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A castração e o olhar : Um estudo da individuação Alberto Abuchaim

O OLHO
Um dia, disse o Olho: “Vejo, além destes vales, uma montanha velada pela
cerração azul. Não é bela?” O Ouvido pôs-se à escuta e, depois de ter escutado
atentamente algum tempo, disse: “Mas onde há qualquer montanha? Não a ouço.” Então
a Mão falou: “Estou tentando em vão senti-la ou tocá-la, e não encontro montanha
alguma.” E o Nariz disse: “Não há nenhuma montanha. Não sinto o cheiro”. Então o Olho
voltou-se para outra parte e todos começaram a conversar sobre a estranha alucinação
do Olho. E diziam: “Há qualquer coisa errada com o Olho.” (Gibran)
Agradeço, com carinho, aos meus irmãos, Jamil, Darcy e Sergio, pela visão da
Psicanálise que me transmitiram generosamente. Se Freud foi genial nas descobertas
psicológicas, não o foi menos como literato. Na sua perseverança de ver a Psicanálise
reconhecida, empenhou esforços para comprovar suas investigações e seus êxitos
clínicos, descrevendo-os minuciosamente, detendo-se nas mais simples expressões do
paciente, levantando questões que deixa sem respostas. Enfim, ele gera, desenvolver e
comprova teorias e firma a compreensão clínica. Essa conduta marcante em seus
escritos, se, por um lado, nos enriquece pelo grande aporte de conhecimentos que traz e
nos faz pensar, por outro lado, nos deixa tão completamente informados de suas idéias,
que, muitas vezes, nos imobiliza na busca de perscrutar outras idéias. Nestes trabalho,
não se pretende corrigir a compreensão dada por Freud à história e análise do Pequeno
Hans, pois sabemos que, em traços gerais, a sua com-preensão intrínseca é tão atual
como as mais atuais contribuições. O que se pretende é, usando outras formulações
teóricas (Winnicott, Mahler, Kohut, Klein, etc.), oferecer a oportunidade de repensar
conceitos psicanalíticos consagrados. Posto isso, faz-se necessária a reprodução de
alguns trechos da história do Pequeno Hans descrita por Freud que permitirá algumas
reflexões. Escreve Freud: “Os primeiros relatórios a respeito de Hans datam de um
período em que ele estava por completar três anos de idade. Naquela época, por
intermédio de várias observações e perguntas, ele demonstrava um interesse
particularmente vivo na parte do corpo que ele costumava chamar de se “pipi”. Tanto que,
certa vez, perguntou à mãe: “Hans Mamãe, você também tem um pipi? Mãe Claro. Por
quê? Hans Nada, eu só estava pensando”. Mais adiante, escreve: “Aos três anos e meio
sua mãe o viu tocar com a mão no pênis. Ameaçou-o com as palavras: Mãe Se fizer isto
de novo, vou chamar o Dr. A para cortar fora o seu pipi. Aí com o que você vai fazer pipi?
Hans Com o meu traseiro.” Lendo esses trechos, observamos que Hans encontrava-se
em busca de informações sobre a sexualidade, para entender as diferenças sexuais, em
última análise, numa tentativa de discriminar a própria sexualidade. Fazia suas tentativas
de esclarecimentos através de indagações, no que não se saía muito feliz. A resposta da
mãe, afirmando que tinha “pipi”, além de deixá-lo confuso, reforçava a sua crença numa
indiferenciação sexual. E que o leva a responder, num momento seguinte, que faria “pipi”
com o traseiro. Mais adiante, Freud escreve: “A ânsia por conhecimento parece ser
inseparável da curiosidade sexual. A curiosidade de Hans orientava-se, em particular,
para os seus pais, como se pode depreender no diálogo seguinte, ocorrido quando Hans
tinha três anos e nove meses: “Hans papai, você também tem um pipi? Pai Sim, claro.
Hans Mas nunca o vi quando você tira a roupa.” Outra ocasião, olhava insistentemente
sua mãe despida, antes de ir para a cama, quando ela perguntou: “Mãe Por que você está
olhando para mim desse modo? Hans Eu só estava olhando para ver se você também
tem um pipi. Mãe Claro Você não sabia? Hans Não. Pensei que você era tão grande que
tinha um pipi igual ao de um cavalo.” O Pequeno Hans permanece confuso. Sua hipótese
de que os pais deveriam ter pênis igual ao de um cavalo dificulta-o a ver claramente o
pênis do pai e a ausência deste na mãe, por esta continuar afirmando que possuía um
pênis também. A sua crença de que os seres animados se distinguiam dos seres

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inanimados pela presença do pipi, reforçada pela mãe, fazia que visse um pipi bem
pequenininho na irmã recém-nascida, o que o levou a dizer: “Quando ela crescer, ele vai
ficar bem maior:” No desenrolar, Hans continuou negando as diferenças sexuais até o
momento descrito por Freud: “Hans (quatro anos e meio) estava novamente vendo darem
banho em sua irmãzinha, estão começou a rir. Ao lhe perguntarem por que ria, responde:
“Estou rindo do pipi de Hanna. Por quê? Porque o seu pipi é tão bonito.” “Naturalmente
sua resposta não era sincera. Na realidade, o pipi de Hans parecia-lhe engraçado.
Ademais, foi nessa oportunidade que Hans reconheceu a existência de diferenças entre
os genitais masculinos e femininos.” Posteriormente a isso, aos quatro anos e nove
meses, desencadeia-se o quadro fóbico de Hans. O processo fóbico se desenrola e, na
análise, uma série de emergentes conflituosos vão surgindo, alcançando o êxito
terapêutico quando Hans, finalmente, aceita sua identidade masculina abrindo mão de
sua teoria fantasiosa de que tinha capacidade de gerar filhos. É oportuno considerar que
o ser humano, no seu desenvolvimento biológico, inicialmente não teria diferenciação
sexual morfológica, e que no transcurso do desenvolvimento embrionário são
determinados caminhos diferentes, legitimando os sexos. Portanto, na evolução biológica
natural, não haveria lugar para um sentimento de “perda.” Não se pode perder aquilo que
nunca se teve, mas, na comparação, o que se pode sentir é um sentimento de “falta”,
percepção que determina a diferença entre um e outro ser. Na verdade, não há “perda”,
nem “falta”, mas somente diferenciação do sexos. Embora o sentimento legítimo que
emerge é o de estar incompleto, nunca o de ter sido castrado. Hans, na sua busca
através de indagações, manteve-se confuso, ao ponto de Freud registrar:... “Ele
expressou repetidamente, tanto para o seu pai como para sua mãe, seu pesar por nunca
ter visto seus pipis, e foi a necessidade de fazer comparação que o impeliu a fazer isso.”
As respostas da mãe o faziam imaginá-la um “ser completo”, imaginar mais que ele iria se
completar quando crescesse, assim como a irmãzinha, cujo “pipi” iria crescer. Nos raros
momentos em que visualizara os genitais dos pais, sempre protestara. Havia um
sentimento de que faltava alguma coisa. As ansiedades fóbicas desapareceram quando
Hans aceitou a diferenciação sexual era um ser completo como o pai. É ocasião de trazer,
agora, o relato de uma pessoa paciente que vinha analisando sua sexualidade. Contou
que, quando tinha mais ou menos seis anos, olhava para sua vagina, o que era fácil, pois
não tinha pêlos pubianos. Via, entre os pequenos lábios, o clitóris e pensava que ele iria
crescer, acreditando que aumentaria seu tamanho conforme o desenvolvimento de seu
corpo. Por vezes, comparava o tamanho de seu clitóris com o de sua amiguinha, na
expectativa de perceber, num momento, que o seu crescera. Relatava que nunca havia
tido sentimentos de “perdas de pênis”, mas que tinha a sensação de que este ainda não
se desenvolvera, não que houvesse sido cortado, mas sim que “faltava”. Percebe-se que
Hans e a paciente, então menina, compartilhavam a mesma fantasia de certa forma, pois
negaram as diferença sexuais para não serem obrigados a encerar o que lhes faltava,
porque isso os levaria à necessidade de busca de outro objeto para complementá-los,
situação muito perigosa no caso de Hans, já que tinha de competir com o pai na busca do
desejado, porém fica claro que a ansiedade mais profunda centrava-se na certeza da
“falta” de sua capacidade de gerar filhos.
Sob esse ponto de vista, o sentimento ou angústia de castração não está
relacionado a uma sensação ou temor de “perda”, mas à comparação na realidade de
“falta”, gerando uma necessidade de complementação e a busca de outro ser que lhe
permitirá o alívio dessa necessidade e a própria integração da emoção-afeto-corpo. Isso
se refere a um sentimento de ausência, aqui usado no sentido de “falta”, uma vez que não
se pode ter a sensação do ausente, se não experimenta a existência real. Assim, a
vivência de necessidade de complementação psicocorporal cria um reconhecimento mais
de “falta” do que de “perda” do pipi ou da vagina. A propósito, ilustrativa é a vinheta

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contada por uma paciente, participante de conversa entre uma menina de três anos e
outra com pouco mais de quatro anos, quando lhe foi perguntado: Menina de três anos
dirigindo-se à paciente: Menina Por que você não namora seu o seu pai? Paciente Ele já
tem namorada. É ,minha mãe. Menina de três anos Tira o “pipi”dele e põe em ti. Menina
de quatro anos Pega o “tico” dele e põe em ti e vira homem. Menina de três anos Põe na
tua “chereca” o “tico” dele e fica para ti. Paciente Sou mulher, não adianta ficar com o
“tico” dele. Menina de quatro anos Pega o “tico”, tira todas as coisas e põe dentro de ti e
vira homem. Com esse exemplo, fica claro o desejo de complementação de incorporar um
pênis e suprir a falta que sentem. É de se considerar que, sob um ponto de vista muito
particular, a castração não é vivida pela criança como “perda”, mas que o sentimento está
ligado à “falta”, pois não se pode perder o que nunca foi possuído. Também se deve
observar que o processo discriminatório da identidade sexual leva meninos e meninas a
um sentimento de “falta” que os impede de ter o sentimento de complementação e
inteireza, na fantasia ou na realidade, para encontrar a integração emoção-afeto-corpo.
Tudo isso leva à reflexão da importância do olhar em todo processo de individuação e
discriminação sexual. Convém ressaltar que a importância do olhar na vida afetiva dos
indivíduos vai além da concreta discriminação corporal e sexual, pois há um inverso de
possibilidades de comunicação entre as pessoas através do olhar. É oportuna a
reprodução de trecho da sessão de uma paciente, que, referindo-se a um encontro com
um homem que interessava, diz: “Estávamos nos olhando, eu via tanta coisa no seu olhar,
que me dava uma sensação, não era tesão, era uma sensação muito difusa, que me fazia
desejar estar sós com ele, para ter a certeza de que o que eu entendia no seu olhar era
verdade e de que estava entendendo o que eu queria expressar no meu olhar”. É raro
encontrar na idade adulta descrição tão clara de um acontecimento evolutivo próprio da
relação mãe-bebê, fase de compreensão sem palavras, em que o olhar é a via principal
de relacionamento e individualização. Voltando ao Pequeno Hans, fizemo-nos no ponto
em que Freud diz que Hans estava muito pesaroso por não ver os órgãos genitais dos
pais. Na realidade, a visão dos genitais tornava-se uma necessidade no sentido de que
Hans pudesse encontrar a sua própria identidade sexual, por comparação, estabelecer a
sua individuação e delimitação do seu esquema corporal, pois confundia seu esquema
corpóreo com o corpo da mãe. Na realidade, favorece esse tipo de confusão, tanto no
menino como na menina, a ausência de seios nas crianças, o que os leva à crença de
que, com seu crescimento, haverá desenvolvimento do pênis na menina e o dos seios no
menino. Passamos a relatar um exemplo, ouvido de uma paciente, a respeito de seu filho
de três anos de idade. Contava a mãe que o menino freqüentemente lhe mostrava o pipi,
pedindo que ela o segurasse. Certa ocasião, ele beijou e chupou os seus da mãe e
solicitou que ela fizesse o mesmo, oferecendo, como peito, o seu pipi. Pode-se ver que
existe uma indiferenciação entre o pênis e o seio. Os dois são objetos de amos e de
prazer. Esse fato ilustra a falta de confirmação do olhar e do enxergar confunde e leva as
meninas a vicissitudes diferentes, pois necessitam perscrutar o futuro para se delinearem
sexualmente com seios que, na verdade, são correspondentes corporais da sua
capacidade de gerar bebês. Essa sensação de falta é que leva as meninas a um
sentimento de desvantagem e, muitas vezes, a manifestarem o desejo de possuir um
pênis (não destruí-lo), pois têm dificuldade de diferenciar-se como pessoa e sexualmente,
pois não conseguem envergar, ainda, o seu esquema corporal completo. Chamar a isto
“inveja do pênis” parece questionável, pois, na verdade, trata-se de uma defesa contra
uma angústia mais profunda, desencadeada pela ausência de seios e pela interrogação
sobre a sua capacidade de gerar filhos. A menina, ao fazer fantasia com pênis masculino,
nada mais faz do que uma busca, na tentativa de individuar-se, mesmo através do oposto,
querendo, com isso, discriminar-se, conquistar sua inteireza e identidade. Parece ter
ficado clara a importância que acreditamos ter o olhar, desde o nascimento, na

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discriminação da realidade externa (objetos) e principalmente na diferenciação do próprio
“self” na delimitação do esquema corporal e, conseqüentemente, na identidade sexual.
Talvez se possa compreender por que Édipo, ao tomar conhecimento de suas relações
incestuosas, vaza seus olhos como forma de castigo. Na verdade, com isso perde a
possibilidade de confirmar o seu “self”, impossibilitado que fica de discriminar a si e ao
objeto, ao mesmo tempo que abandona a capacidade de expressar a captar, através dos
olhos, os desejos incestuosos que o uniam à mãe. Não enxergar fora, simbolicamente, é
uma tentativa frustada de não enxergar dentro. Ao vazar os olhos, Édipo busca a morte
psicológica (castração). Ressaltando a importância do ver e ser visto na vida emocional,
furta-se da tentação e da visão do desejo da mãe e da censura externa aos seus atos,
retirando-se para o seu mundo interno e suas próprias críticas, julgando, dessa forma,
como os neuróticos, que será mais belevolente consigo. Em realidade, a morte
psicológica é castigo menor que a morte biológica. Negar o próprio “self” é negar os
objetos através da cegueira, assemelha-se à morte biológica de não mais ver e sentir o
mundo. Com isso, assinala-se que a percepção entre a vida e a morte ainda é uma
função do olhar. A visualidade da morte leva-nos a um processo de discriminação
pessoal, o qual nos confere um sentimento de vitalidade e individuação. Reconhecendo-a,
o indivíduo é levado a enxergá-la dentro de si. A visão do morto rompe com a negação
mais importante e universal: a finitude do homem. O próprio Freud, embora tenha
formulado a teoria do instinto de morte, nega a existência da percepção (representação
inconsciente) da própria morte, como a maioria dos psicanalistas que não aceitam a
existência dos instintos de morte e, com isso deixam de analisar e tratar com os paciente
os temores de morte biológica, mantendo-se piedosamente (consigo mesmo)
interpretando os temores de morte psicológica (castração). Talvez o “santuário do ser
inviolável” de Winnicott e a idéia de “análise interminável” estejam relacionados com a
necessidade de as pessoas acreditarem na eternização da vida, não indo ao encontro do
inevitável, que é a aceitação do ciclo biológico, por todos os meios evitado de ser
enxergado. Finalmente, é oportuno lembrar que a pessoa precisa discriminar-se das
demais para ter a sensação de inteireza, da sua medida e de sua capacidade. Uma
pessoa com a sensação de indiferenciação discriminatória não poderá ter sensação de
existir, de ter posse de si mesma na administração dos seus bens internos, na
singularidade de suas vivências e individuação pessoal. Assim, seria como olharmos um
canteiro cheio de flores com uma visão compacta do todo, não discriminando a
individualidade e os matizes particulares de cada planta ou flor. É necessário que o ser
humano enxergue-se, para tomar posse de si, condição para bem se administrar e
conquistar sua inteireza, identidade e legitimidade pessoal.

RESUMO Na presente comunicação, o autor se reporta a uma passagem do


“Pequeno Hans”, (Freud) e desenvolve, com exemplos clínicos, um estudo sobre
castração, em “Édipo”, e assinala o olhar como fator fundamental, dentro da evolução
humana, na busca de uma identidade/individuação, do nascer à morte. Sob sua ótica, na
experiência clínica, sugere que a castração não se faz por vivência de perda, mas pela
sensação de falta, e que a diferenciação sexual nas crianças se dá por comparação e
discriminação pela confirmação do olhar, o qual considera preponderante no ciclo
psicobiológico. Dentro dessa perspectiva, busca, no mito de Édipo, um reforço para
questionamentos, porquanto Édipo vaza os olhos, conservando os genitais. Nesse
estudo, reavalia o “enxergar-se” em Winnicott ( entre mãe e bebê). Prosseguindo em seu
estudo sobre o olhar, levanta questão acerca da inveja do pênis, ilustrando com material
clínico e indagando se a inveja do pênis não seria o “apossar-se” (não danificar) de uma
identidade do sexo oposto para sentir-se inteiro, com valor próprio e complementar de
uma identidade sexual, mesmo que ilegítima. Refere-se, a um último momento, a vivência

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de discriminação pessoal, à qual confere um sentimento de vitalidade e individuação,
instante em que a morte é vista fora. Assim, reconhecendo-a, o indivíduo busca enxergá-
la dentro de si. A propósito, faz considerações das dificuldades de a morte ser encarada
como pertinente à vida, deixando-se de analisar a morte biológica e interpretando-se não
mais que a morte psicológica (castração). Lembra, ainda, “o santuário do ser, inviolável e
para sempre oculto no nosso cerne” (Winnicott) e a “análise interminável”, relacionando
esses temas, insuficientemente questionados, como aquilo que é difícil de ser
completado: enxergar a aceitar o que nunca se completa e sempre faltará a eternização
da vida.

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