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PALMEIRA, Miguel Soares.

Moses Finley e a “economia antiga”: a produção social de uma


inovação historiográfica. 2008. 201 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Um novo contato com Moses Finley a partir de Miguel Soares Palmeira. Talvez um dos
primeiros textos lidos na graduação nas aulas da Prof. Renata sobre História Antiga. Com certeza
uma dificuldade tremenda já que estamos falando de pessoas recém-saídas ou que possuíam apenas
o Ensino Médio como grau máximo de formação, mas, como a pedagogia nos ensina, não se pode
subestimar a capacidade dos estudantes e é justamente isso que os faz desenvolver um
conhecimento mais aprimorado no processo de ensino-aprendizagem, na interação da carga do
professor e dos alunos, numa física eletromagnética que seria bastante ilustrativa. Vale a pena reler
algumas considerações, mesmo que a partir de uma leitura que se aparenta historicizada e não
temática, no sentido de tratar de alguma análise da antiguidade, além de se tratar, imagino, de um
expoente da historiografia da antiguidade clássica.
Lendo a introdução talvez venha à mente a célebre frase da professora já citada: “não
coloque seus conceitos modernos na minha antiguidade”. Segundo o autor, é esta a influência tão
evidenciada posteriormente pelos trabalhos de Finley, que entendia que “a vida econômica da
Antiguidade greco-romana jamais foi percebida pelos antigos como um campo autônomo de
experiência da vida social” (p. 11). Ou seja, mais que apenas um embate entre Bücher x Meyer ou
primitivistas x modernistas, a antiguidade possui um modus operandi econômico próprio, uma
forma de compreender e viver as ações mundanas relacionadas às trocas à sua maneira. Quatro
formas de conceber metodologicamente a análise da antiguidade clássica deveriam ser observadas,
segundo Finley em Ancient Economy: 1) entender os significados que os antigos davam às
atividades econômicas; 2) observar mais os padrões que as exceções, o que levaria a conceber
modelos mais claros de observação (até pela dificuldade das fontes); 3) comparações que
embarcassem outras sociedades; 4) problemáticas que extrapolassem os Estudos Clássicos. Isto é,
um conjunto de recortes temáticos e não cronológicos.
Assim, o autor delimita seus objetivos: explorar em como os trabalhos de Moses Finley
foram cruciais na alteração das percepções sobre a economia antiga na década de 1970, superando
alguns modelos anteriores. Pretende, assim, entender a “gênese e a propagação de um ‘modelo’
tornado referência para os estudiosos da vida econômica dos antigos” (p. 12), sempre colocando em
destaque uma discussão que pode ter expressividade em Finley, mas que perpassa a coletividade
histórica. Uma História da Historiografia como comumente se é concebida, o que perpassa
entender que também a História (com H maiúsculo) é um processo histórico (com h minúsculo),
que se relaciona diretamente com um espaço e tempo, com um contexto, momentos, experiências e
ações humanas.
Mas ao aprofundar os estudos sobre um historiador da antiguidade clássica, o autor
necessariamente precise levar em conta diversos conceitos que perpassam a ideia de construção
entre as obras que foram publicadas, as circunstâncias de elaboração e publicação, os conceitos
utilizados e a compreensão daquilo que se conforma como antiguidade pelos contemporâneos ou
modernos. Mais que isso, é interessante notar que ele necessariamente levanta uma conceitualização
que passa pela noção de Bourdieu sobre campo científico, naquilo que se concebe como as formas
de existência de um lugar de disputa sobre o que se define como ciência ou não, como o aceitável
ou não dentro do próprio campo através dos participantes desse lugar social. Essa ideia acaba por
passar, necessariamente, pelas fontes que utiliza: não somente as publicações de Finley, mas
também dos comentadores, dos críticos e seguidores, do campo em questão, além das coleções e
dados obtidos pela biblioteca do autor, a Finley Collection e os Finley Papers, correspondências,
folhas avulsas, rascunhos, entre outros em Cambridge e das entrevistas, dedicatórias e relatos em
periódicos sobre o autor, principalmente de seus (ex)colegas.
Algumas outras questões ainda se colocam em evidência para compreender tanto a
construção da tese quanto os caminhos para uma: primeiro um levantamento bibliográfico que passa
de outros autores que fizeram um caminho, se não igual, ao menos próximo (Mohammad Nafissi e
Alexandre Galvão Carvalho, por exemplo), o que exprime uma sempre contundente maneira de se
fazer a história que perpassa por discussões com autores que fizeram análises próximas; uma certa
linearidade textual que caminha ao lado do avanço da pesquisa em termos cronológicos, seja no
primeiro contato bibliográfico, na análise de obras e publicações, na leitura das primeiras fontes, a
Finley Collection até os papeis mais específicos dos Finley Papers. Isto é, um caminho que é
paralelo ao desenvolvimento da pesquisa e que expressa, também, uma demarcação presente da
escrita. Isso aparece também no recorte retrospectivo da tese, que avança dos anos 1970 até 1950.
Os capítulos demonstram basicamente essa lógica, sendo o primeiro o tratamento da Ancient
Economy de Finley partindo para uma conceitualização do modelo de análise proposto pelo
pesquisado, explorando a bibliografia que envolveu as discussões e que auxilio na construção
conceitual sobre a antiguidade (já que o autor também fala em evidenciar uma compreensão sobre
tal período histórico) para depois fazer uma trajetória de Finley de vida e na academia (algo mais
biográfico/intelectual), sempre compreendendo os meios que envolvem o biografado, numa espécie
de campo a la Bourdieu e na saída dos Estados Unidos à Inglaterra (destacando, como já afirmado,
uma constituição conceitual, social e política de Moses Finley).
O primeiro capítulo, portanto, parte para uma leitura do livro Ancient Economy (AE),
publicado em 1973. No entanto, como a proposição inicial indica, não se trata apenas da observação
de uma obra por si, mas pelas diversas discussões que gerou no campo acadêmico. AE foi um tipo
de síntese das pesquisas de Finley e, além disso, foi o marco da expansão da categoria do autor
como scholar, fruto de uma expressividade demarcada de resenhas e leituras. Como destaque,
ainda, Palmeira aponta uma característica específica que permeia, em si, uma parte do objetivo da
obra: entender, também, sobre a economia da antiguidade. Isto é, se uma quantidade considerável
de escritores se debatiam sobre as pesquisas de Finley, as leituras que faziam e as considerações que
indicavam perpassava, necessariamente, por um conhecimento sobre a Antiguidade Clássica, em
especial a greco-romana e, por isso, expandia por si mesma a ciência de tal área. O que me fez
questionar se o autor não pretende fazer a mesma coisa. Vejamos (não se pode esquecer do sentido
retrospectivo da obra).
O autor faz uma apresentação inicial da obra, pautando a produção após a chamada para
Sather Professor da Universidade da Califórnia onde proferira palestras que embarcavam o tema e
que foram formativas para o livro. Além disso, elegera-se (pois advinha de votação) Professor of
Ancient History em Cambridge em 1970 e membro da British Academy em 1971, isto é,
consolidando-se academicamente. O livro traz uma característica finleyana, como diria Palmeira, ao
ser textualmente fluído e com várias notas ao mesmo tempo que questionava a ideia de História
Econômica para pensar a antiguidade. Miguel Palmeira então parte para a leitura da obra em todos
os seus aspectos, iniciando pelo prefácio e partindo para as resenhas da edição original, isto é, para
os comentadores. Um pequeno adendo para essa parte: a lista de comentadores é extensa (talvez
sendo até maior que a utilizada pelo autor), mas nos demonstra uma certa linearidade nas escolhas
de Palmeira: demonstrar uma certa ruptura na compreensão da antiguidade pelo meio econômico,
ressaltando o fato do cuidado conceitual para a compreensão de um espaço e tempo tão unicamente
consolidados, na qual a exploração do livro ao longo do capítulo é sempre dado. No entanto, a
seleção de Barry Hindess é interessante por mostrar um espaço específico: “as tentativas de Finley
redundam em pouco mais do que a recapitulação do argumento de Polanyi” (p. 31). Não sou
especialista na área e jamais questionaria a importância de Moses Finley para os estudos da
antiguidade, mas aparentemente há uma crítica que leva em conta o que Palmeira destaca como
essencial na obra de Finley, os conceitos modernos. Pode ser que exista vários pormenores nesse
conjunto processual de pesquisas que me é desconhecido.
Além disso, o autor aprecia o decorrer do livro, apontando, a cada capítulo, uma
singularidade (contextual) que envolve compreender a economia antiga a partir dos pressupostos de
unidade mais que de divergência e de modo comparativo, opondo sempre os conceitos tratados para
a antiguidade para aqueles da modernidade. A estrutura de classe é um bom exemplo. Enquanto no
capítulo “Ordem e Status”, Finley reafirma a concepção de que as categorias econômicas modernas
não são plausíveis de compreensão pelos antigos, mesmo que as ações tenham consequências
econômicas. Um exemplo específico é a noção de economia no grego, Oikonomia,
gerência/administração das unidades domésticas mas em termos meramente convenientes à
subsistência. Não me lembro exatamente de quem era a obra, mas recordo de na graduação ler um
autor (para mim era Boris Fausto, mas tenho profundas incertezas) que afirmava a possibilidade de
existência do capitalismo na antiguidade, em especial em Roma. Finley aparentemente ressalta a
fragilidade do argumento e Palmeira o explana quando afirma que mesmo que um certa elite tivesse
disposição e dinheiro para formular um mercado (no sentido dado a partir do século XVI), não era
sequer interesse, já que a riqueza era pautada na posse de terras mais que na acumulação monetária,
o trabalho era função baixa, de servis, não dignificado no discurso. Questionamentos ao uso de
termo “classe” e as condições da economia-social são caracterizados ao longo da anatomia da
Ancient Economy. Interessante destacar a constante presença do diálogo com comentadores, algo
que perpassa não só uma quantidade enorme de leituras, mas a discussão centralizada sobre
concepções, conceitos e termos que Finley utiliza, já em uma dada condição de scholar para
entender a antiguidade.
Percebe-se que no segundo capítulo o autor faz uma apreciação do desenvolvimento dos
conflitos acadêmicos sobre a visão da economia antiga. Explora, nesse sentido, as teses propostas
por Bücher (economia, primitivista) e Meyer (história, modernista) como dominante no palco
institucional, palco este, como já sublinhamos, que na leitura de Palmeira encaixa-se de forma
contundente na lógica de campo científico de Pierre Bourdieu (ao menos para o caso alemão). Essa
discussão, portanto, perpassa a proposta de se perceber que a lógica acadêmica e as disputas
internas do campo a partir dos jogadores são essenciais para o estabelecimento de um modo de
compreensão e na formulação de críticas que passariam a vigorar quase de maneira contra-
hegemônica (exagerei no uso do conceito, confesso) para posteriormente adentrarem o discurso
interno. É um capítulo de retomada histórica, de apresentação da discussão em uma cronologia
extensa que mais representa uma visão ampla do campo que necessariamente uma leitura de Finley,
isto é, há uma historicização dos processos que remontam ao momento histórico entre Alemanha
(centro da disputa sobre economia antiga) e a Inglaterra (pouco próxima disso). A Segunda Guerra
Mundial viria a alterar um pouco esse balanço. O mesmo acontece para a ambientação das disputas,
principalmente focalizadas na Alemanha e que diferem dos estudos dados em prosseguimento da
Inglaterra. Essa definição espacial e temporal remete ao trabalho historiográfico de perceber
(mesmo que talvez um pouco extrapolado) as disposições do lugar social.
É possível, então, salientar que a alteração da ordem intelectual pós Segunda Guerra foi
proeminente tanto para o desenlace das disputas conceituas de Bücher e Meyer quanto na busca,
apontada pelo autor através de escritos como de Édouard Will nos Annales, de uma categoria
instrumental de análise da economia antiga. Essa perspectiva é então a profusão dos estudos de
Polanyi e de Finley para categorizar o modelo, o que se reflete no título do segundo capítulo, “um
modelo em construção”. Um modelo que partiria de questionamentos de Max Weber e Johanes
Hasebrök sobre as limitações da disputa entre primitivistas e modernistas, entendendo a
necessidade de se explorar a história antiga por ela mesma, pelas suas considerações, mesmo que
feita, como afirma Palmeira ao início do capítulo, como prática comum nas Ciências Sociais de
entender o processo passado através do presente. É aqui também que se compreende (ao menos em
parte) o lugar de marginalização do qual Finley saiu passando a protagonista. Os caminhos podem
ser tortuosos e irregulares (ao menos espera-se que sejam apresentados futuramente como indicado
na introdução), mas que perpassam, também, um contexto específico que delineava a busca por
novas maneiras de pensar a economia da antiguidade. A conclusão da terceira parte exprime a ideia:
“O que parece estar em jogo entre os autores que renovam a historiografia da economia antiga nas
décadas de 1950 e 1970 é a construção coletiva de ‘quadros sociais’ de recepção e um esforço ‘mais
ou menos consciente’ de promoção dessa inovação: associam-se, situam-se distantes das
concepções ‘dominantes’ sobre a economia antiga, constroem um patrimônio comum de heranças
intelectuais, cerram fileiras em nome da inovação; arranjam e rearranjam relações sociais de
maneira a dizer algo da economia antiga e serem ouvidos a respeito” (p. 77).
O terceiro capítulo se apresenta como um tipo de biografia que relaciona os aspectos da vida
de Finley nos Estados Unidos e sua ida à Inglaterra. É interessante perceber que Palmeira faz uma
articulação com o contexto macartista e a demissão de Finley pela Rutgers em 1952 e, ainda mais,
em como sua articulação para a chegada até a Inglaterra se passou por contatos e especificamente
como um bocado de caridade a fim de se reorganizar enquanto acadêmico. Isso perpassa boa parte
das fontes tratadas por Palmeira, em especial as cartas com ingleses e as tratativas sobre as
qualificações para o trabalho e o trabalho em si. Pode-se perceber a continuidade dos traços
retrospectivos no capítulo, ao partir da análise do retorno de Finley e das revisões bastantes
adjetivadas sobre sua pessoa e pesquisa, passando por sua demissão e ingresso em Oxford e
permanência em Cambridge. O destaque do autor é bem nítido: pode ser que o acaso (pensando
aqui em processo histórico que envolve a demissão e o contato com pesquisadores ingleses) seja
responsável pelo alavancar da carreira de um notável estudioso da antiguidade, especialmente da
economia. Com poucos trabalhos publicados e uma perspectiva cruel de destino, a saída à Inglaterra
tornou-se uma salvação mais que expectativa.
O quarto capítulo faz algo parecido, mas agora falando dos momentos iniciais da vida e
carreira acadêmica de Finley, anteriormente Finkelstein. O autor aprofunda as fontes para biografias
(que na maioria das vezes eram, como ele coloca, controladas pelo biografado), entrevistas, cartas
de emprego, currículos e até arquivos do FBI. Nesse sentido, buscou traçar um panorama de Finley
e a academia, passando pelo pródigo início de vida até a obscura distância da década de 1940. O
que nos interessa, até para compreender o aspecto objetivo da tese, é ressaltar as influências na vida
acadêmica (ou o famoso lugar social que tanto é perfilado por Certeau), o trabalho com a Escola de
Frankfurt, as leituras ácidas com caráter sempre firme e contrário aos clássicos (no sentido de
ressaltados pelo campo científico), os contatos com outros clássicos (como Marx, Weber, etc.), a
projeção acadêmica através de Franz Boas (mentor de Gilberto Freyre, para ressaltar uma
curiosidade) e já conhecido combatente da aproximação entre raça e cultura, e também a
participação no grupo de Karl Polanyi.
No decorrer da parte final da tese, percebe-se uma continuação da ideia biográfica mas que
agora permeada por questões mais próximas do conhecimento da antiguidade em si. O autor
começa apresentando o World of Odysseus e em como o livro foi uma caracterização da
aproximação de Finley com as ciências sociais e, na verdade, como um livro publicitário, que tinha
como objetivo colocar o nome do autor em destaque para os classicistas. É também o momento que
Palmeira discute pontos do texto (parecido com o modo feito no primeiro capítulo), mas
destacando, posteriormente, em como se deu a fixação de Finley, no mesmo processo, na Inglaterra.
As particularidades que envolviam suas formas de escrever e sua formação acadêmica ante aquilo
que se caracterizava no período como exigência mínima (vide teste Tripos), nesse caso o
conhecimento em Grego e Latim, foram totalmente adversos do conhecimento do estudado. É
interessante ainda destacar o fato de que essa própria característica de outsider acabou por gerar
uma nova estrutura de conhecimento e de players capazes de, internamente, alterar os
funcionamentos do campo da antiguidade (que na Inglaterra, como vimos, ao menos para a
economia antiga, era formalizada na década de 1930 e 1940). É nesse sentido que as disposições
relativamente estranhas de Finley foram, a partir de publicações e revisões dos pares, alçadores da
vertigem especializada do autor que, vale lembrar, era formado em psicologia, mestre em direito,
trabalhou em círculos das Ciências Sociais e só se doutorou em História na década de 1950, além de
sua estratégia (se é que assim posso chamá-la) da publicação de revisões para leitores não-
acadêmicos gerou uma (como apresenta sua entrevista com Hopkins) figuração de receio dos
letrados. É como apresenta os caminhos de um contemporâneo na Antropologia, Edmund Leach,
mesmo que de condições sociais diferentes, mas por meio de tons e questionamentos ao modo de
configuração da disciplina de forma conceitual.
É possível compreender, então, de forma mais contundente os desejos da tese: estabelecer,
por meio da historiografia, uma inflexão ortodoxa na antiguidade baseada em alguns expoentes,
como Finley e em entender que mais que um certo ineditismo, sua ascensão se deu por uma
expressividade ácida e de questionamento da zona de conforto que se comungava nas relações
sociais britânicas. É assim que esse reestabelecimento acaba por ser uma crítica mas também uma
busca por aprovação do modo de funcionamento do que convém, ao menos em minha leitura para o
período, chamar de campo aos moldes bourdienianos. Interessante notar, também, no extenso
conjunto de anexos que fazem parte da tese, na qual o autor transcreve boa parte das fontes, em
especial correspondências, e dos locais onde se encontram. Apesar de tomar ¼ do espaço da tese,
foi fundamental, a meu ver, para estabelecer uma possível legitimidade e espaço para releituras
futuras de Moses Finley.

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