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RK. Fac. Educ.

, Sa0 Paulo
15(2} :161-166 jul. /dez. 1989.

MATEMÁTICA E LÍNGUA MATERNA:


UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA

Nílson José MACHADO (*)

RESUMO: A Matemática e a Língua Materna sio disciplinas sempre presentes nos currículos escolares.
Apesar desta convivência, os problemas enfrentados no ensino de ambas as disciplinas são tratados
frequentemente de forma independente, não possibilitando qualquer ação conjunta. O artigo trata da
necessidade de uma aproximação maior entre as duas disciplinas, tendo por base o paralelismo nas
funções que ambas desempenham - ou deveriam desempenhar na formaçãoo geral dos indivíduos.

PALAVRAS-CHAVE: Matematica. Lingua Materna. Alfabetização. Raciocínio. Linguagem


Formal. Sistema de Representação.

‘A separação entre o francês e as matematicas tem inicialmente


uma realidade institucional Com toda a atenção que se leia os
programas e as instruções oficiais, nao se encontrando nenhuma
indicação de uma ligação a estabelecer, de uma ponte, por mais frágil
que seja, a ser indicada entre os dois domínios.”

Ducrot |

Desde os primeiros anos de escolaridade, a Matematica faz parte dos


curriculos, juntamente com a Lingua Materna. Parece haver um consenso com
relagéo ao fato de que seu ensino € indispensdvel e sem ele € como se a
alfabetizagao nao se tivesse completado. Essa aparéncia de necessidade lembra,
no entanto, o epigrama de Cocteau:

" A Poesia é indispensavel. Se eu ao menos soubesse para qué..."

De fato, quando sdo analisados os discursos a respeito das razdes pelas


quais a Matematica é ensinada nas escolas, pode-se perceber uma notavel falta

Professor Doutor do Departamento de Metodologia do Ensino « Educagao Comparada da


Faculdade de Educaeao da Universidade de Sao Paulo.
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de clareza a respeito, o que sugere fortemente uma par4frase do poeta


substituindo-se "Poesia" por "Matematica’.

Duas S40 as vertentes bdsicas a partir das quais, usualmente, justifica-se a


inclusdo da Matematica nos curriculos escolares:

- ela é necessdria para as atividades do dia-a-dia;


- ela desenvolve o raciocinio légico.

Com relagdo As necessidades praticas, ainda que esta justificativa possa ser
adequada em séries mais avangadas, bem como na formagdo de técnicas ou de
especialistas, parece muito dificil sustenta-las para as criangas das séries iniciais
da escolarizagéo; aqui, as verdadeiras necessidades praticas cingem-se a
comunicacac ¢ & expressdo. Em razdo disso, sobretudo nas duas primeiras
séries, ocorre uma freqiiente canalizacd> dos esforgos quase que exclusivamente
para a alfabetizagdo na Lingua Materna, em detrimento da aprendizagem da
Matemftica. Tal desbalanceamento, apesar de indesejavel, deve ser considerado
natural, uma vez que ndo 6 usual o paralelismo teleol6gico entre a Matematica e
a Lingua.

Quanto a associacdo entre o ensino da Matematica e o desenvolvimento do


taciocinio, dois reparos parecem tempestivos. Em primeiro lugar, ao chegarem a
escola, as criancas j4 exibem uma capacidade de organizacdo do pensamento que
nem de longe faz jus a sua parca bagagem de conhecimentos matematicos,
estando mais diretamente relacionados a utilizagio da Lingua Materna, em sua
forma oral. Em segundo lugar, ndo parece uma tarefa simples vislumbrar o modo
através do qual os diversos contefiidos mateméticos tratados na escola
contribuem para 0 desenvolvimento do raciocinio, havendo mesmo quem afirme,
como Jung? , que

"@ desenvolvimento da capacidade de pensamento légico nao esta de modo


algum ligado a ela (a Matematica)”.

Assim, embora ao nivel do discurso permanega viva a associagao do ensino


da Matem4tica com o desenvolvimento do raciocinio, ao nivel da agao a
associagio natural se d4 entre a organizagao do pensamento € 0 aprendizado da
Lingua.

De modo geral, existe uma falia de clareza nos discursos relatives as


finalidades do ensino de quase todas as disciplinas. Tal fato, no entanto, é
especialmente problematico no caso das duas componentes curriculares basicas,
como so a Matematica ¢ a Lingua Materna, em razdo de que elas no se

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constituem em ramos do conhecimento mas sim em_ instrumentes
imprescindiveis para a construgdo do conhecimento em qualquer setor e sendo
assim os efeitos desta falta de clareza irradiam-se por todas as 4reas.

Ao tratar do significado da alfabetizagdo na Lingua Materna, Ferreiro"


percebeu a importancia decisiva desse esclarecimento inicial sabre o significado
da disciplina, tendo realizado uma distingaéo radical entre a aprendizagem da
Lingua como um cdédigo ov come um sistema de representagdo. Examinemos
sucintamente seus pontos de vista a esse respeito.

A crianga ja chega 4 escola utilizando consistentemente a Lingua em sua


forma oral; a alfabetizagao que se segue consiste na aprendizagem da escrita.
Tal aprendizagem pode ser concebida como a simples aquisigao de um cddigo de
transerigéo grafica das unidades sonoras, ou entao como a construgéo de um
sistema de representagao da realidade. A distingéo nao ¢ apenas de natureza
terminolégica: 0 modo como se concebe a escrita esté diretamente associado a
praticas pedagégicas significativamente distintas nos dois casos. Se a escrita é um
cédigo de transcricéo, sua aprendizagem se resume ao dominio de uma técnica,
estando pré-determinados tanto seus elementos constituintes quanto as relagdes
entre eles; é o que se passa, por exemplo, com o Cédigo Morse ou a Taquigrafia.
Se, por outro lado, a escrita é concebida como um sistema de representagdo,
nem os elementos nem as relagdes estao previamente fixados, sendo resultantes
de um processo de construcdo de natureza histérica; € como se sé estivesse
elaborando, a partir da experiéncia vivida, instrumentos adequados para um
Mapeamento da realidade. Comparando-se as duas abordagens, pode-se afirmar
que a elaboracdo de um mapa a partir da realidade corresponderia 4 construgao
dé um sistema de representagdo, enquanto que a elaboragdo de um mapa a
partir de outro mapa corresponderia 4 construgéo de um c6digo. Entretanto,
uma melhor compreensao da distingdo efetuada, passa pela andlise da questao
epistemolégica fundamental da natureza da relagao existente entre o real ¢ sua
representacdo.

Como a invengdo da escrita caracterizou-se, sem divida, como um processo


hist6rico de construcéo de um sistema de representacdo, nao se pode pretender
ensin4-la, segundo Ferreiro, como se tratasse de um mero cédigo de transcrigdo.
Repetem-se nas criancas, em situagdes de aprendizagem, as dificuldades gerais
enfrentadas pelos diversos povos na elaboragao do sistema lingilistico; em razdo
disso, a néo-observancia da distingdo cddigo x sistema estaria pa raiz da maior
parte das dificuldades com o ensino da Lingua Materna.

As comsideragdes de Ferreiro relativas & aprendizagem da Lingua


encontram um perfeito paralelismo no que se refere ao ensino da matematica

Matemdtica e Lingua Materna: uma aproximagdo necessaria


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nos mais diferentes pafses. Com efeito, existe certa analogia entre a situagdo
descrita no caso da Lingua e a caracterizagdo da Matematica ora apenas como
uma linguagem formal, ora como um sistema de representagéo, Naturatmente,
ndo se pretende identificar uma linguagem formal com um cOdigo, mas apenas
analisar certas circunstancias sugestivas decorrentes do referida paralelismo.
Insistimos em que, também neste caso, ndo se trata de mera questao
terminoldgica.

Como se sabe, no caso da aprendizagem da Lingua Materna, a lingua oral


funciona como um natural e conveniente deprau para a aprendizagem da escrita,
participando efetivamente de sua construgao como um fecundo suporte de
significagdes de que as criangas ja dispOem quando chegam 4 escola. E até
muito dificil imaginar o que significaria abdicar de tal suporte. A passagem
direta do pensamento a escrita mio parece, inclusive, revestir-se de

caracteristicas inteiramente humanas. De fato, Morris’ assegura que

"Tudo o que € caracteristicamente humano depende da lingua falada"


enquanto Gusdor® chega a afirmar que

"O bhomem é a animal que fala: esta definigdo, depois de tantas outras, é
talvez a mais decisiva".

Nessa perspectiva, examinemos as conseqliéncias da caracterizagéo da


Matematica’ como uma linguagem formal. Como as linguagens formais nao
comportam uma oralidade prépria®, caracterizando-se apenas como uma éscrita,
uma linguagem sem enunciador, conceber a Matemdtica no Ambito do
formalismo estrito implica a sua redugio a essa dimensdo escrita, com a
agravante de que sua aprendizagem deverd ocorrer sem @ apoio do natural
suporte de significagGes que a oralidade representa. Abdicando-se deste
suporte, além do fato de o degtau a ser galgado na passagem do pensamento a
escrita tormar-se exageradamente alto, no tratamento dos simbolos de tal
linguagem aporta-se com freqiiéncia em uma crescente desvinculagdo entre a
técnica ¢ o significado. Essa desvinculacao é, sem dévida, responsavel por
grande parte das dificuldades com o ensino de Matematica. Comm efeito, nao
parece razo4vel, a quem se situa apenas no nivel da técnica operatéria, o fato de
que nas expressdes

atb=aitd
axb=axd

axb
axd

Nilson José Machado


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é possfvel "simplificar" o “a", quando em

a+b
at+d

tal simplificagio nao é mais possivel; parece inteiramente arbitrdério que seja
correto escrever-se

By, fi ame,

b da bxd
enquanto nao é admissivel a igualdade

a ec.j@a+e.

boa brad

Restringindo-se apenas a consideragoes de natureza técnica, o que distingue o


licito do ilicito em situagdes como estas é demasiado sutil para ser apreendido
pelos alunos. O distanciamento do significado nas operagdes realizadas conduz
@ que os erros "graves" apontados pelo professor nao sejam assim reconhecidos
pelos alunos, Com sincera ingenuidade, eles repetem frases sintomaticas como 4
seguinte: "Mas eu sé errei no sina..."

Quando, por outro iado, a aprendizagem da Matematica é concebida como


a construgdo de um sistema de representacdo da realidade, a situagao modifica-
s¢ por completo. Como a Lingua Materna, a Matematica passa a transcender o
Ambito da escrita, caracterizando-se como um instrumento para o mapeamento
da realidade. Nesse caso, a lingua oral assume uma importanecia fundamental
também no eusino da Matematica, e como a escrita matematica ndo comporta a
oralidade, esta deve ser emprestada da Lingua Materna. A grande ¢ imediata
conseqiiéncia prdtica da comsideragao da Matematica como um sistema de
Tepresentacao é, entdo, esta absoluta necessidade de aproximagao com a Lingua
Materna, que lhe empresta o suporte de significagdes representado pela fala. A
partir daf, embora a escrita matemética constitua uma linguagem formal, a
MatemAtica passa a ndo se restringir a ela. Impregnando-se da Lingua Materna,
a Matematica passa a transcender uma dimensdo apenas técnica, adquirindo
assim o sentido de uma atividade caracteristicamente humana.

De um modo geral, essa aproximacgac entre a Matematica e a Lingua


Materna tem lugar continuamente no dia-a-dia das pessoas, criangas ou adultos,
dentro ou fora da escola. As criangas iniciam-se na aprendizagem tanto do
alfabeto quanto dos nimeros sem demarcacées rigidas entre os dois dominios.
A idéia de ordem, por exemplo, surge tanto da sucessdo dos nimeros naturais
quanto da seqiiéncia das letras do alfabeto. Mesmo na idade adulta, para citar
apenas um exemplo, quando alguém propde, em meio 2 uma discussdo, que se

Matematica e Lingua Matema: uma aproximagae necessaria


chegue 2 um "denominador comum", seguramente não est4 falando de soma de
fracées, mas de esforgas...

Concretamente, no entanto, nao basta um acordo ao nivel do discurso com


relacdo A caracterizacéo da Matematica como um sistema de representagao da
realidade que deve ser, necessariamente, articulado com a Lingua Materna; é de
formas consistentes de exploragéo da referida articulagdo que parecemos
carecer, Embora tal exploragao possa servir de fonte de subsfdios para o ensino
de ambos os sistemas, as dificuldades crénicas de que padece o ensino da
Matematica em praticamente todos os pafses e que se tém revelado imunes a
propostas de agao pedagégica de diferentes estirpes parecem indicar com nitidez
qual dos dois sistemas seria seu maior beneficidrio.

SUMMARY: Mathematics and Mother Tongue. are disciplines always present in school
curricula. In spite this companionship, problems confronted in teaching both disciplines are often
discussed in independent ways, making difficult any united educational action. The article deals
with the need of a greater aproach in teaching both disciplines, supported by the parallelism in the
functions they play a part - or, at least they would play - in general formation of a person.

KEY-WORDS: Mathematics, Mother Tongue. Literacy. Reasoning. Formal Language.


Representation System.

(Recebido para publicagao em 05.09.89 e liberado em 20.10.89)

Notas

1. Encontra-se em Ducrot, O. Provar e Dizer. Sado Paulo,


Global Editora, 1981 (p. 45)

2. Citado em Hutley, H.E. - A Divina Proporgdo. Brasilia,


Editora da UnB, 1985 (p. 18).

3. Ver Ferreiro, E. Reflexées sobre a Alfabetizagado. Sao


Paulo, Cortez Editora, 1936.

4. Encontra-se em Gadamer - Vogler Antropologia


Filoséfica II. Sdo Paulo, EPU~EDUSP, 1977 (p- 174).

5. Encontra-se em Gusdorf, G. - A Fala. Rio de Janeirc,


Editora Rio, 1977 (p. 10).

6. Conferir com Granger, G.G. - Filosofia do Estilo. Sao


Paulo, Editora Perspectiva, 1974 (p. 140).

Nilson José Machado

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