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Prof. Me.

Gil Barreto Ribeiro (PUC Goiás)


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Larissa Rodrigues Ribeiro Pereira


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Profa. Dra. Terezinha Camargo Magalhães (UNEB)
Profa. Dra. Christiane de Holanda Camilo (UNITINS/UFG)
Profa. Dra. Elisangela Aparecida Pereira de Melo (UFT)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

IDEOLOGIA E PODER:
uma análise do discurso dos jornais O Rio Branco e
Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)

1ª edição

Goiânia - Goiás
Editora Espaço Acadêmico
- 2020 -
Copyright © 2020 by Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Editora Espaço Acadêmico


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Revisão: Paula Regina Moura Leão da Silva e Reginâmio Bonifácio de Lima


Editoração: Franco Jr.
Imagem da capa: Pixabay / Devanath - Sandid

CIP - Brasil - Catalogação na Fonte

B715i Bonifácio, Maria Iracilda Gomes Cavalcante.


Ideologia e poder : uma análise do discurso dos jornais O Rio Branco
e Varadouro durante a ditadura civil-militar (1977-1981) [livro eletrôni-
co] / Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio. – 1. ed. – Goiânia :
Editora Espaço Acadêmico, 2020.
115 p. ; E-book

Bibliografia
ISBN: 978-65-00-01173-9

1. Imprensa - Acre - ditadura militar. I. Título.

CDU 070:321.6(811.2)

O conteúdo da obra e sua revisão são de total responsabilidade do(s) autor(es).

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A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido
pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil | Printed in Brazil


2020
AGRADECIMENTOS

A Deus, refúgio e fortaleza em todos os momentos;


A meu esposo, Prof. Dr. Reginâmio Bonifácio de Lima, co-orientador
desse trabalho, pelo amor dedicado e por me fazer acreditar que é possí-
vel construir um mundo melhor para as gerações futuras;
A minha família pelo apoio e incentivo em todos os momentos.
Meus pais: Selmo e Sebastiana pelo carinho e apoio nos momentos difí-
ceis, me ensinando a trabalhar com honestidade e a lutar pelas coisas nas
quais acredito;
A minhas princesas, vovós Julieta (in memorian) e Luzia, que me
fizeram apaixonar pelas histórias de outrora;
A meu irmão Erivan, minhas irmãs Edilene, Edileuza, Etilene, Ire-
nilza, minha irmã e bolsista Selyana, aos meus sobrinhos Thaylinne, João
Marcos, Karoline, Ester, Emanuelle, Gabriel, Allys Beatriz, Stive e Kel-
ven, que proporcionaram o suporte moral, emocional e contribuíram di-
retamente para esta realização;
A Prof.ª Dr.ª Simone de Souza Lima, pelo incentivo e preciosa
atenção durante a pesquisa, ajudando a pensar o discurso como marca
identitária dos sujeitos dessa pesquisa;
A Prof.ª Dr.ª Margarete Edul Prado de Souza Lopes, pelas ricas
contribuições que nos levaram a pensar no importante papel da mulher no
contexto da História Acreana;
Ao Prof. Dr. Elder Andrade de Paula pelas sugestões que muito
ajudaram na elaboração do texto final do trabalho;
Aos servidores do Museu da Borracha, Biblioteca Central do Esta-
do, CDIH e Biblioteca da Ufac, pela disponibilização do material analisa-
do e referências bibliográficas, bem como pela presteza no atendimento;

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

À senhora Odília Andrade da Silva, servidora do Museu da Bor-


racha, pelo reconhecimento do valor do patrimônio histórico com o qual
trabalha e por tão prestativamente ter nos auxiliado durante anos de pes-
quisa, sempre sendo solícita e atenciosa;
Ao amigo Johny, da Karine Cópias, pela impressão das várias ver-
sões de esboços desta obra e apoio com os materiais de pesquisa;
Aos jornalistas que atuaram nos jornais acreanos durante a Ditadu-
ra Civil-Militar, sobretudo nos jornais que enfocamos neste trabalho, Va-
radouro e O Rio Branco, por transporem para as páginas dos jornais os
embates e lutas políticas vivenciados pela sociedade acreana neste tão di-
fícil momento da História do país;
A todos que colaboraram direta e indiretamente para a elaboração
deste trabalho, sem os quais não teria conseguido obter êxito.

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO.............................................. 9

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO........................................................ 11

APRESENTAÇÃO................................................................................ 14

Capítulo I: OS DISCURSOS E OS EDITORIAIS................................ 20

♦♦ A trajetória da imprensa riobranquense (1900-1985)......................... 24


♦♦ A imprensa familiar e o jornalismo opinativo (1900-1929)................ 25
♦♦ A era dos manuais de redação (1930-1962)............................................ 29
♦♦ O jornalismo informativo: a ditadura do lead (1963-1985)................ 31

Capítulo II: COMUNICAÇÃO, IDEOLOGIA E PODER NO


CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR.................. 36

♦♦ A Ditadura Civil-Militar no Brasil e sua influência no sistema


de comunicação da Amazônia Ocidental................................................ 36
♦♦ A Ditadura Civil-Militar no Acre e sua influência na imprensa
escrita.................................................................................................................... 43

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Capítulo III: VARADOURO e O RIO BRANCO: A REPRESENTAÇÃO


DOS SUJEITOS ATRAVÉS DO DISCURSO..................... 60

♦♦ A luta pela terra no Acre e os embates entre os sujeitos.................... 60


♦♦ Os movimentos sociais urbanos em Varadouro e O Rio Branco....... 71
♦♦ A Amazônia e a questão indígena: duelos no discurso da
imprensa escrita acreana................................................................................ 84
♦♦ A representação da luta pela sobrevivência nas “periferias”
de Rio Branco...................................................................................................... 98
♦♦ O discurso nas redes do poder...................................................................107

REFERÊNCIAS.................................................................................. 110

♦♦ Entidades...........................................................................................................113

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
APRESENTAÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO

“(...) o sentido de uma obra (ou dum texto) não pode fazer-se sozi-
nho; o autor nunca produz mais do que presunções de sentido (...).
Todos os textos dados aqui são como elos de uma cadeia de senti-
do, mas essa cadeia é flutuante”.
Roland Barthes

I
deologia e Poder é uma obra que nasceu de um anseio de com-
preender fragmentos de uma memória traumática vivenciada no
Brasil do período da Ditadura Civil-Militar. Se hoje esse momen-
to histórico ainda apresenta inúmeras lacunas em termos nacionais, mes-
mo já havendo se passado mais de meio século, em se tratando do Esta-
do do Acre esse hiato se torna ainda maior, dados os esparsos trabalhos
sobre o tema.
Durante quase uma década de estudos sobre essa temática, por in-
contáveis vezes ouvi de diversas pessoas, surpresas com os resultados da
pesquisa que então empreendia, questionamentos como: “Houve Ditadu-
ra no Acre? Mas isso não foi só lá nos outros estados do Brasil?”. Essas
indagações recorrentes foram a força motriz para que esta segunda edição
de “Ideologia e Poder” se concretizasse.
Ao observar os inúmeros estudos sobre a imprensa acreana que não
apenas citam esta obra mas também que deram continuidade aos questio-
namentos que ela levanta decidimos reeditá-la. Ao mesmo tempo, inten-
tamos contribuir com o debate sobre as questões em torno das relações
entre mídia e poder, além de abrir o espaço para novos questionamentos
que esta obra, pela própria natureza de sua proposta, não teve como in-
tenção abarcar.

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Optamos por não fazer alterações significativas na obra, apenas


algumas mudanças de terminologia que acompanham os debates atuais,
como uma tentativa de deixar latente o modo cáustico em que foi conce-
bida. Em primeira instância, esta obra trata-se de um texto de uma pes-
quisadora tentando compreender a trajetória da imprensa riobranquen-
se e um momento histórico importante para seu país e seu Estado. Mas,
em um camada mais profunda, este livro representa a busca de sentido
para sua própria história de migração de uma cidade do interior para a
Capital acreana, ocasionada sob os efeitos do projeto de integração da
Amazônia empreendido pelos governos militares, que resultou na trans-
formação das áreas agrícolas e antigos seringais em pastagens para a
agropecuária.
Nosso intento, ao apresentar esta segunda edição é que as vozes
sociais que saltam das páginas dos antigos jornais Varadouro e O Rio
Branco possam nos fazer pensar na importância da luta pela liberdade de
expressão e na necessidade de haver sempre resistência em meio aos con-
textos de silenciamentos. Que “Ideologia e poder” seja uma voz contra o
cerceamento de dizeres não apenas da imprensa, que seja uma fonte de
reflexão sobre as mazelas da Ditadura... “Para que não se esqueça, para
que nunca mais aconteça!”.

Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio


Filha e neta de migrantes acreanos

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

I
deologia e Poder: uma análise do discurso dos jornais O Rio
Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-
1981) é uma das mais belas e mais bem escritas obras sobre a
imprensa acreana. Uma mistura de literatura e jornalismo, incidindo na
linha tênue entre ambos, onde o saber das ideias e formulações é tempe-
rado pelos estudos culturais, buscando analisar “os discursos e suas con-
dições de produção”.
Tive o privilégio de ser convidado pela autora para escrever estas
modestas linhas, contudo, fica-nos a dúvida sobre quem é maior, a obra
para a literatura, os estudos da linguagem e para o jornalismo de forma
geral, por abordar temas tão complexos quanto apaixonantes com a ri-
queza de informações consistentes e a profundidade necessárias para uma
obra expressiva, valorosa e sem pedantismo, ou a autora, pelos trabalhos
que tem desenvolvido na sociedade riobranquense e a contribuição atuan-
te nas relações entre pesquisa, ensino e sociedade.
Maria Iracilda já escreveu obras como O Imaginário Social: estu-
dos dos editoriais nos jornais de Rio Branco – século XX; Habitantes e
Habitat; Sonhos em BVA - Volume I e II; e este, Ideologia e Poder. Sua
atuação é interessante porque enquanto prefacio este trabalho, que é fru-
to de sua Pós-Graduação em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na
Amazônia/Ufac, no qual obteve nota máxima com distinção e louvor, te-
nho a grata surpresa de saber que a continuação dele, intitulada O Discur-
so nas Redes do Poder, já se encontra em sua segunda edição.
Lendo o título deste trabalho somos tentados a teorizar sobre o que
é ideologia e o que é poder, permeados por pensamentos logitudinais,
impelidos a nos lembrar de Homi Bhabha, Mircea Elíade, Stuart Hall,

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Bernardo Kucinski, quem sabe Eclea Bosi ou Paul Thompson, contudo,


acredito que Iracilda escolheu bem para este trabalho os conceitos desen-
volvidos por Michel Foucault, onde afirma que “o discurso não é sim-
plesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é
aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder do qual queremos
nos apoderar” (Foucault - A Ordem do Discurso).
As ideologias e os poderes envoltos nas linhas, nas fissuras e nas
interjeições propostas neste livro dão conta de uma realidade móvel en-
volta na tempolabilidade da memória escrita dos jornais que foram pro-
duzidos durante o período da Ditadura Civil-Militar.
A divisão em três partes enseja uma pretensa iniciativa de projeção
tempo-espaço ao leitor. Num primeiro momento, contudo, percebemos a
parte inicial como uma exposição de motivos seguida de um breve histó-
rico da imprensa riobranquense, que se liga diretamente com a segunda
parte em que contextualiza as relações de poder, comunicação e ideolo-
gia, no contexto das representações sociais que ensejam coadjuvantes no
cenário de transição dos anos de 1970 para 1980, tendo seu ápice com as
representações dos sujeitos nos discursos dos jornais O Rio Branco e Va-
radouro, sendo o breve último capítulo o desfecho de uma fase de estudo
que já aponta para o que está por vir.
Tentando responder e pensar as várias questões que vão surgindo
no percurso do livro, Maria Iracilda aborda, na primeira parte, intitulada
Os discursos e os editoriais, uma breve reconstituição do itinerário da
imprensa acreana desde seu surgimento até o período da Ditadura Civil-
-Militar. Na segunda parte, intitulada Comunicação, Ideologia e Poder
no contexto da Ditadura Civil-Militar são trabalhadas as influências do
regime ditatorial na constituição dos discursos da imprensa na Amazônia
Ocidental e no Acre. Na terceira parte denominada Varadouro e O Rio
Branco: a representação dos sujeitos através do discurso é feita uma
discussão sobre a representação dos sujeitos discursivos, a partir do con-
traste entre editoriais dos dois jornais pesquisados. Nessa parte, a análise
é feita a partir de quatro temáticas que se repetiram constantemente nos
jornais Varadouro e O Rio Branco: a luta pela terra no Acre e os embates
entre os sujeitos, os movimentos sociais urbanos, a Amazônia e a questão

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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indígena: duelos no discurso da mídia escrita acreana e a representação


da luta pela sobrevivência nas “periferias” de Rio Branco.
Sem dúvida alguma, vale a pena ler este livro que não esgota as
possibilidades de leitura, mas, de forma dinâmica, enfoca as informações
que circulavam nos referidos jornais, num período em que os cerceamen-
tos de direitos e o controle à liberdade de expressão intentavam insisten-
temente reprimir as diversas manifestações contra o regime militar.
O discurso jornalístico produzido em meio ao emaranhado de ativi-
dades que compõem as redes do poder, torna- se latente nesta obra, apre-
sentando “o dito” e os “silenciamentos” circunstanciados pelos grupos
políticos e ideológicos atuantes nos jornais riobranquenses durante a Di-
tadura Civil-Militar.
Neste trabalho, percebemos um considerável avanço na consistên-
cia das informações produzidas pela autora se comparado ao de mesmo
gênero, produzido anteriormente. Ao passo que, esperamos já sem surpre-
sa que a continuação desta obra seja ainda mais bem trabalhada e de ela-
boração progressivamente melhorada.
Com as abordagens aqui contidas, Iracilda contribui para o apro-
fundamento dos estudos referentes às interfaces do regime ditatorial ins-
taurado no Acre, investigando suas especificidades no contexto da histó-
ria nacional e como se deu a inserção da imprensa no contexto das rela-
ções de poder vigentes no Estado durante o período de 1977 a 1981.

Prof. Dr. Reginâmio Bonifácio de Lima

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
APRESENTAÇÃO

A
imprensa constitui valioso material de pesquisa, pois parti-
cipa, produz e veicula representações da realidade, acompa-
nhando o percurso dos homens através da história. Por isso
mesmo, ela é alvo dos interesses dos grupos de poder, que a adulam, vi-
giam e/ou controlam. Por seu poder de irradiação, a imprensa, durante a
Ditadura Civil-Militar, sofreu várias investidas dos líderes militares, tanto
para endossar seu projeto de homogeneização de ideias, quanto para si-
lenciar as vozes dissonantes que resistiam ao processo de cerceamento de
liberdades imposto pelo regime.
Mais de 50 anos se passaram desde que surgiu no cenário nacio-
nal o regime ditatorial, entretanto, a análise das relações entre impren-
sa e poder neste período ainda constitui uma lacuna nos estudos sobre
a sociedade acreana. Buscamos, com este estudo, trazer à discussão os
acontecimentos que marcaram o contexto da Ditadura em âmbito na-
cional e acreano, contribuindo para o aprofundamento dos estudos re-
ferentes às interfaces do regime militar instaurado no Acre. Muitos es-
tudos já foram realizados enfocando o contexto sócio-político das dé-
cadas de 1970 e 1980 no Estado, entretanto, o viés da imprensa e de sua
participação nessas transformações sociais foi tema de raros e esparsos
trabalhos.
A partir de uma pesquisa realizada nas bibliotecas públicas exis-
tentes na capital acreana, encontramos apenas uma obra específica refe-
rente ao período da Ditadura Civil-Militar e sua relação com a imprensa
acreana, a qual se intitula Comunicação Alternativa e Movimentos So-
ciais na Amazônia Ocidental, escrita pelo Prof. Dr. Pedro Vicente Costa
Sobrinho. Neste livro, Costa Sobrinho (2001) resgata e analisa a contri-

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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buição e o apoio que o jornal Varadouro e o boletim diocesano Nós, Ir-


mãos deram aos movimentos sociais no Acre durante o período de 1971
a 1981.
Diante da carência de produção escrita sobre a imprensa acreana,
publicamos em conjunto com a Prof.ª Dr.ª Olinda Batista Assmar e o Prof.
Gleyson Moura de Lima o livro O Imaginário Social: Estudo dos Edito-
riais nos Jornais de Rio Branco - Séc. XX (ASSMAR; BONIFÁCIO; LI-
MA, 2007). Este trabalho foi fruto da Pesquisa de Iniciação Científica,
desenvolvida durante três anos, acerca das mudanças identificadas nas
tendências discursivas dos jornais de Rio Branco no período do Acre Ter-
ritório (1900-1962) e Acre Estado (1963-1999).
Em Ideologia e Poder temos como foco o período da Ditadura Ci-
vil-Militar e sua relação com a imprensa. Neste livro, os jornais escolhi-
dos para análise são O Rio Branco, que circula na capital acreana desde
1969, e Varadouro, que circulou no período de 1977 a 1981. A escolha
desses dois periódicos se fez em virtude do desejo de contrapor dois po-
sicionamentos antagônicos, de um lado, um jornal considerado “de linha
oficial” que apoiava a ideologia dos grupos dominantes e, de outro, um
jornal alternativo, que se posicionava ideologicamente a favor dos mo-
vimentos sociais e contra os atos do poder oficial. O quinquênio 1977 a
1981, época em que coincide a circulação dos jornais O Rio Branco e Va-
radouro, foi marcado por grandes transformações na estrutura social e na
organização econômica e política do Acre.
A partir da análise dos editoriais, buscamos investigar como se ar-
ticulavam as relações de ideologia e poder através do discurso dos jornais
pesquisados e qual a influência desses textos na sociedade de hoje, tendo
em vista que as instituições alcançaram sua forma atual através de altera-
ções de suas partes constitutivas, ao longo do tempo, influenciadas pelo
contexto cultural particular de cada época.
A escolha do editorial como texto base para estudar os escritos da
imprensa riobranquense neste período se deu por seu alto caráter argu-
mentativo, sendo um texto estruturado no sentido de expressar a linha de
conduta do jornal e por sua vocação de focalizar assuntos do cotidiano.
Nas palavras de Luiz Beltrão (1980), o editorial caracteriza-se por ex-
pressar “a opinião do editor o qual representa o grupo mantenedor da em-

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presa jornal, logo apresenta o julgamento do grupo de elite do jornal so-


bre o problema em questão”.
O fato de representar interesses antagônicos torna o editorial um
discurso jornalístico de dupla competência, que mascara e desmascara,
defendendo os interesses do jornal, ao mesmo tempo em que se arvora
como porta-voz dos anseios dos grupos sociais. A opinião do editor atua
como representação do grupo mantenedor da empresa jornal, trazendo o
julgamento do grupo de elite do jornal sobre os problemas que o edito-
rial aborda.
Lugar de discussão dos assuntos de relevância política, econômica
e social, o editorial tem como função básica situar a posição corporificada
dos grupos de interesse que regem o jornal em relação ao acontecimento
que aborda, oferecendo a perspectiva de interpretação tida como a mais
convincente pelos representantes do veículo de comunicação. Dessa for-
ma, os limites de influência do editorial perpassam obrigatoriamente por
sua repercussão na esfera política e econômica.
O editorial pode auxiliar na compreensão das visões de mundo que
circularam na sociedade riobranquense durante o período investigado,
atuando como forma de reescrita da história, dado seu alto grau de per-
suasão através de imagens e símbolos, que podem ser percebidos pelas
suas próprias estratégias, utilizadas pelos donos do poder para dominar o
imaginário social.
Segundo os Manuais de Redação Jornalística, que passaram a ser
adotados na década de 1950 por jornais como o Diário Carioca e Tribuna
da Imprensa e serviram de modelo para o fazer jornalístico do restante do
Brasil, os editoriais não devem ser assinados, sendo sempre redigidos em
terceira pessoa para reforçar a imparcialidade do veículo de comunica-
ção. A disposição do texto nas páginas iniciais do jornal serve para consa-
grar o editorial enquanto espaço destinado a assegurar a ilusão de isenção
jornalística, numa tentativa de apagamento da autoria.
A concepção de que o editorial não pode ser assinado, ditada pelos
padrões da grande imprensa, trouxe alguns problemas quanto à identifica-
ção desses textos nos jornais do período da Ditadura Civil-Militar. Nessa
época, quase não havia textos intitulados “editoriais” nos jornais riobran-
quenses, principalmente nos períodos em que se intensificava o estado

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de vigilância por parte dos militares, os jornais se reservavam a publicar


textos essencialmente informativos. Em vista desta reflexão do contexto
histórico sobre a produção jornalística local, os editoriais apareciam de
forma camuflada. É bom lembrar que, embora a escrita dos jornais do pe-
ríodo ditatorial em questão se caracterizasse pela linguagem informativa,
a direção do jornal veiculava sua opinião em todos os números, o que per-
cebemos pelo tratamento dado às notícias e pelo modo como eram cons-
truídas as imagens dos opositores do regime.
Assim, a identificação dos textos foi realizada por meio da obser-
vação de características essenciais na produção dos editoriais: a estrutu-
ração com vistas à persuasão, buscando direcionar a opinião do público, a
apresentação gráfica destacada, o fato de vir nas páginas iniciais, o desta-
que entre as demais notas e a escrita em terceira pessoa tentando demons-
trar imparcialidade. Além disso, buscamos perceber uma outra particula-
ridade nesses textos: a abordagem de acontecimentos da realidade coti-
diana. O responsável pelo editorial, em linhas gerais, privilegia fatos da
realidade local, ocorridos no contexto do tempo presente.
É conveniente destacar que não se está afirmando que os jornais
não se referiam a fatos acontecidos no passado, mas que essas referências
ocorriam com menor frequência, girando em torno, geralmente da exal-
tação dos combatentes da “Revolução Acreana” ou de personagens con-
sagrados da história nacional. Os editoriais dos jornais riobranquenses do
período da Ditadura Civil-Militar, quando retomavam essas temáticas de
mitificação dos “heróis” e dos valores nacionalistas, buscavam a legiti-
mação do poder oficial através da presentificação de ações pretéritas, por
meio da comparação dos “feitos ilustres” desses personagens de outrora
ao “empreendedorismo” dos líderes militares.
Através das tramas do emaranhado de redes do poder midiático é
possível entrever os movimentos de resgate da memória e o estabeleci-
mento de alguns traços das várias identidades sociais que circulam na so-
ciedade acreana. E, tendo como ponto de partida a análise das relações de
ideologia e poder expressas no discurso dos editoriais de jornais riobran-
quenses que circularam durante o regime de exceção, é preciso atentar pa-
ra o fato de que essas múltiplas relações de poder que atravessam, carac-
terizam e constituem o corpo social, não podem se dissociar, se estabele-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 17


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cer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação
e um funcionamento do discurso.
O contraste entre os editoriais dos dois periódicos leva-nos a perce-
ber que o discurso é artefato de manipulação e resistência. Por mais que
no jornal O Rio Branco imperasse a linha editorial vinculada à ideologia
dominante, alguns jornalistas não compactuavam com os cerceamentos
impostos pelo regime militar. Ao se observar as páginas amarelecidas pe-
lo tempo é possível entrever as rupturas, os movimentos de resistência e
o modo singular com que vários jornalistas driblaram a censura, como,
por exemplo, no caso da divulgação de notas sobre torturas nas delega-
cias acreanas e da violência que imperava nos conflitos de terras ocorri-
dos com a implantação da pecuária na década de 1970.
Nossa intenção, neste livro foi aliar os estudos da linguagem aos
estudos da história, por isso dialogamos com as ideias de Michel Fou-
cault sobre o discurso enquanto espaço atravessado pelas relações de po-
der. Para Foucault, o discurso não se resume àquilo que traduz as lutas ou
sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual o sujeito luta, o poder do
qual queremos nos apoderar.
A contribuição do pensamento de Foucault se faz, principalmente,
pela relação que estabelece entre saber e poder, ao afirmar que a concep-
ção de discurso transcende o sentido “literal” dos enunciados, buscando
numa relação com a exterioridade perceber o não dito, as condições de
produção, o funcionamento e o porquê de o que foi dito ter sido expresso
de uma e não de outra forma.
Escolher partir do editorial jornalístico é lidar com o que há de
mais refinado no discurso dos jornais. Não que as demais categorias jor-
nalísticas sejam menos importantes, mas o editorial é maquinalmente ar-
quitetado, por estar a cargo de expressar a posição oficial dos grupos de
interesses que comandam o jornal. Um editorial mal estruturado discur-
sivamente poderia comprometer gravemente a própria permanência do
jornal nas bancas. A partir da pretensão de representar fielmente a vida
social, essa modalidade textual permite uma apreciação específica dos
acontecimentos, auxiliando na produção da realidade dentro do jornal
através da criação de sentidos e interpretações para os acontecimentos
da vida social.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 18


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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A análise do editorial enquanto elemento do gênero opinativo ofe-


rece subsídios para uma reflexão acerca das problemáticas históricas, po-
líticas, sociais e econômicas da sociedade riobranquense do período in-
vestigado. O contexto em que esses editoriais foram escritos auxilia na
compreensão de como estes influenciavam a vida da sociedade de sua
época.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 19


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
C a p í t u lo I

OS DISCURSOS E OS EDITORIAIS

A
mídia apresenta-se como uma das principais agências sim-
bólicas, fazendo circular imagens da sociedade e de legiti-
mação das posições políticas, produzindo sentidos por meio
de um constante retorno de representações que compõem o imaginário
social. A legitimação desse discurso, portanto, vai buscar sua origem no
passado coletivo, que se organiza em uma tradição.
Durante o período em que vigorou o regime militar no Brasil, os
meios de comunicação estiveram sob permanente vigilância dos órgãos
de censura, através dos quais os militares impunham o silenciamento pela
proibição de vozes discordantes. Um discurso monolítico, que os autoin-
titulava salvadores da pátria, era um dos meios mais eficazes para silen-
ciar as vozes discordantes, expressando o medo da voz do Outro.
A noção de Outro é aqui entendida como o “estrangeiro”, o “que
vem de fora”, a representação de tudo que há de diferente, portanto, aqui-
lo que deve ser temido, por não ser compreendido. No caso da Ditadu-
ra Civil-Militar, o Outro é o “sujeito subversivo”, todos aqueles que se
opõem ao regime. Assim, diante da ameaça das vozes dissonantes, a vio-
lência, imposta de forma simbólica ou através das armas, a tortura e a
censura foram ações arquitetadas pelos líderes do regime militar para si-
lenciar os que discordavam da palavra única ou das ações cometidas em
seu nome.
Cada sociedade tem seus próprios “procedimentos gerais da verda-
de”. Os vários discursos que circulam na sociedade, sejam eles de ordem
política, religiosa, econômica, médica, não podem ser dissociados dessa

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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prática que determina para os sujeitos que falam tanto propriedades sin-
gulares quanto papéis preestabelecidos. Os discursos midiáticos, assim,
ganham legitimidade quando proferidos por pessoas que detêm o saber/
poder em uma sociedade, ficando, na maioria das vezes, silenciadas as
vozes dos oprimidos.
Embora silenciada, não significa que a voz dessas pessoas excluí-
das da ordem do discurso não exista. Não se deve ignorar que a existên-
cia do poder não aniquila a possibilidade de resistência. O próprio apa-
gamento desse discurso marginal denuncia os procedimentos de controle
dos detentores do poder.
Mesmo sendo maioria, os pobres são banidos do espaço de dis-
cussão dos jornais. As raras vezes em que os jornais faziam menção des-
tes era para tachá-los de bárbaros, subversivos, baderneiros, geralmente
em notícias de “motins”, como nas greves de professores, de “invasões”,
conflitos de terras na zona rural e nos bairros que então se formavam, ou
ainda nas matérias sensacionalistas de crimes bizarros, publicadas em pri-
meira página dos jornais de maior circulação na capital acreana.
Diante deste conturbado contexto, convém perguntar: Por que es-
sas tensões sociais não estão explícitas nos jornais? Quais os reais objeti-
vos dos grupos que comandavam a mídia escrita local ao promover essa
homogeneização de discursos? Evidentemente para se manter no poder.
Era de interesse dos donos do poder manter a “ordem” na estrutura social,
continuar manipulando as camadas mais baixas da população através da
produção de “ideias” que legitimassem sua dominação. Assim, através da
preservação de certos valores culturais, as elites dominantes procuravam
manter coesos grupos de interesses diversos.
Ao levantar esses questionamentos, entretanto, não estamos ape-
lando a uma visão fatalista e reducionista, o que estamos afirmando é que
as ideias dos grupos detentores do poder são as que têm se demonstrado
em maior evidência através da história, justamente porque são essas elites
que detêm a concessão dos meios de comunicação de abrangência exten-
siva a um maior número de pessoas em termos de doutrinação.
É certo que existem ideias múltiplas e diversas a esta dominação,
mas, muitas vezes, acabam sendo sufocadas pela crueldade do discurso
midiático homogeneizador. Mas, ao contrário do que se pensa, a resistên-

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cia existe, embora não circule pelos espaços protagonizados pela grande
elite. Se o discurso dos grupos dominantes predominou na imprensa escri-
ta acreana, os próprios silenciamentos existentes nesses jornais apontam
para os procedimentos de exclusão dos pobres da “ordem do discurso”.
Por mais que o discurso dos jornais atrelados ao poder oficial apre-
sentasse as populações excluídas socialmente como “invasoras” das “pro-
priedades alheias”, “baderneiros” e “responsáveis” pela marginalidade
que aumentava na capital acreana, as vozes desses sujeitos “resistiram”
ao processo de apagamento que vigorou durante a Ditadura Civil-Militar
e chegaram até nós, encontrando uma outra forma de vir à tona que não as
estruturas de poder que tentaram silenciá-las, sendo possível percebê-las
nas entrelinhas do que foi dito e escrito a respeito desses sujeitos sociais.
Para Foucault, existem três noções imprescindíveis para se com-
preender o discurso e suas manifestações no corpo social: a verdade, o
saber e o poder. Esses três conceitos estão indissociavelmente interliga-
dos, através de práticas contextualmente específicas. Foucault (1996) tra-
balha de forma inovadora as definições de poder e saber, ao afirmar que
o poder não é algo que se possui ou detém, mas sim, algo que se exerce.
Nesse sentido, o poder não precisa, necessariamente, se apresentar como
repressivo, pois se assim o fosse estaria constantemente ameaçado. É pre-
ciso que esse poder se efetive de maneira simbólica, através da produção
de imagens e sua disseminação como verdade nas várias esferas sociais.
Segundo Foucault, nenhum poder é absoluto, tampouco existe um
poder indestrutível, que determina a dominação de um grupo sobre outras
pessoas; o poder deve ser concebido como uma estratégia, cujos efeitos
de dominação não devem ser atribuídos a uma apropriação, mas a um ela-
borado jogo de manobras, táticas, técnicas e funcionamentos. Logo, onde
há poder há também resistência. É preciso considerar que todas as estru-
turas de poder são marcadas também por fissuras. Nesse sentido, o poder
se estende por todas as camadas sociais, embrenhando-se pelos interstí-
cios mais profundos das relações em sociedade.
Nesse sentido, o saber está intimamente relacionado com o poder,
pois saber gera poder e o poder gera mecanismos de saber para constituí-
-lo, legitimá-lo e garantir sua manutenção. Nessa perspectiva, tudo está
envolto em relações de saber/poder que se sobrepõem num jogo dialógi-

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co. Assim, as posições sociais mais privilegiadas nas relações de poder


correspondem àquelas que exigem saberes mais especializados, estando,
banidos dos lugares privilegiados os sujeitos desprovidos de saber reco-
nhecido institucionalmente. Logo, textos e instituições constituem práti-
cas sociais permanentemente amarradas às relações de poder, que as res-
paldam e as transformam.
Nesse sentido, “o discurso não é uma estreita superfície de contato
entre uma realidade e uma língua”, pelo contrário, ele extrapola a mera
referência a “coisas”, existindo além do mero agrupamento de letras, pa-
lavras e frases. A proposta foucaultiana, então, é que as relações de po-
der sejam vistas a partir do próprio discurso, pois, segundo ele, as regras
de formação dos conceitos não se prendem à consciência dos indivíduos.
Essas regras residem, antes, no próprio discurso, organizando os saberes
e impondo-se a todos aqueles que falam ou tentam falar dentro de um de-
terminado campo discursivo.
Ao recusar interpretações pautadas na causalidade, Foucault con-
sidera que a realidade caracteriza-se, antes de tudo, por estar atravessa-
da por lutas regidas pela imposição de sentidos. Assim, as práticas dis-
cursivas estão limitadas por uma “ordem do discurso”, que pré-determi-
na o que pode ou não ser dito. Para o autor, “não se pode falar em qual-
quer época de qualquer coisa”, assim, antes, de se indagar as implicações
quanto ao sentido, ao modo e às ações suscitadas pelo que foi dito, é con-
veniente refletir sobre o que possibilitou a existência desse discurso.
A “ordem do discurso” está centrada na linguagem, na lógica cons-
titutiva de seu conteúdo e na relação com os poderes que se ocultam sob a
capa desses discursos. O discurso não é apenas “ordenação de objetos”, ou
grupo de signos, mas está centrado nas relações de poder. Assim, não exis-
te discurso “neutro”, pois ele traduz as lutas ou sistemas de dominação.
É nesse ponto que as proposições de Foucault contribuem para o
presente trabalho, na proporção em que as condições de produção do dis-
curso interferem diretamente na configuração dos dizeres, sendo possível,
através da suspensão das continuidades tratar cada momento do discurso,
analisando as relações de poder em que estão imersos, a fim de perceber
em um dado conjunto de enunciados por que foi possível tal singularida-
de acontecer ali, e não em outro lugar.

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O debate com as teorias sobre o discurso aliadas às leituras so-


bre jornalismo e o contexto histórico suscitaram alguns questionamen-
tos que nos conduziram durante o “passeio” que fazemos pela imprensa
acreana durante a Ditadura Civil-Militar. Ao trazer à tona esses questio-
namentos sobre um passado que “insiste em não passar”, percebemos a
atualidade do tema e o quanto precisamos voltar os olhos para trás e re-
pensar os prejuízos que os silenciamentos trouxeram, o efeito das mar-
cas que mancharam nossa história. Relembrando as palavras de Caetano
Veloso, terá realmente passado de nós esse “cálice” ou ainda permanece
o “cale-se”?
Que influência tem esses editoriais na construção da memória rio-
branquense? Que forças impulsionaram a produção discursiva desses jor-
nais? Quem são os sujeitos constituintes dos discursos e como suas ima-
gens eram construídas a partir dos editoriais? Como se deu a resistência
dos jornais “alternativos” à tentativa política de silenciamento e domina-
ção e como os jornais ligados ao poder oficial manipulavam a linguagem
a fim de legitimar as ações dos donos do poder?
A ideia inicial de que o discurso dos jornais O Rio Branco e Vara-
douro representavam, respectivamente, o posicionamento de apoio e de
oposição ao poder oficial, no percurso das discussões levantadas no livro
convidam a perceber as rupturas. O que está posto deve ser questionado.
Não há um jogo de “mocinhos” e “bandidos”, pelo contrário, os interes-
ses que influenciaram a produção discursiva dos dois jornais se entrecru-
zam, mostrando que esta ideia inicial de que estamos diante de um “jornal
que apoia o poder” e outro que o “critica mordazmente” era apenas uma
face do fragmentário espelho do discurso.

A trajetória da imprensa riobranquense (1900-1985)

A compreensão do papel da imprensa nos embates político-sociais


ocorridos durante a Ditadura Civil-Militar requer que pensemos nos fatos
que influenciaram o fazer jornalístico nesse período. Antes disso, porém,
faremos uma “viagem no tempo”, retornando à época de surgimento dos
primeiros jornais da cidade de Rio Branco. Com o objetivo de entender

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melhor a trajetória da imprensa escrita na capital acreana, fizemos a se-


guinte divisão, tendo como marco as mudanças mais importantes tanto no
contexto histórico quanto no projeto gráfico e na linguagem dos jornais.
Vale ressaltar que esta divisão deve ser entendida em termos mui-
to gerais, já que o jornalismo de cada época se apresenta com muitas fa-
ces. É válido lembrar também que o período enfocado neste trabalho es-
tende-se até o ano 1981, mas escolhemos trabalhar a reconstituição da
trajetória da imprensa acreana até o ano de 1985. Para tanto, aprofunda-
mos alguns conceitos que desenvolvemos inicialmente no livro “O ima-
ginário social: estudo dos editoriais nos jornais de Rio Branco, séc. XX”
(ASSMAR; BONIFÁCIO; LIMA, 2007).

A imprensa familiar e o jornalismo opinativo (1900-1929)

O interdiscurso entre os acontecimentos históricos e as estruturas


dos textos publicados nos jornais revela que o estilo jornalístico como
existe hoje não surgiu por acaso, é resultado de uma série de transforma-
ções que estão intimamente ligadas com a evolução do próprio jornalis-
mo. A compreensão do discurso jornalístico requer que analisemos tanto
as técnicas redacionais e os procedimentos gráficos utilizados para per-
suadir o leitor, quanto seu aspecto simbólico expresso nas ideologias que
o regem.
Os padrões jornalísticos riobranquenses do início do século XX re-
ceberam influência do estilo adotado pela imprensa nacional e mundial,
sendo marcados por uma linguagem permeada de adjetivismos. Nessa
época, as fronteiras entre o discurso jornalístico e o literário eram muito
tênues. O fato de alguns jornalistas se dedicarem também à produção de
textos ficcionais fez com que o jornalismo esboçasse durante muito tem-
po nuances próprias de textos literários. Além disso, o jornal figurava co-
mo meio de veiculação dos textos literários, através da publicação de po-
esias, contos, crônicas.
O estilo jornalístico adotado durante as primeiras décadas do sé-
culo XX é balizado no modelo francês, cuja técnica de escrita remete de
imediato ao estilo literário. Os “excessos” de comentários, com textos

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marcadamente longos, matizados por um discurso mais livre e opinativo


são aspectos que estão presentes nos jornais riobranquenses desta épo-
ca. O aspecto gráfico privilegiava o texto longo, fazendo pouco uso de
imagens. Neste primeiro momento da imprensa local quase não se utili-
zam ícones e fotografias; a palavra era o principal recurso apelativo dos
redatores. Com o passar do tempo, a imprensa evoluiu com a aquisição
de novas máquinas que conferiram uma nova estética aos textos jorna-
lísticos.
Produzidos semi-artesanalmente, os jornais riobranquenses, desde
seu surgimento, eram essencialmente opinativos, com pequena tiragem,
circulavam entre grupos restritos, devido à falta de recursos financeiros
para sua manutenção. Afora isto, a própria característica da sociedade rio-
branquense, fundamentalmente voltada para o extrativismo da borracha,
revela que a mídia na região, desde os primórdios, atuava como produto-
ra por excelência de imagens e símbolos destinados à manutenção de pe-
quenos grupos no poder.

Prédio da Imprensa Oficial do Acre, inaugurada em 1925.

Fonte: Álbum Fotográfico do Território Federal do Acre.

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De acordo com Bezerra (1993), a Imprensa Oficial Acreana, criada


em 1925, recebeu em 1948, um conjunto de máquinas movidas a eletrici-
dade que aumentaram o rendimento dos impressos no Território do Acre,
sendo responsável pelas publicações das repartições públicas. Por ser a
única oficina tipográfica existente na capital naquela época era também
responsável pelas publicações particulares. A cargo da Imprensa Oficial
foi editado e publicado o primeiro Diário Oficial do Acre, o jornal O Acre,
criado em 1929.
O atrelamento da imprensa de Rio Branco, desde seu surgimento,
ao poder oficial traz em seu bojo um estruturado jogo de interesses entre
mídia e política. Os periódicos das primeiras décadas do século XX eram
verdadeiros porta-vozes do Estado ou de grupos políticos que financia-
vam sua produção. A linguagem de alguns jornais era agressiva, marcada
pelas paixões políticas comuns aos debates da época. O humor era utili-
zado, neste jogo pela detenção do poder, como parte constituinte do jor-
nalismo desse período, que, sendo altamente moralizador e doutrinário,
colocava-se constantemente a serviço das elites veiculando suas lutas po-
líticas e ideológicas.
Alguns jornais do início do século XX destacavam-se pela exce-
lente qualidade na editoração, apresentando bom acabamento e qualidade
gráfica, sendo impressos em máquinas Marioni, bastante modernas para
a época (ASSMAR; BONIFÁCIO; LIMA, 2007, p. 51). Contudo, o que
imperava na maioria dos jornais era a precariedade dos recursos tipográ-
ficos, ressaltando-se que a imprensa riobranquense surgiu vencendo de-
safios que iam desde a dificuldade imposta pela confecção artesanal dos
jornais até as sanções políticas que, muitas vezes, determinavam o caráter
efêmero da produção jornalística.
A marca da linguagem do jornalismo desta época era o caráter al-
tamente moralizador e doutrinário. Os textos publicados nesses periódi-
cos caracterizavam-se pela defesa dos interesses políticos e ideológicos,
não apenas do Estado, mas também de outros grupos, como o comércio e
grandes seringalistas. A produção jornalística riobranquense das primei-
ras décadas do século XX e as lutas de forças políticas e ideológicas que a
determinaram podem ser melhor compreendidas se considerarmos que o

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corpo de escritores dos jornais era composto, em sua maioria, por pessoas
que exerciam funções junto ao aparelho estatal, além de representantes de
partidos políticos, seringalistas e altos comerciantes da região.
Um outro aspecto a ser analisado neste período inicial da impren-
sa riobranquense é a grandiloquente estrutura de marketing, destinada a
promover o distanciamento do sujeito de sua origem e condição histórica,
uma vez que os imigrantes, em sua maioria, nordestinos e sírio-libaneses,
eram personagens que aqui chegavam trazendo consigo uma experiência
própria de seu lugar de origem. Os grupos dominantes, utilizando-se des-
te recurso, tinham como objetivo unificar o imaginário social, fazendo
com que grupos heterogêneos compartilhassem os mesmos ideais. Assim,
a produção jornalística do início do século XX buscava, através da mitifi-
cação dos heróis e da região, fixar a força de trabalho no território, defen-
dendo os interesses do capital monopolista internacional, da exportação e
apropriação de matérias-primas.
Durante as primeiras décadas do século XX, a produção jornalís-
tica local optou por uma linguagem rica em opiniões e juízos de valor,
apresentando forte caráter doutrinário através da exaltação dos fatos e
personagens da história regional e local. Tal fato justifica-se pelos inte-
resses determinados por meio das condições de formação da sociedade
local.
As manchetes dos jornais dessa época versavam prioritariamente
sobre a mitificação da região e de seus heróis, propaganda dos coronéis
da borracha, partidos políticos ou associações às quais os jornais estavam
subordinados, além da defesa da autonomia do Território. As principais
notícias arranjadas na capa do jornal, eram geralmente, de cunho político;
informativos diversos; anúncios de utilidade pública; notas de aniversá-
rio, num esboço do que viria a se tornar a coluna social; eventos culturais,
textos literários; etc. Algumas matérias eram extensas, necessitando de
continuação nas páginas internas do jornal, pois o que importava não era
apenas noticiar o fato, mas também as reflexões desenvolvidas pelo reda-
tor. O acontecimento era contado com riqueza de detalhes, principiando
com introduções complexas, para se chegar ao entendimento da impor-
tância dos fatos.

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A era dos manuais de redação (1930-1962)

A segunda fase da imprensa riobranquense inicia-se em 1930, com


ascensão de Getúlio Vargas à Presidência da República, indo até 1962,
ano em que o Território do Acre foi elevado à categoria de Estado da Fe-
deração Brasileira. Neste período, os jornais começavam a perder a ex-
pressão de veiculadores das discussões acaloradas em defesa de causas e
bandeiras políticas e passavam a apresentar um caráter mais informativo.
O regime ditatorial instaurado por Getúlio Vargas ajudou, de cer-
ta forma, a consolidar o crescimento das empresas de comunicação, uma
vez que o poder oficial passou a financiar os jornais e emissoras de rádio.
Com isso, esses meios de comunicação se tornaram órgãos de divulgação
do governo, sendo proibidos pelo serviço de censura de publicar notícias
contrárias aos atos do Presidente e, consequentemente, contra seus inter-
ventores.
Os jornais deste período passaram, então, a seguir regras impostas
não apenas pela renovação dos padrões jornalísticos, mas também pelo
modelo de relações determinadas com o crescente fechamento do regime
político, começando com o movimento constitucionalista de 1932, pas-
sando pela Intentona Comunista, em 1935, se consolidando com o Esta-
do Novo, em 1937, quando Getúlio Vargas implantou o Departamento de
Imprensa e Propaganda - D.I.P. A implantação deste órgão de controle da
imprensa, em 1941, acentuou a vigilância e o controle sobre as mídias,
concentrando nas mãos de Getúlio Vargas o poder total de censura, atra-
vés da montagem de uma vasta rede de comunicação.
Os acontecimentos do contexto político nacional vão se refletir di-
retamente na produção jornalística local. Evidentemente, não era interes-
sante para os donos do poder a continuação de um modelo jornalístico
marcado pela opinião e determinada liberdade de expressão, era neces-
sário silenciar toda e qualquer posição contrária ao regime varguista. Em
1930, os partidos políticos acreanos foram extintos com a implantação do
Estado Novo. A repercussão da Ditadura Civil-Militar de Getúlio Vargas
intensificou o estado de isolamento do Acre em relação ao resto do pa-
ís. A chefia do Território Federal do Acre foi entregue a interventores da
confiança do Presidente, que aqui chegavam, desconhecendo a realidade

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local e impondo a lei do silêncio a um povo que já desconhecia o direito


de se fazer ouvir, devido à indiferença com que era tratado pelo Governo
Federal desde a anexação do Território ao Brasil.
Na década de 1950 o jornalismo brasileiro ganhava novas feições,
resultantes de reestruturações surgidas nas redações inglesas e norte-ame-
ricanas desde o final da Primeira Guerra Mundial. Foi introduzido um no-
vo estilo que se orientava em um modo particularmente objetivo de nar-
ração ou relato de acontecimentos, baseando-se na economia de palavras.
Com a chegada ao Brasil dos primeiros Manuais de Redação e sua
automática adoção pelos grandes jornais cariocas como Jornal do Brasil,
Tribuna da Imprensa e Diário Carioca, foi implementado um novo esti-
lo de escrita na imprensa nacional. Iniciava-se um processo de transfor-
mações que alteraria profundamente o fazer jornalístico. A efervescência
cultural dos anos 1950 serviu como pano de fundo para esta mutação jor-
nalística, uma vez que a sociedade brasileira rompia com uma série de pa-
drões culturais, políticos e comportamentais.
Os Manuais de Redação adotados inicialmente nos grandes jor-
nais cariocas consagravam a linguagem impessoal, ocultando o sujeito
da enunciação, tendo como grande novidade a introdução da técnica do
lead, na qual o jornalista elenca no primeiro parágrafo os cinco elemen-
tos da notícia: o que, quem, quando, onde, como e por que (LUSTOSA,
1996, p.77). A adoção desta técnica norte-americana, inspirada no discur-
so telegráfico figura como uma tentativa de excluir de vez a subjetivida-
de do espaço da imprensa. O modelo possuía outras exigências que ainda
perduram como requisito para a redação de um bom texto jornalístico: a
ordem direta do discurso e o máximo de clareza possível. De acordo com
Nilson Lage (1987), a origem do lead é uma referência à dessacraliza-
ção da linguagem, estando ligada à oralidade, é a manifestação do rela-
to de alguém que assistiu o fato e possui, portanto autoridade no assunto
para falar:

Um jornalismo que fosse a um só tempo objetivo, imparcial e ver-


dadeiro excluiria toda outra forma de conhecimento, criando o
objeto mitológico da sabedoria absoluta. Não é por acaso que o
jornalista do século XX mantém, às vezes, a ilusão de dominar o

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fluxo dos acontecimentos apenas porque os contempla, sob a for-


ma de notícias, na batida mecânica e constante dos teletipos (...)
(LAGE, 1987).

A lógica que passava a reger os textos jornalísticos, era a da veloci-


dade e da falta de tempo da sociedade industrial do século XX. O discurso
da imprensa abandonava o caráter opinativo, deixando de ser espaço de
experimentação literária e embates políticos para adotar um estilo pauta-
do no caráter informativo. O mito da “objetividade” jornalística ganhava
corpo a partir de então, pela pretensão de deixar clara a distinção entre
“opinião” e “informação”. O editorial, neste contexto, surge como forma
de marcar esta distinção, o jornal informaria nas demais notas, cabendo
à direção do jornal opinar no espaço dos editoriais. Evidentemente, isto
nunca ocorreu, nem ocorre, já que o os editores do jornal opinam desde a
escolha da matéria central até nas notas “puramente informativas”. Logo,
o discurso jornalístico não é, nem poderá ser neutro.
Ainda na década de 1950 os jornais riobranquenses já começavam
a introduzir estas novas técnicas de redação, principalmente o lead. Du-
rante algum tempo o novo e o velho dividiram o mesmo espaço nos jor-
nais da capital acreana, o estilo opinativo, com textos longos e combati-
vos, ia aos poucos dando lugar ao informativo, marcado pelas notas ob-
jetivas e curtas.

O jornalismo informativo: a ditadura do lead (1963-1985)

Embora ainda na década de 1950 os jornais riobranquenses já apre-


sentassem um princípio de transformação do caráter opinativo para o in-
formativo, esse processo só se consolidaria no período da Ditadura Civil-
-Militar, quando a vigilância da censura tornou necessária a criação de
novas estratégias de noticiar e veicular os fatos.
O ideal dos manuais normativos da década de 1950 ganhava for-
ça com a padronização dos textos, caracterizando o discurso jornalístico
pelo latente apagamento da autoria na redação das notícias; o silêncio e a
neutralidade passavam a ser sinônimos de bom jornalismo. Essas trans-

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formações marcariam de forma incisiva os padrões da imprensa dessa


época, influenciando ainda hoje o fazer jornalístico.
Um dos fatos que influenciaram esta nova fase da imprensa da ca-
pital acreana, a qual estendeu-se até 1985, foi o golpe militar de 1964,
quando a imprensa passou a estar sob vigilância permanente dos órgãos
de censura. O surgimento do primeiro jornal-empresa da capital acreana,
o jornal O Rio Branco, em 1969, marcou na prática a transformação do
jornalismo riobranquense segundo os padrões da nova imprensa. Órgão
dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, com primeira edição em
circulação no dia 20 de abril de 1969, este jornal apresentava uma nova
proposta jornalística pautada na especialização da imprensa nacional ini-
ciada com a implantação de vários cursos de Comunicação Social no país.
Elcias Lustosa (1996) afirma que, a partir de 1969, a influência di-
reta da cultura visual, principalmente da televisão, passava a moldar o pa-
drão estético dos jornais impressos no Brasil. Nessa época, a televisão se
consolidava como o mais importante meio de comunicação, surgindo o
que o autor chama de notícia plástica ou iconográfica, marcada pela apre-
sentação de gráficos, ilustrações e desenhos, que representam nos jornais
o modelo imposto pela revolução da informática. O autor aponta esse ano
como início de uma nova fase da imprensa brasileira por coincidir com a
decretação do Ato Institucional nº 5, quando começa o período mais duro
da Ditadura Civil-Militar e a intensificação dos ditames da censura sobre
os meios de comunicação.
A influência não apenas da televisão, mas também do cinema e do
rádio, obrigou os jornais impressos a investir em uma diferenciada apre-
sentação da informação, buscando oferecer maiores detalhes aos leito-
res. A interferência da televisão no jornalismo impresso ocorreu de modo
gradual até consolidar seu império absoluto por volta da década de 1980.
Com o avanço da eletrônica foi possível também divulgar infor-
mações mais amplas e rápidas (ERBOLATO, 1991, p. 16). Mesmo com
a relativa facilidade na disseminação de informações, o isolamento do
Acre em relação ao eixo Rio-São Paulo retardou a implementação das
mudanças gráficas nos jornais. A irregularidade e a efemeridade continu-
aram como características da produção jornalística local durante a Dita-
dura Civil-Militar.

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Nessa época eram raros os textos opinativos nos jornais de linha


oficial, a opinião era artigo abjeto nesses jornais, o que imperava era a di-
tadura da “informação”. Nas palavras do “Repórter Édison”, em sua co-
luna no jornal O Rio Branco, o lema da imprensa era “o mínimo de adje-
tivo, com um pouco de objetivo”. Desde a implantação do jornal O Rio
Branco principia o processo de profissionalização da imprensa local, com
a regularização da atividade junto à Delegacia Regional do Trabalho. Nas
redações dos jornais, aumentava o quadro de funcionários, figuras como
o revisor de textos, o foto-jornalista e o diretor comercial passavam a par-
ticipar de maneira mais latente no processo de dinamização da apresenta-
ção gráfica e retórica dos jornais, atuando na importante articulação entre
o jornal, os interesses mercantis de seus mantenedores e o público leitor.
A divisão do trabalho nas redações jornalísticas acompanhou a di-
visão estrutural dos jornais com a criação das várias editorias temáticas,
agrupando os assuntos mais comuns da publicação. Assim, as colunas fo-
ram se especializando e as áreas de interesse do público leitor foram sen-
do setorizadas. A tendência, então, passou a ser agrupar as colunas social,
de esportes, policial, política, que foram sendo marcadas em um lugar es-
pecífico do jornal, como forma de otimizar a leitura. A distribuição dos
assuntos entre essas páginas de variedades também revela a influência do
contexto do regime militar sobre os jornais, quando se observa, por exem-
plo, que os acontecimentos sobre os movimentos de “subversão”, muitas
vezes, compunham a página policial e não a política.
Os jornais riobranquenses que circulavam durante a Ditadura Ci-
vil-Militar eram caracteristicamente irregulares, com publicações ora
mensais, ora semanais, ora quinzenais, variando conforme a disponibili-
dade de recursos para manutenção dos mesmos. Com isso, tem-se o qua-
dro de extrema dependência de incentivos financeiros do governo, consti-
tuindo uma imprensa oscilante e vulnerável. A aproximação com esta di-
versidade de interesses reforçou a adoção do princípio de imparcialidade
no discurso jornalístico. Assim, a imprensa passa a incorporar seletiva-
mente os discursos de outras instâncias de poderes, tornando-se legitima-
dora e organizadora destes discursos.
Apesar da aspiração à neutralidade, não se pode perder de vista
que a imprensa não está imune às pressões destes mesmos setores cujos

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 33


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

discursos ela disciplina, organiza e legitima. E isso implica não apenas


mudanças no campo estético do jornal, mas também da concepção de pú-
blico e das linguagens que utiliza. O controle ideológico criado com as
imagens que circulam nos jornais passou, nas últimas décadas do século
XX, a incluir novas representações através da propaganda e da informa-
ção jornalística, criando condições para a existência de formas veladas de
controle, muitas vezes, alicerçadas em linguagens subliminares tendentes
a exercer controle massivo através da persuasão.
Nesse contexto de transformações da imprensa brasileira, vale re-
gistrar, no Acre, o surgimento do jornal alternativo Varadouro, em 1977.
“O Jornal das Selvas” surgiu da necessidade, percebida por líderes de se-
tores progressistas ligados à Igreja Católica, da existência de um espaço
para veiculação das causas defendidas pelos movimentos sociais acrea-
nos. De acordo com Costa Sobrinho (2001, p. 153), era necessária a cria-
ção de um outro periódico, além do Boletim Diocesano Nós, Irmãos, que
deveria ser impresso em um formato diferenciado, impresso em gráfica e
que veiculasse as questões exigidas pelo momento histórico vivenciado
pelo povo acreano no final da década de 1970.
A linha editorial de Varadouro retratava o turbulento período de
chegada dos pecuaristas do Centro-Sul às terras acreanas, a transforma-
ção dos seringais em pastagens para o gado, a expulsão de milhares de
famílias de seringueiros, posseiros e indígenas da floresta acreana. A pro-
posta desse jornal alternativo era, pois, registrar as consequências da ex-
pansão agropecuária no Acre, trazendo em suas páginas as vozes de indí-
genas, posseiros, seringueiros e tantos outros excluídos socialmente.
A disparidade de posicionamentos existente entre os jornais O Rio
Branco e Varadouro, como se percebe, não se manifesta apenas no proje-
to gráfico e retórico, mas principalmente no jogo de forças político-ideo-
lógicas que estão por trás dessas duas produções jornalísticas. Se, por um
lado, a padronização e a informatividade marcavam a escrita no jornal
O Rio Branco, em Varadouro a preocupação era produzir um jornalismo
o mais próximo possível das camadas mais baixas da sociedade, apre-
sentando os textos com uma linguagem clara e simples. Comparando-se
a produção jornalística antes e depois dos Manuais de Redação da déca-
da de 1950, percebemos que, mesmo se perdendo em termos de limita-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 34


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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ção do discurso filosófico e reflexivo, o jornalismo deste período ganhou,


em certas proporções, com a abertura para abordagem dos problemas vi-
venciados por grupos menos favorecidos economicamente. As mudanças
nos padrões jornalísticos ocorridas no final da década de 1970 e início
da década de 1980, de certa forma, ajudaram a pôr em circulação opini-
ões divergentes do poder oficial. Os grupos responsáveis pela veiculação
dos jornais alternativos começaram a perceber, então, que a divulgação
de suas ideias seria um caminho para organização dos movimentos so-
ciais de base.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 35


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
C a p í t u lo I I

COMUNICAÇÃO, IDEOLOGIA E PODER NO


CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

A Ditadura Civil-Militar no Brasil e sua influência no sistema de


comunicação da Amazônia Ocidental

A
Ditadura Civil-Militar representou uma grande mudança
nas relações entre mídia e poder político. O discurso da im-
prensa e a propaganda foram instrumentos utilizados pelos
líderes militares para promover suas ideias de “defesa dos interesses da
nação”. Após a deposição de João Goulart, os novos donos do poder pas-
saram a articular suas ações no sentido de estruturar um elaborado pro-
grama ideológico que assegurasse a legitimação de seu domínio.
Diante da necessidade de afirmação de seu poderio, os militares
precisavam contar com algo além da força, eles elegeram como sua arma
mais poderosa o discurso. De acordo com Freda Indursky, é justamente
por apoiar-se em uma pretensa “naturalidade” e “familiaridade” que uma
ditadura se sustenta. É essa normalidade que representa a maior violência
dos regimes ditatoriais, a violência “simbólica, representada em seu efei-
to de senso comum, de discurso social estável, e fato de opinião pública,
de não alteração da vida comum”.
Os líderes militares necessitavam dialogar com as elites e as cama-
das médias da sociedade para reforçar estratégias de convencimento que
validassem suas ações. Assim, foi necessário “conhecer” os valores tidos
por válidos para esses grupos sociais para, então, criar estratégias de per-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 36


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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suasão. Por estar essencialmente voltado às elites e à classe média, o dis-


curso dos jornais acabou incorporando valores indiscutivelmente aceitos
por esses grupos sociais. Os jornais atuaram de forma decisiva no proces-
so de desagregação do governo de João Goulart, partilhando praticamente
os mesmos ideais dos ditadores militares.
Segundo Balandier (1982), o poder fundado exclusivamente sobre
a força ou sobre a violência descontrolada teria uma existência constante-
mente ameaçada, por outro lado, se exposto debaixo unicamente da razão
teria pouca credibilidade. É preciso que esse poder se efetive de manei-
ra simbólica, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e
sua organização em um quadro ritual.
Como estratégia para se manter no poder, os militares buscaram
na imprensa a legitimação de seus atos. Justificados pela burguesia, que,
contraditoriamente, via o regime como salvaguarda dos “direitos demo-
cráticos”, os militares deixaram a marca da arbitrariedade em suas ações.
Os decretos-leis constituíram-se no mecanismo mais viável para driblar o
Legislativo, sendo possível por meio destes, expurgar políticos e servido-
res públicos que representassem ameaça para o regime. No Acre, pode-se
ver, examinando o Diário Oficial no período que sucede a ascensão dos
governantes militares, o grande número de demissões de funcionários pú-
blicos, possivelmente “suspeitos” de serem aliados ao governador José
Augusto de Araújo, deposto em 1964.
A manutenção de relativa liberdade de imprensa logo que o golpe
militar foi deflagrado era estratégia para firmar alianças a fim de garantir
a legitimação do poder oficial. A aliança entre mídia e política era dupla-
mente vantajosa, de um lado, o controle do simbólico era alvo dos gover-
nos militares para aumentar seu poderio, de outro, os grupos que contro-
lavam a grande imprensa se mostravam exultantes com a possibilidade de
desfrutar os privilégios do regime.
Embora a censura prévia fosse decretada em 1970, antes desse
período os jornais já recebiam represálias por parte do governo. Prova
de que o governo militar estava temeroso em relação ao posicionamen-
to daqueles que controlavam os meios de comunicação e decidido, por-
tanto, a tomar ele próprio o controle destes, foi a decretação do AI-2, de
15 de março de 1967, que lhe permitia intervir diretamente na imprensa.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 37


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O AI-2 excluiu da competência do júri os julgamentos de crimes de im-


prensa e modificou a redação da última alínea do § 5º do art. 141 da
Constituição Federal, que passava a vigorar com o seguinte texto: “Não
será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou
preconceitos de raça ou classe”.
Esse Ato Institucional disciplinou também a situação jurídica dos
cassados, vedando-lhes qualquer manifestação sobre assuntos de natu-
reza política. A intolerância agora, se estendia à imprensa e a qualquer
propaganda de subversão e não apenas aos “processos violentos de sub-
versão”.
Com a promulgação do AI-5, entretanto, é que as coisas se torna-
riam ainda piores, pois a censura, agora definitivamente instalada, muda-
ria ainda mais a rotina nas redações da grande imprensa, fosse pela vigi-
lância dos censores ou pelo jogo de interesses que ditava a autocensura
das matérias. Esse Ato Institucional afetava diretamente a legislação de
imprensa, conferindo, em seu artigo nove, ao presidente da República,
poderes para a imposição de censura prévia sobre os meios de comunica-
ção, bastando-lhe para tanto que julgasse tal ato “necessário à defesa da
Revolução”. Durante os anos seguintes, a vigilância e o controle foram
largamente utilizados e todos os veículos de comunicação foram dura-
mente censurados.
Havia também a censura ideológica no que concerne à manuten-
ção de direitos ou status quo por parte dos donos de jornais ligados ao vi-
és político dominante. De acordo com Kushnir (2004), parte da imprensa
não recebia censura pelo militares. A censura das notícias, muitas vezes,
era feita pelo próprio dono do jornal, que censurava algumas notícias con-
forme seus interesses. Outra prática comum era a de publicar informes
vindos do governo como se fossem produzidos pelos próprios jornalistas.
O efeito devastador do AI-5 trouxe sobre o país as sombras dos
anos mais duros do regime militar. À revelia dos novos donos do poder
o Congresso era aberto e fechado, a esquerda, que até ainda conseguia se
manifestar, foi condenada à ilegalidade, seus membros perseguidos e tor-
turados, a imprensa sofreu violentas investidas dos órgãos de censura, as
represálias políticas foram mordazmente intensificadas, com o aumento
de torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos.

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Institucionalizava-se, assim, a violência e a repressão contra quem


se arriscasse a questionar o regime. Apesar desse clima de suspeição e
silenciamentos, a contradição se revelava no fictício “milagre econômi-
co”. Buscando associar a meta de crescimento econômico ao controle
autoritário da política, os militares pretendiam alcançar a legitimação do
regime esperando encontrar as condições adequadas para consagrar su-
as imagens como responsáveis pelo “repentino sucesso” que vivencia-
va o país.
Elder Andrade de Paula considera que o Estado “desenvolvimen-
tista”, fortalecido pelas medidas ditatoriais, tinha como objetivo alcan-
çar um novo ciclo de acumulação, apoiando-se num forte apelo ideoló-
gico à doutrina da segurança nacional. Como advogado dessa doutrina,
o poder ditatorial investiu violentamente contra a liberdade de imprensa
através da censura, pressionando as redações dos jornais a não veicula-
rem matérias contrárias ao regime. Em nome da defesa das fronteiras
nacionais, o Estado passou a articular uma série de medidas destinadas
a instaurar um modelo de desenvolvimento subjugado ao capital inter-
nacional.
As políticas públicas definidas pelos militares para a Amazônia es-
tavam pautadas na incorporação dessa imensa faixa de terras ao conjunto
da economia nacional, habilitando-a à exploração do capital forâneo. En-
tretanto, as estratégias para a “integração da Amazônia” foram fadadas ao
insucesso, tendo em vista que apenas a ligação espacial não é suficiente
para inserir a região na macroeconomia da acumulação capitalista.
A tentativa de integração da Amazônia desenvolvida pelos gover-
nantes militares dispôs de um grande aparato estatal, que envolvia desde
a construção de grandes rodovias – como a Transamazônica e Perimetral
Norte –, até a criação de programas como o PIN (Plano de Integração
Nacional –1970) e I e II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento Eco-
nômico e Social) e os grandes projetos industriais e hidrelétricos – como
o Programa Ferro Carajás, ALBRÁS, ALUMAR, as usinas de Tucuruí
e Balbina, Mineração Rio do Norte, entre outros. Toda essa infraestru-
tura foi montada com o objetivo de viabilizar a cooptação das riquezas
naturais amazônicas pela iniciativa privada, em especial a propriedade
da terra.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 39


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Sob o pretexto de “ocupar para desenvolver” a região amazônica,


os estabelecimentos bancários públicos reservaram crédito rápido e fácil
para atrair os investidores. Diversos incentivos fiscais foram disponibili-
zados para promover o deslocamento de migrantes, capitalistas nacionais
e estrangeiros, dispostos a contribuir com o projeto de ocupação ideali-
zado para a Amazônia. A imposição de mecanismos estatais para a inte-
gração da Amazônia, entretanto, encontrou nos movimentos populares de
defesa dos direitos dos povos indígenas, dos seringueiros, posseiros, ri-
beirinhos, entre outros, resistência contra a expropriação que o capital fo-
râneo instaurou na região. Os “empates” foram uma das formas de resis-
tência encontradas pelas populações da floresta para assegurar seu direito
a permanecer na terra e lutar pela sobrevivência ao combater a destruição
de seu habitat. Por meio desse movimento de resistência, os posseiros e
seringueiros “empatavam”, ou seja, impediam que os jagunços dos gran-
des fazendeiros agropecuaristas os expulsassem das terras em que já vi-
viam há anos ou desmatassem a floresta.

Trabalhadores rurais reunidos para um empate contra os fazendeiros pe-


cuaristas do Centro-Sul.

Fonte: Acervo Digital do Memorial dos Autonomistas.

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Segundo Elder Andrade de Paula, a luta pela terra era uma cons-
tante e os governos procuravam usar de todos os meios para expulsar as
populações que nela habitavam.

Dado que a permanência na terra passa a constituir-se como ele-


mento fundamental de resistência, os desmatamentos para fins de
implantação de projetos agropecuários expressam uma séria ame-
aça aos posseiros em geral e aos seringueiros em particular. Em
outras palavras, a derrubada da mata representava a eliminação
das possibilidades materiais de sua sobrevivência, via destruição
de suas fontes de renda baseadas no extrativismo (principalmente
as árvores de seringa e as castanheiras), bem como a progressiva
extinção da fauna e flora que compõem a base de sua alimentação
(PAULA, 2006, p. 112).

Os empates representaram uma das mais brilhantes formas de re-


sistência do chamado contrapoder em defesa das populações da floresta.
É no contexto das lutas que muitas forças de reação se avolumam contra-
pondo-se à sujeição. Movimentos de resistência como os empates surgem
das fortes pressões, aliando a população em torno de bandeiras comuns
pela defesa de sua permanência na terra.
É justamente no conflito que se trava nas lutas sociais que ganham
força os princípios da universalidade de cidadania. Assim, quando os di-
versos movimentos sociais como de indígenas, posseiros, seringueiros,
lavadeiras, agricultores, colonos sem terra e sem teto, desempregados, le-
vantam-se em defesa de seus direitos, passam a atuar como desencadea-
dores do debate, inscrevendo-se na cena pública como forças de resistên-
cia. Essa tentativa de resistência, entretanto, não significa que liberdades
e direitos estão totalmente salvaguardados, basta voltar os olhos para o
estado de cerceamento de liberdades que há não muito tempo submete-
ram, e ainda submetem países inteiros.
A Amazônia, no contexto da “mercantilização de tudo”, foi alvo,
durante a Ditadura Civil-Militar, de um intenso processo de legitimação
do discurso capitalista. O poder ditatorial não apenas objetivava integrar
o Brasil espacialmente, mas também ideologicamente. Para tanto, o ideal
militar de unificar o país perpassava obviamente por iniciativas no cam-
po das telecomunicações. Assim, a criação, em 1965, da Empresa Brasi-

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leira de Telecomunicações - EMBRATEL – sob o lema: “a comunicação


é a integração” revela os esforços dos donos do poder para perpetuar sua
dominação através dos meios de comunicação de massa.
Como bem coloca Altvater, “os poderes inconstitucionais na eco-
nomia e o mundo da mídia precisam apresentar um mercado atrativo pa-
ra os clientes, acenar com o lucro para os acionistas e alcançar uma taxa
de audiência alta”. Assim, esses poderes ditos inconstitucionais não estão
vinculados às decisões políticas, pois veem os cidadãos que constituem
essa comunidade política como meros consumidores.
O jogo de interesses políticos durante a Ditadura Civil-Militar evi-
dencia-se, sobretudo, pela celebração da aliança entre os jornais e o po-
der político. O poder oficial, que já manipulava a produção jornalística
local, passou a financiar de forma mais latente os gastos com os jornais.
Prova disto é o fato de que, durante esse período quase não se observa,
em nenhum veículo de comunicação, resistência ou crítica aos atos pre-
sidenciais, o que comprova, ainda, a “eficiência” do aparato de controle
ideológico montado pela classe dirigente a fim de tornar “homogêneas”
as opiniões dos diversos jornais existentes no país.
A maioria dos jornais riobranquenses do período da Ditadura Civil-
Militar apresentava linha editorial legitimadora do poder oficial, não ma-
nifestando quase nenhuma reação às medidas repressivas adotadas pelos
líderes do regime. Nesse sentido, os editoriais dos jornais ligados ao poder
oficial foram editados com o objetivo de construir uma imagem simpáti-
ca, popular e empreendedora dos presidentes e seus governos estaduais.
Exemplo desse culto aos líderes do regime era a preparação para a
chegada dos Presidentes Militares, realizado de forma intensa e discipli-
nada. Os alunos se confundiam com militares, enfileirados, posicionados
de modo a representar a “pretensa” unidade do povo brasileiro. Essas es-
tratégias de disciplinamento dos corpos são discutidas por Michel Fou-
cault, que considera que o quadriculamento, a fila, a elaboração temporal
do ato e a correlação do corpo e dos gestos são mecanismos que põem em
funcionamento um conjunto de técnicas que atuam de modo a legitimar a
dominação dos grupos que exercem o poder.
Ao construir uma imagem simpática diante do povo brasileiro, os
governantes militares buscavam efetivar uma estratégia para se manter

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no poder. A mídia contribuiu de maneira decisiva para a divulgação das


ideias de um “Brasil Novo”, “unido”, governado por “verdadeiros reden-
tores da Nação”. Os meios de comunicação de massa fomentaram, então,
o imaginário de uma nação integrada que compartilhava os mesmos valo-
res e ideais. Os integrantes dessa sociedade tinham de ser, ainda que por
meio da arbitrariedade, “padronizados” em torno de valores cívicos e pa-
trióticos comuns.
Diante do peso repressivo que o regime militar representava, era
preciso criar mecanismos que mascarassem a violência imposta pelo sis-
tema ditatorial. Para isso, foram criadas técnicas sutis de disciplinamento,
disseminadas a partir da ideia de “defesa da pátria”. Com isso, buscava-se
que os sujeitos se autorregulassem e se autogovernassem, para que não
fosse preciso violência e repressão.

A Ditadura Civil-Militar no Acre e sua influência na imprensa


escrita

Perseguições, torturas, assassinatos, exílios, sequestros, censura à


imprensa e à produção intelectual. Voltando os olhos para a turbidez que
marca a Ditadura Civil-Militar nos deparamos com a necessidade de dia-
logar com os sujeitos que fazem parte desse processo discursivo. Nesse
encontro, a inquietação leva-nos a interrogar: Quais são as suas histórias?
Quais os efeitos de seus atos? Como se entrelaçam com as relações de
poder?
Ao partirmos desta reflexão, podemos dizer que os anos que ante-
cederam o golpe militar no Acre são marcados por um misto de incerte-
za e esperança. A expectativa de gerir-se de forma autônoma era a pro-
messa aguardada durante quase seis décadas pelo povo acreano, através
da transformação do Território Federal em Estado. Entretanto, o descaso
do governo brasileiro e a necessidade de autogestão financeira eram argu-
mentos que a oposição ao Movimento Autonomista utilizava para desta-
car as dificuldades que surgiriam com a elevação do Acre a Estado.
O projeto autonomista foi apoiado por uma grande campanha de
divulgação nos principais meios de comunicação locais, apresentando a

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emancipação política como “desejo de todos os acreanos”. Esse projeto,


entretanto, esteve longe de representar os anseios de uma coletividade,
era mais uma medida motivada pelos interesses das elites locais que viam
o domínio federal como empecilho para sua dominação econômica.
Apesar da divisão de opiniões sobre a questão da autonomia acrea-
na, em 15 de junho de 1962 foi assinada a Lei 4.070, que conferia ao Acre
status de Estado. No dia 07 de outubro do mesmo ano, os acreanos foram
às urnas e elegeram pela primeira vez o chefe do Executivo, além dos lí-
deres dos cargos legislativos. A autonomia política do Acre, entretanto,
não duraria muito, era perceptível na imprensa local o clima de suspeição
levantado por líderes pessedistas sobre a administração de José Augusto.
Na imprensa local, a disputa entre os maiores partidos acreanos da
época, o PTB e o PSD, ganhava destaque através do jornal de apoio aos
petebistas, O Liberal, dirigido por Foch Jardim, e do jornal O Estado, di-
rigido por José Guiomard dos Santos, senador pessedista.
O jornal O Liberal, na campanha eleitoral de 1962 apoiou a União
Social Trabalhista (coligação do PTB, UDN e PSP), ajudando a eleger Jo-
sé Augusto. Com a deflagração do golpe militar em 31 de março de 1964,
O Liberal foi um dos poucos instrumentos de que dispunham os corre-
ligionários do governador José Augusto para tentar apaziguar os ânimos
e minorar o estado de expectativa que se instaurava na política acreana.

Acreditamos que o povo esteja renovando seu voto de confiança,


na certeza de que o jovem governante não há-de postergar seu
passado de lutas e princípios democráticos. Torna-se necessário
compreendermos que o Acre não é propriedade de grupos políti-
cos e econômicos. Todos têm a obrigação patriótica de lutar pe-
la consolidação do regime político que nos foi legado pela Lei nº
4.070, de 15-6-62, numa afirmação inconteste de que somos capa-
zes de realizar também. (Nossa Opinião. O Liberal. Rio Branco -
AC, 21 abr. 1964, Ano VIII, n. 199).

Às vésperas da deposição de José Augusto pelos militares, o dis-


curso presente no editorial tentava reafirmar a legitimidade do Governa-
dor acreano, tendo em vista que seu mandato havia sido outorgado pelo
sufrágio do voto popular. A referência a um sujeito coletivo, ao se afirmar

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 44


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que “todos têm a obrigação patriótica de lutar pela consolidação do regi-


me político que nos foi legado pela Lei nº 4.070, de 15-6-62”, reforça a
necessidade de se defender a “democracia”, representada pelo governo de
José Augusto, e contra os “grupos políticos e econômicos” que ameaçam
o regime democrático.
A neurose anti-comunista era a tônica do discurso do grupo de opo-
sitores do governador José Augusto, que acusavam-no constantemente de
ser comunista ou amigo dos comunistas e de permitir que se instaurasse
no Acre um clima de animosidade, perpetrado por comunistas infiltrados
no governo e que usavam seus cargos para “provocar inquietações junto
à população e às classes conservadoras”.
Todas as forças políticas e sociais que apoiavam o regime militar
empenharam-se em agir para forçar a renúncia do governador acreano.
Os jornais de oposição pressionavam e ameaçavam José Augusto, como
se pode entrever no seguinte trecho:

Apesar das ameaças reveladas, da campanagem policial, das


apregoadas prisões de deputados e outras propaladas notícias
de prestígio e apoio do prof. José Augusto, com o fito exclusi-
vo de amedrontar-nos; aqui vai mais esta edição de “O Esta-
do” com a nossa mesma orientação, pois nada há que temer pois
não somos comunistas nem dilapidamos os dinheiros públicos.
(Não tememos. O Estado. Rio Branco - AC, 26 abr. 1964, Ano VI,
n. 116, p. 1).

Se observarmos o que o trecho acima noticia, perceberemos o cli-


ma de suspeição e turbulência que dominou o Acre nos dias que antecede-
ram a assinatura da renúncia do Governador José Augusto. A “campana-
gem policial” e as “prisões de deputados” são referências que apontam pa-
ra a desmoralização do então governador e de todos aqueles ligados a ele,
o que notamos pela declaração de que “não somos comunistas nem dila-
pidamos os dinheiros públicos”. Assim, percebemos que o objetivo da im-
prensa neste momento era construir a ideia de legalidade do golpe militar
através da exigência da assinatura da renúncia por parte do governador.
Ironicamente, a busca de legitimação pautada no discurso da “de-
mocracia” não foi apenas o argumento escolhido pelos correligionários

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 45


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do Governador José Augusto. As facções golpistas buscaram a aceitação


por meio do discurso democrático. A “democracia” constitui-se na forma-
ção discursiva predominante no imaginário político circulante nos jornais
riobranquenses do período da Ditadura Civil-Militar.
Ao tentar construir uma imagem democrática, os líderes do regime
militar que se instalavam em Brasília e nos Estados brasileiros buscaram
legitimidade no discurso jornalístico, pois para serem legítimos, precisa-
vam ser “democráticos” e defensores da “vontade da Nação”.

Governador José Augusto de Araújo passando à tropa da Polícia Militar


em revista - 1963.

Fonte: Acervo Digital do Memorial dos Autonomistas.

Com a deposição de José Augusto de Araújo, em 08 de maio de


1964, acirrou-se ainda mais as disputas entre PSD e PTB. Após a assi-
natura da renúncia, os jornais de linha oposicionista fizeram questão de
apontar José Augusto e todas as pessoas ligadas à sua administração co-
mo subversivos e comunistas. Em quase todas as edições de O Estado

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encontram-se acusações ao governo petebista de estimular a corrupção, e


numa tentativa de ridicularizar o ex- governador, algumas notas do jornal
referem-se ao governador deposto como o “Zé”. Por outro lado, o jornal
não economizava elogios ao governador imposto pelos militares, Edgard
Pedreira de Cerqueira Filho. São as estratégias do poder mudando confor-
me as conveniências políticas de uma restrita minoria.
Após a renúncia de Edgard Cerqueira, em agosto de 1966, assume
o governador Jorge Kalume, cujo mandato coincide com o mais duro pe-
ríodo da Ditadura Civil-Militar. Durante seu governo foi editado em Bra-
sília o quinto Ato Institucional (AI-5), responsável pelo fechamento do
Congresso Nacional e pela eliminação das garantias institucionais demo-
cráticas ainda vigentes. Intensificavam- se a repressão e a censura a qual-
quer forma de oposição ao regime militar, bem como toda e qualquer ma-
nifestação da sociedade civil. No Acre, muitas prisões foram realizadas,
sem, contudo, a mídia noticiar tais fatos.
Era a época das construções de rodovias que interligariam a capi-
tal aos demais municípios acreanos e a outras regiões do país, da criação
de conjuntos habitacionais para a classe média nascente, como o Castelo
Branco, o Bela Vista e o Guiomard Santos, e da construção da Ponte Jus-
celino Kubitschek, que faria a ligação entre o Primeiro e o Segundo Dis-
trito de Rio Branco.
O entrelaçamento desses fatos que marcaram o início da Ditadura
Civil-Militar no Acre com o contexto da imprensa escrita vigente nessa
época de “silêncios cortados” leva-nos a enveredar pelos escorregadios
domínios da linguagem, e, consequentemente, do discurso. Ao contra-
pormos o discurso presente nos editoriais dos jornais O Rio Branco e
Varadouro às condições de produção em que foram escritos, podemos
entrever os movimentos de resgate da memória e o estabelecimento de
alguns traços das várias identidades sociais que circulam na sociedade
acreana.
O discurso da imprensa escrita local incorporou o ideário de ocu-
pação da Amazônia, última fronteira a ser e integrada ao resto do país.
Numa bem arquitetada estrutura de marketing, a imagem da floresta ama-
zônica aparece como um desafio a ser vencido e subjugado pelo homem
“civilizado”. O sentido de “civilizar” a Amazônia, adotado pelos gover-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 47


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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nos militares para justificar sua dominação na região, compreendia “redi-


mi-la” ao tomá-la bravamente dos povos originários, de animais ferozes,
de doenças e do isolamento em relação às demais regiões do Brasil.
O seguinte anúncio traz o comentário sobre os benefícios da “mo-
dernidade” que chegava para tirar a Amazônia do “primitivismo”, de-
monstrando a ideologia adotada pelos diversos jornais locais a fim de
“ocupar” a região para “desenvolvê-la”:

A Amazônia tem dono, você é um deles.


A Amazônia é sua. E de todos os brasileiros.
Mas você é um dos homens que estão ajudando a mudar a paisa-
gem da outra metade do Brasil.
A SUDAM e o BASA estão trazendo o remédio que ela sempre pre-
cisou.
Dinheiro e tecnologia. Já fizemos muito nesses cinco anos. Espe-
ramos fazer muito mais.
Temos que trazer outros milhares de investidores para a Amazô-
nia.
Para isso precisamos convencê-los de que a Amazônia já é uma
realidade.
(A Amazônia tem dono, você é um deles. O Rio Branco. Rio Bran-
co - AC, 12 fev. 1972, Ano III, n. 483, p. 3).

A ideia de redimir os “atrasados amazônidas” pela tecnologia e pe-


lo progresso foi tema não apenas de vasta propaganda veiculada na im-
prensa escrita acreana, mas também de diversos editoriais. Dizer que “a
Amazônia já é uma realidade” é desconsiderar anos de história. A propa-
ganda veiculada nas décadas de 1970 e 1980 pouco difere da veiculada
em pleno início do século XXI, pois desconsidera as pessoas que aqui vi-
veram e vivem, única e simplesmente por possuírem uma dinâmica dife-
rente dos chamados “centros do progresso nacional”.
Os efeitos do programa de colonização da Amazônia empreendi-
do pelos militares chegaram ao Acre com intensidade durante o governo
de Wanderley Dantas (1971-1974), cuja política de incentivo à pecuária
“escancarou as porteiras” do Acre aos grandes empresários do Centro-
-Sul do país. Estes adquiriram, a preços muito baixos, imensas extensões
de terras pertencentes aos antigos seringais, devastando a floresta para a

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 48


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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implantação de pastagem, expulsando posseiros, seringueiros e indíge-


nas. O resultado desse processo só poderia ser o deslocamento dessa po-
pulação expropriada em direção aos centros urbanos, principalmente pa-
ra Rio Branco, que por ser a sede do governo e o principal centro urbano
acreano parecia oferecer maiores oportunidades de emprego e educação
para os filhos.
Na imprensa riobranquense imperava o discurso do “Acre Novo”,
segundo o qual a “modernidade” chegava ao Estado. Esse discurso foi
construído no sentido de atrair investimentos do capital internacional e
do Centro-Sul do Brasil para a região acreana.

Os caminhões boiadeiros estão chegando. São mais de quinze mil


novos animais de raça Nelore que vão embelezar a paisagem bu-
cólica das tardes acreanas, substituindo o predomínio do penacho
da fumaça branca dos defumadores tradicionais, a que estávamos
habituados. (...) O Novo Acre está acontecendo. O Acre cresce. (O
Jornal. Editorial. Rio Branco - AC, 14 set. 1974, Ano I, n. 2, p. 2).

A produção discursiva dos jornais riobranquenses da década de


1970 demonstrava a intenção dos grupos dominantes de promover a legi-
timação do modelo de desenvolvimento elaborado pelos militares para a
Amazônia. Sem dúvida, a relação entre o governador Wanderley Dantas
e a imprensa evidenciou a atitude de servilidade dos meios de comunica-
ção locais ao projeto de desenvolvimento acreano, pautado na substitui-
ção dos defumadores de borracha pelas grandes pastagens.
Diante do isolamento do Acre em relação a outros Estados brasilei-
ros a alternativa encontrada por Wanderley Dantas foi aliar-se à impren-
sa para divulgar as “vantagens” de se comprar terras acreanas. A aliança
entre o governo Dantas e a imprensa é perceptível não apenas pelo pro-
pagandismo que lançou o Acre no cenário nacional como terra paradisí-
aca, mas principalmente pelo que foi silenciado nesse discurso. É incon-
cebível que em pleno processo de expulsão de seringueiros, indígenas e
posseiros de suas terras não se publicasse nada nos jornais de Rio Branco
a respeito da violência nos empates, tampouco acerca das prisões arbitrá-
rias nas delegacias ou sobre as duras condições de vida nos bairros “peri-
féricos” que estavam em formação.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 49


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As consequências desta abertura ao capital forâneo, entretanto, não


tardariam. Durante o governo de Geraldo Mesquita (1975-1979), intensi-
ficaram-se os conflitos pela posse da terra envolvendo grandes pecuaris-
tas e posseiros. Isso gerou a necessidade de “demarcação” das fronteiras,
pois tanto os seringueiros quanto os seringalistas tinham uma relação de
posseiros com a terra. A luta pela regulamentação da posse da terra se fez
sob a lógica das relações de poder, venceram aqueles que detinham as po-
sições sociais mais privilegiadas, restando aos posseiros emigrar para os
centros urbanos, uma vez que não dispunham de condições econômicas
para comprar a terra nem influência junto aos órgãos governamentais para
adquirirem o título das mesmas.
O plano de governo de Geraldo Mesquita, diante de tais problemas
sociais, incluiu o incentivo à produção agrícola e a fixação das popula-
ções interioranas em seus locais de origem. Diante do elevado número
de pessoas que se avolumavam na zona “periférica” de Rio Branco e dos
grandes problemas sociais trazidos com a irresponsável instalação da pe-
cuária no Estado, o plano de governo de Geraldo Mesquita contribuiu pa-
ra minimizar os problemas causados pela falta de infraestrutura da cidade
para receber tantos imigrantes.
A coincidência com o período da administração do Presidente Er-
nesto Geisel permitiu ao governo de Geraldo Mesquita participar do pro-
cesso de abertura política “lento, seguro e gradual”. O lema de seu gover-
no era “empreender medidas, a médio e longo prazo, por meio do proces-
so democrático do diálogo, da renúncia mútua e do consenso”.
Com o fim do AI-5, os jornais riobranquenses passaram a gozar
certa liberdade de expressão, conquistada no início do governo do Presi-
dente João Baptista Figueiredo. Uma das principais metas do Presidente
Figueiredo, já no primeiro ano de seu mandato, foi a questão da anistia,
cuja Lei foi aprovada ainda em agosto de 1979 pelo Congresso Nacional.
No Acre, a chegada da década de 1980 foi marcada por grandes
problemas sociais herdados dos governos militares anteriores. Ao assu-
mir o governo acreano em 15 de março de 1979, Joaquim Falcão Macedo
(1979-1983) teve à frente vários problemas gerados com a falta de plane-
jamento ao se implantar a agropecuária no Acre, pois a entrada desta ati-
vidade econômica no Estado não contemplou o fator social.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 50


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Diante do quadro de extrema carência nos bairros de Rio Branco, a


esperança de um governo que contemplasse essas questões sociais foi ele-
mento que direcionou a propaganda de divulgação de Joaquim Macedo.
Aproveitando o contexto de privações vivenciadas por essas populações
expropriadas de suas terras e que lutavam pela sobrevivência na “perife-
ria” da capital acreana, o Governador Macedo promoveu uma larga divul-
gação na imprensa sobre as obras realizadas nesses locais mais carentes:

E, nesse diapasão é que os projetos visando beneficiar colonos,


seringueiros, agricultores sem terras, vem sendo direcionados pe-
lo governador Joaquim Macedo e sua equipe. Hoje, essa parcela
considerável da população acreana pode estar certa que encon-
trará no governador Joaquim Macedo um homem voltado para a
solução de seus problemas se fizermos uma análise geral, chega-
remos à conclusão que o governo já fez sua opção; escolhe traba-
lhar pelos humildes. (Opinião. O Rio Branco. Rio Branco - AC, 15
jul. 1980, Ano X, n. 946, p. 2).

Para alguns, um governo que “optou pelos humildes”, para outros,


um “continuador” da política de exceção desenvolvida pelos demais go-
vernadores tutelados pelo poder da quartelada de Brasília, como se pode
notar na crítica mordaz expressa no trecho do seguinte editorial do jornal
Gazeta do Acre:

Despertou nossa atenção, mas não nos surpreendeu que o gover-


nador Joaquim Macedo tenha ido se queixar ao Presidente da Re-
pública “dos que fazem imprensa nesta terra”. (...) Conhecemos
muito bem a Lei de Imprensa, embora não concordemos com ela
em sua totalidade, porque ainda traz em seu bojo diversos abusos
estes, sim, intoleráveis! Do regime de exceção do qual os atuais
governadores são ainda servos. (Repórter Gazeta. Gazeta do Acre.
Rio Branco - AC, 12 abr. 1981, Ano IV, n. 805, p. 3).

As opiniões circulantes na imprensa sobre os governadores acrea-


nos sempre se apresentaram marcadas por divergências. Como percebe-
mos a partir desses dois trechos de editoriais, o jogo de interesses deter-
mina o apoio ou a contrariedade. Enquanto no editorial do jornal O Rio
Branco a posição eleva os feitos do governo de Joaquim Macedo, neste

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 51


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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segundo exemplo, retirado do jornal Gazeta do Acre, predomina a crítica


à “servilidade” do governador em relação ao Presidente da República e
aos ideais de regime militar.
A partir da correlação entre a imprensa riobranquense e os interes-
ses dos líderes da Ditadura Civil-Militar, percebemos que o processo de
abertura política revelou mais uma faceta do aliancismo entre o poder po-
lítico e o poder midiático. Longe de se configurar em luta “genuína” da
participação popular, o clamor por liberdade de imprensa se deu dentro
dos limites de uma sociedade capitalista, em que prevalecia a opinião e
os interesses dos grandes empresários da mídia. Assim como aconteceu e
acontece em toda a trajetória acreana, a imprensa desempenha um papel
de mantenedor do status quo, tanto dos grupos que a dirigem quanto dos
grupos que ela apoia.
Se, por um lado, o poder ditatorial fazia uso de estratégias diversi-
ficadas de controle social, fosse por meio da violência, repressão, do con-
trole econômico, da mitificação da pátria ou da aliança com a imprensa de
grande circulação, por outro, a resistência se manifestou através da cha-
mada “imprensa alternativa”. Segundo Bernardo Kucinski, esta designa-
ção foi dada aos veículos de comunicação que se contrapunham à ideolo-
gia dominante veiculada pelos jornais da grande imprensa, que adotavam
uma postura de apoio ao regime militar ou não o contestavam claramente.
Inicialmente, os jornais alternativos receberam a designação de
“nanicos”, devido ao tamanho do tabloide adotado pela maioria e tam-
bém em virtude da imaturidade e pequenez que apresentavam quanto ao
âmbito empresarial. Em todo o país surgiram vários jornais alternativos,
dentre os quais se destacaram os seguintes, que circularam nos grandes
centros: Pif-Paf, O Pasquim, Movimento, EX, Folha da Semana, dirigida
por Arthur Poener, o Bondinho, editado por Sérgio de Souza, O Sol, en-
tre tantos outros.
Acompanhando esse fenômeno, surge, no Acre, Varadouro, O Jor-
nal das Selvas como se autointitulava, adotando uma linguagem comba-
tiva e projeto gráfico peculiar. A proposta deste “nanico” era registrar as
consequências da expansão agropecuária no Acre, trazendo em suas pági-
nas as vozes de indígenas, posseiros, seringueiros e tantos outros excluí-
dos socialmente.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 52


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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A eclosão dos inúmeros conflitos pela posse de terra se tornou tão


latente que era impossível a imprensa fazer de conta que nada estava
acontecendo. Entretanto, a abordagem dos fatos apareceu de forma mui-
to tímida nos jornais de linha editorial vinculada ao poder oficial. Diante
dessa carência de informações a respeito do tema, os jornais “alternati-
vos”, dentre os quais se destacam Varadouro, Nós Irmãos e Berração, fo-
ram os porta-vozes do momento de ebulição político-social que viveu o
Acre no final da década de 1970 e início da década de 1980.
Bernardo Kucinski assim define o jornal Varadouro:

Apesar de suas reportagens abordarem aspectos da vida na Ama-


zônia, sempre de forma crítica e colada às camadas populares,
sem meias palavras, o jornal contava com anúncios do comércio
local. Não possui nenhum ranço da linguagem doutrinária dos al-
ternativos nacionais (KUCINSKI, 1991).

Varadouro circulou na capital acreana no período de 1977 a 1981.


Era um jornal alternativo cuja criatividade se diferenciava dos demais
pertencentes a esta categoria produzidos no restante do Brasil, por mani-
festar em suas páginas um “jeito acreano”, tanto do ponto de vista da lin-
guagem quanto do próprio projeto gráfico. Nascido em uma conjuntura
política difícil, Varadouro enfrentou as sanções da censura, demonstran-
do que é possível produzir um jornalismo alternativo, mesmo em plena
vigência dos Atos Institucionais.
Enquanto na imprensa atrelada ao poder oficial as palavras são
chamada à neutralidade, na imprensa alternativa são marcadas pelo com-
prometimento. Adotando um discurso que focalizava como protagonistas
os vários sujeitos sociais geralmente excluídos da “ordem do discurso”,
Varadouro foi alvo de constantes ataques por parte dos líderes políticos
da época, por não admitirem contestações ao regime militar.
Uma publicação da Empresa Macauã Ltda., Varadouro teve sua
primeira equipe de redação composta pelo diretor responsável Elson
Martins da Silveira, pelo fotógrafo Adalberto Dantas, pelo diretor finan-
ceiro Abrahin Farhat Neto e pelos redatores Célia Pedrina Rodrigues Al-
ves, Elson Martins da Silveira, Luiz C. Carneiro, Rosa Maria Carcelen,

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 53


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Silvio Martinello e Terri Vale Aquino. É importante destacar a inovação


apresentada com a presença das mulheres na composição da equipe de
redação do jornal, rompendo com uma tradição mantida em quase toda a
existência da imprensa acreana, que vedava às mulheres o poder de mani-
festar livremente seu discurso através da escrita.
Para a realização da primeira edição de Varadouro, em maio de
1977, foi necessário importar 300 quilos de chumbo em barra para a com-
posição das letras usadas para impressão do jornal. A necessidade de se
importar tamanha quantidade de chumbo aconteceu porque nessa época,
a impressão dos jornais acreanos era feita nas velhas máquinas linotipo,
alimentadas por chumbo em barra. Pedro Vicente Costa Sobrinho afirma
que essas máquinas tipográficas possuíam área de impressão de duas pá-
ginas de jornal no formato standard. Os responsáveis pelo jornal enfren-
taram grandes dificuldades para mantê-lo em circulação, por isso o “na-
nico” acreano perambulou por várias cidades para poder ser composto e
impresso, entre elas São Paulo, Porto Velho, Manaus e Belém. As rarís-
simas edições impressas no Acre tiveram que contar com as oficinas do
jornal O Rio Branco.

VARADOURO é, pois, um dever de consciência de quem acredita


no papel do jornalista. É propositadamente feito aqui, na “terra”.
Sai, portanto, de uma forma rude, cabocla, sem técnica, cheio de
limitações e gerado pela necessidade de colocar em discussão os
problemas de nossa região, do nosso tempo e principalmente de
nossa gente.
É um desafio, até certo ponto, incômodo. Sabemos que seremos
amados e mal-amados. Mas ainda achamos que vale a pena assu-
mi-lo, porque acreditamos que o homem acreano e o da Amazô-
nia em geral merecem muito mais do que simplesmente o “berro
do boi”. (Aos Leitores. Varadouro. Rio Branco - AC, mai./1977,
Ano I, n. 1, p. 1).

A escolha do nome Varadouro, termo que designa pequena estra-


da aberta pelo seringueiro para ligar o barracão ao seu local de trabalho,
revela a intenção dos responsáveis pelo jornal de dialogar sobre os prin-
cipais conflitos existentes no Acre. A proposta principal desta produção
jornalística era registrar as consequências da “segunda patada”, ou seja, a

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 54


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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entrada no Acre de grandes empresas agropecuárias, uma vez que a “pri-


meira patada” aconteceu com o ciclo da borracha.
Ao lado de Varadouro, o jornal O Rio Branco, também constitui-se
em elemento de estudo deste livro. O Rio Branco caracteriza-se por mani-
festar em suas páginas a oscilação dos jogos de poder da política acreana.
Fundado em 20 de abril de 1969, esse jornal representa um verdadeiro di-
visor de águas na imprensa acreana. Primeiro jornal-empresa com circu-
lação diária do Acre, O Rio Branco se destaca por ser o periódico que tem
perdurado por maior espaço de tempo em circulação na capital acreana.
A redação e as oficinas situavam-se na sede da Imprensa Oficial do Esta-
do, Av. Ceará, esquina com a Cel. João Donato.
Construída no governo de José Guiomard dos Santos, a nova se-
de da Imprensa Oficial do Acre foi um dos primeiros prédios do Departa-
mento do Acre a ser construído em alvenaria. A dificuldade de transporte
do material para o Território fez com que durante quatro décadas de regi-
me de Território, o Acre possuísse apenas raríssimas construções em al-
venaria. A Imprensa Oficial foi, durante muitos anos, o órgão que atendeu
a maior parte dos trabalhos de impressão tipográfica no Acre.

Segunda sede da Imprensa Oficial do Acre, inaugurada em 29 de outubro


de 1948.

Fonte: Álbum Fotográfico do Território Federal do Acre.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 55


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O jornal O Rio Branco, Órgão dos Diários Associados de Assis


Chateaubriand, surgiu no cenário da imprensa acreana apresentando uma
nova proposta jornalística, pautada na especialização a imprensa nacio-
nal, iniciada a partir da implantação de vários cursos de Comunicação
Social. O jornal destaca-se por ser pioneiro na imprensa local, trazendo
grande inovação em seu projeto gráfico com as matérias mais curtas e di-
retas, colunas mais ilustradas e a divisão dos assuntos em várias seções
especiais.
Faziam parte da primeira equipe jornalística de O Rio Branco, o
Diretor Superintendente Epaminondas Correia Barahuna, o Redator-Che-
fe Ubirajara Omena e o Diretor Petrônio Gonçalves de Almeida. O cor-
po de redatores era composto por José Chalub Leite, José de Souza Lo-
pes, Elzo Rodrigues, Francisco Cunha Filho e Edno Thadeu Cavalcante
Monteiro.
O público leitor do jornal era basicamente composto pelas elites
acreanas e órgãos do poder. Entre os assinantes de O Rio Branco, podem
ser citados o Governo do Estado do Acre, Assembleia Legislativa Estadu-
al, FADACRE - Faculdade de Direito do Acre, Departamento de Geogra-
fia e Estatística, Banco Real, SUNAB, Prelazia do Acre e Purus, Lourival
Marques, Alberto Zaire, Áulio Gélio, Ferraz e Azevedo, Maria Strano,
José Eugênio Bezerra de Araújo, Raimundo Escócio Faria, Tetsuo Kawa-
da, Jorge Araken, Adonai Santos, Labib Murad e Boaventura Moreira. Os
exemplares podiam ser adquiridos em vários postos de vendas na cidade,
sendo comuns anúncios de assinaturas mensal, anual e semestral.
É importante lembrar que o público do discurso não é meramente
aquele que lê o jornal, mas aqueles que são seus destinatários e que po-
dem ser envolvidos por ele. O público leitor, sendo alvo do sentido veicu-
lado no discurso dos jornais, é obrigado a responder às interpelações pre-
sentes na relação enunciativa. No discurso da mídia, essa relação enun-
ciativa apresenta-se de forma unilateral, pois quem escreve os textos jor-
nalísticos dirige a palavra a um público ausente, este público, por sua vez,
não pode responder efetivamente a essas interpelações.
Diante dessa impossibilidade de resposta efetiva do público leitor,
uma das estratégias utilizadas pela mídia para apagar a ideia de unilatera-
lidade é “dar a palavra” a esse público, o que se faz, geralmente, median-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 56


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te cartas ao diretor do jornal ou colunas destinadas exclusivamente a vei-


cular as opiniões dos leitores. Essa estratégia foi amplamente utilizada no
jornal O Rio Branco através da coluna “O Leitor Opina”, sendo um dos
raríssimos espaços do periódico em que podiam ser veiculados os textos
opinativos, já que a imparcialidade e o caráter informativo, naquela épo-
ca, eram sinônimos de bom jornalismo.
Esse suposto procedimento de tomada da palavra por parte do lei-
tor, entretanto, não significa propriamente que lhe está sendo facultado o
poder de voz no veículo de comunicação, mas trata-se de uma estratégia
de simulação de interlocução, uma vez que é a redação do jornal quem
seleciona que cartas serão ou não publicadas.
Na nota que segue, podemos perceber essa tentativa de diálogo di-
reto com o leitor e a busca por renovação e dinamismo no jornal O Rio
Branco:

Venha ser jornalista – O Rio Branco está chamando gente dispos-


ta a ser gente no jornalismo. Capaz de fuçar a notícia onde quer
que ele esteja. Temos vagas para repórteres, redatores e reviso-
res. Queremos formar uma equipe coesa, capaz, jovem, desinibi-
da, provando o valor acreano. Se você tem português, sabe ler,
tem curiosidade por tudo, não se contenta em ver a banda passar
sem saber o que ela toca, completou 18 anos, venha aqui amanhã.
Faremos um teste. Depois, tudo depende só de você. Estamos re-
formando os quadros do jornal, em busca de maior dinamismo.
(O Rio Branco, 15 set. 1974, Ano VI, n. 1219, p. 1).

A busca de técnicas que levassem o leitor a confiar que o que estava


publicado era a verdade tal qual aconteceu e não mais uma visão do fato
motivou grande parte das reformas na imprensa acreana. Essas transfor-
mações refletem o processo pelo qual passava a sociedade brasileira no
período da Ditadura Civil- Militar e a crescente urbanização e acelerada
industrialização, que reordenavam a estrutura social que se modificava a
cada dia. A adoção de um modelo jornalístico mais dinâmico e em que
fosse mantido um incessante diálogo com o leitor traduzia a necessidade
de transformar o jornalismo num ator socialmente reconhecido, conquis-
tando assim o direito de exercer uma “fala autorizada”.

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A ênfase das notícias publicadas em O Rio Branco, até a primeira


metade da década de 1970, era dada a fatos do contexto nacional. O vín-
culo com a ideologia do regime militar fez com que o jornal silenciasse
sobre os conflitos sociais pelos quais passava o Acre, gerados pela im-
plantação da pecuária no Estado e o consequente “inchamento populacio-
nal” ocorrido na cidade de Rio Branco.
Os jornais riobranquenses que circulavam durante a Ditadura Ci-
vil-Militar eram caracteristicamente irregulares, com publicações ora
mensais, ora semanais, ora quinzenais, variando conforme a disponibili-
dade de recursos para manutenção dos mesmos. Com isso, tem-se o qua-
dro de extrema dependência de incentivos financeiros do governo, cons-
tituindo uma imprensa oscilante e vulnerável.
A aproximação com esta diversidade de interesses reforçou a ado-
ção do princípio de imparcialidade no discurso jornalístico pelos jornais
que adotavam linha editorial primordialmente ligada ao poder oficial, co-
mo o caso do jornal O Rio Branco. Dado o jogo de interesses e a neces-
sidade de se firmar como categoria profissional, muitas vezes, a imprensa
passou a incorporar seletivamente os discursos de outras instâncias de po-
deres, tornando-se legitimadora e disseminadora destes discursos.
Em meio a esse sistema de cerceamentos de direitos e controle à
liberdade de expressão, a imprensa alternativa surgiu desafiando o poder
estabelecido e denunciando as situações de opressão. Defendendo inte-
resses de diversos grupos e movimentos sociais, a imprensa alternativa do
Acre atuou como um espaço para debate de ideias, fazendo circular infor-
mações que eram comumente silenciadas pela imprensa de linha oficial.
Convém ressaltar que não se está partindo de uma visão fatalista e
reducionista, fundamentada em uma oposição simplista entre “a imprensa
oficial” e a “imprensa alternativa”. Evidentemente, quando nos referimos
ao jornal O Rio Branco como fazendo parte da imprensa cujo discurso
estava ligado ao poder oficial, não se está ignorando as rupturas e resis-
tências dentro do próprio discurso desse jornal, mas estamos partindo da
ideia de que o viés editorial de sua produção discursiva estava predomi-
nantemente atrelado ao poder oficial.
Da mesma forma, a inclusão de Varadouro entre os jornais alterna-
tivos não implica afirmar que ele estava totalmente desvinculado do jo-

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go de interesses que ditava as regras na produção da imprensa local ou


configurá-lo como despretensioso porta-voz do discurso dos movimentos
sociais. Diante das intenções nunca despretensiosas da imprensa, convém
indagar até que ponto a insatisfação com o modelo de desenvolvimento
projetado para o Acre nas décadas de 1960 e 1970 interferiu para que gru-
pos ligados à Igreja Católica e à antiga economia extrativa da borracha
apoiassem esse jornal alternativo.
Diante do complexo jogo de interesses que está por trás das produ-
ções discursivas dos jornais O Rio Branco e Varadouro convém refletir
sobre as condições históricas que as determinaram. As ideias dos grupos
detentores do poder são as que têm se demonstrado em maior evidência
através da história, justamente porque são essas elites que detêm os meios
de comunicação de abrangência extensiva a um maior número de pessoas
em termos de doutrinação.
É certo que existem ideias múltiplas e diversas a esta dominação,
mas acabam geralmente, sendo sufocadas pela crueldade do discurso mi-
diático homogeneizador. Mas, embora isso aconteça, a resistência existe,
embora apareça muitas vezes camuflada, utilizando-se de certas artima-
nhas para driblar as estratégias de dominação e não circule pelos espaços
da grande elite.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 59


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
C a p í t u l o I II

VARADOURO e O RIO BRANCO:


A REPRESENTAÇÃO DOS SUJEITOS
ATRAVÉS DO DISCURSO

A luta pela terra no Acre e os embates entre os sujeitos

A
década de 1970 trouxe grandes mudanças nas atividades
econômicas do Acre, que se refletiram de forma latente na
organização social do Estado. Com o apoio do então gover-
nador Wanderley Dantas, os planos dos governos militares de transformar
o Acre de um grande seringal em uma vasta fazenda agropecuária come-
çavam a se firmar.
Mesmo antes da chegada dos grupos econômicos do Centro-Sul do
país, as terras acreanas já se encontravam concentradas nas mãos de pou-
cos, devido à decadência dos seringais nativos. Com a venda, ou, muitas
vezes, grilagem dos antigos seringais, na década de 1970, quase totalida-
de das famílias que viviam no campo não detinham legalmente a posse da
terra. Em menos de uma década, o Acre tornou-se alvo da especulação de
terras. Nos principais hotéis da capital acreana era intenso o trânsito de
verdadeiros profissionais da agiotagem, especialistas em repassar terras
adquiridas de terceiros.
Apesar do grandioso “boom” especulativo ocorrido na primeira
metade da década de 1970, através do qual as terras do Acre passaram a
atrair os investidores do Centro-Sul do país, as notícias dos conflitos de
terra nos jornais acreanos eram extremamente escassas. Não era interes-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 60


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sante para o governo Wanderley Dantas, em plena campanha para atrair


compradores para as terras acreanas, que notícias dos jornais locais des-
velassem a real situação conflituosa existente no Estado.
Ainda em 1971, primeiro ano de mandato de Wanderley Dantas,
o que se observava nas páginas, principalmente do jornal O Rio Branco,
eram notícias de negociações do governador com o grande capital inter-
nacional para “carrear para o Acre os benefícios do capital, da indústria e
da cultura europeia” (Opinião. O Rio Branco. Rio Branco - AC, 19 de fev.
de 1971, Ano II, n. 241, p. 1.).
A imprensa de linha editorial vinculada ao poder oficial incorporou
o ideário de ocupação da Amazônia – “última fronteira a ser e integrada
ao resto do país”. Enquanto na imprensa acreana imperava o silêncio a
respeito dos violentos conflitos decorrentes da implantação da pecuária,
na imprensa escrita do Centro-Sul brasileiro se tornavam cada vez mais
constantes as notícias a respeito das vantagens de se investir nas terras
do Acre:

O ACRE já está conhecido no país. O Governo procura atrair in-


vestidores para aproveitamento do potencial econômico que aqui
temos latente. Infenso a improvisações, trabalhando em conso-
nância com os desígnios políticos e sociais do Governo Fede-
ral, cujas diretrizes sérias imprimem à vida administrativa do
Estado a atual gestão que hoje completa seu primeiro aniversá-
rio vem sendo olhado com respeito e acatamento público. (Etapa
Vencida. O Rio Branco. Rio Branco - AC, 15 mar. 1972, Ano III,
n. 505, p. 1).

O então governo estadual tinha na imprensa verdadeira aliada pa-


ra efetivar seu plano de atrair os interesses dos investidores centro-sulis-
tas, através do propagandeado “progresso” que chegava às terras acrea-
nas. Havia grande interesse em apresentar as ações do governo estadual
em consonância com “os desígnios do Governo federal”, numa demons-
tração de que o respaldo para executar o processo de transformação que
vinha ocorrendo no Acre era cumprimento dos objetivos nacionais para
a região.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 61


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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No ato da passagem do governo de Wanderley Dantas a Geraldo


Mesquita, o jornal O Rio Branco apresentou o novo chefe do Estado co-
mo continuador da política de desenvolvimento existente no período an-
terior, afirmando ser Mesquita “a esperança de que o Novo Acre continua.
Missão cumprida, para um, missão a cumprir, para outro”. Tal previsão,
entretanto, não poderia se cumprir, pois se as terras acreanas continuas-
sem a ser “entregues” a preços irrisórios para o grande número de grupos
sulistas, não seria possível conter os conflitos de terras gerados pela po-
lítica de implantação da pecuária, que não contemplou os sujeitos que já
viviam nas terras compradas pelos novos proprietários.
A partir de 1975, não era mais possível manter o silêncio acerca
da existência de conflitos de terras no Acre, tendo em vista que os mes-
mos haviam tomado proporções de violência e se multiplicado tanto que
fugiam ao controle dos governantes, passando a ganhar páginas inteiras
dos jornais locais. Apesar, da tentativa de Geraldo Mesquita de promo-
ver um governo em que a “paz social” reinasse, a situação conflituosa no
ambiente tido como rural era tamanha que seria quase impossível conse-
guir tal façanha.
A definição das políticas públicas de Geraldo Mesquita para o Acre
precisava contemplar os grandes problemas sociais advindos com a con-
centração fundiária. A implantação da Coordenadoria do Incra no Acre
foi bastante significativa para isso, entretanto, ações como a desapropria-
ção de terras públicas, mediadas pela legislação federal, a expedição de
títulos definitivos e os projetos de colonização, em muitos casos, em vez
de cumprirem o propósito de regulamentar a questão agrária no Acre, ser-
viram apenas para aumentar os conflitos ambientais e pela posse de terra.
A posição do governador foi veiculada pelo jornal O Rio Branco, através
do editorial: “Mesquita é a favor das desapropriações e contra especula-
dores de terras”.

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Capa do jornal O Rio Branco, destacando a matéria “Mesquita é a favor


das desapropriações e contra especuladores de terras”.

Fonte: CDIH da Ufac.

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Ao colocar-se em posição contrária às especulações de terras e fa-


vorável às desapropriações o governador tentava apaziguar as tensões ge-
radas pelos inúmeros conflitos de terras no Acre:

O governador do Estado, sr. Geraldo Mesquita manifestou-se fa-


vorável à desapropriação de terras no Acre e contra os especula-
dores. (...) O governador esclareceu que havia defendido essa tese
perante a Escola Superior de guerra, mostrando que a desapro-
priação na medida que respeitasse as posses efetivamente ocupa-
das para fins produtivos, permitiria sua legitimação dentro dos li-
mites legais do Estatuto da Terra.
(...) Por isso mesmo, prosseguiu, “devo advertir aos que pensam
em e opor a esta decisão, que desistam do seu intento, aconselhan-
do-os a cooperar com a política fundiária do governo, pois esta é
uma diretriz que tem íntimas e profundas implicações com a paz
social e a segurança nacional”. (Mesquita é a favor das desapro-
priações e contra especuladores de terras. O Rio Branco. Rio Bran-
co - AC, 27 jan. 1977, Ano VIII, n. 1902, p. 1).

De acordo com as declarações constantes no editorial acima, a ad-


vertência parecia ser dirigida aos fazendeiros, seringalistas, investidores
e políticos que estariam preparando um documento ao Presidente da Re-
pública, ao Conselho de Segurança Nacional e a outros órgãos federais
reclamando contra a medida adotada para o Acre de desapropriar algumas
áreas de terras para promover a reforma agrária. O jogo político em torno
da questão já se evidenciava por estar envolvido na assinatura de tal do-
cumento o ex-governador, Francisco Wanderley Dantas, “provável candi-
dato ao Senado nas eleições de 1978”.
É interessante notar que a política de terras é apresentada no dis-
curso do governador Geraldo Mesquita como sendo referendada por su-
as “profundas implicações com a paz social e a segurança nacional”. No
mesmo texto, Geraldo Mesquita advertiu também “àqueles que querem
encontrar soluções à margem da lei, com o uso da força, da pressão espú-
ria e do incitamento à ação extralegal”, que o governo não admitiria, sob
qualquer pretexto, “desvio da sua política de conseguir a harmonia entre
os que trabalham e cultivam a terra e os que a possuem”.
Ao declarar que pretendia alcançar a “harmonia” entre as partes
conflitantes, entretanto, o então governador acabou fazendo uma distin-

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ção comum no discurso de grande parte da imprensa escrita local ao se


referir à distribuição de terras no Acre: a diferenciação entre “os que tra-
balham e cultivam a terra” e os que de fato “a possuem”.
Logicamente, a questão acerca de “quem realmente possuía a ter-
ra” não era tão simples como parecia, tanto o seringueiro quanto o serin-
galista tinham uma relação de posseiros com a terra. Com a regulamenta-
ção das posses, feita muitas vezes através de documentos forjados, o se-
ringalista vendia suas terras aos fazendeiros sulistas e o seringueiro, não
dispondo de condições econômicas nem de amparo legal que lhe garantis-
se a posse da terra, se via obrigado a migrar, sob pena, em muitos casos,
de perder a própria vida se resistisse.
José Afonso Ribeiro (1993, p. 34) afirma que durante o governo de
Geraldo Mesquita “não houve registros de assassinatos no campo”, pois
o mesmo havia tomado “medidas drásticas, punindo e demitindo aqueles
que interferissem em questões fundiárias”, asseverando que “a polícia ja-
mais poderia interferir nos conflitos”. Entretanto, não é essa a realidade
exposta nas páginas dos jornais acreanos da época. O que dizer das várias
matérias publicadas pelos jornais O Rio Branco e Varadouro acerca de
assassinatos nas regiões conflituosas, tanto de seringueiros e indígenas,
quanto dos próprios capatazes dos fazendeiros?
Exemplo disso é o caso do Seringal Nova Empresa, que culminou,
em julho de 1977, com as mortes de Carlos Sérgio Zaparoli Siena – pau-
lista de 26 anos, procurador e capataz do grupo sulista que comprou as
terras do referido seringal –, e de Osvaldo Gondim, o auxiliar que ajuda-
va na demarcação das terras. O jornal Varadouro, com sarcasmo e ironia,
criticou veementemente as medidas paliativas que o governo Estadual ha-
via tomado até então, em relação ao caso, que era de pleno conhecimento
das autoridades públicas acreanas desde 1975:

Só faltou ao Governador Geraldo Gurgel de Mesquita assistir ao


tiroteio entre os posseiros e o capataz Carlos Sérgio e Osvaldo
Gondim. Ele próprio confirmou que, pelo menos, duas ou três ve-
zes chamou o capataz e o posseiro Antônio Caetano, aconselhan-
do-os a chegarem a um acordo, ao Governador só restou declarar
que “o fato é lamentável, profundamente lamentável”. De qual-
quer modo, há que se reconhecer o empenho do Governador em

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 65


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evitá-lo, mesmo que fosse através de conselhos. (O Governador la-


menta. Varadouro. Rio Branco - AC, ago./ 1977, Ano I, n. 3, p.11).

É interessante notar a peculiaridade das relações de poder no Acre,


em que as barreiras entre representantes do poder político e o povo se
apresentam como se fossem tão tênues que não se estranha o fato de que
o governador tenha parado por diversas vezes para “aconselhar”, as par-
tes envolvidas nesse conflito pela posse da terra. De acordo com informa-
ções constantes no editorial acima mencionado, mesmo sabendo da gra-
vidade do impasse, o Secretário de Segurança ainda insistia em dizer que
“se todas as áreas do Estado fossem tão tranquilas como o Seringal Nova
Empresa, ele se daria por satisfeito”.
A notícia ganhou também destaque no jornal O Rio Branco, de-
monstrando que não apenas as autoridades locais estavam cientes da gra-
vidade do conflito, mas também os próprios fazendeiros que haviam com-
prado as terras do seringal Nova Empresa:

O Seringal Nova Empresa compreende uma área de 90 mil hecta-


res que foi dividida em duas partes: uma com 50 mil hectares, que
pertence a dois sócios, e outra de 40 mil adquirida por 14 empre-
sários do sul, entre eles, Mário Junqueira, presidente da Associa-
ção dos Criadores de Nelore do Brasil, Archimedes Barbiere (in-
dustrial paulista), Esmerino e Sebastião Ribeiro do Valle, o depu-
tado mineiro João Marques e Dr. Renir Rabelo. No ano passado,
seis desses empresários estiveram em Rio Branco, para solucio-
nar um problema entre Carlos Sérgio e alguns posseiros e invaso-
res. (Posseiros matam nas terras do Nova Empresa. O Rio Branco.
Rio Branco - AC, 09 jul. de 1977, Ano IX, n. 67, p. 1).

A ênfase dada ao editorial acima, aparecendo em destaque na pri-


meira página do jornal, e os sentidos que aportam no título “Posseiros
matam nas terras do Nova Empresa, demonstram, por si só, a construção
das imagens dos posseiros como criminosos, reforçando a distinção en-
tre “posseiros” e “invasores”. A partir desse recurso, verifica-se que as
adjetivações conferidas aos posseiros reforçam a caracterização de suas
imagens como ilegítimos, habitantes de uma terra que não lhes pertencia,
mesmo tendo eles vivido várias décadas nelas.

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Capa do jornal O Rio Branco, mostrando o editorial “Posseiros matam


nas terras do Nova Empresa”.

Fonte: C.D.I.H. da Ufac

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Um dos motivos apontados nessa mesma matéria de O Rio Branco


para a morte dos capatazes teria sido o fato de Carlos Sérgio ter, junta-
mente com dois policiais de Rio Branco, “ateado fogo em vários barracos
supostamente pertencentes a invasores” e, em represália, os trabalhadores
teriam queimado o acampamento do topógrafo Franco G. Mira, que fazia
demarcações nas terras do Nova Empresa. Os proprietários sulistas pro-
puseram, então, a doação de lotes de terra para aqueles que fossem com-
provadamente posseiros:

Os elementos considerados invasores, sem direito a permanecer


na terra ou ser indenizado, relutaram em sair. E os admitidos co-
mo posseiros, recusam-se a deixar suas áreas já cultivadas e mu-
dar-se para o loteamento oferecido pelo grupo porque, segundo
alegam, o novo terreno não tem água e está situado em tabocal.
Além disso, não havia um consenso quanto ao número de traba-
lhadores residindo na área. Enquanto os proprietários e a polícia
falavam em 40 famílias, os posseiros diziam ser no mínimo 200.
(Posseiros matam nas terras do Nova Empresa. O Rio Branco. Rio
Branco - AC, 09 jul. 1977, Ano IX, n. 67, p. 1).

A divisão feita pelos fazendeiros sulistas entre “posseiros” e “in-


vasores” já era uma medida que acentuava a crise no local, representan-
do uma tentativa de desarticulação dos trabalhadores, através da estraté-
gia de jogar uns contra os outros. As pressões para que saíssem do local
eram fortes, além de terem sido transferidos para uma área sem as míni-
mas condições de sobrevivência, visto não dispor de água e estar situada
em um tabocal, os moradores que ainda permaneciam no Nova Empresa
foram impedidos de prosseguir com o corte da seringa, como declara uma
moradora do local, em entrevista a O Rio Branco, comentada no mesmo
texto, “Posseiros matam nas terras do Nova Empresa”. A moradora afir-
mou que Carlos Sérgio costumava dizer “Vocês vão ter que ficar nos lo-
tes, mas nada de seringa. Seringa vai acabar”.
Ao veicular o que denomina a “versão oficial dos fatos”, o jornal
O Rio Branco parecia desconsiderar todo o estado de suspeição em que
viviam os moradores do local, e destaca no título “Polícia prende 4 pos-
seiros: Matamos para não morrer, declara chefe da tocaia” um discurso

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estruturado no sentido de configurar o crime como tendo sido ardilosa-


mente premeditado através de várias “tocaias”:

A diligência composta de 24 homens (...) retornou ontem a tarde


trazendo cinco posseiros diretamente responsáveis pela morte de
Carlos Sérgio Siena e Osvaldo Gondim, (...) O cabeça do grupo,
que deu a idéia da tocaia, por várias vezes reuniu até 20 traba-
lhadores em sua casa, para acabar com a vida de Carlos Sérgio
e Osvaldo (...) Eles chegaram a armar quatro tocaias, a primeira
com 20 homens com espingarda. No terceiro já havia apenas 9 e
no que finalmente se consumou quinta-feira, somente cinco. Se-
gundo Caetano, os que desistiram atenderam aos apelos de suas
mulheres, que temiam pelo que viesse acontecer depois. Os que
restam presos no 1.º Distrito Policial da Capital disseram ontem a
O RIO BRANCO que estão sendo bem tratados pela Polícia. (Po-
lícia prende 4 posseiros. O Rio Branco. Rio Branco - AC, 10 jul.
1977, Ano IX, n. 68, p. 1).

Em uma época em que as torturas nas delegacias eram uma reali-


dade, embora fossem veiculadas de forma muito tímida na imprensa lo-
cal, a declaração de que os presos estavam sendo “bem tratados” remete
a uma necessidade de se afirmar a “legalidade” e o bom senso por parte
de uma polícia temida não pelo respeito, mas pela força. A prisão, como
afirma Michel Foucault (2002), “é um lugar de trevas onde o olho do ci-
dadão não pode contar as vítimas” e em que a escuridão torna-se assunto
de desconfiança para a população. Assim, era preciso garantir à popula-
ção que a lei estava sendo cumprida para o bem de todos, excitando seu
reconhecimento e evitando os possíveis murmúrios.
Com a ascensão de Joaquim Macedo ao governo acreano, em 1979,
persistiram os conflitos pela posse da terra. A situação dos seringueiros
que ainda permaneciam nas terras dos antigos seringais, agora fazendas
pecuaristas, era marcada pela luta por melhores condições de vida, pois,
ao perderem seu meio tradicional de sobrevivência, foram criando meios
alternativos para assegurar seu sustento.
O movimento dos empates representou, principalmente, a resistên-
cia das gentes da floresta contra a expansão capitalista agropecuária. Os
seringueiros passaram a encarnar não somente a imagem de uma classe

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 69


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pobre e oprimida, mas também os agentes de resistência e transformação


das relações sociais no campo. A busca pela organização em sindicatos,
como demonstra o seguinte editorial de Varadouro fornece uma visão da
luta pela autonomia do seringueiro:

Com o início do verão começa a infindável disputa de terras en-


tre seringueiros e latifundiários. Como nos anos anteriores dá
para perceber que o governo, comandado pela ditadura militar,
demonstra total desinteresse em procurar solucionar o problema.
É exatamente por essas razões que os seringueiros têm procura-
do, cada vez mais organizados em sindicatos, defender suas co-
locações através dos já conhecidos “empates”. (Posseiros, diálo-
go ou a força? Varadouro. Rio Branco - AC, mai./1981, Ano IV,
n. 21, p. 7).

A crítica de Varadouro denuncia de forma latente o apoio substan-


cial do governo acreano aos latifundiários, “quer lhes concedendo gran-
des ajudas econômicas, quer colocando seu aparato policial-repressivo a
disposição destes, em sua luta contra os trabalhadores” (idem). As ações
apontadas por Varadouro como sendo reveladoras de apoio do poder ofi-
cial aos latifundiários dizem respeito, principalmente a prisões de serin-
gueiros participantes dos empates, interrogatórios ostensivos e apreensão
das armas desses trabalhadores da floresta, uns dos poucos instrumentos
que garantiam, ainda que minimamente, sua sobrevivência.
Ao confrontarmos os discursos veiculados em O Rio Branco e Va-
radouro acerca dos conflitos de terra existentes no Acre no final da déca-
da de 1970 e início da década de 1980, percebemos que os sentidos não
circulam livremente na imprensa, mas estão atrelados a certos modos de
representar as relações de poder. Apesar dos discursos de ambas as pro-
duções jornalísticas serem articulados de modo a produzir a ilusão de re-
presentarem um registro fiel da realidade, as lutas e tensões que narram
trazem explícitas maneiras peculiares de perceber os sujeitos constituin-
tes das relações discursivas.

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Os movimentos sociais urbanos em Varadouro e O Rio Branco

No Acre, os últimos anos da década de 1970 foram marcados por


uma forte movimentação dos setores populares, tanto no campo quan-
to na cidade, para sua organização em torno da luta por seus direitos.
O apoio organizacional das Comunidades Eclesiais de Base e dos nascen-
tes sindicatos foi o principal elemento de articulação dessas populações a
fim de resistir e melhorar suas condições de vida.
O foco de discussão neste item será a representação das lutas dos
movimentos sociais urbanos na imprensa escrita acreana, uma vez que os
movimentos sociais ligados ao campo já foram discutidos anteriormente.
Os movimentos sociais atuam como espaço de socialização política, per-
mitindo aos trabalhadores tanto o aprendizado da vivência prática de se
unir, organizar, participar, negociar e lutar; quanto a elaboração da iden-
tidade cultural, a consciência de defesa de seus interesses e a apreensão
crítica de seu mundo, de suas práticas e representações sociais.
A atuação dos diversos movimentos sociais tanto nas lutas no cam-
po quanto na cidade, durante as décadas de 1970 e 1980, apontava para a
organização de vários setores sociais na defesa de seus direitos e interes-
ses e para a construção de uma identidade coletiva, capaz de unir os di-
ferentes em torno de uma luta comum. O êxodo rural e as consequentes
mudanças na estrutura populacional ocorridas no Acre trouxeram para o
espaço das cidades outros protagonistas, que a cada dia foram impondo
suas presenças em um espaço novo, disputando lugares, se unindo, rei-
vindicando seus direitos, atravessando fronteiras e constituindo através
de suas vivências, novos lugares e territórios.
A presença dos movimentos sociais na imprensa escrita riobran-
quense no final da década de 1970 e início da década de 1980 é marcada
tanto por estratégias de manipulação quanto de resistência. De um lado, a
imprensa de linha oficial apresentava os movimentos sociais como “sub-
versivos”, construindo a imagem dos trabalhadores de forma negativa e
preconceituosa, de outro, os jornais alternativos investiam na construção
positiva desses movimentos, servindo como instrumentos de veiculação
de suas reivindicações. As passeatas realizadas pelos movimentos sociais
acreanos se configuram em um momento que a população utilizava para

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 71


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lutar por melhores condições de vida e contra o regime militar, como per-
cebemos pelos dizeres do cartaz da foto a seguir (“Abaixo a LSN” – Lei
de Segurança Nacional):

Manifestação no centro de Rio Branco, contra a repressão imposta pela


censura e contra a LSN (Lei de Segurança Nacional).

Fonte: Acervo Digital do Memorial dos Autonomistas.

Debaixo de uma poderosa estrutura de poder coercitivo, existem


as rupturas, por isso, o discurso expresso nos jornais mostra não apenas o
saber/poder que se institui com vistas à dominação, mas também permi-
te perceber os conflitos sociais e a exclusão dos sujeitos ditos “subversi-
vos”. As resistências são essenciais para se pensar as identidades em de-
terminada sociedade. De acordo com Michel Foucault, por trás da história
desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias,
quase imóveis ao olhar. São justamente essas “histórias” que expressam
as maneiras particulares dos grupos excluídos das altas esferas do poder

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 72


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de realizar trajetórias que caminham na contramão do discurso oficial.


Essas trajetórias, entretanto, quando transpostas para o discurso midiáti-
co, são ressignificadas de acordo com os interesses de quem as escreve.
Entre os movimentos sociais mais perseguidos pelo regime militar,
professores e estudantes foram os setores que estiveram constantemen-
te sob a mira da repressão política. Durante as manifestações em todo o
Brasil houve centenas de prisões e muitos militantes destes movimentos
foram torturados e mortos.
No Acre, os movimentos de resistência liderados por professores e
alunos se apresentaram de forma bem peculiar. A criação da Universidade
Federal do Acre em plena vigência do regime militar, a condição de isola-
mento em relação ao resto do país e a dependência no tocante ao governo
federal ditavam um clima de silêncio e medo. Essa ambiência de suspei-
ção estendia-se também por todos os estabelecimentos de ensino do Esta-
do, uma vez que, segundo a lógica dos militares, a escola e a universidade
eram locais de fácil propagação de ideias “subversivas”.
Nesse contexto, o discurso jornalístico da imprensa oficial choca-
-se com o discurso da imprensa alternativa, tendo em vista que o primeiro
apresenta os professores e os estudantes como “perturbadores da ordem”,
e o segundo, como “vítimas” do processo de repressão imposto pelo go-
verno militar.
O discurso jornalístico apresentado pela imprensa oficial articula-
-se no sentido de disseminar as práticas discursivas de exercício do po-
der, impondo determinados procedimentos e silenciando aqueles que di-
vergem do poder político dominante. Na proporção em que se institui
através da positividade dos enunciados, o discurso de defesa dos grupos
dominantes apresenta-se como a única via de interpretação possível da
realidade, colocando seus adversários como o “negativo”, o “oposto”, o
“perigoso”, o “inimigo”, o “outro”, “a encarnação do mal”.
No Acre, os movimentos grevistas liderados por professores eram,
muitas vezes, vistos pela mídia como atitudes irresponsáveis, praticadas
por “perturbadores da ordem”. O discurso da imprensa atrelada ao poder
oficial acerca das reivindicações dos educadores apresentava-se marcado
pela negatividade, articulando os sentidos tanto a partir das designações
pejorativas que eram dadas aos professores quanto através dos próprios

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silenciamentos, como se pode perceber no trecho a seguir, publicado no


jornal O Rio Branco:

Mais uma greve por professores.


Vale dizer, escolas fechadas e estudantes desorientados, perambu-
lando pelas ruas. (...) É que, todos, estudantes e pais foram sur-
preendidos pela impensada e insensata decisão de “alguns profes-
sores” de determinar a paralisação das atividades escolares, pela
segunda vez, em menos de seis meses.
Sem que se analise o mérito das reivindicações da Classe, será
que “esses professores” não pensam e avaliam os enormes preju-
ízos que causam a seus alunos, ao se decidirem por gestos extre-
mos, como o recurso à greve?
(...) A opinião pública, antes de adotar qualquer posição, procu-
re se inteirar do que, realmente está ocorrendo no meio da Clas-
se dos professores, hoje orientada segundo os critérios e entendi-
mentos ideológicos de “certos professores” que não dignificam a
nobre e benemérita Classe dos autênticos professores a quem tan-
to devem o Estado e todos os acreanos. (Opinião. O Rio Branco.
Rio Branco - AC, 11 set. 1980. Ano X, n. 1024, p. 1).

As reivindicações do movimento grevista dos professores não ape-


nas são desconsideradas pelo discurso do jornal O Rio Branco, como tam-
bém os próprios professores não são definidos. Ao se referir aos profes-
sores, o jornal usa termos que sugerem desqualificação, marcados entre
aspas como: “alguns professores”, “esses professores”, “certos professo-
res”, além de expressões como “profissionais do tumulto”.
A violência simbólica contra os professores se faz notar através
da linguagem expressa nas caracterizações dos opositores. A imprensa
reproduzia o discurso dos militares, qualificando os opositores do regi-
me de maneira negativa, com termos que semanticamente os estigmati-
zavam. Ao difamar o inimigo, os militares tentavam fazer com que seus
pontos de vista não merecessem sequer o exame, pois eles estariam sem-
pre contaminados por interesses subalternos. Nesse sentido, a partir des-
se procedimento, pretendia-se incitar certas parcelas da população, pa-
ra que reagissem emotivamente contra certas ideias e certas atividades
políticas.

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A cobertura dada pela mídia configurava os movimentos grevistas


como subversivos e coisa de baderneiros. A partir desse recurso, verifica-
mos que as adjetivações eram arquitetadas no sentido de fazer com que
os trabalhadores parecessem ilegítimos. Dentro da lógica da “deslegiti-
mação” empregada amplamente pelo discurso de O Rio Branco, a “agita-
ção popular” e a “subversão” seriam contrárias à “vontade única da nação
brasileira”. Através dessas adjetivações negativas, a produção de sentidos
procurava criar um efeito de discurso único, homogêneo, em que “todos”
deveriam se unir para combater um inimigo comum.
A análise feita no jornal Varadouro mostra um outro dado sobre a
situação dos professores no Acre durante o regime de exceção. Segundo
informações desse jornal, constantes no editorial publicado na edição de
número 15, os movimentos de docentes brotados dentro da Universida-
de, além de tímidos, eram poucos, em decorrência não apenas do fato de
a instituição ser recente no Estado, mas também da ausência de incen-
tivo ao seu surgimento. Aliado a isso, acrescentam-se o isolamento do
Estado e o cerceamento em nível nacional durante anos, fatores que, se-
gundo Varadouro, contribuíram para a falta de comprometimento de al-
guns professores que preferiram a busca pura e simples do diploma co-
mo recurso para conseguir um emprego, repetindo-se o ciclo de depen-
dência dentro da máquina governamental. O trecho a seguir apresenta
uma crítica do jornal Varadouro à repressão existente na Universidade
Federal do Acre:

Tratou-se desde 1964, de afastar e punir portadores de idéias con-


sideradas marxistas ou subversivas, duras qualificações notoria-
mente elásticas e geralmente imprecisas, o que torna o julgamento
extremamente subjetivo na maioria das vezes. Junta-se a estes jul-
gamentos os ódios e antipatias, as referências pessoais...
Por sua própria natureza, o processo de expurgo constitui-se em
instrumento político que favorece a ascensão às posições de man-
do de um lado, dos espíritos mais tacanhos e intolerantes e, de
outro dos oportunistas. Como em outros níveis da sociedade, a
existência de grupos com posições diversas acaba sendo encarada
como algo a ser proibido. É necessário o nivelamento de idéias.
(Universidade, filha legítima de tempos de silêncio e medo. Vara-
douro. Rio Branco - AC, jun./1979, Ano II, n. 15, p. 15).

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 75


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Como se percebe, o lugar institucional de onde falam os defenso-


res dos professores tidos como “subversivos” é legitimado pela palavra
de resistência. Sendo o discurso um espaço em que se travam as lutas
pela manutenção do poder, não pode ser concebido como ambiente de
neutralidade ou transparência, visto que se exerce dentro dos limites de
um sistema de dominação, mas é também lugar de visibilidade, de exer-
cício do poder.
Bernardo Kucinski já havia dito que o plano discursivo constitui-
se na arena em que se travaram as lutas entre a imprensa convencional e
a imprensa alternativa, justamente pelos seus papéis opostos como agre-
gadores e desagregadores da sociedade civil. Se no discurso de O Rio
Branco a estratégia era desqualificar os opositores do regime através de
denominações pejorativas, o discurso de Varadouro rebatia estas acusa-
ções, contra-argumentando que essas “duras qualificações notoriamente
elásticas e geralmente imprecisas” dadas aos professores tornavam o jul-
gamento “extremamente subjetivo”.
O interesse em manter apagado o discurso dos professores ditos
“subversivos” remete às estratégias discutidas por Michel Foucault acer-
ca da luta travada sobre a disciplina, a qual deve também dominar todas
as forças que se formam a partir da própria constituição de uma multipli-
cidade organizada. O poder disciplinar se articula no sentido de neutrali-
zar os efeitos de contrapoder que dele nascem e que formam resistência
ao poder que quer dominá-la, por isso, é necessário dissolver as agitações,
as revoltas, as organizações espontâneas, enfim, todo e qualquer conluio
que possa desarticular a dominação.
Podemos entrever um outro exemplo de censura envolvendo alu-
nos e professores durante a Ditadura Civil-Militar no trecho a seguir, pu-
blicado no jornal O Rio Branco, dando conta de atos de cerceamentos
impostos pela reitoria aos estudantes da Universidade Federal do Acre,
simplesmente por estes haverem publicado em um jornal mural notícias
de jornais alternativos:

O “Jornal Mural dos Estudantes”, que apareceu pela primeira


vez na semana passada, constando de recortes de jornais, dese-
nhos e textos mimeografados, afixados num quadro do pátio da

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 76


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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Universidade Federal do Acre, sob a responsabilidade do Diretó-


rio Central dos Estudantes, reaparece hoje pela segunda vez, mas
depois de ter passado pela censura do reitor Áulio Gélio Alves de
Souza. Após tomar conhecimento do jornal, o reitor convocou seus
responsáveis para uma conversa em seu gabinete, e determinou
que todo o material selecionado pelos estudantes passasse por su-
as mãos antes de ser publicado.
O jornal publica hoje uma entrevista com o próprio Reitor, on-
de este esclarece que não está exercendo uma censura sobre a
publicação do DCE, mas apenas cumprindo um dispositivo legal
da Universidade, ao procurar tomar conhecimento de tudo que
se passa na instituição. (Reitor afirma que não há censura. O Rio
Branco. Rio Branco - AC, 24 mai. 1978, Ano IX, n. 299, p. 3).

O discurso do trecho acima apresenta-se de maneira paradoxal, ao


mesmo tempo em que trata da existência de um ato de censura, apresenta
uma pretensa justificativa para tal cerceamento ao dar voz privilegiada ao
Reitor e não aos alunos envolvidos na produção do “jornal mural”. Como
se percebe, eram considerados subversivos quaisquer estudantes, profes-
sores ou funcionários que ameaçassem o regime, pelo fato de se reunirem
para discutir sobre livros, produzirem peças teatrais ou atuarem na pro-
dução de simples jornais murais, atividades que deveriam ser considera-
das corriqueiras em qualquer universidade. Para os defensores do Regime
Militar isso era uma ameaça aos ideais da Ditadura.
As “conversas de gabinete” mencionadas no texto apontam para
um poder disciplinar que, nas palavras de Michel Foucault, em vez de se
apropriar e de retirar, tem a função maior de “adestrar” para se apropriar
ainda mais e melhor. A justificativa apresentada pelo Reitor para “procu-
rar tomar conhecimento de tudo que se passa na instituição” nada mais
representa que uma tentativa de, sob o pretexto de assegurar a “legalida-
de”, manter o controle sobre o que podia ou não ser veiculado na Univer-
sidade Federal do Acre.
Se por um lado, a imprensa dita convencional apresenta um discur-
so que visa à disciplina e ao controle dos movimentos de professores e
estudantes, por outro, é preciso analisar também as formas de resistência,
perceber suas estratégias, as lutas que colocam em questão a construção

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 77


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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discursiva dos sujeitos. O seguinte trecho de Varadouro demonstra que


mesmo em plena vigência de grandes cerceamentos, em que predomina
o discurso marcado por procedimentos de exclusão, é possível a cons-
trução de estratégias específicas de luta que permitem questionar como
o poder se exerce e quais são as relações da produção de subjetividade
com o poder:

Se o “dia da independência” merece ser comemorado por todos


os brasileiros, por que então os diretores (que deveriam ser as
pessoas mais indicadas) não dialogam com os estudantes, argu-
mentando o quanto é “verdadeira” a nossa independência, e que
o seu sacrifício de desmaiar sob o sol do dia 7, não é apenas pa-
ra atender às suas vaidades pessoais de mostrar os seus meninos
marchando direitinho e melhor que os outros. Mas isso não é o
que acontece, a suspensão é o argumento.
(...) No CESEME, portões fechados, no Colégio Acreano, inspe-
tores nas salas. Em todos eles a figura do diretor, uma ameaça
pairando sob a cabeça de todos os que queiram questionar. (...)
O movimento dos estudantes do Colégio Acreano veio denunciar
de público o que acontece diariamente no interior desses colégios,
onde centenas de jovens vivem em regime de quartel. (Linha du-
ra nos colégios acreanos. Varadouro. Rio Branco - AC, ago./set.
1981, Ano IV, n. 23, p. 5).

O relato de como se davam os preparativos para a comemoração do


dia da independência traduz um verdadeiro processo de adestramento dos
corpos. Segundo descrito no texto acima, eram comuns cenas de diretores
“arrebanharem” alunos na praça para o ensaio, sob ameaças de “quatro
dias de suspensão”. Aqueles que perguntavam “por que?”, segundo o edi-
torial, eram chamados de “antinacionalistas”, e, naturalmente, suspensos
caso insistissem em uma resposta convincente.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 78


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Ilustração do editorial: Linha dura nos colégios acreanos. Varadouro. Rio


Branco - AC, ago. set./ 1981, Ano IV, n. 23, p. 5.

Fonte: Museu da Borracha.

A ilustração mostra o medo e a repressão através do semblante do


aluno em relação ao “Diretor Militar”. O fato de o diretor estar vestido de
“policial” é usado para reforçar os cerceamentos existentes nos colégios
acreanos durante a Ditadura Civil-Militar. Considerando os sentidos que
permeiam tanto o editorial em questão quanto o desenho que o ilustra, po-
demos perceber que diante da tentativa do poder de elidir os sentidos de
luta e apagar os sentidos “subversivos” não é possível eliminar a possibi-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 79


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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lidade de resistência. Varadouro apresenta-se como um espaço de defesa


de direitos e reivindicação dos professores e estudantes, por isso a veicu-
lação de textos que se contrapunham à ideologia do poder oficial ganha
espaço privilegiado nesse jornal. A crítica mordaz aos diretores das esco-
las e aos “cães de guarda”, como eram chamados os inspetores escolares,
é endossada pela afirmação de que Varadouro abria espaço para o movi-
mento dos estudantes do Colégio Acreano ir “denunciar de público o que
acontece diariamente no interior desses estabelecimentos”.
Se os embates de professores e estudantes ocuparam as páginas dos
jornais em questão, outros grupos de trabalhadores se organizaram e tive-
ram suas lutas veiculadas nos jornais. Ao logo do tempo, vários estudio-
sos têm se interessado pela emergência de conflitos sociais em torno do
discurso da imprensa, do campo simbólico e do uso de estratégias que vi-
sam ao controle dos bens culturais. Dentre os vários movimentos sociais
existentes no Acre durante a Ditadura Civil-Militar, as mulheres se des-
tacaram, ganhando significativo espaço na imprensa, principalmente nos
jornais alternativos, para veiculação de suas lutas.
De acordo com Rosália Dias (1991, p. 27), o feminismo compõe o
grupo dos novos movimentos sociais que emergiram durante a década de
1960, juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis con-
traculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos humanos, movimen-
tos pacifistas, cujo ideário está diretamente ligado com as transformações
ocorridas no mundo iniciadas em 1968.
Apesar de serem raros, textos enfocando a temática da exploração
da mulher aparecem no jornal O Rio Branco, mas geralmente escritos no
estilo informativo. Entre esses esparsos textos, podemos citar “Trabalho
desgasta mais as mulheres, diz pesquisa”. O texto refere-se ao resultado
de uma pesquisa realizada em Michigan, Estados Unidos, a qual havia
constatado que os homens sofriam “menos desgaste do que as mulheres,
que assumem quase a totalidade das tarefas domésticas, mesmo quando
trabalham fora de casa” (Trabalho desgasta mais as mulheres, diz pesqui-
sa. O Rio Branco. Rio Branco - AC, 21 ago. 1977. Ano IX, n. 104, p. 7).
Segundo Alain Touraine, “é a partir do sofrimento do indivíduo
dilacerado e da relação entre sujeitos que o desejo de ser sujeito pode se
transformar em capacidade de ser um ator social”. Nesse sentido, as mu-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 80


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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lheres acreanas começaram a se organizar a fim de juntas reivindicarem


seus direitos e defenderem suas lutas. Em editorial acerca do nascente
movimento de mulheres no Acre, o jornal Varadouro lançou o questiona-
mento acerca da ressonância da organização de um movimento especifi-
camente feminino na realidade da mulher acreana:

Sofrendo toda sorte de discriminações, [a mulher] continua viven-


do à margem da história. Por isso, seu inimigo principal mudou:
não é mais o homem, como se pensava na época do surgimento
dos movimentos feministas nos EUA e Europa. Hoje, seu principal
inimigo é, segundo tais movimentos, todo um sistema social que
oprime tanto mulheres quanto homens. (E a mulher Acreana? Va-
radouro. Rio Branco - AC, abr./1981, Ano IV, n. 20, p. 10).

Ao afirmar que a mulher durante muito tempo esteve situada “à


margem da história”, o editorial apresenta a exploração pela qual passa-
vam as mulheres acreanas, as quais eram concebidas, muitas vezes, ape-
nas como mão-de-obra barata. Maria Eunice Guedes (1995) afirma que
na década de 1970 havia uma preocupação em conferir estatuto de saber
às vivências e estudos sobre a mulher. Essa visibilidade tornava-se neces-
sária tendo em vista que até aquele momento a mulher representava um
segmento que ainda se encontrava diluída no geral, era vista apenas como
força de trabalho e componente da classe trabalhadora.
Entre os resultados da união das mulheres acreanas está a criação
da Associação das Lavadeiras. Em editorial intitulado “Movimento das
Lavadeiras”, Varadouro veiculou as conquistas das mulheres em suas lu-
tas por melhores condições de trabalho. As relações de exclusão social
pelas quais passavam essas mulheres, moradoras dos bairros pobres de
Rio Branco, foram contestadas, ganharam as páginas dos jornais e passa-
ram a figurar como uma “demonstração convincente de como as classes
populares podem se organizar e reivindicar seus direitos e fazer valer sua
força” (O “Movimento das Lavadeiras”. Varadouro. Rio Branco - AC,
mar./1979, Ano II, n. 14, p. 11).
Além das lavadeiras, a classe dos estivadores foi outro segmen-
to de trabalhadores que começava a se organizar. No final da década de
1970, já contavam com uma associação, cuja sede localizava-se no Mer-

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cado Municipal, “uma sede perdida entre barracas de banana, laranja, ba-
tatas e ovos” (Estivadores: um suor que não rende. Varadouro. Rio Bran-
co - AC, jul. 1977, Ano I, n. 2, p. 13). A reivindicação de um terreno para
a construção da sede do Sindicato dos Estivadores de Rio Branco foi vei-
culada no jornal O Rio Branco dois anos depois, tendo em vista o perigo
de a mesma desabar com a queda dos barrancos do rio Acre.

Estivadores trabalhando no porto de Rio Branco.

Fonte: Varadouro, jul. 1977, Ano I, n. 2.

Por mais que a intenção ao criar a associação fosse a de representar


a categoria dos estivadores, Varadouro relata que a situação era bem dife-
rente, pois havia sérias denúncias de má administração das contribuições
dos estivadores associados por parte da diretoria. De acordo com Vara-
douro, as dificuldades dos estivadores envolviam a falta de assistência do
poder público quando ficavam doentes, o desgaste físico que acarretava
uma série de doenças, somados a má remuneração e a falta de assistência
da própria associação que os representava.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 82


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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Além desses movimentos populares urbanos, outros ocuparam es-


paço nos dois jornais pesquisados. No discurso do jornal O Rio Branco,
dada sua ligação com o poder oficial, observamos predominantemente, a
existência de poucos editoriais que enfocassem os movimentos sociais, e
quando os mencionavam, apresentavam-nos apenas em textos de caráter
informativo. A estratégia, como já mencionamos, era apresentar os líde-
res dos movimentos sociais como “subversivos”, apresentando-os como
reivindicadores de benefícios pautados na ilegalidade. A imagem desses
sujeitos sociais como “baderneiros” e subversivos visava a criar a “ilu-
são de consenso” quanto ao regime e aos opositores, reforçando, assim, o
“poder simbólico” dos dominantes.
Ao se observar as estratégias discursivas que permeiam o discurso
tanto da imprensa oficial quanto da imprensa alternativa acerca dos mo-
vimentos sociais durante a Ditadura Civil-Militar é preciso levar em con-
sideração as condições de produção imediatas dos textos analisados. Fo-
calizar o sujeito enunciador e as circunstâncias em que enuncia traz para
a análise as “cenas enunciativas” que apontam para um discurso que, ora
busca legitimar-se pelo princípio da legalidade e da defesa das institui-
ções nacionais, ora remete à ideia de que o contrapoder age segundo pro-
cedimentos de resistência em defesa dos movimentos sociais.
O discurso da imprensa desempenha um papel importante no pre-
enchimento do vazio da palavra, permitindo rastrear os sentidos encober-
tos nas entrelinhas dos editoriais e buscando deixar falar o silêncio que
permeia esses textos. Em um complexo movimento, o discurso jornalís-
tico mostra e esconde o que convém a seus enunciadores por meio de es-
tratégias discursivas. Nesse sentido, a construção das imagens dos traba-
lhadores e dos movimentos sociais apresenta-se nos jornais O Rio Branco
e Varadouro obedecendo às intenções enunciativas dos grupos de poder
que ideologicamente controlavam suas produções discursivas.
Na concepção de Baczko (1985), o imaginário corresponde a uma
produção coletiva, pois atua como uma espécie de depositário da memó-
ria que determinada sociedade recolheria de contatos entre seus compo-
nentes e a vivência cotidiana destes. É através do imaginário que se po-
de atingir as aspirações, os medos e as esperanças de determinado povo.
As múltiplas identidades das sociedades, seus objetivos, a organização de

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 83


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seu passado, presente e futuro são resultantes de processos intrínsecos ao


imaginário. A forma de expressão deste compreende rituais e mitos, ide-
ologias e utopias.
As constantes transformações do mundo e sua representação atra-
vés do discurso são matérias constantes nas discussões veiculadas pela
mídia. A realização de uma análise criteriosa de nossa própria realidade a
partir do imaginário social contido no discurso midiático é, pois, impres-
cindível, uma vez que este permite visualizar a perpetuação histórica dos
símbolos, alegorias e mitos, que expressam as ideologias dominantes em
determinada sociedade.

A Amazônia e a questão indígena: duelos no discurso da


imprensa escrita acreana

O imaginário acerca da Amazônia e dos grupos indígenas que a ha-


bitam, construído ao longo de anos e reforçado durante a Ditadura Civil-
Militar, encontrou referência principalmente através dos meios de comu-
nicação. No Acre, os jornais O Rio Branco e Varadouro desempenharam
importante papel na construção dessas imagens, atuando ora questionan-
do ora reiterando o discurso produzido em tempos passados sobre a re-
gião e a população indígena. Dentre as imagens da Amazônia usadas pe-
los militares para ocupar a região, destacam-se a ideia de uma terra cuja
natureza precisava ser domesticada, de um verdadeiro “El Dorado” e do
grande “pulmão do mundo”. As populações indígenas, por serem con-
sideradas elementos constituintes dessa natureza, também tiveram suas
imagens construídas baseando-se na oposição barbárie/civilização.
O imaginário sobre a Amazônia e a questão indígena, construído a
partir do discurso da mídia acreana durante a Ditadura Civil-Militar, é re-
gido pela ideia de domesticação da natureza. A construção do imaginário
sobre a Amazônia através dos jornais O Rio Branco e Varadouro se faz
sobre aquela imagem arquitetada desde as primeiras décadas do século
XX, baseada na dicotomia paraíso/inferno.
De acordo com Paes Loureiro (1995, p. 97), ao longo dos primeiros
séculos do processo de desenvolvimento brasileiro, bem como até a déca-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 84


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da de 1970, a Amazônia permaneceu como a imagem de um lugar remo-


to, desconhecido e impenetrável. Devido suas condições geográficas e a
dificuldade de acesso, a região foi se constituindo um segredo e um lugar
envolvido por mistérios e uma atmosfera lúdica.
A velocidade das mudanças nas elaborações imaginárias acerca da
Amazônia acentuou-se no período militar, principalmente através da propa-
ganda de incentivo a sua ocupação. A partir de uma série de imagens veicu-
ladas na mídia, conceitos como “vazio demográfico” e “terras sem homens
para homens sem terras” ocuparam o imaginário coletivo, estabelecendo es-
treitas relações entre as metas de ocupação dos governos militares e os dese-
jos de alcançar melhores condições de vida por parte das populações rurais.
A imprensa busca, de maneira quase inconsciente, construir imagens
capazes de estabelecer uma ordem, uma organização nos elementos que
compõem o real em determinada sociedade. As representações produzidas
pela mídia articulam-se no sentido de manipular o real. O contraditório,
nessa relação, é que a mídia é também manipulada por esse real, na interpe-
netração das relações entre o real e o imaginário social. Dominar o simbó-
lico de uma sociedade é um dos caminhos para se chegar ao poder da mes-
ma, sendo que, o simbólico é elemento de disputa entre os grupos rivais.
A produção discursiva dos jornais que circularam durante a Ditadu-
ra Civil-Militar acerca da Amazônia demonstrava a intenção dos grupos
dominantes de promover a legitimação do modelo de desenvolvimento
elaborado pelos militares para a região. A ideia dos militares de “ocupar
para desenvolver” traz em seu bojo a construção da imagem da Amazônia
com um “vazio demográfico”, que precisava ser “efetivamente” ocupado.
O ideário de incorporação dessa imensa faixa de terras ao conjunto
da economia nacional movimentou os interesses de investidores do Brasil
e exterior, sendo estimulados através da disponibilização por parte do go-
verno federal de crédito rápido e fácil nos estabelecimentos bancários pú-
blicos, bem como uma série de incentivos fiscais, objetivando promover
o deslocamento de migrantes, capitalistas nacionais e estrangeiros, dis-
postos a contribuir com o projeto de ocupação fomentado na Amazônia.
O retorno à imagem da Amazônia como um “Eldorado” ou como
“paraíso” utilizado pela imprensa escrita serviu, diante do isolamento em
relação às demais regiões brasileiras, como a alternativa encontrada pelos

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 85


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governantes do período da Ditadura, para propagar a imagem de uma re-


gião paradisíaca e propiciadora de vantagens econômicas.
As reais intenções dos governos militares para a Amazônia não de-
moraram a serem desveladas. A proposta feita pelo governo de desenvol-
ver a região a partir do lema “terras sem homens, para homens sem terra”
não se cumpriria, pois os reais interesses em jogo na campanha de ocupa-
ção da Amazônia era o “entreguismo” das riquezas naturais da região aos
capitalistas internacionais e aos grandes empresários brasileiros. Como
forma de protesto, em todo o país vários movimentos em defesa da Ama-
zônia surgiram, promovendo debates acerca da situação:

“Entre nessa briga!”. Esse é o convite que sete movimentos da


Defesa da Amazônia fizeram ontem, data em que se comemorou
em todo o país o Dia Nacional de Luta Pela Amazônia.
Grupos do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Goiás, Distrito Fede-
ral, Amazonas e Acre assinaram um documento, distribuído duran-
te as comemorações de ontem, onde expunham posições contrá-
rias à exploração predatória da região e também exigiam amplas
liberdades democráticas para discutir os problemas da Amazônia.
(...) A crise do modelo econômico do país, segundo o documento,
propicia a destruição do meio ambiente, expulsa o trabalhador
rural de suas terras, facilita a invasão das reservas indígenas, au-
menta o custo de vida, contribui para que o arrocho salarial seja
uma realidade e estimula a violência da polícia contra a popula-
ção, reprimindo greves e dessa forma ajudando a suprimir todas
as liberdades. (Movimento quer fim do entreguismo na Amazônia.
O Rio Branco. Rio Branco - AC, 20 set. 1979, Ano X, n. 682, p. 1).

Nesse editorial, publicado no jornal O Rio Branco, as lutas dos


movimentos em defesa da Amazônia são apresentadas a partir de uma
linguagem que remete ao princípio de isenção jornalística predominante
neste periódico riobranquense. Por estar vinculado à ideologia dominante
o jornal não podia declarar-se a favor das lutas dos movimentos sociais,
mas podia expor suas reivindicações através da veiculação da palavra
do Outro. A adoção de um discurso em que as opiniões encontravam-se,
muitas vezes, escamoteadas, justifica a reafirmação constante no texto
acima de que as opiniões expostas constavam no “documento” assinado
pelos movimentos de defesa da Amazônia.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 86


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De acordo com Costa Sobrinho (2001, p. 188), para Varadouro, a


questão ambiental sempre esteve relacionada à luta pela terra, pois ao assu-
mir uma linha editorial pela defesa dos indígenas e dos seringueiros, o jor-
nal privilegiava também a defesa da floresta amazônica. Enquanto em O Rio
Branco o discurso sobre a defesa da Amazônia apresentava-se velado, em Va-
radouro ele aparecia declarado, como observamos na capa da edição n. 08:

Capa de
Varadouro
(Ano I, n. 08,
mar./1978)
destacando
a temática
de defesa da
Amazônia.

Fonte: Museu da
Borracha.

O discurso ambientalista, a partir do qual a Amazônia é definida


como reserva ecológica mundial e grande “pulmão do mundo” ganhou
fôlego na década de 1970. Os meios de comunicação, desde essa época
investiram na veiculação de um discurso pautado de defesa da natureza

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 87


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amazônica frente à destruição das riquezas da fauna e flora e da necessi-


dade de sua preservação:

O Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), ór-


gão subordinado ao Ministério da Agricultura, responsável pe-
la preservação da flora e da fauna brasileira, objetivam, segundo
publicações da imprensa nacional, a exploração do potencial ma-
deireiro da Amazônia com utilização da terra durante o período
em que vigorar o contrato.
(...) Levando a devastação da cobertura vegetal da Amazônia, tais
contratos colocam em perigo o equilíbrio ecológico, o qual inicia
o seu processo de rompimento quando um de seus elementos é sub-
metido a alteração.
(...) Assim, constatamos que com tal exploração os amazônidas se-
riam os menos favorecidos, ao passo que os grandes ganhadores
dos “riscos”, como sempre seriam o grande capital e sobretudo as
multinacionais que não reinvestiriam seus lucros na região. É de
perguntar se os idealizadores de tal empreendimento responderão
no futuro pelas conseqüências. (Depois da borracha, do boi... Ago-
ra, a madeira (em risco). Varadouro. Rio Branco - AC, mar./1979,
Ano II, n. 14, p. 5).

A significação imaginária da modernidade, de acordo com Sant’Ana


Júnior (2004, p. 69), tem como elementos fundamentais as ideias de “au-
tonomia” e “liberdade”. Esse ideário, entretanto, ao espelhar os interesses
e desejos concretos das elites que o formulam, traz consigo a marca da ex-
clusão de grande parte das populações envolvidas em sua realização, uma
vez que os benefícios dessa modernidade não chegarão a todos.
O discurso da imprensa sobre a Amazônia ao longo do tempo ree-
ditou estereótipos historicamente fabricados através de novas imagens da
região, “de modo especial aquelas que retratam a Amazônia como um lu-
gar paradisíaco e, contraditoriamente, ao mesmo tempo inóspito, no qual
coexistiram a exuberância física da natureza e a insignificância humana”
(DUTRA, 2003, p. 98).
Se o imaginário projetado pelos jornais sobre a Amazônia aponta
para um intricado jogo de interesses, as imagens dos indígenas na mídia
também trazem as marcas do ideário de desenvolvimento do país traçado
pelos governos militares. A ênfase do discurso dos jornais O Rio Branco

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 88


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e Varadouro quando tratam da Amazônia recai sobre o perigo de destrui-


ção das florestas e a necessidade de sua preservação. Ao tratar da questão
indígena, entretanto, notamos ora a imagem do indígena como empecilho
ao avanço do progresso ora como sujeito atuante no processo de transfor-
mação pelo qual passava o Acre nas décadas de 1970 e 1980.
Os jornais riobranquenses sempre apresentaram uma lacuna quan-
to às populações indígenas, referindo-se a estas geralmente em datas pró-
ximas à “semana do índio”. Com a chegada dos “paulistas” nas décadas
de 1970 e seguintes, tornava-se impossível que os jornais não mencionas-
sem os povos originários, uma vez que eles faziam parte das populações
que sofreram diretamente os efeitos da expropriação imposta pelo novo
modelo de desenvolvimento implantado no Acre, através da transforma-
ção dos seringais em fazendas pecuaristas.
Quando da implantação dos primeiros seringais no Acre, ainda no
final do século XIX, os indígenas já começavam a sofrer o efeito confli-
tuoso do contato com as populações “chegantes”. De acordo com Calixto
(1985), cerca de 60 mil indígenas, distribuídos em aproximadamente 50
grupos étnicos, viviam na região acreana no início do século XIX. Organi-
zadas pelos seringueiros brasileiros contra os povos indígenas as correrias
foram frequentemente silenciadas por muitos historiadores brasileiros, que
preferiram atribuir as mortes de nativos aos caucheiros do Peru. As “cor-
rerias” foram os ataques armados contra os indígenas, organizados pelos
seringalistas, principalmente no início do século XX. Como resultado do
massacre, os seringalistas obrigavam, muitas vezes, os indígenas aprisio-
nados a ajudarem na caçada a outros de sua própria etnia. Dessa crueldade,
nem mesmo mulheres e crianças foram poupadas (SOUZA, 2002).
Centenas de indígenas foram extintos por meio dos massacres e
das doenças trazidas pelo o contato com o branco, outros, encontraram
refúgio nas cabeceiras dos rios. A maioria, porém, foi incorporada à eco-
nomia da extração da seringa, vivendo debaixo do jugo dos patrões bran-
cos até o final da década de 1980.
O jornal Varadouro dedicou atenção especial à temática indígena,
enfatizando o processo de expulsão dos povos originários de suas terras
com a chegada dos fazendeiros sulistas. Este fato ocasionou uma mudan-
ça muito grande na estrutura populacional do Estado.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 89


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Os seringueiros e indígenas, expulsos de suas terras foram obriga-


dos a se dirigirem à zona urbana, principalmente à cidade de Rio Branco,
ocasionando o surgimento de várias “ocupações” na capital, que, poste-
riormente, constituiriam os bairros periféricos. Alguns indígenas se mu-
daram para outras áreas; outros, porém, permaneceram nas fazendas, tor-
nando-se “peões”.
Com a transformação dos seringais acreanos em grandes fazendas
pecuaristas surgiram diversos problemas, que iam desde a grande degra-
dação ambiental decorrente do desmatamento, até o choque dos indíge-
nas e seringueiros nativos com os latifundiários que os expulsavam pela
força.
A temática indígena teve desataque constante nas edições de Va-
radouro:

Capa do jornal
Varadouro
(maio/1978,
Ano I, n. 9)
enfatizando
a temática
indígena.

Fonte: Museu da
Borracha.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 90


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

A chegada dos “paulistas” e a “demarcação” das fronteiras ocasio-


naram um processo de readequação das populações indígenas em sua re-
lação com a terra.
Os discursos dos jornais Varadouro e O Rio Branco estão permea-
dos de representações das imagens dos atores envolvidos no processo de
chegada dos investidores do Centro-Sul do país e a instauração da era da
pecuária no Acre, sendo os principais sujeitos envolvidos nas tramas dis-
cursivas os “carius”, os “caboclos”, os “seringueiros” e os “paulistas”. Os
jornais esboçam várias categorias identitárias e posicionamentos dos su-
jeitos discursivos acerca do Outro.
De acordo com Valle (1977, p.112) as identidades “cariu” e “cabo-
cla” só podem ser definidas mutuamente, pois representam termos com-
plementares quanto à significação. O termo “cariu” refere-se a todos os
brasileiros que mantinham vínculo com a extração da borracha e o ter-
mo “caboclo” é usado para designar, indiscriminadamente todos os in-
dígenas.
Representados na história oficial como seringueiros, os indígenas,
povos originários do Acre, se dissolvem na categoria genérica de “cabo-
clo”. O caboclo, identidade imposta pelo branco aos grupos indígenas que
trabalham na extração da borracha, se distingue do “brabo” - o indígena
“selvagem” com traços animalescos. O “caboclo” acreano é caracteriza-
do por um conjunto de atributos negativos, tais como ladrão, preguiçoso,
vagabundo, irresponsável e traidor, que marcam sua inferioridade em re-
lação ao branco (VALLE, idem, p. 116).
O jornal Varadouro, em face do discurso oficial, que construiu a
imagem dos indígenas de forma negativa e que os caracterizou ao longo
do tempo como representantes de uma “cultura bárbara”, elegeu a ques-
tão indígena como um dos temas de maior presença de suas publicações,
como se percebe no editorial a seguir:

Eles mudaram o nome segundo o grau e a qualidade da explo-


ração. Até o final do século passado, eram simplesmente Caxi-
nauás, uma das mais numerosas e valentes tribos da família dos
Panos que habitava o Vale do Juruá. Depois, com a “corrida” da
borracha e do caucho, passaram a ser chamados de “caboclos”
ou “índios sujos, preguiçosos e cachaceiros”. Nos últimos anos,

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 91


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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com a entrada da agropecuária, a dominação no seu último es-


tágio, sofisticaram-se de vez: já começaram a ser denominados
de “bóias-fria” ou num termo mais regional “farofas-fria”. (...)
Queixam-se também de que as terras em que vivem já não lhes
pertencem e sua permanência nelas assume sempre um caráter
provisório e de insegurança. Dependem da vontade dos proprie-
tários ou, para eles, usurpadores. (Caxinauás ou “farofas-frias”.
Varadouro. Ano I, n. 4, set. 1977, p. 15).

A respeito da construção identitária do indígena em sua relação


com o branco é interessante notar no texto acima a ironia em relação à
“sofisticação” das designações atribuídas aos indígenas. A desqualifica-
ção a que era comum estarem expostos os povos originários, evidencia-
da pelos termos “índios sujos, preguiçosos e cachaceiros” indica tam-
bém a negação do status de humanidade ao caboclo. A designação “ca-
boclo”, portanto, reveste-se de uma identidade situada no “não-lugar”,
ele não estaria nem na natureza, nem na cultura, não é apresentado nem
como “índio” nem como “civilizado”, mas na fronteira entre civilização
e barbárie.
O editorial em questão informa, ainda, que segundo dados de um
relatório entregue à Funai pelo Antropólogo Terri Valle Aquino, um dos
repórteres de Varadouro, existiam à época, cerca de 860 indígenas da et-
nia Caxinauá, distribuídos e dispersos nos rios Tarauacá, Muru, Humai-
tá, Breu e Tejo, todos localizados no Vale do Juruá. Desse grupo de 860,
90 Caxinauás viviam na periferia da cidade de Tarauacá. A sobrevivência
desses indígenas, relata o antropólogo, vinha de “uma minguada agricul-
tura de subsistência voltada primordialmente para o consumo familiar” e
muito raramente da venda de algum excedente na cidade. Como forma de
complementar sua economia doméstica, os Caxinauás urbanos eram for-
çados a trabalhar como “peões” para pequenos proprietários ou nos gran-
des desmatamentos dos “paulistas”, que estavam implantando a pecuária
extensiva na região.

Por aqui eu tenho serviço de banana, arroz, serviço de legume.


Mas isso não dá prá botar o sal, o querosene, o fósforo, o peixe, a
carne dentro de nossa casa. Vivo trabaiando pros fazendeiro ca-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 92


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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riu da ‘rua’ e trabaio pros ‘paulista’ porque quéri é tirar saldo pra
comprá panela, muda de roupa, prá mulher e pros filhos, perfume,
uma eletrola, um rádio...
Prá botá coisas de valor dentro da casa é preciso trabaiá em ser-
viço de empeleitada. Trabaio mas é pros ‘paulista’ da Cinco Es-
trela. (Agropecuária Cinco Estrelas S.A. da Viação Aérea Cruzei-
ro do Sul). (Caxinauás ou “farofas-frias”. Varadouro. Ano I, n. 4,
set. 1977, p. 15).

A aculturação dessas populações indígenas revela-se, na fala aci-


ma, pelo desejo de adquirir o que o entrevistado chama de “coisas de va-
lor”, roupa, perfume, rádio, eletrola, necessidades geradas pelo contato
com o homem branco. De acordo com o conceito de “identidade contras-
tiva” de Cardoso de Oliveira (1976), a afirmação da identidade de uma
pessoa ou de um grupo se faz sempre por meio da diferenciação em rela-
ção ao outro.

Hoje em dia, faz de conta que nóis não temos nada. Eu queria
que fosse lá ao menos um empregado da Funai. Está cercando
tudo onde nóis mora, fazendo campo, botando roçado, onde nóis
mora. Nóis estamo ficando sem terra prá fazê nada. (Índios vi-
vem acoxados. Varadouro. Rio Branco - AC, set./1978, Ano II,
n. 12, p. 17).

O editorial apresenta o ano de 1976 como um marco que definiu


grandes mudanças nas relações entre indígenas e seus empregadores, os
chamados patrões. Essas transformações foram motivadas pelas andanças
de equipes da Funai que percorreram o Acre e passaram a delimitar várias
áreas para, posteriormente, fazer a demarcação das reservas indígenas.
O texto dá conta de que, com a ameaça de demarcação das terras pela Fu-
nai, imediatamente, seringalistas e fazendeiros perceberam que os indí-
genas poderiam ameaçar parte de suas várias extensões de terra. Para im-
pedir que isso acontecesse, os novos “donos” das terras passaram a usar
várias estratégias para expulsá-los.
Mesmo “civilizados” ou “amansados”, através da imagem do “ca-
boclo”, os indígenas continuam sendo considerados como representantes
de uma sub-humanidade. Nos seringais, muitas populações indígenas so-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 93


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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breviventes partilharam um destino funesto com os seringueiros nordes-


tinos. Na condição de mão de obra servil no sistema escravista e paterna-
lista da borracha, os indígenas acreanos mesclaram seus costumes com os
do homem branco. Durante décadas sua identidade étnica foi reprimida e
continuaram sofrendo os preconceitos da sociedade envolvente.
De uma maneira geral, considerando o lugar atribuído aos povos
originários pela historiografia acreana, podemos dizer que a “questão in-
dígena” foi um detalhe na conquista e na integração do Acre ao Brasil.
Exterminados, “civilizados” ou isolados em áreas remotas, cujas riquezas
ainda não haviam sido cobiçadas, durante a maior parte do século XX, os
povos indígenas acreanos desapareceram da história oficial, que nunca os
considerou como atores. Símbolo da invisibilidade da questão indígena,
a FUNAI começou a atuar realmente na região apenas em 1975. Até essa
data, as raras viagens de funcionários do SPI, ligados à Primeira Inspe-
toria Regional de Manaus, legitimaram os patrões seringalistas e alguns
políticos locais como representantes do órgão. Até a intensificação das
políticas desenvolvimentistas a partir da década de 1970, as instituições
governamentais e importantes segmentos da sociedade acreana desconhe-
ciam a existência de populações indígenas no Estado (AQUINO; IGLE-
SIAS, 1999, p. 6).
Em editorial intitulado “O índio no debate atual”, o jornal O Rio
Branco apresenta o debate de diversas vozes acerca da questão indíge-
na. Entre esses discursos que o jornal põe em confronto, está o do então
Ministro do Interior, Rangel Reis, em pronunciamento sobre relações de
choques entre indígenas e posseiros em Mato Grosso, que haviam vitima-
do um missionário e muitos indígenas:

Dizer que há hostilidade entre indígenas e brancos é uma boba-


gem. Não existe. Não se pode dar um tratamento ao colono dife-
rente do dado ao índio, porque o índio não vai com isso deixar de
preservar a sua cultura. Se desenvolvermos um trabalho intenso,
daqui a dez anos os 220 mil indígenas estarão reduzidos a 20 mil,
e daqui a 30 anos todo mundo integrado direitinho. O índio qua-
se entendido como garoto peralta que precisa ser corrigido com
severidade. (O índio no debate atual. O Rio Branco. Rio Branco -
AC, 20 abr. 1977, Ano VIII, p. 3).

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 94


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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São apresentadas, também, nesse editorial de O Rio Branco as de-


clarações do debate entre o Ministro Rangel Reis, religiosos, antropólo-
gos, sertanistas e vários estudiosos do assunto constantes em um boletim
do Centro Ecumênico de Informações, publicado no Rio de Janeiro. Se-
gundo o Ministro:

A posição da Igreja Católica é sonhadora, feudal e atrasada com


relação aos índios”. Além disso, não acredito na boa fé de uma
minoria religiosa que se diz defensora dos humildes, encarando o
governo como perseguidor da população menos favorecida. Se as
missões quiserem continuar colaborando para o processo de de-
senvolvimento do índio brasileiro, acrescentou o ministro, terão
que adotar a política do Governo, que é a da emancipação pro-
gressiva das comunidades. (O índio no debate atual. O Rio Bran-
co. Rio Branco - AC, 20 abr. 1977, Ano VIII, p. 3).

As declarações do Ministro Rangel Reis apresentam os povos ori-


ginários como necessitando passar por um “processo de desenvolvimen-
to”. Isso remete à ideia dos povos originários como “recursos naturais”,
que deveriam ser utilizados em benefício da modernização brasileira. Por
esse viés do discurso oficial, os indígenas deveriam ser “civilizados”,
uma vez que o discurso de domesticação da natureza incluía também os
indígenas como parte dela.
A reação da Igreja Católica, entretanto, é mencionada no mesmo
editorial, através da voz do Bispo de S. Mateus, que afirma ser “muito fá-
cil acusar uma parte da Igreja de atrasada e ligada a subversivos, porque
assim se evita considerar o verdadeiro problema, que é o de como são res-
peitados os direitos dos indígenas e posseiros”.
O discurso da Igreja Protestante é também enfatizado nesse texto,
através do depoimento do Pastor Hilmar Kanhemberg, da Igreja Lute-
rana, que disse esperar que o plano do Ministro do Interior de afastar as
missões religiosas do seu trabalho junto aos indígenas “não seja executa-
do, porque se for, os prejudicados serão os índios. E a nossa Igreja vai de-
bater e discutir e brigar se for preciso, por causa dos índios”.
Os discursos de antropólogos, sertanistas e indigenistas também
são apresentados nesse editorial, a partir das declarações de que “a situa-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 95


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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ção dos índios é ainda mais complexa, devido às grandes diferenças que
as compõem”, sendo essencial perceber que tanto brancos quanto indíge-
nas têm o mesmo direito a “algo melhor do que uma política de acultura-
ção forçada e de extinção cultural planejada”.
O desejo de “integrar o índio ao processo de desenvolvimento bra-
sileiro” defendido pelo Ministro do Interior no editorial em questão de-
monstra-se, também, na afirmação de que o ensino bilíngue para os indí-
genas era perda de tempo e dinheiro, devendo ser ensinado a eles apenas a
língua portuguesa. A intenção do governo federal de “aculturar” os povos
originários do Brasil pela imposição da língua revela-se uma eficaz for-
ma de dominação pelo saber produzido pelo branco. Com o aprendizado
da escrita, expande-se o nível de distanciamento tempo-espaço, criando-
-se uma perspectiva de passado, presente e futuro na qual a apropriação
reflexiva do conhecimento pode ser desmembrada da tradição designada
(GIDDENS, 1991, p. 44). A aprendizagem da escrita, nesse sentido, re-
presenta mais que a passagem de uma tradição ágrafa para uma cultura
dita “moderna”, representa, antes de qualquer coisa, uma violência sim-
bólica, em que se tenta vender a “necessidade” de os indígenas participa-
rem do processo de “civilização” e domesticação imposto pelos brancos.
O editorial intitulado “O índio no debate atual” apresenta uma di-
versidade de vozes, finalizando com votos de um trabalho “auspicioso” à
equipe administrativa da FUNAI, que acabara de se instalar no Acre. Não
tardaria, entretanto, para ficar patente que os votos da imprensa local não
teriam um fácil cumprimento, tendo em vista que o jogo de interesse em
torno das terras ocupadas pelos povos indígenas no Acre suscitaria ainda
muitas disputas e contradições.
Em editorial acerca de conflitos entre posseiros e indígenas da et-
nia Apurinã, na área do Km-45 da BR-317, em Boca do Acre, o jornal
O Rio Branco transcreve o teor de uma nota redigida por representantes
do Comitê de Diálogo entre Índios e Colonos do Acre - CDIC. Esse Co-
mitê surgiu como resultado de um amplo debate durante a “Semana do
Índio de 1980”, sobre a questão das lutas entre indígenas e colonos e en-
tre indígenas e seringueiros. Faziam parte do Comitê: indígenas da et-
nia Apurinã, representantes do Sindicato Rural de Rio Branco, Comissão
Pró-Índio do Acre, Comissão Pastoral da Terra, Movimento de Defesa do

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Meio Ambiente e Conselho Indigenista Missionário (O Rio Branco. Rio


Branco - AC. 25 abr. 1980, Ano X, n. 884, p. 1).
A nota redigida pelo CDIC e publicada no Jornal O Rio Branco foi
motivada por “alarmantes rumores” que circularam em Rio Branco sobre
o deslocamento de tropas do Exército para a reserva Apurinã. Nela lemos:

Ao consumar-se o deslocamento de efetivos militares para a área


de Boca do Acre, manifestamos publicamente nossa preocupação
pela segurança da população local, envolvidos em conflitos pro-
vocados unicamente devido aos interesses econômicos de políticos
e empresários na região. Manifestamos, também, nosso repúdio
num momento em que tenta-se promover a pacificação e o entendi-
mento entre índios e posseiros, explorados e atingidos igualmente
pela especulação desumana e inescrupulosa dos grandes proprie-
tários da terra. Responsabilizamos diretamente a FUNAI e o IN-
CRA pela situação em que se encontram índios e colonos, como
também como por qualquer fato mais grave que venha a ocorrer
na área. (Agrava-se a questão indígena no KM-45. O Rio Branco.
Rio Branco - AC. 25 abr. 1980, Ano X, n. 884, p. 1).

Os textos fundadores do Acre não contemplam a importância dos


povos originários para a história local. Com a chegada dos seringueiros,
os povos “sem história” se tornaram apenas objeto de uma história que
se constrói sem eles ou sobre eles, raramente com eles. Mal inevitável,
mas superável, o destino do indígena é a “civilização” ou o extermínio e
uma dicotomia se estabelece rapidamente entre o indígena “civilizado”
ou “manso” e o indígena “brabo”. Enquanto os “mansos” integram o ca-
tiveiro do seringal na categoria genérica de “caboclo”, os “brabos”, após
serem massacrados e perderem suas terras são integrados à cultura local
como folclore ou símbolo da gloriosa conquista do povo seringueiro. Co-
mo a Amazônia de uma maneira geral, o Acre era o habitat de uma gran-
de diversidade de povos.
Diante das representações acerca dos povos originários e da Ama-
zônia produzidas pelo discurso midiático, é interessante notar que os
meios de comunicação conectam vários sujeitos ao construir uma cadeia
de códigos compartilhados e reconhecidos que são constitutivos das re-
presentações sociais. Por isso, o conteúdo discursivo veiculado pela mí-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 97


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dia constitui uma importante fonte de pesquisa. Como observa Cancli-


ni, “a influência dos meios massivos é percentualmente quase idêntica a
das formas microssociais ou interpessoais de comunicação” (CANCLI-
NI, 1998, p.145).
Nesse sentido, a mídia circula imagens da sociedade e de legitima-
ção das posições políticas, produzindo sentidos, por meio de um insis-
tente retorno de figuras e de representações que compõem o imaginário
social. A legitimação desse discurso, portanto, vai buscar sua origem no
passado coletivo, organizado em uma tradição. Assim, quando os jornais
apelam para o retorno de imagens do passado, como ocorre nos textos
que se referem a fatos de um “passado glorioso”, dos quais podemos citar
os editoriais que retomam fatos e personagens da chamada “Revolução
Acreana”, podemos dizer que o poder apodera-se do imaginário social,
fabricando desejos com o objetivo de unificar os diversos grupos sociais
em torno dos interesses dos grupos dominantes.

A representação da luta pela sobrevivência nas “periferias” de


Rio Branco

Os sujeitos que constroem a cidade possuem interesses e valores


diferentes. Sendo um espaço de ações e contradições, construído por ho-
mens e mulheres, a cidade como a conhecemos hoje resulta de uma dis-
puta entre aqueles que tratam a terra como fonte de lucro – os capitalistas
– e os que a tratam como espaço de vida – os moradores.
O convite aqui feito é para um recuo no tempo, mais especifica-
mente ao final da década de 1970 e início da década de 1980, para uma
época em que os trabalhadores do campo, expulsos em decorrência da
concentração da terra e da implantação das pastagens para a pecuária, co-
meçaram a derrubar árvores, “coivarar”, limpar terrenos baldios e erguer
seus precários barracos.
Em fins da década de 1960 e início da década de 1970 as terras
acreanas passaram a figurar não apenas como meio de produção, mas
também como mercadoria através da garantia da propriedade privada. Os
seringais acreanos falidos foram transformados em grandes fazendas pe-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 98


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cuaristas, causando problemas que iam desde a grande degradação am-


biental, decorrente do desmatamento, até o choque dos indígenas e serin-
gueiros nativos com os latifundiários que os expulsavam pela força.
Esse fato ocasionou uma mudança muito grande na estrutura po-
pulacional do Estado. De acordo com os dados do IBGE, nos censos de
1960 e 1970, percebemos que a população riobranquense quase dobrou.
Na década de 1960 eram 47. 437 habitantes, sendo 30.333 na zona ru-
ral e 17.104 na urbana; na década de 1970 a população riobranquense
era formada por 48. 399 habitantes na zona rural e 35.578 habitantes
na zona urbana, totalizando 83.977 habitantes (LIMA; BONIFÁCIO,
2007, p. 21).
O novo modelo de ocupação, introduzido com a implantação da
pecuária extensiva, retirava os trabalhadores da floresta e lhes negava as
mínimas condições de sobrevivência. Os seringueiros, expulsos de suas
terras, foram obrigados a se dirigir à zona urbana, principalmente à cida-
de de Rio Branco, ocasionando o surgimento de várias “ocupações” na
capital, que, posteriormente, constituiriam os bairros “periféricos”. Gran-
de parte da população indígena que habitava esses seringais migrou pa-
ra zona urbana; outros, porém permaneceram nas fazendas, tornando-se
“peões”.
Ao migrar para as cidades, essas populações rurais expropriadas
depararam-se com a falta de infraestrutura, saneamento básico, educação,
saúde, emprego. Desses problemas derivaram outros como a violência, a
prostituição, a marginalidade e o subemprego. Muitas famílias se viram
obrigadas a recorrer ao mercado de trabalho informal como forma de não
mendigar, eram os chamados “autônomos”, que a cada dia se avoluma-
vam no centro e na “periferia” da cidade.
As decisões da justiça na fase de reassentamento dessas popula-
ções nas cidades estavam comprometidas com o modelo de desenvolvi-
mento dos governos militares para a Amazônia, a própria imprensa e os
meios de comunicação eram extensões do poder oficial, omitindo-se acer-
ca das questões agrárias e fazendo absoluto silêncio sobre as contradições
tanto no meio rural quanto no urbano.
A presença desses sujeitos na cidade tornou-se um fato corriqueiro.
Em um processo violento e vertiginoso esses “cidadãos” passaram a figu-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 99


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rar apenas como números de uma estatística que a cada dia crescia mais.
À medida, porém, que os grupos políticos, econômicos e sociais que de-
tinham o poder passaram a perceber que os moradores dos bairros perifé-
ricos começavam a habitar áreas privilegiadas, começaram a empreender
o processo de expulsão dessas populações pobres para áreas impróprias
para moradia. Assim, restava a essas populações construir suas habita-
ções em áreas afastadas, como as margens dos rios ou as proximidades
dos aeroportos. Em relação aos “aeroportos”, vale destacar o processo de
ocupação urbana que se deu na área próxima ao Aeroporto Salgado Filho,
o qual funcionou de 1939 a 1974, e, posteriormente, à área próxima ao
Aeroporto Presidente Médici, funcionando de 1974 até meados da déca-
da de 1990. Como não dispunham de dinheiro para comprar terreno em
terra firme, muitos acabaram construindo suas casas em terrenos nos bar-
rancos do rio Acre.
O perigo de desbarrancamento dessas casas com a chegada do in-
verno era uma preocupação constante dos moradores de bairros como
Cidade Nova, Papouco e Triângulo, só para citar alguns. Além de esta-
rem expostos aos problemas advindos com as alagações, essas popula-
ções precisavam lidar com a ameaça de expulsão pelos proprietários dos
terrenos, pelo Estado e pela Polícia.
Uma das estratégias da especulação imobiliária praticadas por
grandes proprietários de terrenos na “periferia” consistia em deixar uma
grande extensão de terrenos baldios e lotear um terreno mais adiante.
Quando as pessoas começavam a erguer suas moradias no local mais
afastado, com o tempo, o mínimo de infraestrutura começava a surgir no
local. Consequentemente, ocorria a valorização do terreno baldio, que po-
dia ser, então, vendido em condições extremamente favoráveis. À popu-
lação trabalhadora que ia morar no terreno mais afastado restava sofrer
as dificuldades do trajeto maior para o trabalho ou da falta de transporte,
de iluminação pública, de água encanada. O processo de ocupação dos
novos bairros que surgiam na “periferia” de Rio Branco pode ser melhor
compreendido através do editorial a seguir:

O processo de ocupação, pode-se dizer, é original e até fascinan-


te. A notícia de que está sendo aberta uma nova área corre e se es-
palha rapidamente protegida entre a população. Quem chega pri-

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meiro vai marcando seu pedaço de chão, observando um acordo


tácito entre eles: ninguém deve reservar mais que o suficiente para
a construção de um barraco, porque “os outros também estão pre-
cisando”. Um barraco é feito em poucas horas, geralmente pelo
sistema do mutirão – algumas folhas simples de alumínio, cavacos
ou mesmo palha para a cobertura, restos de tábuas, caia para as
paredes e alguns esteios para equilibrar a construção. (Posseiros
Urbanos. Varadouro. Ano II, n. 14, mar/1979, p. 9).

A descrição dos materiais com que eram construídas as novas mo-


radias remete à ideia de uma vida improvisada, erguida às pressas em re-
gime de mutirão. O fato de os moradores “protegerem” a notícia de que
estava sendo “aberta uma nova área” aponta para um procedimento co-
mum à população que se assentava nas “periferias” de Rio Branco, a so-
lidariedade. Em um local com tantas pessoas de origens e culturas diver-
sas a cooperação foi uma das formas de resistir às pressões advindas tanto
com as ações dos especuladores de terras quanto com as próprias condi-
ções de miséria em que viviam.
A ajuda na hora de erguer o barraco em mutirão servia como fator
de coesão e como forma de amenizar a sensação de não ter para onde ir,
a condição marginalizada que os poderosos que se autointitulavam donos
das terras lhes impunham ao chamá-los de “invasores”, tudo isso aliado
ao medo da repressão dos órgãos do governo. Essas experiências de soli-
dariedade entre os ocupantes consolidaram os laços de união e identidade
entre estes, sendo expressas desde a chegada até a ocupação, quando um
ajudava a construir o barraco do outro, dividindo o alimento e a água, en-
fim, na convivência diária.
Apesar desse espírito de cooperação, é importante frisar que havia
também conflitos entre alguns ocupantes, principalmente entre aqueles
que tomavam posse dos terrenos para praticar a grilagem das terras. Um
exemplo de conflitos entre as comissões que demarcavam os terrenos e os
moradores é o caso do assassinato do líder comunitário João Eduardo do
Nascimento, que foi alvejado com um tiro de espingarda em decorrência
de desentendimentos por causa da demarcação dos lotes (LIMA; BONI-
FÁCIO, 2007, p. 63). Em homenagem ao líder assassinado os moradores
resolveram dar o nome de João Eduardo ao bairro.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 101


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Acostumados com a vida no campo, a maioria já com média de


idade próxima aos 40 anos, os novos habitantes da cidade de Rio Bran-
co tiveram que passar por toda uma reestruturação de vida gerada com o
deslocamento para a capital acreana. Essas famílias compostas, em sua
maioria, por casais com uma média de 04 filhos, buscavam melhores con-
dições de vida, impulsionados pela perspectiva de oferecer a possibilida-
de de estudar e de uma moradia digna para os filhos e alcançar melhores
condições de vida (LIMA, 2006, p. 130).
Viver nesses bairros em que faltava praticamente tudo era um de-
safio que essas famílias tiveram que enfrentar. A descrição de como era o
cotidiano dessas pessoas, suas lutas e experiências pode ser observada no
seguinte trecho de Varadouro, que pinta de forma magistral o cenário do
amanhecer em um bairro “à margem da cidade”:

São 5h30min, o bairro da Bahia já não dorme mais. A noite pa-


ra seus moradores termina às 4 horas da manhã. As mulheres ga-
nham a rua com latas vazias na cabeça à procura de poços que
porventura tenham amanhecido com água. Os homens esperam o
café, não uma café gordo, isso não!, mas um café puro com um pe-
daço de pão e nada mais. O rádio está ligado desde cedo, compe-
tindo com o do vizinho. (...)
Os ônibus não entram no Bahia. Antes eram as desculpas de que
a estrada que dá acesso ao bairro não oferecia condições; conser-
tada a estrada, os ônibus continuam passando ao largo do bair-
ro, cerca de dois quilômetros, na Rua Rio Grande do Sul. (Bahia
à margem da cidade. Varadouro, Rio Branco - AC, Ano II, n. 11,
ago./1978, p. 5).

O processo discursivo do texto acima engendra e mobiliza sentidos


que apontam para o procedimento de exclusão a que estavam submetidos
os habitantes do bairro Bahia. A afirmação constante no título do edito-
rial de que os moradores do bairro ocupavam um lugar “à margem” da
sociedade, indica que o ambiente urbano se caracteriza como um espaço
de disputa, sempre permeado por contradições e conflitos. O “urbano” é
o lugar dos meios de vida com complexidade, é nele que as pessoas espe-
ram “vencer na vida”.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 102


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Ao migrar, as pessoas buscam novos lugares, transformam o habi-


tat e se transformam no deslocamento. Ao chegar à cidade, reelaboram
novas relações, novo cotidiano, novas expectativas. Essa é a realidade
daqueles que movem a vida, que transformam a cidade, colocando-a em
movimento a partir de suas múltiplas trajetórias. A experiência da migra-
ção atua provocando mudanças de valores e comportamentos, alterando a
forma de relacionamento dos habitantes entre si e com seu habitat.
Enquanto o discurso presente em O Rio Branco aponta para a cons-
trução da imagem dos moradores desses novos bairros como “invasores”
e até mesmo “subversivos”, a imagem construída por Varadouro remete à
ideia de que essas pessoas eram apenas “ocupantes”, homens de bem que,
por ingerência dos poderes públicos, precisaram ocupar as terras inabita-
das da cidade para sobreviverem.
Os editoriais do jornal Varadouro traziam sérias críticas à constru-
ção da imagem dos ocupantes dessas áreas de terra como “aproveitado-
res”, “especuladores” e “subversivos”, veiculada em notas oficiais pelo
governo e pelos “proprietários” desses terrenos. O discurso veiculado por
esse jornal alternativo coloca-se em posição contrária ao discurso veicu-
lado na imprensa de linha oficial, uma vez que declara que entre os anos
de 1970 a 1974, “os ‘paulistas’ compraram 1/3 das terras do Acre (cerca
de 5 milhões de hectares) para implantar fazendas de gado ou simples-
mente especular com a terra”. Para Varadouro, portanto, os vilões da his-
tória não eram os “posseiros urbanos”, mas os pecuaristas do Centro-Sul
do país.
Num discurso de defesa dos excluídos socialmente, Varadouro faz
o contraste entre os que vinham “de fora” e aqueles que eram “da terra”:

(...) não são marginais, especuladores ou “subversivos”. São ex-


seringueiros, pais e mães de família, por sinal, muito ordeiros e
esforçados por condicionamento do meio rural e que normalmen-
te se mostram até dispostos a pagar pelo terreno que ocuparam.
Quanto à profissão, podem ser incluídos na categoria de “diaris-
tas”. O principal motivo que os levaram a ocupar a área é per-
feitamente compreensível: o que ganham não mais permite pagar
o aluguel, e alógica é essa mesmo – a precariedade dos salários

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 103


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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reflete-se na precariedade ou falta de moradia. (Posseiros Urba-


nos. Varadouro. Rio Branco - AC, mar/1979, Ano II, n. 14, p. 9).

Em Varadouro é nítida a escolha do termo “ocupação” em vez de


“invasão”. A conotação da palavra “invasão”, bastante propagada pela
imprensa oficial, pressupõe posse ou pertencimento, alguém tem o que
é seu invadido por outro. O invasor age em âmbitos que não lhe perten-
cem e reivindica para si a posse de uma área alheia, sendo considerado
um usurpador. Mas, se por um lado o discurso oficial coloca os moradores
que se instalaram nas áreas situadas “à margem” da cidade como “usur-
padores”, por outro, se pensarmos nos termos capitalistas, perceberemos
que as próprias ações de desapropriação empreendidas pelo governo re-
velam-se “invasivas”, pois usurpa o que é de propriedade coletiva e vende
o que não é seu a quem possa pagar mais caro.
Em editorial publicado na edição n. 20, o jornal Varadouro traz um
exemplo da atitude capitalista empreendida pelo poder oficial referente
a uma ação de desapropriação de uma área de terras no Distrito Indus-
trial, onde hoje está localizado o conjunto Tucumã. Segundo Varadouro,
em fins de 1978, um grande terreno no Distrito Industrial, em frente ao
Campus da Universidade Federal do Acre, foi loteado e vendido pelo go-
verno, através da Funbesa e da Cohab aos desabrigados das enchentes do
rio Acre.
A respeito dessa situação de exclusão social em que viviam os mo-
radores dos bairros de Rio Branco assim se manifestou Varadouro:

Existem os desabrigados porque vivemos em um regime que só fa-


vorece aos grupos econômicos, aos “tubarões”, às custas dos po-
bres. Pouco ou quase nada este regime faz pela pobreza. Como já
vimos, no caso de Rio Branco, os problemas já vêm desde os se-
ringais, quando a população é expulsa. A expulsão acontece por-
que a política agrária de nosso país promove a concentração da
terra nas mãos de poucos e grande proprietários. Esses grandes
proprietários visam apenas o lucro, que é o principal interesse no
regime capitalista. Não importa se esse lucro é conseguido com
sangue e lágrimas de muitos, isto é, só resolve para quem não pre-
cisa. (Bairros lutam para sair da miséria. Varadouro. Rio Branco -
AC. abr./1981, Ano IV, n. 20, p. 8).

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 104


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Enquanto em Varadouro o tema da luta pela sobrevivência nas “pe-


riferias” da cidade é amplamente discutido, chegando a ganhar páginas
inteiras de uma edição, O Rio Branco apresenta poucos editoriais a esse
respeito. A partir da perspectiva de que o silêncio também é um discurso,
que está determinado por suas condições de produção, percebemos que a
ausência de textos que discutissem a ocupação dos bairros de Rio Branco
é fato de relevante importância a ser considerado na análise da configura-
ção do discurso jornalístico local.
Esse silenciamento aponta não para uma ausência de linguagem,
de significado e de sentido, o silêncio não está apenas “entre” as palavras,
mas ele as atravessa (ORLANDI, 2002). Tendo em vista, portanto, serem
raros os editoriais do jornal O Rio Branco acerca do tema, discutiremos
poucos textos acerca do assunto, nos atendo principalmente ao silencia-
mento presente nesse discurso.
As poucas referências encontradas no jornal O Rio Branco foram
publicadas em momentos de tensão nas áreas que estavam sendo ocupa-
das, ocasião em que os interesses dos proprietários que se diziam “legíti-
mos” donos das terras se sentiam ameaçados com a possibilidade de ocu-
pação destas por essas pessoas. As contradições entre os chamados “do-
nos” das terras, o poder político e os denominados “invasores” podem ser
observadas no seguinte editorial do jornal O Rio Branco, intitulado “In-
vasores ocupam terras no Aeroporto”:

Cerca de 200 pessoas estão marcando e ocupando uma área de


terra localizada entre os bairros Bahia e Palheiral, próximo do
ginásio “Álvaro Dantas”. O processo de invasão começou no sá-
bado. Alguns moradores chegaram ao local, limparam de enxadas
lotes de aproximadamente 10x30 e assentaram piquetes.
Funcionários da municipalidade que foram ao local não conse-
guiram afastar os invasores, sendo recebidos com ameaças. (Inva-
sores ocupam terras no Aeroporto Velho. O Rio Branco. Rio Bran-
co - AC, 13 mar. 1980, Ano X, n. 852, p. 1).

O viés ideológico presente no editorial acima expressa a vincula-


ção do discurso do jornal à elite local, bem como a defesa de seus inte-
resses, uma vez que a maioria dos textos acerca do assunto trabalha a lin-

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 105


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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guagem de modo a denegrir e desmobilizar os movimentos sociais que


lutavam por melhores condições de vida dessas populações. A afirmação
de que os funcionários da municipalidade, aqui colocados como represen-
tação da lei e da ordem, foram recebidos pelos moradores com ameaças,
revela um procedimento de construção de um imaginário pautado na le-
galidade para legitimar as ações do poder oficial e econômico contra as
populações que se instalaram no local.
Além de se manifestar nos momentos de tensão das lutas pela pos-
se da terra no espaço da cidade, O Rio Branco se manifesta sobre o tema
apenas em notas esporádicas no interior do jornal, para veicular algumas
reivindicações dos moradores, geralmente a respeito da falta de assistên-
cia do governo em relação a serviços essenciais como transportes coleti-
vos, água encanada, energia elétrica, esgoto e policiamento:

Aeroporto Velho nega-se a pagar conta de energia e também re-


clamam da prefeitura que deixou o bairro em condições nunca vis-
ta, com ruas totalmente esburacadas. E as ruas não têm ilumina-
ção pública e outra reclamação é a falta de policiamento. (O Rio
Branco, 14 de fev. 1979, n. 513).

A divergência entre os discursos contidos em Varadouro e O Rio


Branco aponta para os interesses antagônicos entre os grupos que manti-
nham a produção jornalística local em circulação. Caberia aqui questio-
nar que interesses estariam por trás desses discursos tão divergentes. Es-
taria O Rio Branco apenas repetindo o discurso dos grupos de poder li-
gados aos latifundiários, ao poder político ou aos grandes especuladores
de terras? De outro turno, estaria Varadouro se colocando despretensiosa-
mente ao lado dos pobres e oprimidos? Onde entram, nesse contexto, os
interesses dos antigos proprietários dos seringais que haviam falido, ago-
ra sem perspectiva de prosseguir com a exploração da borracha?
Nessa teia repleta de emaranhados de redes de poder, que se cru-
zam e entrecruzam chamada discurso jornalístico, as intenções não são
ingênuas. As vozes que emergem das páginas amarelecidas pelo tempo,
embora muitas vezes apresentadas como ruídos silenciados, gritam, tra-
zendo um turbilhão de perguntas, indagações, questionamentos.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 106


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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O discurso nas redes do poder

Durante o regime militar, os meios de comunicação foram instru-


mentos usados tanto como mecanismo de silenciamento e censura quanto
como instrumento de resistência e veiculação das vozes dos sujeitos ex-
cluídos da “ordem do discurso”. Enquanto no jornal O Rio Branco pre-
dominava a estratégia discursiva de desqualificação dos opositores do re-
gime militar, com termos que semanticamente estigmatizavam seus ad-
versários; o jornal Varadouro investia na construção positiva dos sujeitos
excluídos socialmente, atuando como instrumentos de veiculação de suas
reivindicações.
A adoção de um discurso que focalizava como protagonistas os vá-
rios sujeitos sociais geralmente excluídos da “ordem do discurso” fez de
Varadouro alvo de constantes ataques por parte dos líderes políticos da
época, por não admitirem contestações ao regime militar. O discurso do
jornal O Rio Branco, embora também marcado, em algumas ocasiões,
por estratégias de resistência, manifestou como foco predominante de sua
produção discursiva a violência, imposta de forma simbólica, para silen-
ciar os que discordavam da palavra única dos líderes militares.
A grande disparidade de posicionamentos dos dois jornais pesqui-
sados aponta para o fato de que no discurso da imprensa atrelada ao po-
der oficial as palavras são predominantemente chamadas à neutralida-
de, e no discurso da imprensa alternativa são chamadas ao comprometi-
mento. Não podemos perder de vista, entretanto, que no jogo discursivo
dos jornais, os posicionamentos não são fixos. Ao se observar as páginas
amarelecidas pelo tempo é possível entrever as rupturas, os movimentos
de resistência e o modo singular com que vários jornalistas driblaram a
censura.
O jornal O Rio Branco caracteriza-se por manifestar em suas pági-
nas a oscilação dos jogos de poder da política acreana. O periódico surgiu
no cenário da imprensa acreana apresentando uma nova proposta jorna-
lística pautada no mito da objetividade jornalística. Por mais que no jor-
nal O Rio Branco imperasse a linha editorial vinculada à ideologia domi-
nante, alguns jornalistas não compactuavam com os cerceamentos impos-
tos pelo regime militar.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 107


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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O discurso jornalístico de linha oficial, apresentado pelo jornal


O Rio Branco, se institui através da positividade dos enunciados, articu-
lando-se de modo a construir uma imagem simpática dos “donos do po-
der”, apresentando-os como “defensores da nação” e da ordem pública,
ao mesmo tempo em que se articula no sentido de disseminar as práticas
discursivas de exercício do poder, impondo determinados procedimentos
e silenciando os divergentes do poder político dominante.
Outra estratégia usada pelo jornal O Rio Branco consistiu na qua-
lificação “negativa” dos opositores do regime militar, como o oposto dos
líderes defensores do regime militar: o negativo, o incerto, o inimigo, o
outro, o mal. A partir desse procedimento, pretendia-se incitar certas par-
celas da população para que reagissem emotivamente contra certas ideias
e certas atividades políticas.
Em meio ao sistema de cerceamentos de direitos e controle à liber-
dade de expressão a imprensa alternativa surge desafiando o poder esta-
belecido e denunciando as situações de opressão. Adotando em sua linha
editorial a defesa dos interesses de diversos grupos e movimentos sociais,
a imprensa alternativa do Acre, teve no jornal Varadouro o espaço para
debate de ideias, fazendo circular informações que eram comumente si-
lenciadas pela imprensa de linha oficial.
Varadouro, “O Jornal das Selvas” como se autointitulava, adota-
va uma linguagem combativa e projeto gráfico peculiar. A proposta des-
te “nanico” era registrar as consequências da expansão agropecuária no
Acre, trazendo à tona as vozes dos indígenas, posseiros, seringueiros e
tantos outros excluídos socialmente. Era um jornal alternativo cuja criati-
vidade diferia dos demais pertencentes a esta categoria produzidos no res-
tante do Brasil, por manifestar em suas páginas um “jeito acreano”, tanto
do ponto de vista da linguagem quanto do próprio projeto gráfico.
O sujeito apreendido no discurso é constituído socialmente, por-
tanto, o sujeito que fala também é parte constitutiva da significação, o lu-
gar que ocupa na sociedade diz tanto quanto suas palavras. Assim, busca-
mos analisar o discurso em si, pois este é finito, disciplinador, é preciso
desconstruir o discurso dando voz aos que estão às margens, indagando
as circunstâncias em que foi produzido e detectando não só o dito, mas
principalmente, o silenciado.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 108


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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Lembrando previamente que esse trabalho não esgota os gestos de


leitura nem as possibilidades de interpretação, esperamos que as questões
aqui levantadas contribuam para a compreensão de traços que compõem
essa teia repleta de emaranhados de redes de poder, que se cruzam e en-
trecruzam chamada discurso jornalístico.

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 109


O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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Biblioteca da Ufac
Biblioteca Pública Estadual
CDIH da Ufac
Memorial dos Autonomistas
Museu da Borracha

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Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio

Maria Iracilda Gomes Cavalcante Boni-


fácio nasceu em Tarauacá - Acre. É Profes-
sora EBTT de Língua Portuguesa na Uni-
versidade Federal do Acre. Foi Campeã Na-
cional da Olimpíada de Língua Portuguesa
(2012). É esposa de Reginâmio Bonifácio
de Lima e mãe de Rafael Matias e de Sara
Raquel, companheiros de grandes aventuras
e primeiros a acreditar em suas ideias. Gra-
duou-se em Letras pela Universidade Fede-
ral do Acre, é Especialista em Cultura, Na-
tureza e Movimentos Sociais na Amazônia, Mestra em Letras: linguagem
e identidade, pela Ufac. Atualmente, é Doutoranda em Letras - Teoria
da Literatura, pela PUCRS. Participa dos Grupos de Pesquisa GECAL
(Grupo de Estudos da Educação, Cultura, Arte e Linguagem) e GESCAM
(Grupo de Estudos Socioculturais da Amazônia). Foi vencedora da eta-
pa regional do Prêmio Professores do Brasil (2018), da etapa regional da
Olimpíada de Língua Portuguesa (2010) e do I Prêmio Garibaldi Brasil
de Literatura Acreana (2008). Tem 12 livros publicados, além de diversos
capítulos de livros e artigos em periódicos indexados.

Livros publicados e/ou organizados pela autora:

Ideologia e poder: uma análise do discurso nos jornais “O Rio Branco” e “Va-
radouro” durante a Ditadura Militar (2007, 2020).

O discurso nas redes do poder: as vozes nos editoriais dos jornais “O Rio
Branco” e “Varadouro” (2010; 2020).

Literacia: ler, sonhar, viajar (2018).

Eu conto, tu contas e juntos contamos: Yo cuento, tú cuentas y juntos conta-


mos (2009; 2018).

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O Rio Branco e Varadouro durante a Ditadura Civil-Militar (1977-1981)
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Contos e poesias de minha terra (2009).

O Imaginário Social nos jornais de Rio Branco - Século XX (2007).

Habitantes e Habitat: A expansão da fronteira (2007).

Habitantes e Habitat (2007).

Sonhos em BVA (2007).

Sonhos em BVA II (2007).

Sonhos em BVA III (2008).

IDEOLOGIA E PODER: uma análise do discurso dos jornais 115


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