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100 MANUAL DE SOCIOLOGIA JURÍDICA CONFLITOS, INTEGRAÇÃO E MUDANÇAS SOCIAIS 101

responder às verdadeiras necessidades sociais dos países “subdesenvol- tentando introduzir a mudança através da atuação dos poderes consti-
vidos” e de conseguir uma mudança na sociedade através da aplicação tuídos (mudança de baixa intensidade). Por sua vez, o direito alterna-
de um “outro” direito, gerado espontaneamente no seio dos movimentos tivo, no significado latino-americano do termo, tenta elaborar um novo
sociais e suhstituindo paulatinamente o “opressor” direito do Estado. sistema jurídico (novos sujeitos, novas normas), que seria antagônico
Esta tendência é muito forte no Brasil. Existe extensa bibliografia ao direito do Estado (mudança de alta intensidade).
sobre o tema e mesmo programas de ensino universitário de “direito Um segundo elemento comum às duas versões da alternância jurí-
alternativo” (Arruda Júnior, 1993, pp. 178 e ss.). Encontramos também dica é que se objetiva alterar (com menor ou com maior intensidade) o
numerosas decisões de tribunais que fazem um uso alternativo do direito, conteúdo da lei através da prática judicial. Isto cria uma série de pro-
decidindo a favor da parte mais fraca, mesmo quando isto impõe uma blemas políticos, colocando a questão se os juízes e os doutrinadores
interpretação do direito tecnicamente duvidosa. do direito possuem a legitimação social e a capacidade prática de rea-
Exemplos: absolvição de um lenhador que furtou uma moto-serra lizar uma mudança radical do direito.
para utilizá-la como instrumento de trabalho; negação do pedido de Além disto, devemos pensar que o direito alternativo não é sempre
restituição de posse a proprietários de terras ocupadas por trabalhadores progressista. Aceitando a possibilidade de mudar o direito através da
“sem-terra” e de prédios invadidos por pessoas “sem-teto”.’3 interpretação jurídica, podemos também cair em uma concepção auto-
Em sua versão mais radical o direito alternativo apresenta-se como ritária do direito alternativo: osjuízes poderiam erguer-se em justiceiros
um sistema que se distancia deelaradamente das normas estabelecidas acima dos vai ores jurídicos de sua função, vetando direitos sociais,
pelo Estado: “é o contra legem — que pode atuar, explícita ou implici- reprimindo os desviantes e impondo interesses dos poderosos.
tamente, em nome da justiça social” (Souto e Souto, 1997, p. 242). De fato, a experiência italiana dos anos 70 e 80 demonstrou que
Reivindica-se assim a legitimidade de novos sujeitos coletivos, que muitos doutrinadores, juízes e promotores interpretavam as leis penais
surgem dos movimentos sociais e poderiam atuar na solução de confli- de forma extensiva ou mesmo ilegal, para combater as organizações de
tos, fora e além do direito do Estado. Os princípios norteadores destes Esquerda acusadas de terrorismo. Um outro exemplo de “direito alter-
novos legisladores e juizes seriam a satisfação das necessidades da nativo” conservador constitui o direito muçulmano tradicional, que em
população, a democracia participativa e descentralizada, o desenvolvi- muitos países islâmicos voltou a ser aplicado pelos juízes, mesmo
mento de uma ética de solidariedade e o desenvolvimento de uma nova contra o direito estatal, após a vitória política de grupos fundamentalistas
racionalidade, visando a emancipação (Wolkmer, 1993, pp. 228-229; (Losano, 2000, pp. 1.053-1.054).
1997, pp. 207-254). Atualmente, também vivenciamos uma aplicação alternativa do di-
Em poucas palavras, o verdadeiro direito alternativo é um “direito reito no Brasil por parte de promotores ejuízes que, preocupados com os
achado na rua”, um “direito comunitário”, “vivo” ou mesmo um “direito índices de criminalidade,interpretam a lei penal de forma extensiva. Exem-
insurgente” e “rebelde”, que resulta do “poder popular” e exprime plo: considerar que a utilização de armade brinquedo em um assalto deve
valores libertários,’4 ser equiparada ao emprego de arma de fogo. Esta interpretação prevale-
Deparamo-nos assim com duas versões da concepção do direito “ ceu na jurisprudência por muitos anos, tendo sido abandonada pelo Su-
como fator de mudança social. Ambas partem da tese que é possível usar perior Tribunal de Justiça em 24.10.2001 (REsp 213 .054-SP).
o direito como propulsor do processo de mudança social, diferencian-
do-se no grau de intensidade desta mudança. O uso alternativo do direito
tenta, de acordo com o significado dado ao mesmo na Europa, mudar
o direito “por dentro”, respeitando as normas jurídicas em vigor e

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