicas dos best sellers.
guístico de seu tempo, consideradas igual-
mente injuriosas em relação ao seu país),
Do inglês land of carnival ao
ao contrário, faz autorizadamente de um
dicionário o lugar privilegiado e ponto de
português O Paiz do Carnaval
força para veicular uma resposta digna aos À luz destes dados, forçoso é hipotizar
autores das tais etiquetas depreciativas. E que, do ponto de vista brasileiro e com os
uma resposta – é verossímil supor – com- instrumentos de um romancista ao invés de
partilhada pela maioria dos leitores, anima- um lexicógrafo, Jorge Amado poderia ele
dos antes do ponto de vista da dignidade também ter reagido sem dissimular uma al-
pessoal do que por razões políticas. Tudo cunha que, “já impingida pelos Ingleses” a
isso, com modelos de definições que não um país católico como a Itália, poderia ficar
deixam dúvidas sobre as lógicas lexicográ- atada a um outro país católico como o Bra-
ficas subjacentes à implementação, edição sil, com a desculpa de seu Carnaval.
após edição, de sua obra: procurar de qual- Para averiguar se haveria no romance
quer forma documentar, sem dissimula- provas que corroboram a interpretação que
ções, estereótipos até ultrajantes, mesmo defendemos, é primeiramente imprescindível
que em uma língua estrangeira e embora contextualizá-lo no horizonte internacional da
politicamente desconfortáveis do ponto de época. E tendo em conta as definições panzi-
vista da autoestima nacional, principalmen- nianas principalmente de 1905 a 1927, pode-
te em pleno fascismo.16 mos chegar a um segundo ponto importante.
15 V.
Na verdade, é evidente que, como ambas as
infra, nota 16.
16 Parar a tendência reconhecida em autorizados dicioná-
rios italianos a não dissimular palavras e locuções mesmo “A Nossa Vendéia”? Da Alcácer-Quibir a Vendéia: voci
quando possam encomodar do ponto de vista político, v. del “ tempo di lunga durata” della “civiltà nazionale” bra-
BAGNO, Sandra. Lessicografia e identità brasiliana: dov’è siliana. Padova: CLEUP, 2009, p. 25 e segs.
110   • Sandra Bagno

alcunhas Carnival-nation e land of carnival a que em termos gramaticais é, antes que


preexistiam à publicação do romance (1931), mais nada, uma locução aparece em ou-
o título escolhido por Amado pode ser com tras partes do romance. De fato, consta-
razão interpretado como a tradução literal, tamos que, modificada na versão “o País
para o português, de land of carnival. do Carnaval”, com duas antonomásias
Todavia, demonstrado que ambos os epí- graficamente explicitadas, a locução tem
tetos há tempo expressavam uma carga se- retornado em outros contextos. Porém,
mântica notoriamente pejorativa no sentido com acepções que variam, pois elas nem
político em relação a uma Itália ridicularizada sempre são necessariamente conotativas
sob o pretexto de sua tradição carnavalesca, pejorativas. E as diferenças semânticas
tal evidência, observada do ponto de vista significativas que surgem de cada contex-
brasileiro, põe pelo menos dois núcleos de to são obtidas por Amado com hábeis re-
questionamentos. Em primeiro lugar, Amado cursos, do ponto de vista narratológico, a
estaria denunciando por sua vez que, como múltiplas perspectivas.
no caso da Itália, também o Brasil vinha sen- Na verdade, aproveita-se de “o País do
do definido, em outros países, O Paiz do Carnaval”, primeiramente, em dois mo-
Carnaval? Ou estaria denunciando que era mentos-chave do romance. Quer dizer na
o próprio Brasil que se expunha ao ridículo conclusão, respectivamente, do primeiro
no nível, além de nacional, também inter- capítulo, “Lá-longe, O país do carnaval.”17,
nacional? E quanto à razão de tal desprezo, e na conclusão do último capítulo, “Lá-
ela dependeria da importância crescente de -longe, desaparecia lentamente o Paiz do
uma festa como o Carnaval, ou ainda, ana- Carnaval....”.18 Como narrador onisciente,
logamente ao caso italiano, se tratava de o escritor escolhe nestas duas passagens o
um pretexto? Em segundo lugar, posto que ponto de vista que lhe permite satisfazer
Panzini registra duas versões da “alcunha a exigência de uma veracidade histórica.
desprezavelmente injuriosa”, no romance Após ter escrito sobre vários personagens
O Paiz do Carnaval haveria uma tradução e acontecimentos, tanto no primeiro como
portuguesa também de Carnival-nation, a no último capítulo, Amado se atém a uns
primeira das duas alcunhas desde 1905 do- e a outros em um determinado período: o
cumentada pelo lexicógrafo italiano? único momento do ano em que uma parte
significativa da população, e não somente a
As atestações das locuções/ mais humilde, está participando do magne-
tismo do Carnaval.
alcunhas no romance
Portanto, nesses dois capítulos, Amado
amadiano coloca um conceito básico. O estigma ori-
O Paiz do Carnaval nas conclusões ginário de matriz anglo-saxônica de Land
do primeiro e do último capítulo of Carnival se dissolve face a um novo fato
do romance: em princípio, uma histórico: a grande vitalidade, numa versão
conotação positiva
17 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval Romance. Rio de
Procurando por respostas a tais pergun- Janeiro: Schmidt Editor, 1931, p. 18.
tas, verificamos se, além que no frontispício, 18 Idem, Ibidem, p. 217.
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o  •   111

inédita, com que uma festa tão antiga es- que o diplomata “Sorriu patrioticamente,22
tava incontestavelmente se inovando no pagou a despesa e despediu-se para ir dar
Mundus Novus brasileiro, a ponto de atrair ao deputado Fancisco Ribeiro, que passava
um número crescente de turistas estrangei- na occasião, os seus parabéns pelo “notá-
ros. Conforme documentou em 2004, entre vel discurso”.23 Mas nem o teor da resposta
outros estudiosos, Felipe Ferreira, no ensaio do compatriota, que demonstra claramen-
O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro.19 te não gostar que seu país seja denegrido,
De fato, Amado consegue transformar em nem o seu sorriso patriótico convencem
positivo o que nascera como uma alcunha Paulo Rigger, o qual reafirma suas intenções
injuriosa. Tanto que, nessa ótica, visto por de escárnio, por fim zombando de novo:
quem chega ou parte, o Brasil torna-se “o “– Paiz dos grandes homens... dos grandes
paiz do carnaval” por antonomásia: por es- homens... e do Carnaval...”24
tar em nível de já competir no cenário inter-
nacional com as grandes tradições carnava- O Paiz do Carnaval no terceiro
lescas de outros países. capítulo
Ainda pela voz de Paulo Rigger, “o Paiz
O Paiz do Carnaval no segundo do Carnaval” reaparece no terceiro capítulo
capítulo
numa cena que se desenvolve no estado da
Todavia, mudando o ângulo do foco, “o Bahia, onde Rigger é proprietário de uma
paiz do carnaval” continua a revelar-se uma fazenda de cacau. No clima da campanha
locução-chave, pois nos permite reconhe- pelas eleições presidenciais, depois de ha-
cer outras dinâmicas atuantes na sociedade ver assistido ao discurso feito na rua por um
brasileira do começo dos anos 30. Assim, a “bêbado” que mal parava sobre as pernas,
antonomásia retorna já no segundo capítu- que se identificou como “o maior orador
lo, mas desta vez pela boca de um específi- do Paiz” e que “agradeceu, emocionado, a
co personagem: Paulo Rigger. saudação dos cegos, dos aleijados, das ra-
A cena se desenvolve num Rio de Ja- meiras e da lama das ruas...”, “Paulo Rigger
neiro em que, na expectativa do início da disse a Julie: – Minha filha, este é o Paiz do
grande festa, “a multidão acotovelava-se Carnaval. E sentiu-se estranho, muito estra-
numa grande alegria”.20 Observando o vai nho ao seu povo. E começou a pensar que
e vem e dirigindo-se a José Augusto da Silva seria capaz de fracassar no Brasil...”25
Reis, um compatriota diplomata de carreira, O desprezo do fazendeiro Rigger pela
“Rigger disse: – O Brasil é o Paiz do Car- realidade dos marginalizados (ao invés de
naval.”; mas “José Augusto acrescentou: se sentir de alguma forma movido pela
– E dos grandes homens! E dos grandes compaixão) o leva novamente àquela úni-
homens...”.21 Logo em seguida, porém, ca conclusão. Desta vez, quem o escuta
como narrador onisciente, Amado enfatiza é sua amante francesa, mas que parece

19 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasi- 22 Nossos os grifos.


leiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 79 e segs. 23 Ibid.
20 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit.,p. 26. 24 Ibid.
21 Idem, Ibidem. 25 Idem, Ibidem, pp. 44-45.
112   • Sandra Bagno

indiferente à questão. Por outro lado, des- pelo melhor do que se podia aprender da Ve-
de o primeiro encontro, nem mesmo Rigger lha Europa, chegam ao ponto de tornarem-
alimentara ilusões sobre o perfil humano e -se veículos de categorias interpretativas (com
moral de Julie, come lê-se no capítulo I.26 relativo léxico) até mesmo difamatórias contra
Ora, enquanto Amado deste jeito reitera seu próprio país. Segundo um processo que
que é Paulo Rigger quem recorre ao signifi- há pouco havia levado, por exemplo, à publi-
cado pejorativo daquela locução, ao mes- cação em 1928 de Retrato do Brasil, o ensaio
mo tempo aponta também para um dado de Paulo Prado que suscitara, como lembra
biográfico/psicológico de seu personagem Carlos Augusto Calil, uma “furiosa reação”.28
principal. Paradoxalmente, não é um es- A essa altura do romance, portanto,
trangeiro, mas sim um brasileiro quem re- torna-se claro o diagnóstico do fenômeno
corre novamente a “o Paiz do Carnaval” de que Amado pretende denunciar: a adoção
forma estritamente depreciativa contra seu de alcunhas e expressões ofensivas contra
próprio país. E se repararmos bem, trata-se o Brasil não era responsabilidade de algum
de um brasileiro de uma específica classe estrangeiro (como acontecera no caso ita-
social: aquela que opta, para seus filhos, liano), mas sim de um tipo específico de
por uma formação europeia, acreditando compatriotas, infelizmente.
que a educação no país não estaria à altura
do seu status, segundo uma prática ainda Do inglês “carnival-nation” ao
bem comum, obviamente, à época de Ama- português “povo carnavalesco”
do. E vale a pena lembrar que, ao contrá- Em face às atestações panzinianas de
rio do que afirmam alguns estudiosos, esse duas versões em inglês da mesma “alcu-
não fora o caso de Jorge Amado.27 nha desprezavelmente injuriosa”, nos ques-
A tese do escritor, capítulo após capítu- tionamos se no romance, além de “o Paiz
lo, vai se delineando cada vez mais. Como do Carnaval” (que interpretamos como a
chegara o momento em que o próprio Rig- tradução literal em português de land of
ger teve que admitir para si mesmo que se carnival), haveria também uma tradução da
reconhecia “muito estranho ao seu povo”, outra locução, Carnival-nation.
não são por certo as longas viagens para No capítulo VII, o leitor se depara com
países como a França que podem incenti- o relato do escritor sobre discussões acirra-
var o surgimento de uma real consciência das que, com o precipitar da situação polí-
nacional, especialmente entre os mais ricos. tica depois da “Revolução”, ocorrem entre
Assim, implicitamente, são destacados por Ricardo Braz e Paulo Rigger. Das palavras
Amado os parâmetros a partir dos quais se usadas por ambos, surgem críticas muito
poderia reconhecer quantos, ao invés que pesadas em relação ao país, sob a insígnia
entre estrangeiros, mesmo entre compa- dem um sarcasmo de fato cáustico.29 Mas é
triotas, seduzidos pelo pior ao invés de que
28 CALIL, Carlos Augusto. “Introdução”, apud PRADO,
Paulo. Retrato do Brasil Ensaio sobre a tristeza brasilei-
26 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., p. 9 e segs. ra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Organiza-
27V. CASTELLO, José. “Romance de deformação”, ção de Carlos Augusto Calil, p. 8.
apud AMADO, Jorge. O País do Carnaval. São Paulo: 29 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., p. 81

Companhia das Letras, 2011, p. 147 e segs. e segs.


O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o  •   113

somente em um novo diálogo (capítulo X) do: “Sabe, dr. Rigger, quem parte hoje para
entre o diplomata José Augusto, agora já o exilio?”36
preocupado com o rumo que tomava conta Mas é o que lê-se em outro trecho do
dos eventos, e Paulo Rigger, que este, fazen- mesmo capítulo que acaba dissipando do
do por fim cair o nível da conversa, desfere leitor qualquer dúvida (se é que alguma
outra expressão depreciativa. Observemos permaneceu) acerca dos verdadeiros sen-
as várias passagens: “Paulo Rigger notou timentos de um compatriota como Paulo
que o povo30 não estava satisfeito. Mas o Rigger:
povo não pedira a revolução? Ele mesmo, “[Paulo Rigger] Leu os jornais. O povo es-
Paulo Rigger, assistira a meetings em que tava aborrecido, porque o Governo não que-
ria dar aos clubs carnavalescos a “ajuda” de
os oradores berravam pela revolução, ‘que
praxe. Paulo riu: – Paiz do Carnaval! Paiz do
tiraria o Brasil da beira do abysmo’...”31
Carnaval! Eu, se fôsse Presidente ou Dictador,
Desoladora é a resposta do diplomata: decretaria um Carnaval de 365 dias... Adorar-
“Enterrou-o, meu amigo. Enterrou-o”.32 -me-iam...”.37
Mas Rigger, sentindo-se decepcionado com
José Augusto, rebate irônico: “– Como era Consideremos alguns aspectos dessas
que, agora, poucos mêses depois, o povo duas passagens cruciais no romance. Na pri-
já clamava contra o estado de coisas? Que- meira, a palavra povo aparece cinco vezes
riam, com certesa, que em dois mêses os antes que, a título de conclusão do raciocínio
governantes endireitassem o Paíz?...”33 do diplomata, Rigger a retome, mas para in-
Por sua vez, também José Augusto recor- duzir uma nova versão – “Um povo carnava-
re à ironia, porém mais para explicar as coisas lesco” – de “o Paiz do Carnaval”, alcunha já
a um compatriota que vivera tanto tempo no ouvida por José Augusto, sempre da boca de
exterior: “Não é isso. O senhor não conhece Paulo Rigger. E esta nova versão pode sem
as virtudes do povo brasileiro. O nosso povo dúvida ser interpretada como uma tradu-
só applaude os que estão na opposição. ção para o português (embora menos literal
Nunca apoiou, por melhor que ele fôsse, um do que a italiana “nazione carnascialesca”)
Governo.”34 A esse ponto, diante das consi- do tal “epiteto” carnival-nation que, desde
derações feitas, embora amargamente, por 1905, Panzini documentara. Mesmo nesse
seu interlocutor, Rigger não hesita em reba- último caso, a reação à alcunha é de uma
ter passando a ofender, zombando: “Virtu- recusa óbvia: José Augusto prefere, inclusive
de, não é? Um povo carnavalesco...”35 O como diploma que é, distanciar-se de tanto
incômodo, porém, novamente sentido pelo gratuito desprezo, deixando que aquelas in-
diplomata por tais atitudes se faz agora tan- júrias caiam no vazio, e mudando o rumo da
gível, tanto que muda a conversa perguntan- conversa para outra preocupante questão
política, o “exílio”, a que um conhecido em
30 Nossos os grifos desta palavra também nos dois tre- comum estava sendo forçado, devido ao cli-
chos seguintes. ma que já se tornara autoritário.
31 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., pp. 129-130.
32 Idem, Ibidem, p. 130.
33 Idem, Ibidem.
34 Ibid. 36 Ibid.
35 Ibid. Nossos os grifos. 37 Idem, Ibidem, pp. 133-134.
114   • Sandra Bagno

No segundo trecho não há necessidade ridicularização e abuso. Pois dos contextos


de comentar o cinismo e a desconsideração literários, o “instinto de nacionalidade”,
com que Rigger, em seu breve solilóquio, como denominado por Machado de Assis,
estabelece uma ligação direta, por um lado, havia já penetrado em várias facetas da
entre o verdadeiro perfil político (“Presiden- sociedade, tornando-se um valor cada vez
te ou Ditador”) que enxerga no novo lea- mais compartilhado. A comprová-lo está o
der, Getúlio Vargas, e, por outro, seu país. fato que nenhum dos personagens ama-
Cuja natureza seria de “Paiz do Carnaval!” dianos (qualquer que fosse seu papel no
por definição porque, segundo Rigger, para romance) que participaram do projeto ori-
manipulá-lo, bastaria seduzi-lo com um ginário de um Estado da Bahia combativo,
“Carnaval de 365 dias...” adere àquela linha de menosprezo de Paulo
Rigger, mesmo tendo contribuído, cada um
O Paiz do Carnaval: deles, por uma específica razão, ao subs-
tancial fracasso do projeto.
implicações da recusa da
E de fato, desde as primeiras imagens, há
alcunha infamante no romance também um outro imprescindí-
Portanto, à medida que se avança na lei- vel personagem, com seus problemas, que,
tura, novas peças se adicionam, reforçando embora apareçam ainda in nuce no romance
uma tese que, ao nosso ver, faz de O Paiz de estreia, não seria objetivamente mais pos-
do Carnaval uma denúncia. Mas num olhar sível postergar: o povo, aparentando uma
mais atento, Amado não se limita a diag- única comunidade no papel de figurante,
nosticar a doença e a reconhecer quais são mas que, pelo contrário, torna-se mais reco-
os agentes responsáveis. nhecível durante o Carnaval. E povo que, ob-
servado também à luz da posterior narrativa
O Paiz do Carnaval: a pars de Amado, se revela como o verdadeiro fio
construens
vermelho e um dos seus tópicos mais impor-
Na verdade, no romance amadiano de tantes desde O Paiz do Carnaval.
estreia há também uma bem identificada Se os brasileiros educados no país de-
pars construens, cravada mesmo sobre a monstram, como os personagens do ro-
palavra Carnaval e plenamente reconhecível mance, serem impermeáveis a expressões
quando chegamos ao final de uma narra- humilhantes a eles impingidas por quem
ção que, de princípio, parecia ter uma es- quer que seja, os tantos que ainda não tive-
trutura fragmentada. ram acesso à instrução, e a quem o sistema
Como são ainda uns compatriotas, após reconhece visibilidade somente nos dias do
um século de independência, os que conti- Carnaval, nem por isso são menos impor-
nuam a introduzir no país lógicas modernas tantes no processo, agora mais acelerado,
– mas objetivamente retrógradas, com seus de construção da identidade nacional. Uma
relativos léxicos, fruto de conflitos comba- flagrante manifestação de toda sua força
tidos em teatros políticos extrabrasileros –; está na negligência com que eles reagem,
nem por isso o Brasil estava ainda dispo- mesmo com o Carnaval, à ideia de fazê-
nível em 1930 a sofrer qualquer forma de -los sentirem-se inferiores ou pela raça e
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o  •   115

miscigenação ou por uma presumida “tris- (que, reconhecendo-se estranho ao seu povo,
teza brasileira”. prefere retornar à Europa) nos seguintes ter-
Nessa ótica, paradigmático se torna o mos: “A gente deve arranjar um princípio, um
epílogo do romance, cujas metáforas são ideal, para iludir-se, pelo menos. Eu me iludo
cada vez mais explícitas ao confirmar dois com esse negocio do communismo. Por isso
conceitos básicos. Para expressar o primei-
fujo de você. Você me mostra a realidade e
ro, Amado recorre a um último diálogo
me carrega de tristesa [...]”.40
entre José Lopes e Paulo Rigger. Enquanto
Ou seja, Amado conta com um intelec-
“constrange” o próprio Rigger a formular o
segundo conceito. E isso acontece no mo- tual que formara-se, normalmente, no país a
mento em que Rigger parece lembrar de sua tese: chegara a hora de despedir, de fato,
ter reconhecido, em outra ocasião: “Eu não quantos, tendo em conta suas condições so-
tenho o sentido de Pátria. Só me senti brasi- ciais privilegiadas, acabavam por desprezar,
leiro duas vêzes. Uma, no Carnaval, quando antes de tudo, seu próprio povo. Pertence a
sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, eles a verdadeira “tristesa”, não ao povo, e
depois que ella me traiu.”38 menos ainda ao que advém do Carnaval: do
Quem irá definitivamente sancionar a não qual, ao contrário, isso agora eles têm que
aceitação no Brasil, após as ideias dos Nina aprender. Conceito este de que mesmo Rig-
Rodrigues, também as de Paulo Rigger – ou ger, por fim, teve que tomar conhecimento,
seja, metáfora à parte, de Paulo Prado, do até implicitamente rever a sua postura e pre-
qual o protagonista amadiano é em parte conceitos sobre a importância daquela comu-
homônimo – seria um personagem cuja tra- nidade em festa, enquanto pela última vez,
jetória humana, no romance, se enquadra antes de partir, “ia abrido caminho a sôccos
num clássico percurso de formação. Na ver- e cotoveladas”41 para conseguir embarcar.
dade, o XVI e último capítulo assim se inicia: Aquela multidão disposta, apesar de tudo, a
“Rápida, a transformação de José Lopes.”39. celebrar a vida – simplesmente do jeito que
Sempre presente ao longo dos capítulos, mes- lhe fora permitido, em pleno domingo de
mo que inicialmente em segundo plano, José Carnaval – levou-o a admitir para si mesmo:
Lopes surge como símbolo daqueles patriotas “Afinal, talvêz este povo esteja com a razão.
que com lúcida decisão acabam por escolher, No Carnaval talvêz esteja tudo...”.42
na crítica contingência política de 1930, a li-
nha de um empenho político para combater A patriótica e apaixonada recusa
a iniquidade que vitimava grande parte da de rótulos caluniosos por parte
de um jovem de dezoito anos
população. Ao contrário de intelectuais ana-
cronicamente estrangeirados, como revelara- Ora, ao lermos O Paiz do Carnaval sob esta
-se Paulo Rigger. De fato, na despedida de- ótica, podem também ser explicados mais
finitiva é José Lopes quem se dirige a Rigger dois elementos: de um lado, uma importante
40 Idem, Ibidem, p. 213.
38 AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. Op. cit., p. 82. 41 Idem, Ibidem, p. 216.
39 Idem, Ibidem, p. 205. 42 Ibid.
116   • Sandra Bagno

declaração dada pelo escritor e, de outro, a ridicularizar a Itália usando como pretexto
violenta reação da censura varguista. o seu carnevale, analogamente na América
De fato, em primeiro lugar se compreen­ Latina Jorge Amado reage com O Paiz do
de porque, na célebre entrevista concedida Carnaval. Romance que, graças à amplitu-
à Alice Raillard em 1990, Jorge Amado, de de soluções oferecidas pela dimensão
agora em uma fase de balanço de uma vida narrativa, torna-se o veículo com que aler-
inteira em dar voz aos humildes, reivindica tar seus compatriotas sobre os reais objeti-
sem meio-termo: vos, ao invés de algum estrangeiro (como
“Assim, o Paulo Rigger de O País do Car- “os Ingleses” em relação à Itália), de inte-
naval é, de todos os heróis dos meus roman- lectuais brasileiros como Paulo Rigger.
ces, aquele em que eu menos me projeto, o
Portanto, longe de ser responsável por
que me é mais estranho. É uma exceção, por-
certa imagem da identidade nacional bra-
que creio que em todos os meus outros livros
meus personagens, meus heróis sempre têm sileira no estrangeiro, é razoável interpretar
algo a ver comigo.”43 o único romance amadiano baseado num
estereótipo como uma tomada de posição
Por estas inequívocas palavras é lógico para que se chegasse à total reprovação
presumir que, ao invés de Paulo Rigger, é de teorias indignas. Como aquelas pelas
antes José Lopes – o que se ilude “com esse quais “luxúria”, “cobiça”, “melancolia” e
negócio do comunismo” – o personagem “tristeza” deveriam caracterizar “genetica-
que, na verdade, “tem algo a ver” com Jor- mente” a grande parte do povo brasileiro.
ge Amado. Aspecto do romance que certa- Por isto, O Paiz do Carnaval deve ser lido,
mente não deve ter escapado aos persegui- a nosso ver, como uma patriótica e apaixo-
dores de Jorge Amado, e que explica, em nada recusa de um jovem escritor, à frente
segundo lugar, o pesado preço que, entre de uma nação inteira, no que se refere a
o cárcere e o exílio, mesmo enquanto po- categorias interpretativas e alcunhas inacei-
liticamente engajado desde O Paiz do Car- táveis. E isso à luz, primeiramente, ao invés
naval, ele logo começou a pagar. Incluído o de um nacionalismo gratuito, mais simples-
preço de uma censura que se manifestara mente, da dignidade humana que deve
de uma forma horrivelmente inquisitória, a ser reconhecida a cada indíviduo e a cada
ponto de fazer uma fogueira em praça pú- povo. Assim como desde jovem Amado os
blica com seus primeiros romances. Foguei- entendera partindo de seu Nordeste: região
ra que neste 2017 completa oitenta anos, que se torna símbolo de quantas outras, em
e que fez com que a primeira edição de O 1930, olham desconfiantes para o poder
Paiz do Carnaval seja quase impossível de esmagador paulista, não apenas político. O
se encontrar. romance, portanto, é uma clara resposta,
Por conseguinte, enquanto na Euro- articulada e propositiva, a ser enquadrada
pa Alfredo Panzini continuava a tomar no contexto das várias formas de reação a
posição abertamente, através de seu Di- Retrato do Brasil. Pois, antes que algures,
zionario Moderno, contra quem quisesse encontrava-se mais uma vez em casa a ori-
43 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. gem real de alguns males que voltavam a
Rio de Janeiro: Editora Record, 1990, p. 47. afligir o Brasil.
O Paiz do C a r n ava l : a a lc u n h a r e c us a da p o r J o r g e A m a d o  •   117

Bibliografia PANZINI, Alfredo. Dizionario Moderno Supplemento ai di-


zionari italiani. Milano: Editore Ulrico Hoepli, 1905.
AMADO, Jorge. O Paiz do Carnaval. romance. Rio de Janei- _____. Dizionario Moderno Supplemento ai dizionari ita-
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BAGNO, Sandra. Lessicografia e identità brasiliana: dov’è nei dizionari comuni. Nona edizione con un Proemio di
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ghesi e Brasiliani. XV – 2013. Pisa-Roma: Fabrizio Serra RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de
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CALIL, Carlos Augusto. “Introdução”, apud PRADO, Paulo. rio Dal Museo dei mostri al Panorama storico d’Italia”,
Retrato do Brasil Ensaio sobre a tristeza brasileira. São apud PANZINI, Alfredo. Dizionario Moderno delle pa-
Paulo: Companhia das Letras, 1997. Org. de Carlos role che non si trovano nei dizionari comuni. Nona edi-
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CASTELLO, José. “Romance de deformação”, apud AMADO, di B. Migliorini. Milano: Editore Ulrico Hoepli, 1950,
Jorge. O País do Carnaval. São Paulo: Companhia das pp. V-XVI.
Letras, 2011. Posfácio de José Castello, pp. 147-155. SELTZER GOLDSTEIN, Ilana. O Brasil best seller de Jorge
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Amado. Literatura e identidade nacional. São Paulo:
Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. Editora Senac São Paulo, 2003.
Em busca de “novos ollos”: Sobre
Pálpebra azul, de Helena Villar Janeiro

Henrique Marques Samyn


Professor Adjunto do Instituto de Letras da UERJ, escritor e ensaísta.

I. de uma renúncia da subjetividade enquanto


instância apartada do real, já anunciada em
Publiquei em 2010, no Boletín Galego
obras anteriores da referida autora. Nessa
de Literatura, um longo ensaio sobre a tra- medida, Pálpebra azul atestava a percepção
jetória poética de Helena Villar Janeiro – in- de um eu que se reconhecia como necessa-
discutivelmente, um dos mais importantes riamente imerso na dinâmica da natureza,
nomes da poesia galega contemporânea. dissipando-se no momento mesmo em que
Nesse texto, de título “Lirismo e alterida- a poesia se efetivava enquanto formulação
de”, dediquei a Pálpebra azul, livro por ela de uma “experiência pura”; o que permite
publicado em 2003, algumas palavras que afirmar que, nessa obra, Helena Villar em-
gostaria de retomar (ainda que de modo preende a construção de uma poética que
forçosamente sintético) no início do ensaio dispensa a concepção de um eu lírico num
que agora publico, em que tenciono apre- sentido convencional, constituído a partir de
sentar um conjunto de reflexões acerca des- uma negação da alteridade. O que há, efeti-
ta singular obra. vamente, é uma dissipação dessa última, do
Ao analisar Pálpebra azul, apenas o se- que resulta um gesto poético que se limita
gundo livro em galego no qual a forma japo- a reafirmar o real, dedicando-se à tarefa de
nesa do haiku se fez presente, eu observava “dizer o mundo”.
que a opção por essa estrutura formal cons-
tituía uma espécie de inevitável consequ-
ência da senda percorrida por Helena Villar
II.
em sua singular trajetória literária: a escolha Afirma Helena Villar Janeiro, no prefá-
dessa forma particular, registro lírico de uma cio de Pálpebra azul, que na gestação desta
experiência derivada de um momento de obra “singular apareceu o espírito do haiku
iluminação que ultrapassa as determinações antes que a forma”. É sintomático o episó-
cognitivas impostas pelo eu, constituía uma dio por ela relatado – quando, tendo saído à
espécie de abertura para o mundo derivada procura de cogumelos, teve a oportunidade
120   • Henrique Marques Samyn

de contemplar com “novos ollos” a morte como transparente em relação ao real. Não
aparente da natureza outonal. A menção a obstante, isso não deve ser confundido
“novos ollos” é, aqui, importantíssima: tra- com um apagamento da linguagem, o que
ta-se do explícito reconhecimento de uma a esvaziaria de seu próprio sentido poético;
nova forma de percepção do mundo, deri- mais pertinente é pensar em uma concep-
vada não de um planejamento racional, mas ção nova de poesia como imediatamente
sim de uma experiência espontânea, propi- derivada da realidade quando experien-
ciada por uma nova relação com o mundo ciada como tal, para além dos falseamen-
constituída a partir de abertura irrestrita. Se tos instituídos por um ego que se percebe
os “novos ollos” efetivam, nessa medida, como instância superior ou autossuficiente.
uma ruptura, isso não decorre de um proces-
so deliberativo ou de uma decisão racional III.
que possibilite a constituição de uma sub- Já uma primeira leitura permite vislumbrar
jetividade nova, em oposição a um modo a dimensão epifânica de um poema como:
de subjetivação anterior; com efeito, cabe
A primavera
compreender os “novos ollos” como uma
foi chocada nos ovos
metáfora que alude a um olhar que prescin-
que puxo o inverno
de, tanto quanto possível, de uma instância
subjetiva – o que viabiliza o processo criativo Não há novidade em afirmar que a for-
demandado pela forma poética do haiku. çosa submissão contemporânea à tempo-
Cabe compreender nesse mesmo senti- ralidade do trabalho e da produção leva a
do a afirmação segundo a qual os poemas um obscurecimento da percepção do tem-
de Pálpebra azul nasceram em uma “longa po como devir; por outro lado, a recusa da
temporada nun círculo de silencio e recol- precisão do relógio, o retorno à dinâmica
lemento especial, nun verdadeiro exercicio essencial da natureza pode suscitar uma
para o espírito”. O exercício espiritual em redescoberta do real como um espaço de
questão consiste na adesão voluntária a um incessantes transformações. Primavera e
rigoroso regime cujo intuito é a máxima inverno não são, por conseguinte, dois as-
supressão de condicionamentos subjetivos pectos fundamentalmente diversos da rea-
que, necessariamente arbitrários – enquan- lidade – como pode supor uma percepção
to projeções de um ego ilusório –, acabam fragmentária ou parcelar –, mas dois mo-
ensejando um falseamento da realidade. mentos de uma realidade que é sempre
Ainda que a posterior elaboração da experi- a mesma, mas jamais permanente (o que
ência, no âmbito da linguagem, envolva um obsta qualquer tentativa de encerrá-la, de
conjunto de elementos contingentes (no modo definitivo, no âmbito da linguagem).
que tange, por exemplo, à seleção vocabu- Dizer o agora implica, portanto, remeter
lar ou à seleção de estruturas gramaticais ao que ele foi outrora (e ao que ele será, do-
específicas), fundamental é perceber que o ravante); e as ideias de uma primavera “cho-
ethos derivado de todo esse processo de- cada” e de um inverno capaz de pôr “ovos”
termina uma relação com o discurso poéti- aludem à ciclicidade que ultrapassa as frontei-
co segundo a qual este pode ser concebido ras da repetição, como pode fazer parecer a
Em busc a de “ novo s o l l o s ”: s o b r e P álpebra azul , d e H e l e n a V i l l a r J a n e i ro  •   121

percepção limitada à mera rotina. Com efei- devir, possa prescindir da apreensão do pre-
to, a imagem do “ovo” pode, aqui, remeter sente é um erro crasso; com efeito, apenas a
a seu sentido simbólico primordial, enquanto plena abertura para o presente pode revelar
síntese de todas as potencialidades – o que concretamente a inconstância da realidade.
é especialmente relevante por denunciar o É o que revela uma composição como:
quanto essa mencionada redução da percep-
ção à rotina resulta num empobrecimento da Festín de ocaso:
experiência do real. Nada nos autoriza supor, polo dentes da serra,
afinal, que a transformação do inverno em sangue de sol
primavera implica qualquer tipo de ruptura, a
não ser que (arbitrariamente) desejemos per- Há aí não a síntese de um processo –
cebê-la dessa forma; o que há, efetivamente, caso dos poemas anteriores –, mas o re-
é uma continuidade – sendo legítimo, assim, gistro de um instante transposto para uma
afirmar que o inverno já é a primavera, e que linguagem que, conquanto incapaz de en-
a primavera continua a ser o inverno. cerrá-lo, opera como assinalamento da oca-
Outro dos haikus constantes de Pálpe- sião em que a experiência do real foi resga-
bra azul sugere um processo similar: tada em toda a sua singularidade. É o que
encontramos também em um haiku como:
Caeu a folla
e as raíces preparan Ventre de mar:
un novo ascenso por entre ondas pilosas,
orgasmo azul
A queda da folha não é aqui descrita
meramente como o fim de um processo, Pode-se objetar, por um lado, que a pre-
mas como alusão ao início de outro – resga- sença de elementos metafóricos, não pura-
tando a ciclicidade há pouco mencionada, mente descritivos, constitui uma intromissão
obscurecida pela percepção restrita ao ego desmedida da subjetividade na tessitura líri-
que tudo reduz à sua própria parcialidade. ca – sobretudo no que tange às imagens do
Pode-se evocar, aqui, o conceito budista de festim e do sangue, num dos poemas, e do
interdependência, precioso por revelar o ventre e do orgasmo, no outro. Penso, não
quanto cada elemento mencionado no po- obstante, que há aí uma admissão da (neces-
ema (a folha, as raízes, a ascensão de uma sária) contingência à qual aludi anteriormen-
nova planta) não pode ser concebido sem te, da qual é impossível escapar, uma vez que
os outros – a não ser que se abdique da- se trata do recurso à linguagem. Nessa me-
queles “novos ollos”, reduzindo o olhar a dida, o que faz Helena Villar é explicitar essa
um fragmento arbitrariamente interpretado limitação – sem que, a meu ver, isso implique
como síntese de toda a realidade. algum tipo de fracasso. Não se trata, afinal,
de recusar intransigentemente uma instân-
cia subjetiva, mas de procurar uma “expe-
IV. riência pura” que seja soberana perante as
Supor que a percepção da ciclicidade do demandas daquela, dispensando a noção
existente, associada à dinâmica própria do tradicional de eu lírico em prol de um modo
122   • Henrique Marques Samyn

de subjetivação que reduza maximamente a complexidade de sua proposta poética, não


clivagem em relação a qualquer tipo de al- deixará de ensejar novas possibilidades de
teridade. O mais importante é a construção leitura, certamente também não definitivas;
de modos de experiência a partir dos “novos tão somente espero ter oferecido novos sub-
ollos” que apreendem a realidade. sídios para compreensão de uma obra indis-
Talvez isso apareça de modo mais evi- cutivelmente singular no âmbito da literatura
dente em um poema como galega (não apenas) contemporânea.
Por fim, o que me parece pertinente
Paisaxe idílica:
o río baixa só enfatizar neste momento conclusivo (e que
contando historias espero haver explicitado suficientemente ao
longo do ensaio) é que Pálpebra azul não
– uma vez que aqui a dimensão descritiva constitui a apropriação irrefletida de uma
cede espaço à projeção ostensiva de uma estética alheia, com o mero fim de procurar
ação sobre o rio, que só pode remeter a uma o “diferente”. Penso que isso se torna evi-
expectativa derivada da subjetividade. Ainda dente por dois motivos: primeiro pelo fato
assim, penso que a “contação de histórias” de que as questões que essa obra encerra,
atribuída ao rio constitui uma espécie de de- no tocante à proposta estética, constituem
núncia: não é o rio que efetivamente conta desenvolvimentos de aspectos presentes em
histórias, mas a subjetividade que se sente toda a produção lírica anterior de Helena
impelida a fazê-lo; não obstante, renuncia a Villar Janeiro; segundo por haver, na obra,
essa tarefa no momento mesmo em que re- indícios de que a própria autora é levada a
conhece em si esse ímpeto, facultando que a repensar e reelaborar aspectos particulares
expectativa permaneça enquanto tal, e sem dessa proposta poética, o que evidencia a
que isso resulte em qualquer tipo de frustra- busca de um registro lírico consistente –
ção ou incompletude. como reconhece Helena Villar, tratava-se de
“profundizar nunha nova prespectiva apli-
V. cable tanto á intuición como á expresión
Não espero, finalmente, que este bre- poética”. Que Pálpebra azul seja, finalmen-
ve ensaio constitua uma interpretação de- te, um convite para que também nós ado-
finitiva de Pálpebra azul – obra que, pela temos um novo olhar diante da realidade.
P O E SIA

Flávia Rocha

F
lávia Rocha é jornalista, poeta, tradutora jornalista, foi repórter das revistas Bravo!,
e roteirista. Autora dos livros de poemas República, Carta Capital e Casa Vogue, e co-
A Casa Azul ao Meio-Dia (Travessa dos laboradora de diversas publicações. Na área
Editores, 2005), Quartos Habitáveis (Con- de cinema, foi uma das fundadoras – e hoje
fraria do Vento, 2009) e Um País (Confraria dirige o departamento de comunicação – da
do Vento, 2015). Tem mestrado (M.F.A.) em Academia Internacional de Cinema, escola
Writing/Poetry pela Columbia University e de cinema com unidades em São Paulo e no
por 13 anos editou a revista literária norte- Rio de Janeiro; é corroteirista e coprodutora
-americana Rattapallax. Já teve seus poemas do longa-metragem Birds of Neptune (Esta-
e traduções publicadas em antologias e re- dos Unidos, 2015), e de outros projetos que
vistas no Brasil, Estados Unidos, Reino Unido, estão em fase pré-produção. Vive e trabalha
Itália, Romênia, entre outros países. Como entre Brasil e Estados Unidos.
124   • Flávia Rocha

(para Manuel Bandeira)


As meninas continuam a d o r á v e i s
por aqui, rarefeitas em múltiplas correntes de ar.
Em pleno pós-feminismo, a girafa de duas cabeças
insiste em pecar com os malandros, de todas as maneiras,
como qualquer virgem mal-sexuada (é assim que se diz?)
E todas aquelas bizurunguinhas que a menina
é ou não é deixaram de ser adoráveis. Tudo corre bem.
Achei que devia te contar.

(para Hilda Hilst)


O azul insuportável
na mesa de mármore azulado: estetizante
e lírico. Monja, vestida de negro,
as mãos estendidas sobre a mesa das águas
no labirinto azul, você desce o decote desabitado,
mostra a omoplata. Da plataforma,
o louco vê apenas uma mulher desmerecida no trem
que passa. Nós todas de pé nessa mulher.
Flávia Rocha   •   125

(para Adélia Prado)


Essa coisa deliciosa e doida, barbelas e cristas,
imoral, solta. Alta no meio da grama.
Discutir a sua sintaxe é recusar a descamar o peixe
destinadamente sujo, noite adentro, nos sítios escuros
de uma cozinha sem paredes. Mista como a dor
que começa a sumir. Quebrada como penca de chaves
rodando no dedo. Curva como mulher em dia radioso,
constantemente amanhecendo.

(para Ana Cristina César)


Você recomenda cautela, justamente.
Discreta na contramão, indiscreta no fluxo, pedindo
o não personagem em algum livro manifesto. Desculpe-me
por arrastá-la até a praça, no meio da noite ilegítima.
Sonsa, sem o bom senso salta-pocinhas, atravancada,
com as mãos descalças, tento andar à direita do anjo
que registra. Para ver se ela me conta (no mínimo) um segredo.
126   • Flávia Rocha

(para Carlos Drummond de Andrade)


O inseto cava cava cava,
áporo, no único chão. Bloqueado
na matéria que não termina. O cavar é constante
e repetido: de cinco em cinco minutos no amor,
de hora em hora na fome, em turnos no ato da guerra
turva, à margem de outra guerra. E é preciso que alguém
ao dizer a verdade nos entregue a orquídea escura,
com os olhos luminosos, cavando à frente.

(para João Cabral de Melo Neto)


Você limpa a maçã
do que não é faca: vinte lâminas
da mesma maçã separam as vinte palavras.
Até que um latido quebra o cristal
e nos devolve o cachorro inteiro, sanguíneo
e místico, como uma enorme fruta que despenca
no mangue. E aquele rio fica muito mais espesso no homem.
Flávia Rocha   •   127

(para Manoel de Barros)


Anti-coisa, inerte, transfigurada no chão.
Mato crescido na boca. Tentando dizer nada.
DNA de planta que se alastra, ignorante de tempo,
enredada na gramática vegetal. A mudez da sua voz
batendo pétalas de chuva no nosso rosto, inundando
o manancial. Cada pedaço emaranhado no outro,
com um único poema no tronco.

(para Armando Freitas Filho)


Fulminando simetrias
no fogo fino, o tigre é a fotocópia
de cavalos opostos que disparam para polos idênticos.
De repente se vê no terror do corpo
de um dos cavalos. E na forma daquele cavalo,
o tigre para debaixo da árvore que canta, lambe
a ferida original, abre mais a mancha, procurando
o outro cavalo. Poeta, tigre, a meu ver
você são dois cavalos múltiplos.
128   • Flávia Rocha

(para Orides Fontela)


Coloquei rosas aqui, perto de algum final.
Mas não soavam reais,
pareciam humanas. Comportavam-se como palavra,
naquela frieza de curvas e ângulos contidos, flechas
de som dentro de uma caixa. Você diz FLOR
na crueldade crua. E me faz entender
porque toda rosa é ex-rosa.

(para Ferreira Gullar)


Bananeiras, bananeiras. A chama pode cessar
dentro de um corpo. Não temos
trinta e três anos em maio às quatro da tarde.
Duas manchas vermelhas são agora duas manchas
vermelhas, sem pintas selvagens
no fundo amarelo da cela verde. Sem escuro
que defina fachos de luz. Sem marcas de luta na casca
que ainda boia no mar.
Flávia Rocha   •   129

(para Bruno Tolentino)


Quando num táxi você me disse
para traduzir a torre de Yeats para aprender a língua,
eu desviei o olhar. Y é M para mim. Nas horas alongadas,
discutindo a sua eternidade naquela barca parada,
o monstro que se movia era mesmo M,
mas o M como ideia. E que você a amou
em delírio está claro. Já Y me obrigou
a vir morar com ele, desmitificado na torre.

(para Cecília Meireles)


Uma música clara cecília sobre pedras escuras,
lava o pólen tênue dos mundos, na viagem desvairada.
Um vento límpido e exato cecília folhas
na imensidade do ato, e enormes nuvens no vestido.
Dança alegre no mar triste, no instante incerto –
cecília de mim, copiosamente.
Júlio Machado

J úlio Machado (Júlio Cesar Machado


de Paula) nasceu em 1975, em Pou-
so Alegre, sul de Minas. Reside atual­
mente em Niterói e é professor de Litera-
Fluminense. Em poesia, recebeu, dentre ou-
tros, os prêmios Xerox/Livro Aberto, pelo livro
O itinerário dos óleos, e Nascente (USP/Edi-
tora Abril), pelo livro Mimnas. Publicou, em
turas Africanas na Universidade Federal 2016, O quintal e o mundo (ed. Kazuá).
132   • Júlio Machado

Hic et nunc

O rosto entre-
visto no espe-
lho da espe-
lunca brinca
como se nunca
tivesse visto
o rosto adunco
que se divide
em meio à trinca.

Mas o outro,
posto que entre-
vendo o que di-
viso, já nem
espera algum
rosto que seja
mero avesso
de outra nuca,
mas este, hic,
  agora ou nu c .
n
a
Júlio Machado   •   133

É isso um osso?

O teste-
munho
cego de
Primo
Levi
dizendo
aos seus:
acaba-
remos
como
os Pig-
meus,
levou-
me ao
fundo
do poço.

Como se
de um
rede
-munho
de des-
troços
emergisse
não a voz
de um
colosso
de Rodes,
mas o humor
maligno
de um Pig-
malião
sem ossos.
134   • Júlio Machado

In media res

Parei
atônito
esperando
a morte
que não
viria
se eu não
tivesse
parado.

(E o anjo
que inter-
pelei
perguntando
o que era
afinal
a vida
forneceu-me
o formicida.)
Júlio Machado   •   135

Da solidão de Sócrates

Se o que sei
é o sabor
de não saber
o que sei;

e se o Sol
já não sai
sem saber
por que sai;

prefiro ser,
no escuro,
o que não se vê
de uma gruta;

ou, no claro,
qualquer som
que soa e não
se escuta.

Pois se a certeza
de saber
é o acicate
da disputa,

antes beber
o acinte dos céus
que dorme
na cicuta.
136   • Júlio Machado

A montra

À ex-prostituta que vi, sem pejo,


ajoelhada no meio de uma igreja.

Não reclame daquela


que ali se mostra, a montra
cuja aparência remonta
à era dos monstros
de terno e lapela.

Antes ame o que nela


era grota pronta ao sexo
e hoje, embora desmorone
como tora exposta ao tempo,
aguarda a vinda de outra primavera.
Mauricio Vieira

N
asceu em Santo André, São Paulo, no Espace Krajcberg e no Club des Poètes.
aos 2 de janeiro de 1978. Autor Desde 2014 edita a revista digital de poesia
dos livros de fotografia A Árvore e Arvoressências [www.arvoressencias.com].
a Estrela (2008), Angola Soul (2011), e do Em maio de 2018 apresentou na Em-
livro de poesia Árvoressências (2014). Expôs baixada Brasileira de Paris a mesa-redonda
poemas e fotografias no SESC e no Instituto La Découverte de l'Autre dans les Textes de La
Moreira Salles. Participou do Raias Poéticas Découverte.
(Portugal), da Flipoços (MG) e do Printemps Publica em Portugal pela editora Glaciar
Littéraire Brésilien (França). Em 2017 apre- em julho de 2018 o livro de poesia Manual
sentou a peça La Lyre Africaine em Paris Onírico de Jardinagem.
138   • Mauricio Vieira

Catedral

pedra vertical
vertigem projetada
pedra sobre pondo pedra
torre de catedral
é pedra projetada
na horizontal
contra quem viola a lei
que na pedra foi gravada
anjos gárgulas
ângulos de uma projeção
a escolhida a rejeitada
todas as pedras estão manchadas

o
divino
habita
outra verticalidade
órgão de vastos
tubos e teclas
hostes de anjos de
inumeráveis asas e trombetas
morada dos velhos deuses
anteriores ao rito da pedra
a
árvore
Mauricio Vieira   •   139

Húmus

A
F_lha _o sol_
Tecid_ q_e _e de_faz
Ca_comida_ _or micró_ios
Câma_as esf_cela_as
A_é _a _asa _ada _obrar
P_lavra esf_liada
Co_sumida a m_mória
Semen_e na _erra
R_gene_ará
?
140   • Mauricio Vieira

A pedra e a flor

A Antonio Carlos Secchin

No Senado, da branca coluna, a secção,


A pedra que era no templo o pilar,
Apodreceu, vazou, partilhou-se feito pão.

Farelo de império, a pedra projeta,


a partir de sua ruína, seu pólen,
por linhas desdomadas, em planta baixa;

para aprender sol e terra,


a alquimia daquela que desconhece
seu usufruto, desdobra-se a pedra.

Lançando da flor a pedra inaugural


afloram da pedra dez mil reverências;
engendra assim sua obra final;
Mauricio Vieira   •   141

A folha e o pássaro

A folha verde encara o pássaro,


Asas abertas, vindo do espaço.
Ao agalhar-se, agasalha as asas,
Mas remexe as folhas no galho.
A folha e suas irmãs se revoltam:
Pois o desgalhe lhes é negado.
Por que voo também não alçam,
Se são essencialmente aladas?

Do agitar comum de folhas no galho,


Orquestra-se apenas um chumaço,
Acompanhamento sem brilho
Para o claro violino do pássaro.
O canto da ave percorre o ar
Subindo e descendo escalas
Até pousar na janela da torre
Onde aguarda seu alado par.

As aves, num ir e vir sem repousar,


Recolhem e entulham gravetos,
Trançando um abrigo sem teto.
A folha escrutina o esdrúxulo lar,
A aparição de brotos laqueados,
Valiosos móveis, sob vigília alternada.
Casulo de lagarta, borboleta em preparo,
A folha indaga, enrubescida, estupefata?

O broto irrompe então em fruto,


Fruto que pia, que come lacraia,
Minhoca e formiga; fruto ingrato,
Não se dá ao desfrute; pelo contrário,
Esse fruto só sabe dar é trabalho.
A folha amarelece ao olhar de soslaio;
Já não mais inveja e admira o pássaro,
Que tendo asas, abnega-se do espaço.
142   • Mauricio Vieira

Depois, arriscando um olhar sorrateiro,


A folha se espanta: está vazio o aposento.
Vê mais aves exibindo plumagem alada;
No decolar, chacoalham a folhagem atada.
A folha, possessa, se emancipa do genitor.
A ela o galho deu seiva, verdade, vá lá,
Mas claramente retribuído com sumo solar.
Das irmãs se despede, ensaia seu voo,

Estuda o movimento dos pássaros,


E, não mais membro do coro, se destaca.
Sobrevoa, montada ao velo de prata,
Telhados de zinco, gárgulas, copas peladas,
O Sena das tranças castanhas das náiades,
Prova daquilo a que chamam liberdade
E depois do discreto assovio tão almejado
Cai sobre outras folhas, em solo dourado
c o n to

O monstro

Josué Montello
Quarto ocupante da Cadeira 29 na Academia Brasileira de Letras.

Novela pando-se. Depois, rangendo os sapatos no


ladrilho do corredor, caminhou um tanto
Esta novela inédita de Josué Montello se
intrigado para a sala, sem contudo alterar
insere na boa tradição do gênero que Ma-
o ritmo grave de seus passos. Junto a uma
chado nos legou. Maranhense de São Luís,
das janelas sobre a rua, aproveitando a luz
está Montello realizando, no momento,
que entrava pela vidraça, examinou o en-
um tipo seguro e escorreito de ficção, de
velope, já dominado por uma suspeita, e
que seu último romance, lançado em me-
de pronto reconheceu a letra espalhada da
ados de 1965, Os Degraus do Paraíso, é o
mãe no sobrescrito.
ponto mais alto. Em “O Monstro”, o sen-
– Novo pedido de dinheiro – concluiu,
tido de construção de um ambiente, de
deixando cair os braços, uma ruga aborreci-
um personagem, de um suspense, é eleva-
da entre as sobrancelhas grisalhas – Logo vi
do ao máximo, com minúcias de narração
que só podia ser dela.
que culminam na pormenorizada descrição
Maquinalmente, volteou o envelope,
dos objetos antigos que fazem a paixão do
para ler na outra face a indicação do re-
exemplar funcionário público pelo autor
metente. Lá estava, com efeito, na mesma
para viver a sua história.
caligrafia impetuosa, a assinatura inconfun-
dível, que ainda agora o atemorizava: An-

J
erônimo tinha acabado de vestir o pa- gélica Nogueira, Salvador, Bahia.
letó, quando o correio chegou. – É mais uma facada, como se eu fosse
– É registrada – esclareceu o cartei- a própria Casa da Moeda pronta a sangrar
ro, ao ver que ele, com um gesto, e sorrin- em dinheiro – suspirou, deixando a carta fe-
do, assim que recebeu a carta, pedia licença chada no mármore do consolo, e resolvido
para fechar a porta do apartamento. a só abri-la à noite, depois de tomar o seu
Ali mesmo Jerônimo assinou o recibo, chá.
apoiando o papel contra a parede, e logo Não queria aborrecer-se no momento
devolveu o papelucho ao carteiro, descul- de sair para a repartição. Além do mais,
144   • Josué Montello

tinha acabado de almoçar. Deixaria a con- escondida por um renque de casas antigas
trariedade para quando estivesse de pijama ou por um velho muro coberto de hera,
e chinelos. Desta vez – calculou – a mãe de- teve o dom de restituir a serenidade ao Je-
via estar aflita, visto que a carta, além de rônimo, assim que se aboletou no seu lugar
vir registrada, trazia a indicação de urgente, costumeiro do lado da vista para o mar, e
carimbada pelo Correio. deu com a figura jovial do cobrador, um
Ficou um instante imóvel, sobrancelhas velhote rosado e magro, que lhe fez uma
travadas, enquanto recolhia os óculos no es- vênia, equilibrado no estribo, tirando rasga-
tojo de couro, sem desviar da carta os olhos damente o boné:
aborrecidos, quase cedendo à vontade de – Para servi-lo, Senhor Barão...
abri-la. Por fim, encheu o peito, reprimindo Jerônimo sorriu, abrindo bem as boche-
a curiosidade, e foi apanhar no cabide junto chas, ao mesmo tempo que revolvia a algi-
da porta o chapéu de feltro com que agasa- beira, em busca do dinheiro da passagem.
lhava a calva nos dias de frio. O título falso, embora em tom gaiato,
Na esquina da rua, enquanto esperava o sabia-lhe bem aos pendores monarquistas.
seu bonde, tentou distrair o espírito, relan- Além do mais, era gordo, plácido, fronte
ceando o olhar pela paisagem descortinada alta, nariz grosso, uns fios grisalhos saindo-
do alto da ladeira – com o riso dos beirais -lhe das orelhas, pequeninas mãos cabe-
de telhado, por entre o verde das árvores, ludas, e dois olhos castanhos levemente
e o azul do mar ao fundo, na amplidão da tocados de melancolia, com uns longes de
baía cercada de montanhas. certas figuras anafadas do tempo do Im-
– É dinheiro. Não há dúvida que é di- pério, intactas e tristes nas suas molduras
nheiro – voltou a dizer, após um silêncio doiradas, e que habitualmente se veem nos
longo, descendo para o rosto fechado a aba Museus Históricos, como de castigo à espe-
do chapéu. ra dos visitantes.
No correr da enfermidade da irmã, O corpo cheio, gestos vagarosos, dava-
tinha-lhe mandado uma boa ajuda, aten- -lhe ainda um ar nédio de gato preguiçoso
dendo aos sucessivos apelos da mãe, e ain- e bem tratado, que ama o sossego de seu
da tivera de acudir com uma ordem tele- borralho.
gráfica, remetendo importância ainda mais O borralho, no caso, era o aconchega-
gorda para as despesas do funeral. Teria de do apartamento de três peças – uma sala
comprar-lhe agora a sepultura perpétua? e dois quartos, com o corredor ladrilhado
Ou pagar o luto de toda a família? que conduzia à porta de entrada – na colina
– Está parecendo – resmungou Jerôni- de Santa Teresa. Vivia ali a seu gosto, fazia
mo, de má sombra. já dezoito anos, e não compreendia que se
Ainda bem que o bonde se anunciava escolhesse outro local para morar, no Rio de
com o tinido da sineta e o ranger áspero das Janeiro.
rodas nas voltas dos trilhos. De todos os bairros da cidade, era aque-
A viagem lenta, quase toda em curvas, e le que menos se modificara com o tempo.
sempre a mostrar a mesma paisagem, que O próprio edifício onde residia – o único
desaparecia e voltava, momentaneamente que se ajustara à modéstia de seus recursos
O m o ns t ro  •   145

– tinha a imponência dos casarões antigos, Em lugar da casa, Jerônimo teve de con-
com três andares espaçosos, a fachada ma- tentar-se com um modesto apartamento,
nuelina, e os dois lampiões laterais de ferro como se contentou também com um Be-
batido no portal. Em redor tudo parecia re- chstein pequeno, em vez do Essenfelder de
troceder ao Século XIX – o largo do fim da cauda, próprio para concertos, que tanto
rua, as casas de beiral saliente, um sossego desejara possuir. Enfim – reconheceu, sus-
de província nas calçadas desertas, as árvo- pirando – realizara o seu ideal: morava em
res que se esgalhavam por cima dos muros Santa Teresa, e o apartamento era seu, com
de pedra roída. De noite, nas calçadas tran- a condição de pagá-lo em vinte anos, pela
quilas, as crianças ainda brincavam de roda. tabela Price.
E mais tarde, se havia luar, não era estranho Aos poucos, sem pressa, graduando
ouvir-se o choro de um violão boêmio, repe- as compras pela magra bolsa, mobiliou os
tindo as serenatas do Eduardo das Neves ou três aposentos à feição de seus devaneios,
do Catulo da Paixão Cearense. só deixando de comprar o serviço da Com-
Das janelas da rua, batidas de sol nas panhia das índias, que nem sequer conse-
horas da tarde, a vista não podia ser mais guiu descobrir, nas muitas buscas pacientes
bela, com uma nesga do Flamengo e outra por leilões e antiquários. Em compensação,
da Glória, e o mar a espreguiçar-se entre para consolar-se dessa lacuna, adquiriu
montanhas, o mesmo mar que se escon- uma secretária de mogno, com gavetas de
dia por trás dos velhos muros e das velhas segredo, e uma porção variada de peque-
casas, quando o bonde serpenteava pelo nos objetos de arte, que foi dispondo pelos
declive das ruas no caminho do centro da cantos, móveis e paredes, até se convencer,
cidade. após a compra de uma floreira de Sèvres,
Antes de se instalar nas três peças de de que ali não caberia mais uma cabeça de
seu apartamento, Jerônimo costumava su- alfinete.
bir a Santa Teresa nas tardes de domingo, A floreira, assim que Jerônimo a com-
sempre só, paletó abotoado, e passeava a prou, andou uns tempos em lugar discreto,
pé, vagarosamente, pelas ruas de seu agra- quase escondida; depois é que ele se de-
do, sonhando viver numa daquelas casas cidiu a colocá-la ao centro da mesa de ja-
antigas, servido por um preto velho, entre carandá, debaixo do severo lustre de cristal
gravuras de Debret, móveis de jacarandá, da sala, ao considerar que sendo solteiro,
retratos da família imperial, pratos brasona- não havia inconveniente em deixar à vista a
dos, e um serviço da Companhia das índias obscenidade daquele fauno ébrio e daquela
adornando o mármore do aparador. Teria bacante nua, enlaçados na mais exaltada e
também o seu piano de cauda, para tocar completa comunhão carnal.
nas horas felizes um trecho de Mozart ou Embora se desse com muita gente, ape-
de Chopin. nas recebia em casa, vez por outra, uma vi-
Infelizmente, porém, o destino não nos sita discreta quase sempre à noite: a de uma
havia o sonho pela medida das encomen- antiga companheira de repartição, já viúva,
das, sempre nos dando a menos o que lhe com a qual repetia a seu modo a cena da
pedimos a mais. floreira, e que passava no prédio como sua
146   • Josué Montello

irmã por entre o malicioso olhar desconfia- – Há de chegar a hora – dizia, nessas
do do síndico e do porteiro. ocasiões, convictamente, correndo os olhos
Tirando as horas de trabalho na Direto- mansos pelas manchetes dos jornais – em
ria da Despesa Pública, além do tempo gas- que o Exército subirá a Petrópolis para en-
to nas viagens de bonde, o mais de seu dia tregar o governo à família imperial, e não
calmo e despreocupado Jerônimo o passava vai tardar.
no confiado do síndico e do porteiro. Enquanto essa hora não chegava, es-
Tirando as horas de trabalho na Direto- palhava nas folhas de papel pautado o co-
ria da Despesa Pública além do tempo gasto chicho de sua letra extremamente miúda,
nas viagens de bonde, o mais de seu dia informando processos.
calmo e despreocupado Jerônimo o passa- Nas férias, deleitava-se em repetidos
va no apartamento. De manhã muito cedo, passeios às paineiras, senão ia a São Cristó-
ainda com um pouco da escuridão da ma- vão recompor em imaginação, caminhando
drugada, ele próprio preparava o seu café a pé, vagarosamente, o ambiente austero
com a meticulosidade de um ritual. Antes do Paço Imperial.
das dez, chegava-lhe o almoço da pensão, Agora, ali no bonde atulhado de passa-
trazido por um moleque. E à noite, como geiros, após deixar para trás as ladeiras tor-
não jantava desde que fizera quarenta anos, cidas de Santa Teresa, via-se por cima dos
contentava-se com um chá e torradas, já de Arcos, sentindo a cidade a seus pés, e volvia
pijama e chinelos. a experimentar a sensação feliz da vida re-
Nas noites em que telefonava chamando alizada, como se pairasse muito acima das
a viúva, tirava da geladeira o queijo e os frios, agruras do mundo, ao receber no rosto plá-
punha na mesa uma toalha de linho, com os cido e bochechudo o afago da última brisa
respectivos guardanapos, sem esquecer de matinal.
espevitar o pavio das velas nos dois castiçais Graças a Deus, gozava excelente saúde.
de prata portuguesa, ladeando a floreira de Tinha o seu teto, a sua paz e o seu empre-
Sèvres. Enquanto esperava pela companhei- go. Que mais podia almejar? Chegara ao
ra, sentava-se ao piano, para tocar baixinho Rio sem dinheiro, fazia quase trinta anos, e
o bailado das Sílfides ou uma sonata de Mo- subira devagar, degrau a degrau, até à che-
zart, ou punha na vitrola um de seus discos fia de uma seção na Despesa Pública, sem
preferidos, o ouvido atento ao rumor aba- dever favores a ninguém. Sua única irmã,
fado de uns passos de mulher no corredor. educada com muito mimo, monopolizara
Na repartição, era em geral benquisto. desde cedo os desvelos da mãe, que certa-
Suas convicções monarquistas deixavam-no mente agora acabaria de lhe criar os filhos.
à margem das discussões políticas. Obriga- De sua infância, por isso mesmo, conta-
do a votar ao tempo das eleições, votava ria pelos dedos as recordações generosas,
invariavelmente em branco, somente se com as quais o homem teria saudades do
regozijando quando as crises políticas se menino. Se acaso um amigo ou compa-
sucediam, o que lhe proporcionava um ar- nheiro de trabalho, sabendo-o nascido em
gumento a mais em favor da restauração da Salvador, lhe perguntava quando voltaria
Monarquia. à Bahia, limitava-se a erguer os ombros, o
O m o ns t ro  •   147

lábio inferior espichado, num grunhido sur- Ainda bem que, minutos depois, ao aco-
do, que só ele entendia. Voltar para quê? modar-se no seu banco, deu com o velhote
Só se fosse para rever a sepultura do pai. E rosado e magro, que lhe tirou jovialmente
como, para cumprir esse gesto de piedade o boné:
filial, teria fatalmente de ouvir, já de cabelos – Para servi-lo, Senhor Barão...
grisalhos, os inevitáveis azedumes da mãe,
logo arredava de si a ideia da viagem. Para
que aborrecer-se, àquela altura da vida? O A onda de frio que envolvera a cidade,
pai, que muito sofrera, saberia perdoar-lhe. coincidindo com o começo do outono, ti-
No Largo da Carioca, assim que saltou nha feito o termômetro descer, desde a
do bonde, teve de afastar com a mão a in- Véspera, em Santa Teresa, a uma tempera-
sistência do vendedor de bilhetes de lote- tura de inverno.
ria, que se empenhava a todo custo em lhe A noite, mais gelada que o cair da tarde,
oferecer a Sorte Grande, ainda para aquela com o vento úmido a esfuzar pelas frestas
tarde: das rótulas, obrigara Jerônimo a deixar fe-
– É a borboleta, patrão! Vinte milhões! chadas as janelas da sala, enquanto prepa-
O número da sorte! Corre hoje! De noite, rava o seu chá.
o senhor estará rico! Compre, patrão! É só O pijama folgado fazia-o mais gordo,
este que me sobra! Dinheiro certo! Muito com o paletó a lhe dar nos joelhos. Assim
dinheiro! à vontade, os pés nos chinelos de tranças,
Voltou a lembrar a carta da mãe. Só po- parecia também mais velho, movendo-se na
dia ser novo pedido de dinheiro. Que fosse! cozinha espaçosa, onde cada coisa tinha o
Mandaria o que pudesse, contanto que ela seu lugar.
ficasse por lá, ocupada em criar os netos! Quase uma hora levou à mesa, mastigan-
Parou à borda da calçada, chamou o do devagar as torradas depois de tocá-las
vendedor de loteria. com a ponta da faca untada de manteiga,
Durante o resto da tarde, enquanto en- e sorvendo cada gole de chá sem pressa, no
chia as laudas de papel de ofício, com a sua discreto regalo de sua solidão. Em seguida,
letra miúda e limpa, embolsou de cabeça a sentindo-se bem alimentado, levou para a
Sorte Grande, pagou o empréstimo da Cai- cozinha a louça que deveria lavar, guardou
xa Econômica, saldou o resto da hipoteca o açucareiro, a manteigueira e o frasco de
do apartamento, e reservou ainda uma boa geleia como se cumprisse um ritual.
soma para acudir à carta da mãe, na manhã Por fim, de volta à sala, afundou na pol-
seguinte, logo que recebesse o prêmio. trona junto à janela, acendeu o abajur ao
De volta a Santa Teresa, antes de tomar seu lado e ficou a ouvir o vento, sem saber
o bonde, buscou o número da borboleta, se iria ler, para esperar a hora de deitar um
no cartaz que anunciava o resultado da dos velhos Almanaques Laemmert, que se
loteria, no Largo da Carioca. E ali mesmo, perfilavam no tampo da secretária de mog-
desforrando-se do desapontamento no no, ou se volveria à infindável biografia de
gesto irritado, começou a rasgar em peda- Beethoven que os companheiros de reparti-
cinhos o bilhete branco. ção lhe tinham dado pelo Natal.
148   • Josué Montello

Com os braços descansados nos braços e mandar uma ajuda para o enxoval de tua
da cadeira, derramou a vista à sua volta, de- irmã, que casa daqui a dois meses. Manda-
teve o olhar por um momento nos retratos -lhe o dinheiro, e não te esqueças também,
de D. Pedro II e D. Teresa Cristina, que do- seu ingrato, de lhe pedir perdão por teu
minavam a parede à sua frente, e mais uma longo silêncio.”
vez reconheceu que o País seria outro, se O filho não se lembrava, durante anos e
Deodoro não houvesse cometido o erro de anos de espaçada correspondência, ter sido
derrubar a Monarquia. outro o tom das cartas que ela lhe enviara.
– Outros galos nos cantariam! – suspi- Sempre a censura e o pedido de dinheiro.
rou. Agora, de um dia para outro, não podia ter
Afinal, decidiu-se pela biografia. Não mudado.
morria de amores por Beethoven. Preferia – Parece que ela adivinhou – concluiu,
Bach, embora não trocasse este por Mo- caminhando para o consolo – que estou
zart ou Chopin; mas estava interessado em tratando de reformar o meu empréstimo na
conhecer-lhe melhor a vida atormentada. E Caixa.
já ia tirar o livro da estante ao pé da janela, No entanto, assim que rasgou o envelo-
quando se lembrou da carta sobre o consolo. pe, de volta à poltrona, tornou a preocupar-
– É verdade: a carta! -se com o carimbo de urgente em letras ver-
Como não tinha dúvidas sobre o seu melhas adiante do selo. A ideia de que um
conteúdo deixou-se ficar mais uns minutos infortúnio qualquer o esperava atravessou-
na poltrona, distraído em recordar a figura -lhe o espírito. Com a mão trêmula, tirou
do pai, muito pálido, dias antes de morrer, fora a carta, ao mesmo tempo que buscava
arquejante, a abanar-se com um jornal, en- a melhor incidência da luz sobre o papel.
quanto lhe dizia: “Não sei o que será de ti Sem demora, sobrancelhas contraídas, cor-
quando eu fechar os olhos. Deus é grande reu os olhos nas quatro páginas cobertas
e não há de te desamparar.” pela mesma letra espalhada e oblíqua do
Ainda de luto por ele, tinha saído de sobrescrito, lívido, dedos crispados, e dei-
casa à primeira ameaça de pancada, deci- xou cair pesadamente o punho no braço da
dido a abrir o seu próprio caminho, longe cadeira, levantando-se:
da tirania materna. Tinha dezesseis anos, – Valha-me Deus! gritou, fora de si.
não era mais um menino para viver apa- E veio mais para perto do abajur, quase
nhando. E a verdade é que só dera notícias a amarfanhar as duas folhas da carta, no
à mãe cinco anos depois, já empregado na impulso da cólera que lhe arroxeava os lá-
Despesa Pública. A resposta dela ainda hoje bios, os olhos à tona do rosto.
o irritava, teimando-lhe na memória: “Não Mordendo o lábio inferior, narinas cres-
penses que a notícia do teu emprego apa- cidas, sempre a segurar iradamente as bor-
ga o que me fizeste sofrer com a estupidez das do papel, viu confirmada a surpresa
de tua fuga. Dá graças a Deus por estares brutal da primeira leitura, com a sensação
longe de minhas mãos. Do contrário, ia-te nítida de que a mãe alteava a sua voz rouca
às orelhas, para me pagares novos e velhos. ali na sala, falando e gesticulando na letra
O que deves fazer; com a máxima urgência, espalhada que lhe tremia nas mãos: “Sei
O m o ns t ro  •   149

que és um refinado egoísta e só vives para fez sofrer a tua desgraçada irmã (a quem
ti” – dizia ela, num cursivo mais forte, logo Deus dê a merecida paz), para lhe provar
na primeira página da carta – “mas o que que ainda tenho um filho a quem posso re-
te venho pedir é pouco e não há de ser por correr. Não me decepciones, Jerônimo. Tua
muito tempo: quero que me dês uma tábua mãe, que te abençoa, ansiosa por sair desta
para dormir e um pedaço de pão para en- provação. Angélica.”
ganar a minha fome. Aí ao teu lado, moran- Jerônimo passou da ira à estupefação,
do contigo, espero não te ser pesada. Em boca entreaberta aparvalhado. A assinatura
véspera de completar setenta anos, espero da mãe, tomando a página de lado a lado,
que Deus, como justo prêmio a esta vida com uma barra por baixo, traço forte, se-
de sofrimento e incompreensões (sobretu- guida de uma espécie de gancho à feição
do de tua parte), não há de demorar a me de imensa vírgula, recompunha-lhe a figura
chamar para a sua glória, aliviando-te dos magra e alta, grandes mãos transparentes,
incômodos de minha presença na tua casa. nariz pontudo, pescoço longo e fino, e ele
Chorei muito antes de me decidir a esta hu- de pronto a viu entre as paredes que o cerca-
milhação de te escrever. Não era eu, como vam. Assim que ela chegasse, faria sentir-lhe
tua mãe, que devia te pedir um agasalho, o seu gênio. E adeus, paz. Adeus, tranqui-
às portas da morte; eras tu, como filho, que lidade. Nunca mais teria um dia de sossego
devias ter tomado a iniciativa de me abrir os – como um barco na procela ou uma pluma
braços, sabendo que, com a morte de tua na ventania.
irmã, fiquei aqui sem ninguém. Meu genro, Depois, cedendo novamente ao impulso
ainda cheio de vida, não tardará a procurar da cólera, abriu e fechou a mão, sucessi-
outra mulher, e eu não quero, com a minha vas vezes, até reduzir a carta a uma bola
presença aqui, ser para ele um trambolho. de papel rasgado, e a arremessou no tape-
Por outro lado, não tenho mais paciência te do chão, quase ao mesmo tempo que
para aturar menino, e meus netos, sobretu- afundava na poltrona, os olhos crescidos,
do o menor, são uns verdadeiros demônios, sempre a imaginar o que ia ser de sua vida
feitos de encomenda para me atormentar. com a mãe ali dentro. Aos poucos, como se
Se tiveres um minuto de hesitação em me juntasse devagar os pedaços de si mesmo,
dar o merecido amparo (bem sei que sem- endireitou o corpo na poltrona, chegou a
pre pensas primeiro em ti e depois nos ou- cabeça para cima, deu firmeza às mãos nos
tros), lembra-te que foi com dores que eu braços da cadeira, reagindo à desorientação
te trouxe ao mundo. És um homem rico. que o atordoara:
Não hás de querer que esta pobre velha – – Aqui, não! De modo algum! replicou,
sou tua mãe, Jerônimo! – estenda a mão à falando em voz alta para si próprio – É mi-
caridade pública. Fico esperando o dinhei- nha mãe, reconheço, mas não nos enten-
ro para a passagem. E manda mais alguma demos. Ela tem um gênio, eu tenho ou-
coisa, para outras despesas da viagem. Por tro. Foi por isso que saí de casa. Além do
favor, não te mostres novamente sovina. mais, somos dois estranhos. Há quase trinta
Preciso esfregar um gordo maço de cédulas anos que não nos vemos – ela lá, eu aqui.
no nariz do senhor meu genro que tanto Nesta idade, não posso me submeter aos
150   • Josué Montello

caprichos dela; nem ela aos meus. Seria um planta dos pés, que Jerônimo encontrou,
inferno! Juntos, não podemos ficar! simultaneamente, as chinelas de trança e
Pôs a andar, nervoso, da sala para a a solução do problema da véspera. E tudo
cozinha, batendo com o punho direito na lhe pareceu muito simples, à claridade des-
palma da outra mão, a procurar debalde ta inspiração feliz deixaria de responder à
uma saída. Com deixar a mãe em Salvador, carta da mãe, como se não a houvesse re-
já em luta aberta com o genro? E como fu- cebido.
gir ao encargo de recebê-la, se era agora o – Cartas registradas, e urgentes – racio-
seu único filho? Pensou colocá-la num asilo cinou, levantando-se, fisionomia risonha, a
de velhos, depois numa irmandade, por fim dar o laço no cordão do pijama – também
num pensionato, e logo mudou de ideia, se extraviam...
reconhecendo que a mãe, em hipótese al- Entre o quarto e o banheiro, voltou a
guma, aceitaria essas soluções. anuviar o rosto, aproximando as sobrance-
– É capaz de fazer um escândalo dos lhas, com uma pontada nas têmporas. De
diabos, indo até aos jornais dar entrevistas que adiantava deixar de responder a carta,
contra mim! – exclamou. se a mãe não lhe daria sossego, insistindo
O medo de seu nome impresso, com a com outras e passando ainda rádios e tele-
pecha de mau filho, fê-lo parar à entrada da gramas, no mesmo tom agastado e ríspido,
sala, olhos arregalados, um suor frio a lhe até se ver atendida?
descer pelas têmporas. E logo se viu apon- Depois de escovar os dentes e banhar
tado nas ruas e execrado pelos companhei- o rosto, começou a barbear-se defronte
ros de repartição: do pequeno espelho sobre a pia. E nisto a
– Valha-me, Deus! Que horror! lâmina afiada, resvalando pela camada de
Correu ao armário de remédios em bus- creme, fez um filete de sangue apontar na
ca de um calmante. No espelho do banhei- espuma, por baixo da papada que lhe en-
ro, deu com seu rosto devastado, a barba grossava o pescoço:
a apontar, os olhos pisados, um vinco mais – Não respondo a carta nem mando o
forte nos cantos da boca. E receou ter o dinheiro! – decidiu-se, adiantando a ponta
mesmo destino do pai, vítima de sucessivas da toalha para comprimir o ferimento.
amarguras, com o coração a doer, as costas E à medida que o rosto escanhoado en-
apoiadas no travesseiro, arquejante, sem trou a aparecer no espelho, com o fio da
poder dormir. navalha a remover-lhe a camada de espu-
Felizmente o calmante lhe fez bem. E ma, Jerônimo firmou no espírito a sua de-
quando voltou a ouvir o vento, no seu largo terminação. Em hipótese alguma enviaria
leito D. João V, a primeira nesga de sol mati- dinheiro à mãe, ainda que recebesse chuvas
nal, coada pelas vidraças da sala, começava de cartas e telegramas! De início, fechar-
a diluir as sombras do quarto. -se-ia em silêncio como se não houvesse
recebido a primeira carta. Depois, caso a
mãe insistisse, dir-lhe-ia que, no momento,
Foi sentado à borda da cama, no mo- ainda estava pagando as dívidas contraídas
mento de tatear o tapete do chão com a com a doença e o funeral da irmã.
O m o ns t ro  •   151

– Ela que vá ficando por lá, tomando com as figuras excitantes de um baralho
conta dos netos – rematou, umedecendo o francês, que tirava de uma das gavetas da
rosto com a loção. secretária de mogno para a claridade sensu-
E o certo é que, às dez e meia, ao to- al de uma das lâmpadas da alcova.
mar o seu bonde costumeiro, voltou a sorrir No domingo, já com a tarde a esmore-
para o cobrador, que lhe tirava o chapéu cer, estava ele sentado ao mano, para tocar
chamando-o de Barão: uma das sonatas de sua predileção, quan-
– Obrigado, amigo, obrigado. do a campainha da porta, premida com
Uma semana passou, mais outra, e ou- inusitada violência, começou a tocar estri-
tra mais, sem que D. Angélica, habitual- dentemente, como se o dedo que a calcava
mente desensofrida, voltasse a afligir o filho estivesse decidido a só afrouxar a pressão
com nova carta patética. impaciente quando viessem atender.
– Era fogo de palha – admitiu Jerônimo. – Um momento, um momento – gritou
E sua vida continuou a fluir à maneira de Jerônimo, caminho do corredor.
um riacho escondido que não se despenha Àquela hora, não podia ser o carteiro.
em grandes quedas nem transpõe grandes Era telegrama da mãe! – concluiu. E logo o
obstáculos, rolando serenamente para o medo que D. Angélica lhe inspirava, repri-
mar. Tudo à hora certa como o nascer e o mido por tantos anos de separação, refluiu
pôr do sol. à tona de sua consciência, levando-o a atra-
Na última quinta-feira, a antiga com- palhar-se com os chinelos, ao mesmo tem-
panheira de repartição viera vê-lo, pouco po que um começo de tremor se apoderava
depois do cair da noite, e enchera a casa de sua gorda mão cabeluda no momento
com a suavidade de seu perfume, de que de segurar a maçaneta da porta.
impregnara sobretudo os lençóis da cama, – Já estou abrindo – gritou dando volta
ainda machucados com as repetições ar- à chave, irritado com a estridência contínua
dentes da cena da floreira. da campainha.
– Ah, que delícia de mulher! – reconhecia E deu com uma senhora alta, magra,
Jerônimo, recordando no canto da poltrona cabelos grisalhos penteados para o alto da
o regalo de sua nudez confiante enquanto cabeça e presos por um pente de tartaru-
Stravinski espalhava na sala os compassos vi- ga, rosto comprido, olhos empapuçados,
brantes da História do Soldado. – Não quero abotoada num costume preto, ainda com a
outra! Nem há outra igual! – acrescentava, a mão agressiva no botão da campainha.
espreguiçar-se, esticando as pernas. – Não me venhas dizer que não sabes mais
Até nisso fora feliz. Além de retraída e quem sou eu – disse ela, numa voz áspera,
discreta, a Noraldina não lhe dava cuidados: deixando cair o braço que torturava o botão.
sempre que a desejava, ia ao telefone, cha- E Jerônimo, lívido, quase sem fala:
mava-a, e ela não tardava a empurrar a por- – Mamãe! A senhora?
ta do apartamento, discretamente, pisando Ela demorou uns momentos a olhá-lo
de leve os ladrilhos do corredor. dos pés à cabeça.
Enquanto esperava por ela, ouvido aten- – Ainda bem que me reconheceste. Eu é
to ao ranger da porta, Jerônimo se distraía que acabo de levar um susto contigo. Estás
152   • Josué Montello

um velho, Jerônimo. Mais velho do que eu. tua mãe. Hem, Jerônimo, por que não me
Velho e acabado. Um verdadeiro caco. respondeste?
E mudando de tom: Jerônimo, repentinamente apavora-
– Mas não vamos ficar aqui no corredor do, com receio de que a mãe desse com
a olhar um para o outro! Minha mala está os olhos na floreira de Sèvres, postara-se
ali no carro. Por favor, trata de pagar o táxi. diante da mesa, escondendo com o corpo o
Deu um passo para dentro do aparta- fauno e a bacante, e torcia as mãos úmidas,
mento, pisando forte, e logo parou, olhan- com um suor frio a empapar-lhe as costas
do para um lado e para outro, procurando do pijama.
orientar-se, enquanto o filho, atordoado e E D. Angélica, mais irada:
obediente, corria para a porta do edifício, – Hem, Jerônimo: por que não respon-
com a sensação de ter sido apanhado em deste minha carta? Anda, fala!
cheio por uma rajada. Jerônimo, com esforço, levantou a ca-
Quando Jerônimo entrou, vergado ao beça:
peso de uma imensa mala de couro, D. An- – Quem lhe disse que não respondi?
gélica, parada ao centro da sala, olhava à Respondi, sim senhora – mentiu, sustentan-
sua volta, com o lornhão de madrepérola do o olhar.
por cima do nariz comprido. E assim que – E a resposta foi registrada?
viu o filho: – Registrada – confirmou ele.
– Já me tinham dito que moravas num – E onde está o recibo?
palácio. Estou vendo que não mentiram. – Acho que botei fora.
Meus parabéns. Sim senhor. Meus para- D. Angélica atirou a cabeça para trás,
béns – repetiu, cerrando os dentes – E eu, sacudida pelo riso ferino, e logo endireitou
tua mãe, lá na Bahia, morando de favor na o corpo, exaltando-se:
casa do genro, sem o menor conforto, dor- – Aí está a prova de tua mentira, Jerô-
mindo no duro colchão de uma cama tur- nimo! Não tens recibo nenhum. Eu te co-
ca, enquanto o senhor meu filho, instalado nheço, e não é de hoje. Sei do que és ca-
aqui como um nababo, se fazia de surdo paz, com o teu egoísmo! Por ti, eu ficava
aos apelos desta pobre velha que lhe deu a mesmo na Bahia, torturada pelos netos e
vida! Sim senhor! Sim senhor! desfeiteada pelo genro até exalar meu últi-
Continuou a esmiuçar a sala por mais mo suspiro!
alguns minutos, a testa franzida, muito sé- Jerônimo, sempre a esconder a florei-
ria, como interessada nos quadros, móveis e ra, contraiu as sobrancelhas, os braços por
bibelôs em seu redor, e de repente se voltou cima do peito:
na direção do filho, fuzilando olhar azul por – Por favor, não comece brigando – pe-
trás das lentes: diu. – Assim, como podemos viver juntos?
– Por que não respondeste minha carta? – acrescentou, subindo um pouco a voz.
Ainda bem que eu tomei o cuidado de exi- D. Angélica formalizou-se:
gir de volta o recibo do registro. Do contrá- – Que é que pretendes insinuar? Se não
rio, vinhas atirar a culpa ao correio, como se me queres aqui sê franco, para que eu te dê
não houvesses recebido as linhas aflitas de a merecida resposta.
O m o ns t ro  •   153

Jerônimo fechou ainda mais o rosto, de desagrado – muito contra a minha von-
torcendo o cabelo das sulcas com a mão tade. Com o tempo – advertiu, franzindo
irritada: enojadamente o nariz – vamos dar um jeito
– A senhora não é criança, eu também neste apartamento. Para palácio pode ser
não sou. Acalme-se, e pare com as suas re- muito bonito, com tantos cacarecos – mas
criminações que de nada adiantam. não para se morar.
D. Angélica encordoou as veias o pesco- Jerônimo tinha corrido à sala para es-
ço, gesticulando: conder a floreira. E agora de volta a alcova,
– Quem tem o direito de se irritar nesta com as mãos atrás das costas, via a mãe
nossa conversa – sou eu. Eu é que fui destra- apossar-se de seus aposentos parado na
tada pelo teu silêncio. Não sou ingênua para moldura da porta, cada vez mais atônito e
deixar de saber que não me queres aqui. Mas alarmado.
o teu dever como meu filho, é me receberes De noite, quando viu o filho acomodar
na tua casa, assim como a minha obrigação, um travesseiro na marquesa de palhinha da
como tua mãe, é ficar perto de ti. Não me sala, para ali passar a noite, D. Angélica es-
respondeste a carta para não me mandares cancelou os olhos espantados:
o dinheiro da passagem, pensando que com – Tu vais dormir nesse sofá, Jerônimo?
isso te livrarias de mim. Pois te enganaste Então tu não sabes que é aí que se deita de-
mais uma vez, Jerônimo. Diante do teu egoís- funto, lá na Bahia? Não, tem paciência: não
mo fiz valer o meu espírito de sacrifício: vendi me venhas com esse mau agoiro. Amanhã
minhas joias, paguei minha passagem, fiquei mesmo, manda esse sofá embora; o que
sem nada – mas aqui estou. fica bem aí é um sofá-cama, desses moder-
E espichando o olhar para o corredor: nos que se abre de noite e fecha de dia. Se
– Não vamos gastar mais tempo em não quiseres comprar, compro eu, pagan-
palavras: Qual é o lugar de minha mala? E do em prestações, com a mensalidade que
onde é que eu vou ficar? naturalmente hás de me dar. Mensalidade,
aliás, que não será favor, porque vou tomar
conta da casa.
Os dois quartos amplos, ligados por um E na manhã seguinte, ao dar com o re-
grande arco, formavam praticamente uma trato de Pedro II na parede da sala, a velha
só peça com a cama D. João V, o guarda- levou uns momentos a examinar-lhe a figu-
-roupas, a cômoda, o oratório barroco, uma ra, enquanto Jerônimo, trombudo, depois
arca de couro, duas cadeiras coloniais, e foi de tomar um comprimido para a dor de
ali que se instalou D. Angélica, não sem an- cabeça que lhe fazia pulsar as têmporas, re-
tes franzir nariz: moía a sua ira da noite em claro, simulando
– De onde te veio esta mania de só ter arrumar papéis na secretária.
em casa coisas velhas? De mim não foi. Te- – Quem é este barbudo de olho azul?
nho horror a velharias e cacarecos. Velhice, Jerônimo não respondeu.
basta a minha, e assim mesmo – pilheriou, – Precisas com urgência examinar esse
sempre a esmiuçar em seu redor com as len- teu ouvido, Jerônimo: estás ficando surdo.
tes do lornhão numa expressão crescente Responde: quem é este barbudo?
154   • Josué Montello

– É o Imperador. Pelo meio da tarde, chegou a levantar a


D. Angélica assestou o lornhão para a voz para o contínuo que lhe viera pedir, em
velha senhora ao lado de Pedro II: tom macio, o visto na folha de pagamento:
– E esta velha, já sei, é a Imperatriz. Bo- – Ponho quando quiser! Agora não!
nita lembrança – troçou, numa voz gaiata Ninguém manda em mim!
– o Imperador e a Imperatriz. Feios como a Daí a pouco, porém, caindo em si, cha-
necessidade. E no melhor lugar da sala! Sim mou o contínuo, assinou a folha, e ainda
senhor! Bonita coisa! Depois, quando eu lhe deu uma gorjeta pelo café, sem desfa-
falo, é porque sou linguaruda. Os retratos zer a fisionomia trombuda – a mesma fisio-
do Imperador e da Imperatriz, que nunca nomia com que saiu à rua, já ao apontar da
te viram mais gordo, no lugar de honra do noite, passo arrastado, caminho da estação
apartamento! E o meu retrato e o retrato de bondes no Largo da Carioca.
de teu pai? Em lugar nenhum. Assim é a Que novas tribulações esperariam por
vida. Pois fica sabendo que eu e ele devía- ele em Santa Teresa? De cabeça compôs a
mos estar aqui, no lugar dessa velha e des- nova noite na marquesa da sala, a revolver-
se velho. Fomos nós que te demos a vida, -se na palhinha e no travesseiro, sem con-
Jerônimo. Não sejas mal-agradecido. Fui eu seguir acomodar o corpo, enquanto a mãe,
que te carreguei na minha barriga, e aturei estendida no fofo aconchego do colchão
o teu choro, e aguentei o teu sarampo e de paina, na larga cama D. João V, dormiria
a tua catapora. E teu pai, coitado, gemeu feliz, depois de maquinar outros azedumes
com todas as despesas. Depois de tudo isso, para o dia seguinte.
que é que acontece? No lugar de honra da De noite, à mesa do jantar, D. Angélica
sala – o retrato do Imperador e o retrato da retraiu o busto para o espaldar da cadeira,
Imperatriz! com o lornhão à altura dos olhos faiscantes:
Suspirou, deixando cair os braços: – E tu achas, Jerônimo, que eu, nesta ida-
– Ah, vida! Ah, mundo! de, vou passar a chá e torradas? Não senhor!
Jerônimo não esperou pelo almoço para Quero encher o estômago com um jantar ver-
sair. Almoçou numa pensão da Rua da As- dadeiro. Preciso me alimentar como sempre
sembleia, engolindo com esforço as garfa- me alimentei. Se estivesses na miséria, está
das, e dali foi a pé para a repartição, arra- aqui quem não abria a boca. Mas, rico como
sado, vencido, sem saber agora que ia ser és, e sem ter a quem deixar a tua fortuna, só
de sua vida. mesmo por uma crueldade me farias dormir
Durante toda a tarde não saiu da mesa, com fome. Tem paciência, Jerônimo. Não me
curvado sobre o mesmo processo, a pena obrigues a bater na porta dos vizinhos para
apontando o papel, a mão esquerda segu- pedir um pouco de comida!
rando a cabeça latejante. A noite de insônia Ainda nessa noite, já mais apaziguada,
no sofá de palhinha deixara-lhe um gosto de volveu a implicar com a marquesa da sala,
fel na boca, rugas mais fundas e uma palidez depois de sorrir de modo zombeteiro para o
amarelada de convalescente, além de ardor retrato da Imperatriz:
nos olhos e dores no corpo, que lhe tiravam – Passei a tarde pensando na morte. E
a disposição habitual para o trabalho. sabes por quê? Porque a todo momento me
O m o ns t ro  •   155

via olhando esse sofá. Ah, Jerônimo, não – Foi para este senhor. E ele quer com-
queiras chegar à minha idade. Estou velha, prar tudo, Jerônimo! – a mesa, as cadeiras,
sei que não ficarei muito tempo neste pla- os retratos dos velhos, os santos, a arca,
neta, mas não quero passar o dia a me lem- a cama, os pratos das paredes, o piano, a
brar da morte, com esse móvel de defunto escrivaninha, e paga à vista! Bem que eu
aqui na sala. Pelo amor de Deus, Jerônimo, estava inclinada a fechar o negócio. Mas
dá um sumiço nesse sofá! achei que era melhor falar antes contigo.
E volvidos dois dias, como Jerônimo tar- Aproveita, meu filho! Outro bobo, disposto
dasse tomar uma providência para tirar da a levar tudo, garanto que não encontras.
sala o móvel fúnebre, D. Angélica, na au- Além de te livrares destas velharias, montas
sência do filho, chamou o primeiro antiquá- um apartamento em condições, com o bom
rio que encontrou na lista telefônica, e fez a gosto de tua mãe.
Jerônimo, de volta do trabalho, uma terrível Quase verde de cólera, Jerônimo apa-
surpresa: no lugar da marquesa de palhi- nhou o cartão, deu às costas à velha, sem
nha, um sofá-cama de pau-marfim exibia o uma palavra, e em silêncio saiu à rua, depois
mau gosto de seu couro escarlate. de bater a porta com estrondo, desapare-
A velha, feliz, assim que o filho entrou cendo na noite fria. Só regressou bastante
na sala, tomou posição para contemplar a tarde, acompanhado por um carregador,
sua obra, assestando o lornhão na direção que trazia de volta a marquesa de palhinha.
do sofá: E após recolhê-la ao depósito de trates
– O ambiente ficou outro, Jerônimo. do edifício com a ajuda do porteiro, disse
Mais alegre. Mais vivo. Dando gosto para à mãe, que o interrogou com o olhar por
se ficar aqui. cima dos óculos, na poltrona da sala, assim
E Jerônimo, com um brilho sinistro no que o viu chegar:
olhar, após longo silêncio, o pomo de adão – O móvel que a senhora vendeu por
a subir e descer: uma ninharia e que eu acabo de reaver com
– O que foi que a senhora fez do sofá? o auxílio da polícia, levei anos para comprar.
– Passei-o adiante, ora essa! Sempre tive E sabe a quem pertenceu? Ao Barão de Sa-
tino para negócio. Com o que apurei por quarema!
aquela almanjarra, já paguei a primeira pres- D. Angélica, sem se impressionar com a
tação dessa maravilha. E eu que estava resol- revelação do filho, continuou a olhá-lo no
vida a dar de graça o teu móvel de defunto! rosto, sem deixar de mover as agulhas de
Jerônimo contraía os maxilares, sofre- seu tricô:
ando a ira. E depois de outro silêncio, mais – E eu sou capaz de apostar contigo que
vermelho de cólera: foi nele que espicharam o Barão quando
– Veja se se lembra a quem foi que ven- morreu. Tu precisas acabar com essa mania,
deu o sofá. Jerônimo. Isso em ti é doença. Procura um
D. Angélica, lépida, na ponta dos pés, médico enquanto é tempo.
apanhou um cartão de cima da secretária, Jerônimo, de tão nervoso, pôs-se a
e o exibiu triunfante, a fisionomia risonha- amassar com ambas as mãos o chapéu, uma
mente aberta: chispa estranha nos olhos empapuçados:
156   • Josué Montello

– Tudo quanto eu tenho aqui, fique a – Que é que há com o meu amigo? Não
senhor sabendo – afirmou no mesmo tom é de hoje e que lhe sinto a mudança. Algu-
ríspido – é de muitíssimo valor. Todas estas ma coisa lhe aconteceu.
peças são autênticas, ouviu? Jerônimo bateu-lhe no ombro, reconhe-
– Ouvi. Não sou surda. cido:
E ele ainda exaltado: – A vida não é como a gente quer – sus-
– Tive de trabalhar muito para pagar pirou.
tudo isto. Só eu sei quanto estas coisas me Estava mais magro, o corpo a dançar
custaram. Por favor: não tire mais nada da- dentro do paletó, ar vencido, as mãos apoia-
qui. É uma caridade que a senhora me faz. das no cabo do guarda-chuva, o chapéu des-
Angélica suspirou, levantando os peitos: cido até às orelhas.
– Nós, na Bahia, a levar uma vida de Muito cedo, saía à rua. E só voltava tar-
apertos, e tu aqui a gastar uma verdadei- de da noite ralado de desgostos, arrastando
ra fortuna em cacarecos! Dá graças a Deus o passo no aclive da ladeira. Adeus, noites
por me teres agora a teu lado, Jerônimo. E calmas de inverno, com o vento úmido a
ouve bem o que vou te dizer: se me apare- gemer lá fora, e ele a ouvir Mozart e Cho-
ces mais aqui com uma só destas velharias, pin, gozando o fumo de seu cachimbo.
jogo tudo isto pela janela, tenha ou não te- Adeus, tardes de sábado a repassar na me-
nha valor. Precisas aplicar o teu dinheiro em mória a nudez da Noraldina, já com as velas
coisas úteis. Não vais fazer mais nada agora nos castiçais para a ceia noturna, o ouvido
sem me ouvir! atento ao rumor cauteloso de seus passos
Depois, sempre a olhar por cima dos no corredor.
óculos, inspecionou à sua volta, rosto fe- E enquanto ele se deixava abater, cada
chado, até se deter por uns momentos na vez mais enfezado e sucumbido, D. An-
parede fronteira, adornada pelos retratos gélica transbordava de felicidade e saúde,
de D. Teresa Cristina e Pedro II: como se a nova vida lhe houvesse restituído
– Eu não quero ser desmancha-prazeres – em grande parte a lepidez da juventude.
advertiu, voltando a fitar o filho. – Se não po- Levantava-se bem-disposta, cantarolava na
des viver sem estes horrores, está aqui quem cozinha preparando o café, e ria, e falava
não te fará morrer. O que aqui está pode ficar. sozinha, e pilheriava com o filho, assim que
Só não consinto é que aqueles dois velhos Jerônimo, arrastava as chinelas, caminho do
passem o dia inteiro me olhando. Tira eles banheiro, a reprimir os queixumes da noite
dali, Jerônimo. Por aqueles dois, eu não me mal dormida:
responsabilizo. Ou escondes esses velhos, ou – Estás tão velho que há quem pense,
eu dou um sumiço neles – e a meu jeito. aqui no edifício, que és meu pai – zombava
ela, acompanhando a mordacidade do re-
paro com um risinho miúdo. – Quando te
O velhote rosado e magro, depois de levantas da cama, assim barbado, só não
tirar o boné, na vênia de todos os dias, me metes medo, porque já me acostumei
aproximou-se de Jerônimo, no balaústre do contigo. Como estás medonho! Medo-
bonde, recolhendo o sorriso: nho e acabado. Teu pai também era feio,
O m o ns t ro  •   157

reconheço, mas não chegava a teus pés. tentando ler em vão o jornal da tarde. Por
Não sei a quem foi que saíste. fim, sentindo silêncio na sala, saiu do ba-
Trancado no banheiro, Jerônimo abria a nheiro, rosto mais carrancudo.
ducha para abafar a voz da mãe no ruído da – Já sei que estás pegando fogo porque
água caindo. encontraste visita em casa – acudiu D. Angé-
– Precisas me deixar um pouco mais de lica, ao vê-lo passar calado, cabeça baixa. –
dinheiro para as despesas da casa – recla- Querias que eu vivesse trancada aqui, a con-
mava D. Angélica, à hora do café, com a versar com as paredes, enquanto passas o dia
insistência de uma mortificação. O que me na cidade, gozando as delícias da rua? Posso
dás não chega. E eu não estou aqui para saber que crime cometi, para permanecer in-
fazer milagres. comunicável nesta prisão? Pois fica sabendo
– Já sei, já sei – resmungava Jerônimo, que a condenada reconquistou a liberdade.
mais irritado, abrindo de ímpeto a carteira e Acabou-se o cativeiro, Jerônimo! Não me
tirando fora outras cédulas. – Aqui tem mais. fazes mais de boba. Tudo quanto me disses-
E arrastava a cadeira, saindo da mesa. te dos nossos vizinhos é mentira. A D. Lola,
Todo o seu ordenado era consumido ago- aqui do lado, não é a megera que me pin-
ra nas despesas da casa, sem nada lhe sobrar taste. Nem a D. Binoca, do segundo andar,
para o costumeiro depósito da Caixa Econô- é amigada com o Major: são casados, e bem
mica, com o qual refazia, todos os meses, o casados, Jerônimo. Quem te meteu na ca-
seu sonho de uma viagem à Europa quando beça que o velho Lobão tem um crime de
se aposentasse. morte nas costas? E como foi que soubeste
Como não tinha o que fazer até à hora que a Alzirinha do terceiro andar não é flor
da repartição, perambulava por quase toda que se cheire? Tudo mentira, Jerônimo! E
a manhã nas ruas da cidade, as mãos en- mentira saída de tua cabeça, para eu não me
terradas nos bolsos laterais do paletó, ou dar com ninguém aqui no edifício! O que tu
permanecia num banco de jardim, cigarro querias era ter a tua mãe em cárcere privado,
no canto da boca, a remoer em silêncio a como se eu fosse uma doida ou uma crimi-
amargura de sua vida arruinada, para a qual nosa! E para quê? Para ver se eu assim mor-
não via um remédio ou uma solução. ria mais depressa! Mas a mim não enganas,
– Que é que eu faço, meu Deus? – in- Jerônimo. Hoje tirei tudo a limpo!
terrogava, de si para si a olhar a brasa do Jerônimo, sentado à secretária, de cos-
cigarro, soprando a fumaça. tas para a mãe, ainda de paletó, comprimia
Uma noite, de volta a Santa Teresa, ao os lábios, no esforço para se conter, as mãos
abrir a porta do apartamento, ouviu vo- trêmulas apanhando a esmo pequenos ob-
zes na sala. Ficou à escuta, intrigado. Não jetos, que logo abandonava.
querendo entrar no quarto, para não olhar De repente, levantando-se, deu um
as modificações que a mãe havia feito ali, murro na mesa:
trancou-se no banheiro, à espera de que a – Por favor, pare com isso!
visita fosse embora. E D. Angélica, aproximando-se:
De paletó e gravata, permaneceu qua- – Quando foi que te ensinei a gritar co-
se uma hora sentado no tampo da privada, migo? Não penses que tenho medo de teus
158   • Josué Montello

gritos! Ainda sou muito mulher para te ar- a velha, instalada na poltrona, e munida de
rumar um pau na cabeça e te obrigar a me barulhento rádio de pilha, erguia a voz de
respeitar! contralto por cima da do locutor da música
Parou a um passo da secretária, as veias popular, repisando os seus antigos azedu-
do pescoço engrossadas, olhos fuzilantes, mes, sempre a mover as agulhas do seu tricô.
medindo o filho. Foi numa dessas ocasiões que ela per-
– De agora em diante – prosseguiu, ven- guntou ao filho:
do Jerônimo afundar na cadeira, submisso – Jerônimo, diz-me uma coisa: que irmã
– recebo aqui quem eu quiser. Se o teu pro- era essa que vinha de vez em quando aqui
pósito era me enlouquecer nesta solidão, te visitar?
podes mudar de ideia. E não penses tam- Jerônimo simulou não ter escutado,
bém que me botas para fora de casa com o ao mesmo tempo que se punha a arrumar
teu egoísmo. Daqui, só para o cemitério. E apressadamente os papéis no tampo da
não há de ser tão cedo! mesa, vermelho, uma sensação de ardor nas
O apartamento, outrora tão quieto, daí orelhas e na raiz dos cabelos, olhos baixos.
por diante não teve mais sossego, com a – Não finjas que não estas me ouvindo
frequência dos vizinhos. Volta e meia ba- – volveu D. Angélica, diminuindo o volu-
tiam à porta, solicitando o empréstimo de me do rádio e sustando o movimento das
utensílios caseiros, e até mesmo de artigos agulhas.
de cozinha, ou pedindo licença para usar o – Que irmã era essa que vinha aqui te
telefone. E D. Angélica, sorridente, a dizer visitar, antes de minha chegada? – insistiu,
que sim, muito prestativa. num tom mais firme, a olhar o filho por
Sábado à tarde, a velha reunia à mesa cima dos óculos.
da sala as novas amigas, num biriba anima- Jeronimo atirou os papéis numa gaveta,
do e ruidoso, que lhe dava ao rosto compri- girou depressa a chave, mais vermelho, ore-
mido uma tonalidade sanguínea de saúde. lhas em fogo.
E o jogo entrava pela noite, enquanto Jerô- – Estou esperando que me respondas
nimo, entediado da rua e com a repartição – volveu a velha, chegando o corpo magro
fechada, permanecia numa cadeira da cozi- para a borda da poltrona.
nha, reprimindo a vontade de entrar na sala E ele, a perguntar a si mesmo, com os
para expulsar dali os importunos com uma olhos apertados, qual teria sido a vizinha
estralada de todos os demônios. que viera pôr nos ouvidos da mãe as visitas
– Dá-me paciência, meu Deus! – gemia da Noraldina.
ele, apertando a cabeça entre as mãos, com – Deixe-me em paz – suplicou.
receio de praticar um desatino. – Já começas a que fugir da pergunta.
E quase seis meses durava já o seu tor- Não se trata de te deixar em paz. Quero
mento, sem um dia de paz, sem uma hora apenas que me esclareças um mistério que
de alegria. Aos domingos, por não saber desde ontem está me intrigando. Até onde
como empregar as horas vadias do dia inter- vai minha memória, eu só dei à luz dois fi-
minável, ensaiava concentrar-se nos papéis lhos: tu e a Creusa. Teu pai, que conhecia
da secretária, de costas para a mãe. Logo a mulher com quem tinha casado, nunca
O m o ns t ro  •   159

ousou me trair, nem era homem para ter Da secretária passara à estante, face
filho fora do lar. Agora, pergunto: se teu pai afogueada, e fora aos livros, numa inspe-
não me enganou na rua nem eu dei à luz ção de afogadilho, adivinhando orgias e
por conta própria, onde foste encontrar a bacanais nas palavras estranhas que não
tal irmã que vinha aqui te visitar? Sim se- conseguia entender. Volvera ainda uma vez
nhor, Jerônimo: irmã. Pelo menos ela passa- à secretária, apoderando-se do maço de
va aqui no edifício como tua irmã. cartas, e lera-as uma a uma, ali na poltrona
Jerônimo franziu a testa: da sala, por entre exclamações e esconju-
– Já lhe disse que me deixasse em paz – ros, tomada de uma alegria estranha e má,
voltou a pedir. que lhe aguçava as pupilas com um brilho
– Quem precisa ficar em paz sou eu, de triunfo, ante as provas manuscritas das
Jerônimo – replicou D. Angélica, fechando devassidões do filho ali no apartamento.
ainda mais o cerco. – Fiz uma pergunta, – Que porco! Que grandíssimo porco!
quero uma resposta. Tu aumentas a família E à noite, daí por diante, ao recolher-se
por tua conta e risco, envolvendo a minha para dormir, não se limitava a encostar a
reputação ou a reputação de teu pai, e não porta do quarto: depois de duas voltas na
quer eu tire a limpo o que foi que aconte- chave, experimentava a fechadura.
ceu? Não senhor. Tens de pôr o preto no – Vamos: responde! – tornava a dizer
branco. Vamos: responde! agora a Jerônimo, a olhar-lhe as costas
Durante três dias a velha soubera repri- abauladas que se curvavam sobre a escri-
mir-se, à espera do momento melhor para vaninha.
interpelar o filho. E agora as mãos ossudas Jerônimo, depois de um momento de
nos joelhos, fisionomia tensa, não desviava hesitação, cerrou com estrondo o tampo
o olhar duro de Jerônimo, que se curvara da secretária. Depois, como já estava pron-
mais sobre a mesa, ombros e ar da figura to para sair, atravessou rapidamente a sala,
encolhidos. para apanhar o chapéu no cabide do cor-
Na última quarta-feira, ao ensaiar uma redor.
nova arrumação dos móveis da sala, D. An- – Com esse teu ar de puritano – atalhou
gélica havia encontrado por trás de um ar- prontamente D. Angélica, levantando-se
mário a floreira obscena. também, antes que o filho lhe escapasse –
– O que é isto? – interrogara, agachan- levavas aqui uma vida de devassidão. Os de-
do-se. – Oh. Que horror! Valha-me Deus! pravados não eram os teus vizinhos – eras
E estimulada pela curiosidade malsã, en- tu! Tu, Jerônimo! Tinhas aqui uma floreira
trara a revolver as gavetas da secretária, certa indecente, que já reduzi a farelos, e um ba-
de que iria encontrar outros testemunhos da ralho imoral, que piquei e botei na lata do
indecência de Jerônimo. E retraiu-se, olhos lixo! Tinhas ali nas gavetas uma porção de
esbugalhados, quando descobriu, debaixo cartões medonhos, que me arrepiaram os
de um maço de cartas, o baralho francês. cabelos, e umas cartas e bilhetes, que me
– Que horror! É inacreditável! – voltara deixaram de queixo caído. Um horror, Je-
a exclamar, mão espalmada sobre o rosto, o rônimo! E como se tudo isso não bastasse,
olhar coado por entre os dedos. ainda recebias no teu apartamento uma
160   • Josué Montello

vagabunda que fazias passar aqui como tua centrais do Passeio Público para ler o seu
irmã. E para quê, Jerônimo? Para verdadei- jornal.
ras bacanais! Ali, rodeado de altas árvores, a dois pas-
Jerônimo alargou o passo, já com a mão sos da pequena ponte de cimento, sobre
estendida para abrir depressa a porta. E da um laguinho sem água, tinha um pouco
janela da rua, quando ia descendo a calça- de paz nas primeiras horas da manhã. Em
da, ainda ouviu a mãe sussurrar-lhe pela breve, porém, o bulício da cidade crescia
fresta de uma das rótulas: nas ruas circunjascentes, com o estridor das
– Além de devasso – incestuoso! buzinas, os deslizar dos carros no asfalto e
a música das lojas, e esses rumores vinham
até o seu refúgio, por entre o espaçador ba-
Mas foi em dezembro, quando princi- ter de um sino com a torre do relógio fron-
piou a animação da cidade para as festas do teiro dava as horas.
Natal, que Jerônimo sentiu ainda mais a mi- Ultimamente, para atenuar os seus de-
séria e o desespero de sua condição, a ponto sesperos, recorria ao tranquilizante que um
de supor, uma tarde, que iria enlouquecer. companheiro de repartição lhe recomenda-
Todos os anos, por esse tempo, passava ra. Mas o certo é que, cessado o efeito da
ele dias e dias, nas horas que lhe sobravam pílula, experimentava uma sensação mais
da repartição, a armar na sala do aparta- aflitiva de angústia e ficava de pálpebras
mento um vistoso presépio, a que não semicerradas e sem ânimo para se levantar
faltava o brilho móvel de uma estrelinha do banco, tomando de repentina vontade
conduzindo os Reis Magos à manjedoura de morrer.
do Menino Jesus, enquanto uma caixa de Na repartição, mostrava-se áspero e
música repetia a melodia de Noite Feliz. intragável, e isolava-se mais no seu canto,
Este ano, desanimado de tudo, via- calado, carrancudo, os olhos parados numa
-se num banco do Passeio Público, pernas folha de processo, a pena distraída apon-
cruzadas, a olhar a biqueira do sapato, na tando o papel.
esplêndida manhã de sol, sem ter sequer – Que é que você tem, Jerônimo? – per-
aberto os gavetões da cômoda onde jaziam guntara-lhe um colega – Você não é o mes-
as peças do presépio. mo. Está magro, abatido, quase não fala.
Cada vez mais estrangeiro na sua casa, Nem cumprimentar a gente se cumprimen-
ganhava a rua ao aportar do dia, para só ta. Trate de reagir. Seus nervos não andam
voltar à noite, cabisbaixo, em silêncio, en- bem. Tive um amigo que ficou assim. Como
tediado da vida. E a rua agora o atordoava não se tratou em tempo, acabou numa casa
com o ar festivo das lojas, o bulício das cal- de saúde, e de lá não saiu até hoje. Tire uma
çadas e as músicas de Natal. licença. Você precisa mudar de ares.
O contraste entre a amargura que o Jerônimo, numa explosão:
consumia e a alacridade que o rodeava, – Meta-se com a sua vida. Não lhe estou
logo ao descer do bonde de Santa Teresa pedindo conselhos.
na animação do centro da cidade, impelia Até a leitura do jornal, com que de iní-
Jerônimo a refugiar-se numa das alamedas cio ainda se distraía, agora facilmente o
O m o ns t ro  •   161

enervava, sobretudo nas ocasiões em que, eterno tricô, D. Angélica não perdera a vaza
logo à primeira página, dava com a notícia para um novo azedume:
de um crime, no estardalhaço das manche- – Precisas soltar os cobres para os pre-
tes. O assassinato de uma velha, misterio- sentes de festas de teus sobrinhos. Para
samente estrangulada num sobradinho da mim, vou logo avisando: não quero nada.
Rua Riachuelo, deixara-o absorto, os olhos Basta-me estar viva e gozando saúde. Mas,
no ar, enquanto um leve tremor se apode- para meus netos, faço questão de mandar
rava de suas mãos. Irritado, sacudira longe alguma coisa. Esperei que tomasses a inicia-
o jornal: tiva de me dar o dinheiro, sem eu te pedir.
– Devia ser proibido contar essas bar- Estou vendo que, se eu for esperar por ti,
baridades! – exclamara, alteando a voz e adeus presentes para aquelas pobres crian-
gesticulando – O crime é contagioso! O ças. Acima delas, colocas o teu egoísmo.
governo está na obrigação de tomar pro- Mas fica tu sabendo que, ou dás por bem
vidências! o dinheiro até terça-feira, não respondo por
E refugiara as mãos nos bolsos laterais dois ou três destes teus cacarecos. E tu sa-
do paletó, dedos crispados, como se o pa- bes, Jerônimo, que eu, o que digo – faço.
vor de si mesmo repentinamente o domi- Sempre dei presentes aos meus netos, mes-
nasse, ao mesmo tempo que a figura da mo no período da mais negra necessidade.
mãe crescia no seu espírito, alta, magra, as Não há de ser agora, quando moro no Rio,
veias no pescoço encordoadas. e na casa de um filho rico, que vou deixar
De tarde, na repartição, apertara a ca- aqueles quatro infelizes sem uma lembran-
beça entre as mãos geladas, muito pálido, ça de Papai Noel!
com a impressão instantânea de que o vi- E depois de um silêncio:
nham prender. Chegara a ouvir o rangido – Por que não me deixar vender meia
das botas dos soldados nos degraus da dúzia daqueles santos velhos lá do quarto?
escada, por trás de suas costas, e logo se Rezar, tu não rezas. Tens santos ali para en-
levantara pronto a dizer que não matara feite. Eu, com a minha Nossa Senhora do
ninguém! Rosário e o meu Senhor do Bonfim, estou
Durante quase uma semana deixara de servida. Os outros santos podem ir embora,
ler jornais. Tinha de consultar um médico – que não me fazem falta.
reconhecia. Ou então mudar de ambiente, Jerônimo, no dia seguinte, cedo, no mo-
indo para uma pensão ou um hotel. mento de sair, deixou sobre a mesa, bem à
Logo, com um lápis e um papel punha- vista, sem uma palavra, o dinheiro reclama-
-se a fazer contas, para chegar por fim a do da mãe.
mesma evidência: não podia arcar agora E D. Angélica, à noite, quando o filho
com a nova despesa. chegou:
E em seu redor, agravando-lhe o deses- – Achei graça quando vi a miséria que
pero, a animação das ruas, com o repique deixaste para as lembranças dos teus sobri-
dos sinos e os cânticos de Natal. nhos, Jerônimo, olha bem pra mim: quan-
Dias antes, na poltrona da sala, moven- do morreres, teu dinheiro não irá contigo
do com incrível agilidade as agulhas de seu no caixão, fica é aqui mesmo na terra, seu
162   • Josué Montello

egoísta. Põe isso na tua cabeça. Para deixares D. Angélica baixou o olhar para o tricô:
de ser um unha de fome. Irra! Aposto que, – Isso não depende de mim, bem sabes.
se fosse para a vagabunda com que saciavas Escorrupicha os cobres para os presentes de
aqui os teus baixos instintos, abrias a cartei- teus sobrinhos, como é de teu dever e obri-
ra, sem tugir nem mugir. Mas, como é para gação, e eu garanto que deixo inteirinha a
dar alegria a quatro crianças órfãs de mãe, o tua corte celeste. Até terça-feira eu espero.
que soltas é uma verdadeira miséria, como E na terça-feira, ao levantar-se, foi em
se estivesses dando uma esmola! Deus pode vão que a velha procurou pelo filho. Em
te castigar, Jerônimo. Hoje estás na opulên- compensação, sobre a mesa da sala, encon-
cia, com a tua boa casa e o teu gordo empre- trou um gordo envelope, que abriu num im-
go, mas amanhã podes estar por baixo, com pulso, rasgando-lhe um dos cantos.
uma mão na frente e outra atrás. Já vi muita – Ainda bem que não se esqueceu do
gente despencar de alturas maiores. E com dinheiro – reconheceu contando as cédulas.
qualidades que tu não tens, Jerônimo! – E deixou a quantia exata, sem um centavo
Jerônimo abriu a carteira: sequer para a pobre mãe, como se eu não
– Veja o que me sobrou para passar o existisse! Ah, ingratidão humana!
resto do mês. Jerônimo, a essa hora, perlongava a
E D. Angélica a olhá-lo por cima dos Praia do Flamengo, indiferente às ondas
óculos: que se esbororavam na muralha de pedra, e
– Pensas que eu sou trouxa? Teu dinhei- molhando a calçada. Na véspera, ao retirar
ro está é na Caixa, bem aferrolhado, e ren- uma parte de seu depósito na Caixa Econô-
dendo juros. E é dinheiro grosso, Jerônimo. mica, voltara-lhe o pavor de si mesmo, e se
Sei de fonte limpa. Não adianta quereres me vira obrigado, por duas vezes, a recorrer ao
enganar com o gesto teatral de arreganhar tranquilizante para não ceder à crise de ner-
a carteira diante de mim. Sou vivida demais vos que o faria chorar. Agora, caminhando
para cair nessa. Inventa coisa melhor. ao léu, cabeça baixa, tentava espairecer na
Riu baixo, em tom de mofa. E depois de fadiga física o mesmo temor, cada vez mais
um muxoxo: forte e obssessivo. De madrugada, acordara
– Já tenho um comprador para os santos. sobressaltado depois de ter visto no sonho
Arranjei uma boa oferta. Até pensei que o o seu retrato na primeira página dos jornais.
homem tinha se enganado e fiz ele repetir. Logo saltara da cama vestira-se às pressas,
Era verdade. Nem vais acreditar. Basta te dizer às pressas ganhara a rua, com receio de se
que, só com a Santa Rita e o Menino Deus, defrontar com a mãe, assim que o dia raias-
eu compro os presentes das crianças e ainda se. No primeiro bonde, descera de Santa Te-
sobra dinheiro para a ceia do Natal. resa sem olhos para a luz sanguínea que co-
Jerônimo redobrou de esforços para não loria o horizonte para os lados do nascente.
explodir. E falando baixo, dentes cerrados, E na cidade, em vez de se refugiar no Pas-
as mãos refugiadas nos bolsos do paletó: seio Público, rumara para a igreja da Lapa,
– Deixe os meus santos em paz. Ali há onde permanecera ajoelhado por mais de
raridades que só eu tenho. Por favor, não hora. Ao sair dali, ainda não de todo apazi-
me faça perder a cabeça! guado, resolvera andar ao léu, andar muito,
O m o ns t ro  •   163

para ver se conseguia pelo cansaço físico me disseram que o senhor não tinha ido tra-
atirar de si a ideia do crime. balhar. Mandei meu filho à cidade para ver se
De volta a Santa Teresa, já noite entrada, o encontrava. Pensei mesmo em dar um avi-
deteve-se em meio da ladeira, estranhan- so pelo rádio. Felizmente o senhor chegou. Já
do o aglomerado de gente à porta de seu está na hora de tratar do enterro. Meus pê-
edifício. E mais intrigado ficou ao ver o ar sames.
festivo de seu apartamento, com todas as Sem tirar os olhos da mãe, Jerônimo
luzes acesas e as janelas da rua escancara- permanecia junto ao sofá, fisionomia fe-
das. Retardou mais o passo na lentidão da chada, ombros caídos, sempre em silêncio.
subida, assaltado por novo fluxo de cólera. Parecia abismado na tragédia, assim mudo
Dar-se-ia o caso de que a mãe, com o di- e imóvel. Na verdade, porém, tinha voltado
nheiro destinado aos presentes dos netos, ao domínio de si mesmo, com a instantâ-
ter optado por uma festa aos vizinhos? Pa- nea consciência de que era novamente um
receu-lhe que sim. E estugou a caminhada, homem livre, senhor de seus atos e de sua
levado agora pela ira cega. casa, e ia tratando de esconder por trás do
Por isso não reparou, à entrada do pré- semblante circunspecto, sempre cabisbaixo,
dio, na expressão severa das pessoas que o ombros caídos, a crescente sensação de que
fitavam, ao mesmo tempo que retrocediam se reintegrava na sua antiga paz.
em silêncio, para lhe dar passagem. E so- Obrigado – agradeceu por fim à vizinha,
mente se deteve à porta da sala, boca entre- numa voz desolada.
aberta, as mãos caídas ao longo do corpo, E saiu a providenciar o enterro.
os olhos perplexos diante da figura magra Em menos de duas horas tudo estava ar-
de D. Angélica, rigidamente estendida no ranjado: a capela, o ataúde, a remoção do
sofá escarlate, com duas velas à cabeceira. corpo, e essa, os tocheiros, muitas flores e
– Estamos cansadas de procurar o senhor uma coroa. Não regateou preços nem dis-
– disse-lhe uma das vizinhas, antes que ele se pensou formalidades. E a verdade é que D.
refizesse da surpresa. – Fui com D. Angélica Angélica, embora marcada pela lividez mor-
à cidade fazer as compras de Natal. Anda- tuária, readquiriu boa parte de seu ar teatral
mos muito, tivemos de subir várias escadas, no grande caixão de cedro, com fechos de
ela sempre bem-disposta, cheia de vida. De bronze, que o filho lhe comprou.
repente me disse que estava tonta, com uma – Agora posso descansar – suspirou Je-
dor nas costas. Tomamos logo um táxi e cor- rônimo.
remos para casa. No caminho, ela se sentiu E como se achava sozinho na capela,
melhor. Mas, quando chegou aqui, levou a acomodou o corpo na poltrona, estirou as
mão ao peito, deu um grito e caiu para trás. pernas e dormiu até de manhã. Acordou
Chamei a assistência, que não demorou a sobressaltado com o raio de sol que entrava
chegar. Mas o médico, assim que a examinou, pela vidraça, abriu bem os olhos para ter a
disse logo que nada podia fazer: D. Angélica certeza de que não havia sonhado, e tratou
já estava morta. Coitada, tão alegre, tão sa- de ir a Santa Teresa.
tisfeita, como se vendesse saúde! Telefonei Ali, antes mesmo de se barbear, cha-
imediatamente para a sua repartição, mas lá mou o porteiro, deu-lhe de presente os
164   • Josué Montello

pertences da mãe, inclusive o rádio de pi- antiga de cada peça. Com as sombras da
lha com que esta ouvia as suas novelas e os noite, deu por findo o seu trabalho. De
seus programas de música popular, e ainda si para si, lamentou a falta da fIoreira de
o sofá-cama escarlate, que lhe servira de Sèvres, com o fauno e a bacante enlaça-
essa por algumas horas. Ao mesmo tempo dos. E logo uma ideia lhe acudiu, lúbrica
determinou a volta imediata da marquesa e obsessiva, levando-o a acercar-se do tele-
de palhinha e dos retratos imperiais, para fone em passos lépidos, um fulgor mais vivo
que os encontrasse nos seus antigos lugares nas pupilas castanhas.
ao regressar do cemitério. – És tu, querida? – perguntou, em tom
– E dá uma limpeza em regra na casa, de ternura feliz. – Obrigado por tuas flores.
João – acrescentou, pondo-lhe na mão ca- Sim, correu tudo bem. Graças a Deus. Não,
losa a nota mais alta que trazia na carteira. não estou cansado. Dormi à tarde. Por que
– Ao meio-dia, estou de volta. não vens passar a noite aqui? Vem. Preciso
Voltou mais tarde, porque preferiu al- muito de ti. Tu também? Ótimo! Toma um
moçar no centro da cidade, um pouco lon- táxi. Vou deixar a porta encostada, como
ge do Passeio Público, enquanto em seu re- antigamente. Não te demores. Até já.
dor ressoavam os sinos acompanhando os Assim que repôs o fone no gancho, cor-
cânticos de Natal. Como tinha direito a oito reu à cozinha, inspecionou a geladeira, viu
dias de luto na repartição, apanhou des- que nada faltava e tornou à sala, depois de
cansadamente o seu bonde, na estação do compor o lençol da cama numa entrada rá-
Largo da Carioca, já depois de uma hora, pida na alcova.
como se subisse às Paineiras, para gozar E então, dominado por uma lentidão
uma tarde de sábado ou domingo entre ve- metódica, a que se mesclava o crescente
lhas alamedas do tempo do Imperador. renascer da sensualidade longamente repri-
– Hoje o senhor está com outra cara, Ba- mida, compôs a mesa com os dois lugares
rão – observou o velhote rosado, depois da para a ceia, espevitou a vela nos castiçais de
vênia festiva com o boné. prata, levou a chama do palito de fósforo
E Jerônimo, pagando a passagem: aos pavios, apagou as outras luzes da sala.
– Mais vale quem Deus ajuda ... Antes de sentar na poltrona, com o ou-
No apartamento, depois de uma vista vido apurado na direção do corredor, teve
de olhos à sala, já restituído ao seu ar de uma nova inspiração. Escolheu um dos seus
abade gordo no pijama folgado, deixou-se concertos prediletos, ligou a vitrola, fez o
afundar na paina do colchão do largo leito braço da agulha deslizar por uma das so-
D. João V para dormir regaladamente a sua natas de Mozart, e a música encheu a sala,
sesta. docemente, suavemente, enquanto ele en-
trecerrava as pálpebras, levado pelo roçar
do arco do violino.
Quando despertou, a tarde esmore- E de repente, profanando com o seu ru-
cia. Levantou-se, esticou os braços, ainda ído a diafaneidade da melodia, estrondou
um pouco sonolento, e começou a dar os no apartamento a campainha do telefone.
retoques na recomposição da fisionomia De um salto, Jerônimo acudiu ao aparelho:
O m o ns t ro  •   165

– Alô? tardou a se refazer do susto, com um brilho


E uma voz aguda e áspera, que trazia de sensualidade nos olhinhos apertados –
em si a vibração das revoltas irreprimíveis, quando sentiu a porta do apartamento ran-
soou aos seus ouvidos: ger de leve e uns passos miúdos de mulher
– O senhor tem coragem de ouvir músi- nos ladrilhos do corredor.
ca no dia do enterro de sua mãe? Só mes-
mo não tendo um pingo de sentimento! D.
Angélica é que tinha razão: o senhor é mes- Identificação
mo um monstro! Das histórias que corre sobre o pintor
Rápido, rosto afogueado, Jerônimo re- surrealista Salvador Dali, a mais curiosa é
pôs o fone no gancho com uma pancada que diz ter Dali, ao voltar para casa, visto
seca. E sem demora, levado pelo mesmo um ladrão que saía da janela de seu quarto.
impulso, desligou a vitrola. Fez, então, um sketch da fisionomia do ho-
Uma sensação repentina de terror como mem e entregou o desenho à Polícia. Como
se a reprimenda que acabara de ouvir ti- resultado das indicações dadas por Dali em
vesse algo de sobrenatural, fê-lo manter-se seu desenho, as autoridades policiais pren-
imóvel, respiração suspensa, a olhar o refle- deram quatro cavalos, um gato siamês e um
xo das velas no espelho da parede. Mas não salmão.
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s Fundadores Membros Efetivos


01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cícero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Nelson Pereira dos Santos
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domicio Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha
C o mp o s t o em Frutiger Light 9,5/13,5 pt; C i ta ç õ e s , 9 / 1 2 pt

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