Você está na página 1de 4

Revisitando a aquarela das masculinidades (Cult 242)

Guilherme Almeida
7 de fevereiro de 2019

O ano era 2012. Fazia alguns anos que eu próprio me afirmara como um homem trans e,
aproximadamente há três anos, tinha começado a ganhar visibilidade no país a possibilidade
de uma pessoa ser assignada no nascimento como do sexo feminino e, em algum momento da
vida, recusar essa assignação, afirmando-se como homem.

Duas pesquisadoras fundamentais dos estudos de gênero, Berenice Bento e Larissa Pelúcio,
organizavam um dossiê para a revista Estudos Feministas do IFCH/Unicamp sobre
transexualidade, e me convidaram para ser um dos autores. Aceitei, e o artigo ganhou o nome
de “Homens trans: novos matizes na aquarela das masculinidades?”. A construção
interrogativa do título não era mera provocação. Ele retratava o contexto brumoso da própria
escrita, onde cores e matizes não eram nítidos.

Três anos antes, os homens trans do país estavam na casa das dezenas e, mesmo em 2012,
nós ainda conhecíamos quem era quem em cada estado da federação. Se, por um lado, nos
conhecíamos, por outro, desconhecíamos como seria quando a transexualidade masculina se
tornasse um fenômeno de massa, o que efetivamente aconteceu, sobretudo a partir da
segunda metade da década de 2010.

De todas as questões que passaram pela minha cabeça ao escrever o artigo em 2012, a que
mais me inquietava, epistemológica e pessoalmente, era como aqueles novos homens
performariam masculinidades. As transmasculinidades seriam réplicas passivas de modelos
pré-existentes? Fariam esforços extraordinários para se adequarem aos requisitos das
masculinidades hegemônicas? Como trafegariam nas relações de gênero em seu cotidiano
familiar, sua rede de amigos, suas relações afetivo-sexuais, seus espaços de trabalho e
produção cultural?

Algumas pesquisas acadêmicas já foram felizmente produzidas, em contextos específicos,


sobre homens trans, e trazem contribuições para o conhecimento dessas masculinidades, mas
algumas dessas perguntas, e outras mais, permanecem ainda hoje sem respostas conclusivas.

Isso acontece porque, na última década, a aquarela das transmasculinidades se complexificou


muito, não só pela entrada numérica de muitos novos sujeitos, mas pelo conjunto de novas
questões trazidas por eles. Hoje, a metáfora da aquarela com novos matizes para olhar as
transmasculinidades me parece insuficiente. Trago também a da Caixa de Pandora, um
artefato da mitologia grega vinculado à criação da primeira mulher por Zeus: Pandora. Ela seria
a primeira mulher enviada do Olimpo à Terra para viver com os homens, e Zeus a presenteia
com a caixa, que não deveria ser aberta por conter todas as desgraças do mundo: guerra,
discórdia, ódio, inveja, doenças e, também, a esperança. Pandora, previsivelmente, não resiste
à curiosidade e deixa escapar na terra todo o resto, menos a esperança. Nos últimos anos, as
transmasculinidades vazaram da Caixa de Pandora em abundância, e dialogaram ativamente
com o conjunto das masculinidades disponíveis nas relações sociais para todos os homens.

Acompanhando como sujeito histórico e como pesquisador/ativista a cena pública dos homens
trans e observando as masculinidades ao longo desses anos, desconstruí algumas percepções
e construí novas, também a serem revisitadas. A primeira delas era um aforismo muito
difundido, sobretudo nos espaços das lutas sociais, de que pessoas trans e, neste caso
específico, homens trans, construiriam suas identidades necessariamente em oposição ao
binarismo de gênero. Parece óbvio que a existência mesma de pessoas trans colida com a
lógica binária que, em grande medida, fundamenta-se na biologia para justificar as diferenças
entre homens e mulheres. Todavia, embora as pessoas trans possam infringir potentes
ranhuras ao essencialismo biológico, não há nenhuma exigência mecânica de que pessoas
trans tenham que romper em suas trajetórias individuais com uma compreensão binária das
relações de gênero.

O que observei é que, embora alguns homens trans possam ser reconhecidos por um ponto de
vista feminista por questionarem a assimetria de direitos entre homens e mulheres, por se
oporem à violência contra as mulheres, por assumirem posturas cooperativas no espaço
doméstico, por recusarem piadas sexistas, entre outros elementos, essa não é a postura de
uma parte dos homens trans. Para esses, a transição de gênero constitui a possibilidade de
alcance de pelo menos alguns dos privilégios aquinhoados pelas masculinidades hegemônicas:
mais oportunidades de trabalho, melhor renda, menor participação em atividades domésticas,
maior liberdade sexual, maior possibilidade do uso da força física e até dos recursos da
violência. Nessa lógica, não tem sentido o questionamento à privação das mulheres das
mesmas prerrogativas. A despeito da crítica inerente a essa descrição de posicionamentos,
precisamos nos perguntar: por que seria diferente? Por que há ampla autorização social para
que homens cisgêneros tenham esse último posicionamento, e deveria nos indignar que
homens trans também o tivessem? Não seria igualmente opressivo exigir que, por terem
experienciado a condição feminina, tais sujeitos necessariamente ou naturalmente teriam que
desenvolver empatia com as causas feministas? É possível dizer que o desejo de aceitação
social em grupos masculinos, onde a preocupação com as causas feministas passa a
quilômetros, pode cooperar para uma adesão à masculinidade em seus termos hegemônicos.
Dessa maneira, passei a ter menos estranhamento e mais compreensão quando observei
homens trans explorando economicamente mulheres (fossem essas suas parceiras sexuais,
mães ou com outra vinculação), coautores de violência doméstica, ou intimidando, por meio de
performances violentas, principalmente os indivíduos não binários que performam
masculinidades mais fluídas em espaços políticos, por exemplo. Em outras palavras, a
construção de masculinidades críticas ao binarismo não é uma consequência inequívoca da
transição de gênero, mas produto direto da educação ético-política dos sujeitos.

Em direção semelhante, observei muitas vezes a referência aos homens trans como portadores
de uma “masculinidade doce”, necessariamente mais empática e sensível, como consequência
direta da sua prévia socialização de gênero. Para admitir que essa é uma característica de
todos os homens trans, teríamos que admitir, entretanto, que as relações de gênero atuam de
forma homogênea e produzem efeitos idênticos sobre todos os indivíduos, o que não é
verdade. Também teríamos que admitir que todas as mulheres cisgêneras devam ser
percebidas como “doces”, o que é outro sofisma. É possível que alguns homens trans
correspondam a esse padrão, mas é comum que outros tantos não correspondam ou o façam
parcialmente. É cada vez mais comum observar a existência de homens trans atuando em
profissões como as forças armadas, onde há legitimidade pública do uso da força e repressão,
na masculinidade vigente nessas instituições, a comportamentos empáticos, suaves ou
hipersensíveis. Recentemente, estive na banca de avaliação da tese de Rafaela Freitas da
Psicologia Social da UFMG, que estudou a existência de homens trans atuantes no Corpo de
Bombeiros, Polícia e Guarda Municipal que, em sua maioria, performam hipervirilização.

Transmasculinidades são efeito de bricolagem, criações produzidas na interseção de


necessidades induzidas por marcadores sociais de diferenças tão diversos quanto a classe
social e as necessidades econômicas, o contexto geográfico, o pertencimento étnico-racial, a
geração e outros tantos, como já dissemos. Não são meras criações individuais. Ao contrário,
sua complexificação, nos últimos tempos, vem sendo tributária de fenômenos variados, que
envolvem o uso das mídias e redes sociais, o acesso a biotecnologias e aos sistemas de
saúde/políticas sociais, a relação com os feminismos revitalizados nas grandes cidades
brasileiras, bem como com a existência, mínima que seja, de uma esfera pública de direitos no
país e do direito de reclamar direitos.

A transexualidade masculina, na última década, atuou como uma estufa de possibilidades no


cenário brasileiro. Naquele cenário foi possível ver emergir sujeitos que reivindicam
masculinidade sem desejar ser reconhecidos como homens. Foi possível também ver homens
trans não binários, homens trans orgulhosamente portadores de uma vulva refutando o
paradigma psiquiátrico da aversão à própria genitália, homens trans grávidos sem abrirem mão
da afirmação da paternagem, homens trans aderindo à contemporânea formulação de uma
paternidade próxima, afetiva e cuidadora, homens trans feministas, homens trans que se
afirmam gays ou bissexuais, homens trans trabalhadores sexuais, homens trans se
relacionando afetiva e/ou sexualmente com mulheres trans e travestis, assim como homens
trans heteronormativos. Todas essas características contribuem para uma miríade de
possibilidades no que se refere às transmasculinidades.

A despeito da diversidade inerente às transmasculinidades, homens trans incomodam. Eles o


fazem ao evidenciarem que o masculino não é presente dos deuses, grande prêmio da loteria
genética, nem exclusivo produto da “testosterona rex”, como ironiza a pesquisadora americana
Cordelia Fine. A cada vez que um homem trans diz “eu sou homem”, joga luz na dimensão
burlesca, sobretudo no que o pensamento conservador considera natural e fundamento do
imenso poder investido na categoria homem.

A Caixa de Pandora está entreaberta apenas. Descobrir-se homem trans num contexto de
recrudescimento do conservadorismo da sociedade e do Estado brasileiros será, assim, um
desafio que irá afetar a possibilidade de construção das transmasculinidades nos próximos
anos.
GUILHERME ALMEIDA é professor da área de Serviço
Social e doutor em Saúde Coletiva. É também poeta.

Você também pode gostar