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Capítulo VI

A estrutura das normas de direitos fundamentais (cont.)

§ 1. A “função social” dos direitos fundamentais

1. A concepção kantiana de “liberdade” compreende o desenvolvimento da


“liberdade individual” com considera-ção da “liberdade dos outros”. Isto é, trata-se de uma
concepção solidária da liberdade individual através da liberdade dos outros.

2. A esta concepção de liberdade acrescenta Hegel a noção de uma “liberdade real”,


isto é, do indivíduo inserido na sociedade.

3. O individualismo surge como uma reacção ao Estado absoluto. E é consequência


da perda de peso político dos estatutos sociais, constituídos em ordens e estamentos
hierarquizados (nobreza, clero, terceiro estado e/ou estamento). Esses estamentos e ordens
hierarquizadas regiam a vida comunitária: a família, as corporações e a Cidade, com a sua
autonomia e senhorias nobiliárquicas (v. g., Florença, Veneza, etc.).

4. A pouco a pouco vai-se afirmando a separação entre o Estado e a Sociedade, a


separação entre a sociedade política e a sociedade civil. Esta última auto-governava-se,
cabendo à primeira, através da Constituição, garantir a realização da autonomia societária e
das suas iniciativas individuais.

5. Com o aparecimento do Estado social, um Estado positivo (por contraposição ao


Estado negativo do laissez-faire), administrativo e regulador, as esferas do Estado e da
sociedade civil interpenetram-se.

6. Assiste-se, pois, a uma perda de efectividade da Constituição liberal.

7. Por outro lado, na esfera societária, para além dos indivíduos, vai dar-se o
reconhecimento dos grupos e das suas necessidades particulares.

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8. Daí também o reconhecimento da “função social” dos Direitos fundamentais.
E que significa:

• primeiro, o reconhecimento de que o homem não é um ser abstracto e nouménico,


mas um indivíduo que se encontra inserido na sociedade; e que é em sociedade que o
indivíduo, como cidadão e burguês, exerce os seus direitos sob garantia da Constituição,
que é tanto a Constituição do Estado como a Constituição da Sociedade.
• segundo, que para além dos direitos individuais exis-tem os direitos dos grupos —
associações, partidos políticos, Igrejas, sindicatos, etc.

9. Para além disso, existem agora os chamados direitos sociais, ou direitos de


segunda geração, que são direitos prestacionais, isto é, constituem o Estado e outras auto-
ridades públicas num dever de prestar algum bem ou serviço (v. g., o direito de acesso aos
cuidados de saúde, artigo 64º da CRP).

10. Daí também a necessidade, relevada por Roosevelt, de uma “nova” concepção
de direitos, uma “re-definição de direitos em termos de contrato social” (New Deal).
Assim:

• para além dos “clássicos” direitos de defesa face a intromissões do Estado e de


outras autoridades públicas;
• existem os “direitos sociais” (: direitos económicos, sociais e culturais, na
terminologia da CRP), que reclamam por uma acção, um facere por parte do estado e de
outras autoridades públicas — a prestação de bens e serviços.
• esse “novo” contrato social (New Deal) implica uma “síntese” entre os clássicos
direitos de defesa e os novos direitos sociais em “contextos supra-individuais”.

11. E implica, ainda, uma ampliação do conceito de “liberdade”. A liberdade não é


apenas “negativa”, mas também “positiva”. É uma liberdade de participação nos bens de
vida.

12. Não se trata apenas de uma “liberdade face ao Estado” (liberty from
government), mas ainda de uma “liberdade através do Estado” (liberty through govern-
ment).

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13. Nisto consiste o estatuto de direitos cívicos: o conjunto dos direitos e liberdades
fundamentais nas suas dimensões positiva e negativa.

14. Quer dizer, não basta apenas a autonomia, é necessária ainda a independência.
A liberdade não é só autonomia (no sentido kantiano do termo), mas também a “não
dominação”. Um indivíduo dependente, necessitado, não é um homem livre (Roosevelt).

15. Para levar a cabo a “função social” dos direitos fundamentais, quer dos direitos,
liberdades e garantias, quer dos direitos económicos e sociais, isto é, concretizá-la, carregá-
la de sentido, necessitamos de instituições (repu-blicanas) e de formas procedimentais de
uma democracia deliberativa.

16. O indivíduo assume igualmente “compromissos” (commitments) face aos


interesses fundamentais da socie-dade. Assume um compromisso pelo bem-estar social.

2. Os direitos económicos, sociais e culturais

1. Os direitos económicos, sociais e culturais são “direitos prestacionais” que se


traduzem na prestação por parte do Estado e de outras autoridades públicas da prestação de
algum bem ou serviço.

2. Os norte-americanos designam essas pretensões por “entitlements”, isto é,


“títulos” ou “créditos” relativos ao gozo de determinados bens ou serviços. Créditos que os
indivíduos deteriam sobre o Estado e outras autoridades públicas, beneficiando de uma
protecção efectiva. Como, v. g., o direito de propriedade (artigo 62º) ou o direito de
iniciativa privada (artigo 61º da CRP).

3. Só que, de acordo com a Constituição de 1976, os direitos económicos, sociais e


culturais beneficiam do regime jurídico geral dos direitos fundamentais, mas não do regime
jurídico específico previsto para os direitos, liberdades e garantias, basicamente o disposto
no artigo 18º da Constituição.

4. Existe, de facto, uma diferente estrutura de normas no cômputo dos Direitos


Fundamentais entre os direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e

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culturais. Os primeiros são direitos negativos, os segundos direitos a prestações positivas,
mas não detêm uma diferente natureza. Ambos, os direitos, liberdades e garantias e os
direitos económicos, sociais e culturais, são direitos fundamentais.

5. E dada a multidimensionalidade dos Direitos Fundamentais, existem direitos


catalogados como direitos económicos, sociais e culturais que incluem “direitos de natureza
negativo-defensiva”, como, por exemplo, o “direito de iniciativa privada” (artigo 61º da
CRP) ou o “direito de propriedade” (artigo 62º da CRP), que não carecem, como tal, de
conteúdo prestacional.

6. O mesmo poderá dizer-se do “direito à greve” (artigo 57º da CRP) ou do “direito


à liberdade sindical” (artigo 55º da CRP). Estes últimos, até à revisão constitu-cional de
1982, foram qualificados de “direitos sociais” ou “conquistas dos trabalhadores”.

7. A sua qualificação actual como “direitos, liberdades e garantias dos


trabalhadores”, fá-los beneficiar, por imperativo constitucional, do regime jurídico
específico previsto para os “direitos, liberdades e garantias”.

8. Um dado, ainda, relevante na compreensão dos direitos económicos, sociais e


culturais. Trata-se de “direi-tos originários”, isto é, de direitos directamente reconhe-cidos
pela Constituição e não pela lei.

9. A questão não está numa diferente natureza desses direitos — ambos os direitos
liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais são direitos
fundamentais — mas numa diferença na estrutura das normas reconhecedoras de Direitos
Fundamentais.

10. É o carácter prestacional e de medida dos direitos económicos, sociais e


culturais que obriga não apenas a uma sua realização gradual, de acordo com aquilo que o
indivíduo pode razoavelmente esperar da sociedade, como determina ainda a intervenção
mediadora do legislador no sentido de fixar o bem ou o quantum da prestação, que tem
naturalmente uma tradução financeira ou orçamental.

11. Daí que o mandato de auto-exequibilidade ou exe-quibilidade autónoma (:


directamente aplicáveis) contido no nº 1 do artigo 18º da Constituição nem sempre se possa

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verificar no caso dos direitos económicos, sociais e cultu-rais. É o que ocorre com o direito
de acesso à saúde (artigo 64º da CRP), habitação e urbanismo (artigo 65º da CRP) ou o
direito ao ensino (artigo 74º da CRP).

12. Em relação ao disposto no artigo 18º/2 e 3 da Constituição este aplica-se, de


acordo com a doutrina e a jurisprudência consolidada, à totalidade dos Direitos
fundamentais, quer os direitos, liberdades e garantias, quer aos direitos económicos, sociais
e culturais.

13. Por sua vez, os “direitos de defesa” podem apre-sentar-se como “direitos a
prestações”. Estão neste caso o direito de voto (artigo 10º da CRP), o direito a uma tutela ou
defesa efectiva dos direitos na sua integralidade (artigos 20º, 202º, e 268º/4 da CRP). Ou o
dever, que incumbe ao Estado, de criação de “normas de organização e procedi-mento”
(incluindo medidas administrativas e fácticas) que, de algum modo, requerem uma
prestação estadual.

14. Ora, é esse “condicionamento” e “dependência conjuntural” dos direitos


económicos, sociais e culturais dos “recursos disponíveis” que está na origem da distinção
entre os “direitos de defesa”, de um lado, e os “direitos sociais” (direitos prestacionais), do
outro.

15. Os primeiros, “direitos de defesa”, afirma-se, não se encontram dependentes da


situação económico-social, nem vêm garantidos por esta. Não têm custos. Os segundos,
“direitos sociais”, diferentemente, têm os seus custos, só podendo ser garantidos na “medida
do possível”, isto é, de modo proporcional ao desenvolvimento e ao progresso económico e
social.

16. A literatura jurídica refere, a este propósito, que o direito se encontra sujeito a
uma “reserva do possível”.

17. Mas o que deverá entender-se por “reserva do possível”?


Concretamente, a dependência desses direitos dos “recursos disponíveis”, querendo
com isso acentuar a sua dependência dos “recursos económicos” existentes e, desi-
gnadamente, relevar a necessidade da sua cobertura orça-mental e financeira.

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18. No mínimo, uma qualificação que se traduz no reconhecimento de que a
inexistência de recursos econó-micos força os poderes públicos a fazer menos do que aquilo
a que se encontravam sujeitos. Esta cobertura não exclui, todavia, a garantia de um “mínimo
social”.

19. Essa garantia de um “mínimo social” decorre directamente do princípio da


dignidade da pessoa humana como “direito fundamental” e “valor jurídico-constitu-cional”
supremo (artigo 1º da CRP). O primeiro dos direitos económicos, sociais e culturais.

20. É com base nesse princípio que se extrai, por exemplo, o reconhecimento
constitucional do “rendimento social de inserção” (vd., Ac TC nº 509/2002 — rendimento
social de inserção).

21. Só que essa garantia não se apresenta como um direito social, antes como uma
“forma de liberdade”, e, nesses precisos termos, assume juridicamente a natureza de um
“direito de defesa”, ainda que este se traduza num di-reito a “prestações positivas” por parte
do Estado.

22. Os direitos económicos, sociais e culturais são “direitos constitucionais


originários”, isto é, direitos garan-tidos directamente por normas de estalão constitucional.
Dispõem de vinculatividade normativa geral.

23. Historicamente, os casos da França e da Alemanha, podem servir aqui, de algum


modo, de paradigma.
No caso da França, a Constituição de 1793, que, re-corde-se, nunca chegou a entrar
em vigor, reconhecia o “direito ao trabalho” (artigo 21º) e o “direito de resistência” (artigo
33º), tendo sido este último interpretado, por alguns comentadores, como representando a
consagração “avant la lettre” de um possível “direito à greve”.

24. Mais tarde, a Alemanha, dirigida pela mão de ferro de Bismarck, estabeleceria
um “sistema de segurança social obrigatório”, estribado em três leis, promulgadas entre
1883 e 1889, relativas a doenças, acidentes industriais, velhice e invalidez.

25. A literatura jurídica, sobretudo alemã, refere, a este propósito, a existência, para
além dos “direitos originários a prestações”, os estabelecidos directamente pela Consti-

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tuição ou normas de estalão constitucional, dos chamados “direitos derivados a prestações”
de que resultaria para os cidadãos, de forma imediata:
● um “direito de igual acesso, obtenção e utilização” de todas as instituições
públicas, designadamente igual acesso a instituições de ensino, igual acesso aos serviços de
saúde, igual acesso à utilização dos transportes públicos, etc.; e,
● um “direito de participação” ou “direito de igual quota-parte”, uma vez acedido,
nas prestações fornecidas por esses serviços ou instituições à comunidade, designa-damente
um direito de quota-parte nas prestações de saúde, nas prestações escolares, nas prestações
de reforma e in-validez, etc.

26. De forma esquemática: os direitos “derivados” a prestações consistem na


promoção de determinadas activi-dades ou serviços relevantes quer quanto à participação
numa instituição quer quanto à prestação de que gozam outras pessoas na mesma posição.

27. Em ambos os casos, o argumento decisivo a favor da sua vinculatividade radica


numa participação/actividade igual. Daí a designação de direitos “derivados” a presta-ções,
posto que o seu âmbito é justamente o da “prestação”.

28. Uma classificação que encontra a sua base jurídica no “princípio de igualdade”.
Mas também poderia ser utilizada tendo por fundamento o “princípio da confiança”, a
“garantia da propriedade” ou os “direitos de liberdade”.

29. Esses direitos “derivados” a prestações apresen-tam-se como verdadeiros e


próprios “direitos fundamentais de igualdade” (Gleicheitrechte), posto que se traduzem na
atribuição aos cidadãos de um “direito a uma participação igual nas prestações estaduais”.

30. Aqui a estrutura básica dos direitos a prestações segue a estrutura dos direitos
de igualdade, logo dos direi-tos, liberdades e garantias, e não a dos direitos econó-micos,
sociais e culturais.

31. Partindo destas premissas, chegamos a um concei-to de “direitos a prestações”


como “direitos a acções iguais”, entendidos como direitos a prestações “derivados” do
princípio geral de igualdade face à garantia dos “deve-res de prestação” no âmbito social,
como, v. g., no caso das subvenções, de autorização para a fruição de instituições públicas,
etc., que assiste a todo o cidadão sob determinadas condições.

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32. Entre nós, GOMES CANOTILHO afirma que os direitos económicos, sociais e
culturais, enquanto “direitos a prestações”, implicam:

● Uma interpretação das normas legais conforme à “constituição social, económica


e cultural” ― por exemplo, em caso de dúvida sobre o âmbito da segurança social, deve
seguir-se a interpretação mais conforme à realização efecti-va desses direitos, o que
corresponde, na terminologia de Hesse, a uma sua “efectividade óptima”.
● A inércia do Estado pode dar lugar a inconstitu-cionalidade por omissão,
considerando-se que as normas constitucionais consagradoras desse tipo específico de di-
reitos implicam a inconstitucionalidade de normas legais que não desenvolvam a realização
do direito jusfundamen-tal ou a realizem diminuindo a efectivação legal anterior-mente
atingida (: proibição da omissão e/ou insuficiência).
● Por último, a proibição do retrocesso social, que-rendo com isso significar que,
uma vez consagradas legal-mente as “prestações sociais” (v. g., de assistência social), o
legislador não poderá depois eliminá-las sem alternativas ou compensações.

33. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitu-cional nº 39/84, que declarou a


inconstitucionalidade das normas constantes do Decreto-Lei nº 254/84, de 29 de Junho, que
revogava grande parte da Lei nº 56/79, de 15 de Setembro, instituidora do “Serviço
Nacional de Saúde”, bem como o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 509/ 2002,
relativo ao “rendimento social de inserção”, poderão servir aqui, de algum modo, de
paradigma. O que era uma “obrigação positiva” — cumprir, total ou parcialmente, as tarefas
constitucionais — transforma-se numa “obrigação negativa”.

34. O Estado que dentro de determinadas circuns-tâncias e condições se encontrava


obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social passa a estar agora obrigado a abster-
se de atentar contra a realização dada ao direito so-cial, sobretudo se essa acção se traduzir
numa vulneração ou esvaziamento do “conteúdo essencial” do direito em causa (artigo
18º/3, “in fine”).

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