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Política, religião, revolução e soberania em Reflexões

sobre a revolução em França do conservador E. Burke


Raquel Kritsch*

Resumo: O objetivo deste artigo é introduzir ao leitor o pensamento


político de Edmund Burke, um dos nomes mais influentes do
pensamento político conservador. A partir de uma breve
contextualização da crítica burkeana ao racionalismo iluminista, o
artigo procura mostrar como o autor organiza conceitos centrais de
sua teoria política, como poder, legitimidade, conservação, correção,
preconceito, prescrição, num discurso articulado e coerente, com o
objetivo de sustentar que na Inglaterra política e religião constituem,
juntas, não só a base não só da prosperidade do povo mas também
o fundamento do Estado. Em seguida, aborda-se a crítica de Burke à
Revolução Francesa, à “psicologia dos revolucionários” e, de
maneira mais detida, aos direitos do homem, discutindo alguns de
seus argumentos contra as abstrações distanciadas das práticas
concretas dos coletivos humanos e a transformação da metafísica
moderna num programa político.
Palavras-chave: Burke; teoria política; história do pensamento
político; teoria do Estado.

*
RAQUEL KRITSCH é Professora de Ciência Política junto ao Departamento e ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Este
trabalho vincula-se ao projeto de pesquisa intitulado “Direitos humanos universais e Estados
nacionais: fundamentos históricos e problemas teóricos II”, financiado pelo CNPq e apoiado
pela UEL, e desenvolvido junto ao Grupo "Estudos em Teoria Política" (GETEPOL–CNPq), do
qual é coordenadora.

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I. Uma posição fundada no liberdade de consciência em
método: Burke a crítica ao assuntos religiosos; segundo, o
racionalismo direito de resistir ao poder em caso
de abuso; terceiro, o direito de
O mais conhecido livro do pensador escolher nossos governantes, de
político irlandês Edmund Burke depô-los por má conduta e de
(1729-1797), Reflexões sobre a organizar um governo para nós
Revolução em França, foi publicado mesmos”. Não fosse tudo isso
em 1790, antes portanto da verdadeiro, escrevia Price (1991:
completa derrocada da monarquia 189-90), “a Revolução teria sido não
francesa. Seu objetivo era, antes de uma afirmação, mas uma invasão
tudo, criticar os defensores ingleses de direitos; não uma revolução, mas
da Revolução Francesa, entre os uma rebelião”.
quais estava o pastor
dissidente da Igreja No mesmo sermão, o
Anglicana e filósofo teólogo deu graças
Richard Price (1723- por ter não só
91), defensor da recebido os
liberdade de benefícios da
pensamento e do liberdade inglesa,
ideal do governo do mas também por ter
povo pelo povo, que vivido o bastante para
encarnou como assistir a duas outras
poucos a união do grandes revoluções,
Iluminismo com o “ambas gloriosas”, a
Cristianismo. As americana e a
Reflexões são francesa. “Tremei,
apresentadas opressores do
inicialmente como mundo”, exclama o
resposta a um pastor no final da
sermão, de 4 de pregação. “Não
novembro de 1789, podeis manter o
feito pelo pregador mundo nas trevas.
por ocasião da Não luteis mais contra
comemoração do a luz e a liberalidade
centenário da crescentes. Restaurai
Revolução Inglesa, no qual Price a humanidade em seus direitos e
exaltara a luta dos revolucionários consenti na correção de abusos,
franceses. antes de serdes, vós e eles,
destruídos” (1991: 196).
Segundo os comentários de Price a
respeito da Revolução Americana O ataque de Burke nas Reflexões,
de 1776, da Revolução Inglesa de entretanto, não mirava apenas o
1688/89 e da Revolução Francesa pastor Price: conhecido pelo seu
de 1789, três princípios, que proclamado horror às abstrações,
marcariam a idéia de liberdade Burke foi autor de um dos mais
entendida como autogoverno, duros julgamentos do racionalismo
teriam fundado a Revolução iluminista à sua época. Embora seu
Inglesa: “Primeiro, o direito à texto fosse uma crítica voltada

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diretamente para os recentes As influências filosóficas
episódios da Revolução Francesa, assimiladas por Burke têm sido
suas idéias acabariam sendo examinadas por vários
incorporadas por correntes políticas comentadores. Como defensor da
das mais diversas, como pelos Revolução Gloriosa de 1688, ele se
contra-revolucionários franceses, fez, até certo ponto, um herdeiro de
pelo romantismo político alemão ou Locke. Sua fidelidade ao
ainda pelo conservadorismo liberal pensamento lockiano, porém, foi
na Inglaterra. extremamente limitada. Suas
Burke era um Whig — isto é, um críticas à política do rei Jaime II em
grande parte reproduzem as de
membro do partido liberal inglês, de
base aristocrática, mas que se Locke. Mas a distância entre ambos
é imensa quando se trata de
opunha à restauração monárquica e
ao poder absoluto do rei —, assuntos como a soberania do povo
ou a noção de direito natural (cf.
reconhecido como um engajado
defensor das causas Kritsch, 2010;
Cobban, 1929).
do liberalismo inglês,
pelas quais lutou Outra influência
perceptível,
ardorosamente como
membro do apontada por
Parlamento inglês historiadores do
entre 1765 e 1780. pensamento político,
Mas, ao invés de se como Alfred Cobban
entusiasmar com a e Harold Laski, é a
Revolução em do escocês David
França, como tantos Hume. A crítica da
liberais da época, metafísica, a
Burke se insurgiu valorização da
com veemência experiência como
contra o episódio fonte de
conhecimento e a
histórico. Idéias
como direito e indicação das
paixões, e não da
liberdade nada
significam, insistia ele, se não forem razão, como fonte dos sentimentos
morais aproximam os dois autores.
associadas a situações concretas.
As circunstâncias para sua Ou, ainda, como afirma Laski,
afirmação são dadas na história e “A metafísica de Burke — tanto
só em relação a elas pode o político quanto se pode usar um termo
exercitar seus dotes de prudência e que ele teria repudiado — é, em
de habilidade1. grande medida, a de Hume. O
lugar do hábito e do instinto
social, ao lado do
consentimento, a percepção de
1
“Nenhum político pode criar uma que a razão, só, não bastará
situação”, escreveu numa carta de 1793. para explicar os fatos políticos,
“Sua habilidade consiste em bem jogar a a ênfase na resistência como
partida posta diante dele pela fortuna, e em
seguir as indicações dadas pela natureza,
pelo tempo e pelas circunstâncias”. Carta 1793 (cf. Canavam, in: Kramnick, 1969:
de Burke a G. Elliot em 22 de setembro de 268).

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último recurso, a negação de há nenhuma palavra, nenhuma
que a lealdade seja mero alusão que se relacione a um
contrato a ser atualmente direito geral de escolher nossos
explicado, o profundo respeito próprios governantes, de depô-
pela ordem — tudo isso, enfim, los por indignidade e de
é o tecido de que é feito o estabelecer um governo para
pensamento de Burke” (Laski, nós mesmos” (Burke, 1982: 57).
1950: 105).
Quanto ao reconhecimento do rei
Os vínculos pessoais entre Burke, Guilherme, “foi um ato ditado pela
Hume e Adam Smith, além de tudo, necessidade — no mais estrito
devem ter favorecido as trocas de sentido moral que esta palavra
idéias. Smith, com nítido exagero, possa ter”. Tratou-se, de acordo
chegou a falar de Burke como o com Burke, não propriamente de
leitor que mais claramente havia uma escolha do Parlamento, mas
entendido suas idéias econômicas. de um ato destinado a evitar ou a
Sem aprofundar o exame destes volta do rei Jaime ou a precipitação
vínculos, convém recordá-los, no da pátria, da religião, das leis e das
entanto, pelo menos como pontos liberdades “nos perigos dos quais
de referência para uma acabavam de sair”. Passada a
aproximação de sua forma de emergência, porém, o Parlamento
pensar. O recurso a princípios, ou a nada estabeleceu sobre o suposto
idéias gerais, aparece apenas direito popular de escolher o rei.
gradativamente ao longo das Limitou-se a indicar com precisão
Reflexões. Se Burke recorre, de “quem, na linha protestante, deveria
algum modo, a princípios para herdar a coroa”. A ascensão de
diferenciar a Revolução Francesa Guilherme, portanto, não foi mais do
das revoluções ocorridas na que “um pequeno e temporário
Inglaterra e na América, isso não se desvio na ordem da sucessão
dá, no entanto, senão depois de hereditária regular” (Burke, 1982:
algum desenvolvimento da 58).
argumentação. A crítica às posições
de Price é construída, de início, II. Conceitos fundantes e a
apenas com base em dados, ou primazia da religião no
pelo menos, com base no que pensamento político burkeano
Burke admite como informações
históricas. Por exemplo: em nenhum Ao mencionar as liberdades, na
momento, segundo ele, o povo da passagem acima, de que tratava
Inglaterra escolheu, de fato, o Burke? Das liberdades inglesas, e
sucessor de Jaime II. não de direitos considerados em
sentido genérico. Ele assumiu a
“Se os princípios da Revolução mesma perspectiva ao discutir a
estão inscritos em algum lugar, questão das colônias na América. A
certamente, este lugar será o tentativa recente da coroa inglesa
estatuto chamado Declaração
de Direitos. Nesta declaração
de impor mais tributos aos colonos,
cheia de sabedoria, moderação sem consulta à vontade dos
e prudência, elaborada por contribuintes, violava, segundo
grandes juristas e grandes Burke (1913: 476), um valor bem
estadistas, e não por mornos e característico dos ingleses. A
inexperientes entusiastas, não liberdade sempre se refere a algum

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objeto bem definido e, no caso da título, exerçam uma autoridade
Inglaterra, a questão dos impostos no Estado” (1982: 60).
foi sempre um tema privilegiado
Sem a distinção entre competência
quando se tratou de afirmar os
e poder, “as leis nada mais seriam
direitos dos súditos. Os colonos
que injunções da força vitoriosa”,
protestavam, portanto, em nome de
que a mera destruição levada a
uma liberdade caracteristicamente
cabo pela vontade do mais forte.
inglesa. O erro dos políticos
Essa competência é definida na
ingleses consistia, assim, em negar
Constituição. Em defesa dessa
aos americanos o reconhecimento
Constituição os ingleses depuseram
de seus direitos de súditos. Em
o rei Jaime II em 1688. Em nome
princípio, isso representaria um
dela, Burke se opôs à tributação
risco político para os próprios
arbitrária dos colonos. Os
ingleses: “Para provar que os
americanos de 1775/76 e os
americanos não têm direito a suas
rebeldes ingleses de 1688
liberdades, ameaçamos, a cada dia,
defendiam os mesmos princípios e
subverter as máximas que
lutavam pela manutenção do
preservam todo o espírito das
espírito de uma política, não pela
nossas” (idem).
destruição do Estado.
Esta idéia de “espírito” das Não destruir não significa, em
liberdades e das instituições é Burke, não mudar. Um Estado só se
fundamental no pensamento político mantém pela conjugação de dois
de Burke. É esse o grande limite princípios, o da conservação e o da
observado por quem exerce correção. Ambos “agiram
legitimamente o poder. Segundo fortemente nos dois períodos
ele, isso explicaria por que o críticos da Restauração e da
Parlamento, no tempo da revolução, Revolução, quando a Inglaterra se
não introduziu as mudanças encontrou sem rei”, escreve Burke.
imaginadas pelo pastor Price e seus “Em cada um destes dois períodos,
adeptos: o fator de união do velho edifício
“É difícil, talvez impossível, nacional foi rompido; nem por isso a
estabelecer limites à nação destruiu todo o edifício. Ao
competência puramente contrário, empregaram-se as partes
abstrata do poder supremo, tal da antiga Constituição que nada
qual o exercido pelo Parlamento tinham sofrido na regeneração
nessa época; não é menos daquela que faltava” (1982: 61).
verdade que os limites da
competência moral — que A boa mudança é, portanto, para
mesmo num poder mais Burke, sinônimo de correção. Tentar
indiscutivelmente soberano quebrar a continuidade da história é
subordinam as vontades de um sempre, segundo ele, uma aventura
dia a uma razão permanente, às perigosa. Não se pode pulverizar as
máximas fixas da boa fé, da
justiça e das regras
instituições, negar os costumes,
fundamentais da política — que tomar os homens como moléculas e
estes limites, dizia eu, são produzir novas combinações, a
perfeitamente discernidos e partir das idéias de um filósofo.
observados pelos que, sob Nenhuma sabedoria pode substituir
qualquer nome ou a qualquer a experiência acumulada por um

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povo ao longo de gerações. A idéia poderia chamar a sociologia política
de acumulação utilizada aqui é de Burke. Encerra a negação de
precisa. Referindo-se à posição que se possa conhecer os homens
mais comum dos ingleses, Burke fora da história de cada povo.
explica ao aristocrata francês: No plano jurídico, Burke utiliza o
“Receamos deixar que os homens conceito de prescrição para
vivam e transacionem apenas com explicar a legitimação das normas.
base no estoque de razão de cada Há uma correspondência entre os
um, pois suspeitamos que esse dois conceitos. Um se refere às
estoque, em cada homem, seja crenças e costumes que, por assim
pequeno, e que os indivíduos dizer, recheiam os homens
agiriam melhor se recorressem ao concretos e dirigem a maior parte
banco e ao capital gerais das de seus atos. Outro se refere ao
nações e dos séculos” (1982: 108). processo pelo qual uma lei se
A sabedoria acumulada, que legitima aos olhos de todos e passa
permite aos homens tomar a fazer parte, também, da vida
decisões, na maior parte da vida, cotidiana dos Estados. É famoso o
sem ter de parar para refletir, é o discurso em que ele menciona a
preconceito — Constituição
uma noção inglesa como
fundamental ao “prescritiva”, com
pensamento uma autoridade
conservador. Este resultante somente
faz da virtude um de “ter existido
hábito, e não “uma desde tempos
série de atos imemoriais”. Não
desconexos”. Por bastasse isso, há
meio do ainda o pendor
preconceito, natural dos seres
afirmava Burke humanos à fé
(idem), “o dever de cada um se religiosa que, muito mais do que
torna parte de sua natureza”. contrapor-se à política, deve ser-lhe
Fundamental, para ele, é a idéia de complementar.
não serem os homens passíveis de
serem esvaziados, de um momento A religião pode ser considerada a
para outro, e recheados com base da sociedade civil e a fonte de
valores novos criados na todo bem e de toda felicidade dos
escrivaninha de um autor político: homens, declara Burke (1982: 112-
“Não fomos preparados e fixados de 3): ela é essa verdade essa que
modo que sejamos recheados, sentimos interiormente. O homem é,
como pássaros embalsamados de por natureza, um animal religioso; o
museus, com farelos e trapos e ateísmo não só é contra a razão,
pedaços miseráveis de papel sujo mas é contrário aos nossos instintos
sobre os direitos do homem” (1982: mais elementares. A religião é não
107). Ele se refere aos ingleses, só a fonte de nossa glória e do
mas a observação tem sentido mais nosso orgulho, isto é, é a fonte da
amplo. A idéia de preconceito é um glória e do orgulho dos ingleses,
elemento fundamental do que se mas é também fonte de grande

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civilização entre nós e de muitas príncipe, avisa ele. Pois os príncipes
outras nações, reivindica Burke. são homens que têm mandatos
ditados por Deus para cumprir,
Para demonstrar a relevância de tal
razão pela qual detêm sozinhos a
instituição, a religião, Burke propõe
soberania e devem poder utilizar
examinar a ordenação eclesiástica
todos os instrumentos necessários
inglesa e o seu papel na construção
para que possam realizar as tarefas
do Estado. A Igreja anglicana,
para as quais existem, isto é, para
sustenta ele, é o primeiro dos
que possam alcançar os fins úteis à
preconceitos (ou dos conceitos
nação. Contudo, mesmo sendo um
primários) dos ingleses. Consiste
poder supremo, o poder dos
num conceito profundo, que envolve
príncipes também tem de respeitar
grande sabedoria e que, no espírito
certas fronteiras e observar certos
dos ingleses, é o começo, o meio e
o fim de tudo. Esse sentimento limites. E o grande limite a ser
observado por quem exerce
religioso construiu, como um sábio
legitimamente o poder, afirma Burke
arquiteto, não só o belo edifício do
(1982: 114) numa formulação que
Estado, mas também preservou
lembra Maquiavel e Montesquieu
essa estrutura estatal da usurpação
(cf. Kritsch: 2011), é o respeito ao
e da ruína.
“espírito” das
A elevação moral, a liberdades e das
distinção e a instituições de um
grandeza de povo. Isto é, o
espírito exigida e limite estaria no
cultivada pela espírito, nas
Igreja inglesa tradições e
consagrou a instituições daquele
república e também povo sobre o qual
dignificou a se exerce o poder.
qualidade moral
dos homens que nela exercem A ligação entre religião e política,
funções relevantes, afirma Burke entre Igreja e Estado é, portanto, no
(1982: 113). E isto porque a religião raciocínio de Burke, inerente ao
incutiu nesses homens de governo sistema político inglês. A instituição
princípios elevados e sublimes, que religiosa na Inglaterra não é um
asseguram a sua boa condução nos acessório do Estado, como querem
assuntos do Estado, dado que estes muitos franceses, protesta ele, e
homens públicos estão imbuídos da sim a Igreja é uma parte essencial
idéia de que são meros da estrutura estatal. Não é uma
mandatários, meros executores que, coisa descartável que foi agregada
no final do percurso, terão de ao Estado por uma simples questão
prestar contas de seus atos de comodidade e que amanhã pode
enquanto seres humanos a Deus, o ser recusada ou desprezada: o povo
grande autor e o grande fundador inglês considera a religião e a Igreja
da sociedade. o fundamento da constituição da
nação. A religião está
Mas um tal princípio moral, o da umbilicalmente ligada às leis que
religião, deve estar ainda mais regem o povo inglês, para o qual
arraigado no povo do que num Igreja e Estado são idéias

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inseparáveis. A Igreja não só educa uma situação florescente
os jovens e os futuros governantes quando a Revolução Francesa
do país, sustenta Burke (1982: 118), foi consumada. Quanto daquela
como ainda guarda e aperfeiçoa o prosperidade não se deveu ao
espírito de nossos costumes e
patrimônio da ciência, da arte e da
opiniões antigas não é fácil
literatura: por meio dela, o antigo é
dizer; mas, como tais causas
sempre aperfeiçoado e serve como não podem ter sido indiferentes
exemplo para o futuro. As a seus efeitos, deve-se presumir
transformações ocorrem assim, na que, no todo, tiveram uma ação
Inglaterra, de maneira gradual e benfazeja” (1982: 102).
equilibrada, sem qualquer ruptura
brusca e desnecessária. Essencialmente, a Revolução
Francesa é condenada por Burke
III. Dos riscos da abstração por ser apenas uma destruição
dissociada da empiria: a crítica injustificável. Em torno desta idéia
burkeana à Revolução central, porém, a autor distribui
Francesa, à ‘psicologia dos comentários a respeito da
revolucionários’ e aos direitos brutalidade dos revolucionários, das
do homem qualidades — medíocres, segundo
ele — dos membros da Assembléia
Os problemas que os franceses Nacional e dos erros políticos e
agora enfrentavam deitavam raízes administrativos cometidos desde o
precisamente aí: os revolucionários primeiro instante pelos líderes do
franceses, segundo Burke, tentaram movimento. Ele se estende
fazer tabula rasa da história e especialmente na descrição
reconstruir a sociedade como num apaixonada do “espetáculo atroz de
rearranjo de moléculas. Por isso, a 6 de outubro de 1789”, quando o
sua revolução era antinatural e seu palácio real foi atacado, a guarda
sentido simetricamente oposto ao massacrada e o rei e a rainha
das revoluções inglesa e americana. conduzidos a Paris. Embora se dirija
A crítica à pretensão de reconstruir a um aristocrata francês, como se
a sociedade a partir de um plano, as Reflexões fossem uma carta, a
como se o passado fosse maioria de seus comentários têm
descartável, resume, no essencial, a como alvo, de fato, o pastor Price e
condenação por Burke do seus companheiros ingleses. Era
racionalismo político, isto é, da preciso proteger a Inglaterra, e, se
reflexão política divorciada da possível, toda a Europa do contágio
compreensão das paixões e dos da Revolução Francesa.
valores dominantes em cada povo.
Nas palavras do autor: A psicologia dos revolucionários,
escreve Burke (1982: 88), resume-
“É impossível estimar a perda se ao lema “é preciso que destruam
que resulta da supressão dos alguma coisa”: os revolucionários
antigos costumes e regras de
vida. A partir desse momento
têm a necessidade de destruir as
não há bússola que nos guie, coisas existentes. E se não o fazem,
nem temos meios de saber a provoca o irlandês, as suas vidas
qual porto nos dirigimos. A parecem não ter propósito algum.
Europa, considerada em seu Uns deles querem destruir o poder
conjunto, estava sem dúvida em civil, o Estado. E para fazer isso,

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acham que têm de destruir primeiro O confisco representava, para
o poder eclesiástico (a Igreja). Burke, uma abertura de caminho
Outros acreditam que é preciso para toda espécie de violações e
destruir a Igreja e que, para isso, para a desestruturação da
deve-se começar abolindo o poder sociedade. A Assembléia Nacional,
civil, isto é, abolindo o Estado. Tais segundo ele, era o grande agente
idéias absurdas os impede de destruidor. O arbítrio, porém, não se
verem as coisas com mais clareza: exercia de forma indiscriminada. O
enquanto os revolucionários único ato do regime anterior
enxergarem a Igreja e o Estado convalidado pela Assembléia,
como algo ilegítimo e usurpador, provoca Burke, foi o endividamento
enquanto estiverem possuídos por do Estado, um ato da “mais
tais idéias, é inútil tentar lhes falar duvidosa legitimidade”. O confisco
sobre constituição, ancestrais, se justificou, assim, pela
estabilidade legal e todas aquelas necessidade de pagar aos credores
coisas cujos méritos a longa do Tesouro público, os financistas.
experiência confirmou e o povo A nova política, portanto, era parte
aprovou, e que são a base da do conflito entre os “interesses do
prosperidade nacional inglesa. capital” (identificados por Burke
como interesses financeiros) e os
“interesses fundiários” típicos da
Burke pode ter errado inteiramente, nobreza.
como diz Laski (1950), ao julgar o A serviço dos financistas,
sentido histórico da Revolução; mas mobilizando a opinião pública a seu
percebeu com clareza as favor, estariam os escritores
dificuldades imediatas e o risco de políticos, os “letrados, desejosos de
avolumar-se a violência. Todas as distinção”: “Todo o ódio contra a
suas avaliações apontaram na riqueza e o poder foi artificialmente
direção do terror, que se instalaria dirigido, pelos detentores do capital,
em pouco tempo. Quanto à contra outros tipos de riqueza”
condenação dos revolucionários, (1982: 127-8). O confisco, portanto,
baseou-se, em primeiro lugar, na foi um ato político de atendimento a
idéia de que a revolta contra o interesses privados, à custa de
regime foi desnecessária. Os reis outros interesses não só privados
não eram “tiranos inexoráveis e mas fundamentais na constituição
cruéis”, a monarquia absoluta já se da sociedade. Se o Estado se
havia extinguido, pacificamente, e, tornou insolvente, o problema era
além disso, clero e nobreza haviam dos credores, que emprestaram
renunciado aos privilégios em com imprudência, e não de quem
matéria de impostos, sustentava não participou do negócio com o
Burke (1982: 105; 143). Para Tesouro: “Os direitos dos cidadãos
completar, a situação financeira, são anteriores a qualquer outra
segundo o autor (1982: 131), não coisa. As fortunas dos particulares,
era tão ruim quanto se dizia e, adquiridas por compra, herança ou
portanto, as necessidades do participação nos bens de uma
Tesouro não poderiam ser comunidade, não fazem parte das
invocadas para justificar o confisco garantias que implícita ou
de terras. explicitamente foram dadas aos

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credores públicos: esses nem ou características de povos ou
mesmo poderiam pensar nisso nações (por isso Burke tratou, por
quando do contrato” (1982: 124). exemplo, de liberdades inglesas); 3)
que direitos acabam sendo todas as
Pode parecer surpreendente essa
vantagens para as quais foi criada a
referência a direitos dos cidadãos (e
sociedade civil.
não do homem, note-se bem) como
“anteriores a qualquer outra coisa”, Se a existência concreta dos
especialmente porque Burke se direitos depende da limitação dos
recusa, de forma explícita, a discutir “plenos direitos” naturais, “toda a
essa questão em abstrato. Ele não organização governamental se torna
os discute, de fato, dessa maneira. uma questão de conveniência”
Mas a noção de direitos é (idem). Por isso, Burke não assume
fundamental para se entender sua a preferência por uma ou outra
idéia de sociedade e, forma de governo, em termos
especialmente, a de sociedade absolutos, embora gaste algum
política. O governo, segundo Burke, espaço para mostrar, por exemplo,
“é uma invenção da sabedoria os perigos da democracia pura (cujo
humana para atender às principal risco é o da tirania exercida
necessidades humanas. (...) pelo grupo majoritário). A idéia de
Conta-se entre elas, na conveniência acaba sendo também
sociedade civil, a necessidade um critério pragmático de avaliação
de que se exerça suficiente dos governos e regimes: “As velhas
constrangimento sobre as instituições são julgadas por seus
paixões. (...) Nesse sentido, os
efeitos. Se o povo é feliz, unido, rico
direitos dos homens
compreendem tanto suas e poderoso, isso é o que conta.
liberdades quanto as restrições Concluímos que as instituições são
que lhes são impostas. boas quando produzem o bem. Se
Contudo, como as liberdades e elas se distanciam da teoria, isso é
as restrições variam conforme compensado pelas vantagens que
os tempos e as circunstâncias e trazem” (1982: 169). Daí a
admitem infinitas modificações, dificuldade de construir instituições
elas não podem ser fixadas inteiramente novas, sem recurso à
mediante o estabelecimento de sabedoria acumulada na
algum princípio abstrato; e experiência histórica.
torna-se absolutamente leviano
discuti-las tendo por base tal
O pragmatismo, escreve Claude
princípio” (1982: 89).
Polin (1967: 167), comentando essa
Esta longa citação permite entender passagem das Reflexões, “é o fim
mais facilmente os seguintes lógico do empirismo político (...).
pontos: 1) que os direitos dos Assim, [no raciocínio de Burke] a
homens só podem ser pensados prosperidade pública, o
historicamente, no quadro de desenvolvimento demográfico, a
experiências sociais bem definidas elevação do nível de vida, a
e, portanto, com as restrições que amplitude das obras públicas, a
lhes são complementares; 2) que o abundância das lavouras, a
caráter histórico dos direitos (e das facilidade do comércio se tornam,
liberdades) faz com que só se de maneira chocante, mas lógica,
possa entendê-los como atributos verdadeiros critérios de

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legitimidade”. Como, no entanto, existente para colocar em seu lugar
cada povo tem interesses que lhe uma nova ordem, planejada e
são naturais, o seu caráter próprio projetada apenas pela razão e
(nacional) deve ser o molde para a formada de conceitos abstratos
instituição e o funcionamento de como os direitos do homem, não
cada governo. Neste sentido, avalia tinha chance de vingar na história
Polin, pode-se entender que, para (cf. 1982: 108). Burke exprime aqui,
Burke, o povo seja “o único legítimo portanto, com imensa clareza e
legislador”, mesmo sem assumir, lucidez, todos os temas do
explicitamente, o direito do povo de conservadorismo moderno. O que
constituir o rei ou qualquer outro estava em jogo nessas duas
governante. concepções, a de Burke e aquela
assumida pelos revolucionários
IV. Os fundamentos da franceses, eram, entre outras
soberania e os “verdadeiros” coisas, noções diversas a respeito
direitos do homem dos fundamentos da soberania da
A Revolução Francesa, portanto, nação. Ou melhor, tratava-se, na
colocava, na visão de Burke, um verdade, de duas concepções de
problema: o da concordância entre como compreender os fundamentos
teoria e prática. O argumento do direito público: se eles
burkeano básico era o da defesa da repousariam na nação como um
continuidade histórica contra o todo; ou se repousavam numa
projeto revolucionário de ruptura decisão de certas instituições
brusca da ordem. Os políticas.
revolucionários pretendiam A opção de Burke o coloca no
reconstruir de maneira consciente espectro dos pensadores cujo
toda a ordem social; mais, pensamento apresenta um viés
desejavam refazer a sociedade a “antidemocrático”: a governabilidade
partir de um projeto filosófico e a segurança do Estado, não se
baseado apenas na razão. Esse cansará de dizer Burke, estão acima
projeto revolucionário, no entanto, dos interesses e das preferências
não poderia funcionar, na visão de do povo. A instituição mais
Burke, sem partir da defesa da adequada para decidir sobre o quê
experiência, sem respeitar as e quando mudar é, na sua visão, o
estruturas e instituições sociais órgão legislativo: o poder supremo
existentes, baseando-se apenas no por ele imaginado é a soberania
julgamento individual de uns poucos parlamentar, e não o povo reunido
sonhadores revolucionários. O em praça pública. O equívoco dos
ponto de Burke, portanto, é mostrar revolucionários, afirma Burke (1982:
que sem preconceitos, isto é, sem o 88), é que eles se apóiam nos
respeito aos conceitos prévios que direitos do homem, que seriam,
marcam e definem a experiência para eles, anteriores ao Estado. E
social de um povo, não é possível contra essa idéia não existe
— nem desejável — instaurar uma remédio. Pois tal concepção dos
nova ordem das coisas. direitos do homem não permite que
Ou, dito ainda de outro modo: que o governo algum anteponha a eles as
projeto revolucionário de ruptura suas prioridades, a justiça ou a
completa com a organização social administração das coisas públicas.

78
Não que Burke rejeite por completo ter os dois mundos: não se pode
a aceitar a validade desta noção de querer conservar na sociedade civil
direitos do homem. O problema, aqueles direitos naturais aos quais
para ele, é que a reivindicação dos se renunciou para nela entrar.
revolucionários teria se afastado do O governo, por sua vez, não é um
que ele pensava como os dado da natureza, e sim uma
“verdadeiros” direitos do homem: a invenção da sabedoria humana:
sociedade civil é produto da uma criação da razão acumulada
convenção, do acordo entre os pelos homens, para atender às suas
homens, explica Burke (idem). E necessidades. Por esta razão, a
essa convenção primeira deve ser a vida num corpo civil exige não só
sua lei: deve ter a capacidade de que os indivíduos dominem suas
limitar e de modificar todas as paixões, mas também que suas
demais leis que inclinações sejam
vierem depois desse freqüentemente
pacto originário. contrariadas. E isso
Todos os poderes — só pode ser
legislativo, executivo conseguido por meio
e judiciário — são, de um poder
por sua vez, criaturas independente das
que resultam da vontades dos
instauração da indivíduos
sociedade civil. Por particulares, explica
isso, esses poderes Burke (1982: 89).
só existem num Somente um poder
mundo organizado
externo aos
na forma de Estado.
indivíduos pode ser
Uma das primeiras capaz de controlar
razões da existência essas paixões e
da sociedade civil, e interesses humanos
que se tornou uma e deter os homens
das suas regras quando necessário.
básicas, escreve Neste sentido, os
Burke, é a noção de direitos do homem
que “nenhum homem são tanto as
pode julgar em causa própria”. Ao liberdades quanto as restrições
entrar em sociedade, o homem impostas a eles na vida em
abdicou do direito de se coletividade. E essas duas coisas,
autogovernar e também ao direito direitos e liberdades, mudam
de autodefesa, repete Burke, segundo os tempos e as
lembrando Hobbes e Locke. Por circunstâncias, admitindo por isso
isso, somos obrigados a concluir daí inúmeras transformações. É isso o
que, diferentemente do que que explica o fato de que tais
pretendem os revolucionários, o direitos e liberdades não possam
homem não pode gozar ao mesmo ser fixados por meio do
tempo dos direitos da sociedade estabelecimento de um princípio
civil e dos direitos que tinha quando abstrato e imutável (idem),
vivia isolado. Isto é, não é possível

79
universalmente válido para todos os século XX preocupados com a
seres humanos. Daí não se poder dissolução das formas tradicionais
partir de um projeto da razão nem de sociabilidade.
de um projeto filosófico saído das
mentes dos revolucionários para se Não é possível conhecer os homens
estabelecer direitos abstratos e fora da história de cada povo: os
imutáveis. Quando os homens saem humanos são seres socialmente
daquela situação natural e passam marcados e historicamente
àquela limitação artificial e positiva construídos (1982: 107). Seres que
encarnada no Estado, a só existem a partir dos preconceitos
organização do governo — e tudo o de cada povo, isto é, da experiência
que o acompanha: direitos, acumulada por um determinado
liberdades, etc. — torna-se uma corpo social e civil. Os homens
questão de conveniência, isto é, concretos, inseridos num meio
uma questão do que convém ou não social específico, são seres
a um povo. recheados por crenças e costumes
que guiam a maior parte de seus
É isso o que faz da constituição de atos. As leis e o governo, por sua
um Estado e da distribuição de seus vez, são instituições que carregam
poderes uma empresa das mais em si valores. Por isso, as leis e o
difíceis e delicadas. Uma tarefa que governo vinculam as pessoas em
requer um profundo conhecimento sociedade. Razão pela qual, ironiza
da natureza e das necessidades Burke (1982: 116), não se pode
humanas assim como dos assuntos trocar de governo ou mudar o
públicos. A questão não é regime e as leis como se troca
metafísica e sim concreta: o desafio mercadoria ou de vestimenta,
é encontrar as soluções empíricas segundo os interesses ou modismos
para os problemas humanos. A do momento.
ciência do governo, portanto, requer
experiência (1982: 90). E Burke denunciava, na política dos
experiência é aquele edifício revolucionários, sobretudo a
construído ao longo de séculos. Por transformação da metafísica
isso, a sabedoria política acumulada moderna, isto é, de idéias abstratas
não deve ser jogada fora para ser de direitos, num programa político.
substituída por um modelo — o Esse equívoco é justamente o que
revolucionário — cuja utilidade provoca, na visão de Burke, as
ainda não pôde ser comprovada. várias contradições entre teoria
(direitos, abstrações) e prática (fatos
A cultura moderna deve mais do concretos, tradições de um povo,
que gostaria aos velhos costumes, etc.). Uma posição que não ficaria
lembra Burke. E os franceses sem uma resposta contundente,
desejam agora destruir todo esse
como bem ilustra, entre outros, o
antigo edifício. De fato, está em opúsculo de Thomas Paine (1989)
curso na França a mais importante
dedicado a este debate.
das revoluções, ironiza Burke (1982:
103): a revolução dos sentimentos,
dos costumes e das opiniões morais
— uma crítica que repercutiria entre
historiadores e cientistas sociais do

80
V. O conservadorismo de Isto porque são mais suscetíveis à
Burke e apropriação de seu opressão aqueles que perderam
legado pelos pósteros seus laços, suas tradições e sua
história e acabaram reduzidos a
A crítica empreendida por Burke e meros seres humanos, homens sem
pelos empiristas ingleses seria a conteúdo nem valores específicos,
matriz de boa parte das críticas unidades humanas universais,
posteriores à Revolução Francesa. iguais em qualquer lugar. Só se
Ecos de Burke iriam ressoar até pode impor uma opressão e uma
mesmo em Marx, nos seus escritos servidão absolutas, argumenta
sobre a questão judaica: a idéia de Arendt (1989: 334) à luz de Burke, a
“direitos do homem”, diria Marx seres que foram reduzidos à
(1991) tempos depois, porque está simples humanidade pela destruição
privada tanto de garantias efetivas de suas formas naturais e políticas
quanto de valor substantivo, acaba de solidariedade, um processo que
traduzindo mais o isolamento esvazia tais seres humanos de seus
concreto produzido por aquela conteúdos concretos, impondo-lhes
aparente emancipação dos uma completa opressão a serviço
indivíduos na sociedade liberal da idéia de uma humanidade
burguesa. Os “direitos do homem” abstrata e igual em toda parte.
seriam, por isso, apenas mais uma
das ilusões produzidas pelo ideário Nessa concepção, que remonta a
da sociedade liberal burguesa. Burke, portanto, só há direitos em
relação a situações concretas
Hannah Arendt, importante (mesmo que eles se transformem
pensadora da primeira metade do ao longo da história de um povo).
século XX, vai explicar o problema Liberdade, do mesmo modo, é
acerca dessa idéia de direitos do sempre a liberdade de alguma
homem nos seguintes termos: os coisa, que cada povo ou sociedade
revolucionários franceses, ao vai determinar para si. Por isso,
reivindicarem a preservação de segundo Burke, é preciso
supostos direitos naturais do abandonar o pseudo-universalismo
homem independentemente de dos “direitos do homem” e levar os
qualquer organização política, direitos a sério. Isto é, é preciso
acabavam por desconhecer as pensar nos direitos dos irlandeses,
obrigações e a própria grandeza dos indianos, dos americanos,
que decorrem do estatuto político do enfim, nos direitos de cada povo, a
homem enquanto membro de uma partir de suas tradições, e que são
coletividade específica. E pior: garantidos pelo seu Estado.
tendo fixado como objetivo último da
Outro ponto relevante é o de que
política a realização integral dos Burke certamente enxerga e teme
Direitos do Homem, a Revolução
os avanços e os efeitos da
Francesa abria caminho para uma racionalização cada vez maior das
política de reconstrução total da relações sociais promovidas pelo
ordem social cuja verdade seria o ideário iluminista. É certamente por
totalitarismo a ser experimentado esta razão que ele defende com
pelo século XX (cf. ARENDT, 1989: tanta ênfase uma doutrina política
330). que sustenta a ordem hierárquica

81
da sociedade humana, fundada por Referências
uma idéia que transcende os ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo
homens concretos e suas vontades: moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
Deus. Na argumentação de Burke, a BURKE, Edmund. Reflexões sobre a
finitude humana nos proíbe de Revolução em França [1790]. Brasília: Ed.
acreditar que a nossa razão, UnB, 1982.
sozinha, possa fundar e preservar a _______________. Speech on conciliation
ordem política. Um argumento que with America. In: Burke, E. Works. Vol. 1.
servia, em seu raciocínio, sobretudo Londres: G. Bell & Sons, 1913.
para assegurar a não- CANAVAN, Francis P. Edmund Burke’s
autonomização da razão em relação conception of the role of reason in politics.
à sua base material, os homens In: Kramnick, I. op. cit., 1969, p. 265-94.
concretos, a ponto de igualá-los a KRAMNICK, Isaac. Essays in the history of
meros átomos formadores de uma political thought. New Jersey: Prentice Hall,
matéria cujo conteúdo pudesse ser 1969.
definido abstratamente, segundo a COBBAN, Alfred. Edmund Burke and the
imaginação de alguns. revolt against the Eighteenth Century. Nova
York: MacMillan Company, 1929.
Por isso é central a recuperação
KRITSCH, Raquel. Liberdade, propriedade,
dos pré-conceitos, contra o Estado e governo: elementos da teoria
racionalismo estreito e tacanho das política de John Locke no ‘Segundo
luzes. A tarefa do pensador, dizia Tratado sobre o Governo’. Revista Espaço
Burke, é “descobrir a sociedade Acadêmico, vol. 10, nº 115, 2010, p. 73-85.
oculta que predomina nos (http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Esp
acoAcademico/article/view/11871/6375).
preconceitos, mais do que expor os
homens a só viverem de acordo ______________. Elementos da política e
da teoria do Estado em De o espírito das
com o fundamento particular de
leis de Montesquieu. Revista Espaço
razão que pertence a cada um” Acadêmico, vol. 10, nº 117, 2011, p. 23-31
(1982: 196). Era o início da recusa (http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Esp
ao racionalismo absoluto dos acoAcademico/article/viewFile/12324/6539)
modernos nas doutrinas sobre a .
ordem social e política dos seres LASKI, Harold. Political thought in England
humanos. Com Burke e suas — Locke to Bentham. Oxford: Oxford
controversas idéias, abria-se o University Press, 1950.
caminho para a crítica materialista MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo:
da organização da sociedade de Moraes, 1991.
homens. A racionalidade deve ser PAINE, Thomas. Os Direitos do Homem –
buscada agora na evolução uma resposta ao ataque do Sr. Burke à
histórica das sociedades Revolução Francesa. Petrópolis: Vozes,
1989.
particulares concretas. Um
argumento que chegou PAINE, Thomas. Os Direitos do Homem –
razoavelmente intacto aos nossos uma resposta ao ataque do Sr. Burke à
Revolução Francesa. Petrópolis: Vozes,
dias. 1989.
POLIN, Claude. La définition de la légitimité
chez Burke. VÁRIOS. L’idée de légitimité ,
Institut International de Philosophie
Politique, Coleção “Annales de Philosophie
Politique“, nº 7, Paris: Presses
Universitaires de France, 1967.

82
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1991. Conservative. New York: Basic Books,
1977; KRANTZ, Frederick (org.). A Outra
História – Ideologia e protesto popular nos
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(para aprofundamento dos temas 1990; LASKI, Harold. O liberalismo
tratados): europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973;
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Alianza Editorial, 1980; MANENT, Pierre.
de Governo. Brasília: Editora da UnB,
História Intelectual do Liberalismo – Dez
1980; BORÓN, Atílio A. (org.) A Filosofia
Lições. Rio de Janeiro: Imago Editora,
Política Moderna – De Hobbes a Marx. São
1990; MANNHEIM, Karl. Essays on
Paulo: FFLCH, 2006; CASSIRER, Ernst. A sociology and social psychology. Londres:
Filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora
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