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UMA GRAMÁTICA DA FORMA PARA ANÁLISE DE

HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NO BRASIL: O CASO


DO CONJUNTO HABITACIONAL JARDIM SÃO FRANCISCO

Keywords: habitação de interesse social, conjunto habitacional, implantação urbana,


gramática da forma.

CONTEXTO DA PESQUISA
A partir da segunda metade do século XX, o problema habitacional no Brasil,
intensificado pela explosão territorial das cidades e o agravamento das condições
urbanas, tornou urgente a discussão sobre o tema e a definição de novas
abordagens para o desenvolvimento de habitação de interesse social de qualidade,
a custos acessíveis. O desenvolvimento de estudos relativos ao déficit habitacional
no país tem sido amplamente difundido pelos órgãos nacionais como a Secretaria
Nacional de Habitação do Ministério das Cidades e abordados nos programas de
pós-graduação das principais universidades brasileiras. No entanto, as pesquisas
sobre habitação de interesse social no país têm se dedicado principalmente à
análise das políticas públicas habitacionais e de novos sistemas construtivos,
contudo poucos estudos têm enfatizado a importância da implantação urbana na
configuração dos espaços públicos e qualidade dos empreendimentos. Como
conseqüência, na maioria dos conjuntos habitacionais vê-se a imagem típica de
casas idênticas repetidas ao longo de ruas, ou a versão mais densa baseada em
edifícios de apartamentos.

OBJETIVOS
Este trabalho faz parte de uma pesquisa que tem como objetivos analisar as
diferentes possibilidades de implantação urbana nos conjuntos de habitação de
interesse social, e suas consequências para os espaços coletivos. O objetivo
específico dessa pesquisa é propor um método de projeto que permita a obtenção
de espaços urbanos de melhor qualidade nesses conjuntos.
Para isso, serão analisados os projetos: Malagueira - Portugal, desenvolvido por
Álvaro Siza em 1977, conjunto habitacional no México, desenvolvido por Christopher
Alexander em 1976 e conjunto habitacional Jardim São Francisco, Setor VIII - Brasil,
desenvolvido por Demetre Anastassakis, em 1989.

Neste artigo é apresentada a análise do conjunto habitacional Jardim São Francisco,


com a intenção de verificar o método de projeto utilizado para obter um resultado
satisfatório tanto na definição dos espaços internos da unidade habitacional, bem
como na configuração dos espaços públicos.

Com o uso da gramática da forma como metodologia de análise, é apresentado a


seguir um estudo do setor VIII desse conjunto habitacional, que se localiza na zona
leste de são Paulo.

DESCRIÇÃO DO CASO
O conjunto habitacional Jardim São Francisco, Setor VIII, foi resultado de um
concurso nacional destinado à construção de habitação de interesse social no
município de São Paulo no ano de 1989. A equipe vencedora foi coordenada pelo
arquiteto Demetre Anastassakis. Este conjunto constituí-se por uma área de cerca
de 10.000 m2 ocupada por 154 habitações.

A proposta apresentada fundamentava-se na valorização de elementos construtivos


pelo povo, como a vila, a esquina e a praça; rompendo as formas espaciais
tradicionais usadas em projetos de habitação de interesse social no Brasil. Baseava-
se no conceito da individualidade da casa, mas articulada com o espaço coletivo.
Visando aliar a redução de custos a princípios de conforto e beleza, buscou-se criar
grupos de casas geminadas, assimétricas, com acessos em planos diferenciados e
com pequenos pátios, que serviam como espaços de convívio individualizados. Essa
estrutura de “vilas”, caracterizada por uma rede complexa de espaços também
contemplava a possibilidade de expansão da moradia ao longo dos anos, de acordo
com os recursos e as necessidades das famílias.

O ESPAÇO PÚBLICO NO CONJUNTO SÃO FRANCISCO

O conceito baseava-se na idéia de um embrião modulado (concebido em material e


método construtivo regional – alvenaria estrutural) e algumas regras básicas usadas
na composição e expansão da casa, o que dava a flexibilidade, permitindo que as
mesmas pudessem adquirir a feição dos moradores. Por utilizar uma tecnologia
construtiva bastante simples e conhecida suas ampliações poderiam ser facilmente
realizadas por meio de sistemas de mutirão. Esse sistema compositivo, que partia de
um programa padrão (sala, cozinha, WC e 2 dormitórios) resultou em sete tipos
diferentes de casas, no entanto, para o desenvolvimento das regras foram
selecionadas 4 tipos de planta para compor o corpus da pesquisa (Figura 01).

Fig. 01 – Plantas e modelos geométricos digitais do corpus da pesquisa.

A ocupação das “vilas” no terreno seguiu um sistema de regras que visavam a


alteração mínima na topografia, por meio do aproveitamento máximo das curvas de
nível, a organicidade das soluções, a mixagem de residências, praças (com áreas
verdes) e espaços cívicos (Figura 02). O objetivo era criar uma estrutura
caracterizada por uma forte marcação territorial (dentro/fora) e aumento da
permeabilidade dos espaços, com variedade de áreas sombreadas, ensolaradas e
redução de barreiras ao vento. Essa estrutura de composição teria níveis diferentes
de privilégios de ventilação, iluminação, privacidade visual, e, teria o seu perímetro
valorizado pela criação de pórticos de entrada.
Figura 02 - Implantação do conjunto habitacional Jardim São Francisco e foto

(Fonte: Google earth e PINA, 2008).

GRAMÁTICA DA FORMA
O formalismo conhecido como gramática da forma (do inglês shape grammar) teve
seu início a partir de um artigo publicado por Stiny e Gips em 1972, no qual foram
estabelecidas as bases do que viria a tornar-se a mais importante abordagem
algorítmica do processo de projeto.

Desde sua invenção, essa área tem crescido exponencialmente, envolvendo um


número cada vez maior de exemplos de aplicações e problemas de investigação. A
gramática da forma consiste em um método de geração de formas baseado em
regras e tem sua origem no sistema de produção do matemático Emil Post e na
gramática generativa de Noam Chomsky. Ao longo dos anos, tem sido explorada em
diversas aplicações para a resolução de problemas projetuais, permitindo a geração
de projetos a partir de uma forma inicial, por meio da aplicação recursiva de regras
compositivas (DUARTE, 2007; KNIGHT, 2000; CELANI et al, 2006).

Uma gramática da forma é desenvolvida a partir da definição dos seguintes


elementos (CELANI et al, 2006):

1. Vocabulário de formas – Para o desenvolvimento de uma gramática,


primeiramente, é preciso definir um conjunto finito de formas primitivas que
farão parte da gramática. Essas formas podem ser bi ou tridimensionais.
2. Relações espaciais - Em seguida, são estabelecidas as combinações
espaciais desejadas entre as formas primitivas do vocabulário.

3. Regras - A partir das relações espaciais são definidas regras de


transformação do tipo A_B (ao encontrar A, substitua por B). Essas regras
podem ser do tipo aditivas ou subtrativas.

4. Forma inicial - Para dar início à aplicação das regras, é necessário selecionar
uma forma inicial, pertencente ao vocabulário de formas.

DESENVOLVENDO A GRAMÁTICA

A utilização da gramática da forma para análise foi aplicada pela primeira vez por
Stiny em 1977, para a caracterização de um conjunto de regras capaz de gerar
desenhos de janelas tradicionais chinesas (CELANI et al, 2006). Dessa forma, na
presente pesquisa, esse método permitiu a identificação das características típicas
empregadas no projeto do conjunto habitacional Jardim São Francisco e a partir
disto desenvolver propostas de intervenção para outros casos semelhantes. Assim,
para o desenvolvimento da gramática da forma, foram estudados tanto os projetos
das unidades habitacionais como a formação dos blocos de casas e o tipo de
implantação no terreno.

A seguir descreve-se as gramáticas desenvolvidas:

UNIDADES HABITACIONAIS

As casas do conjunto habitacional Jardim São Francisco caracterizam-se por plantas


com combinações simples de cômodos retangulares, especialmente idealizadas
para proporcionar uma construção facilitada, já que foram construídas em esquema
de mutirão. No entanto, a simplicidade das formas não significa uma monotonia nas
construções, já que as diferentes possibilidades de combinações permitiram uma
variedade de tipologias, pois os moradores puderam discutir com os arquitetos
responsáveis a combinação dos elementos.

No total foram desenvolvidas 7 tipos diferentes de plantas. Para compor o corpus de


análise desta pesquisa foram selecionados 4 tipos – definidos como R1, R2, R3 e
R4. As plantas apresentam clareza nas combinações entre retângulos numa
abordagem bidimensional e ao analisarmos os volumes das edificações,
observamos que sob este aspecto, temos a combinação de cubos na formulação
dos ambientes.

Partindo da abordagem volumétrica foi elaborada uma gramática da forma a fim de


analisar a metodologia empregada.

VOCABULÁRIO DE FORMAS DAS UNIDADES HABITACIONAIS

O vocabulário é composto basicamente por dois tipos de paralelepípedo que


possuem as dimensões máximas possíveis para uma construção, sendo o primeiro
com as dimensões 3,00 m x 4,50 m x 2,50 m (largura x profundidade x altura) e o
segundo 3,00 m x 3,00 m x 2,50 m (Figura 03). Se as dimensões forem alteradas,
devem ser mantidas para todas as formas utilizadas em um mesmo modelo.

RELAÇÕES ESPACIAIS/REGRAS

As relações espaciais possíveis com as formas definidas consistem em posicionar


os paralelepípedos lado a lado ou um sobre o outro respeitando as seguintes
condições:

- Área do pavimento superior deve ser menor ou igual a área do pavimento


térreo

- Área mínima do pavimento térreo deve ser de 4,50 m x 6,00 m

- Número máximo de pavimentos = 2

Figura 03: Vocabulário de formas e regras.


A gramática desenvolvida se mostrou capaz de gerar todas as casas do corpus de
análise (Figura 04) e ainda propor novas abordagens, mostrando assim, sua eficácia
e potencial (Figura 05).

Figura 04: Derivação das regras.

Figura 05: Geração de novas casas.


BLOCOS HABITACIONAIS

Para a composição dos blocos formados pelas unidades habitacionais, as regras


utilizadas correspondem às mesmas definições e critérios adotados para as plantas.
No entanto, foram definidas as seguintes restrições:

Número máximo de casas por bloco – 4 unidades

Número máximo de pavimentos – 3

Figura 06: Aplicação de regras para blocos tipo B1 e geração de novos blocos.
Figura 07: Aplicação de regras para blocos tipo B2 e geração de novos blocos.

IMPLANTAÇÃO DO PÁTIO

Para a utilização da regra de formação de pátio é necessário a inserção de blocos


adjacentes perpendiculares e composição com o número máximo de 6 blocos
(Figura 08).
Figura 8: Regras para implantação de pátio e derivações.

Figura 8: Regras para implantação de rua e aplicação da regra.


COMPARAÇÃO COM OUTROS CONJUNTOS HABITACIONAIS JÁ
ANALISADOS
Como dito acima, a análise do conjunto São Francisco faz parte de uma pesquisa
mais ampla, na qual foram analisados outros conjuntos habitacionais. A seguir é feita
uma comparação entre o conjunto São Francisco e os conjuntos da Malagueira, de
Álvaro Siza, e o conjunto habitacional no México, de Christopher Alexander. O
conjunto habitacional da Malagueira, localizado em Évora – Portugal, foi projetado
por Álvaro Siza e engloba 1200 habitações, construídas a partir de 1977 até hoje.
Esse conjunto apresenta mais de 35 plantas diferentes organizadas a partir do
alinhamento das ruas. José Duarte (2007) utilizou a gramática da forma para
analisar as unidades habitacionais da Malagueira e reconhecer as regras de projeto
incorporadas por Siza e seus colaboradores no desenvolvimento das casas.
Contudo, nesse caso o uso da gramática da forma se restringiu à organização
interna das edificações, talvez pelo fato de que a implantação era bastante simples,
organizada em filas ao longo das ruas.

O conjunto habitacional desenvolvido por Christopher Alexander e seus


colaboradores no México, construído por mutirão em 1976, se diferencia do projeto
de Siza, pois apresenta a organização das unidades habitacionais em aglomerados
(clusters), criando, assim, espaços públicos mais fluidos e diversificados entre as
casas. Esta forma de implantação urbana permite o convívio e apropriação do
espaço pelos moradores, bem como possibilita diferentes configurações e melhor
adaptação ao terreno – como no caso do conjunto São Francisco. Segundo
Alexander (1985):

“However, before they come to the stage of laying out their houses, they must first
play a role in laying out the common land between their houses, so that this public
unit of space, this common land which leads into their houses, is not some abstract
mechanical thing, done for them by the city or by a developer, but is itself unique and
personal to all the families, a collective expression of their will, a permanent part of
the world which is uniquely "theirs".”

A implantação urbana do conjunto São Francisco, estruturada em “vilas” que


acompanham a topografia do terreno, assemelha-se ao conjunto projetado por
Alexander, pois ambos apresentam espaços públicos que aumentam a
permeabilidade entre as edificações e definem uma composição diversificada de
casas, pátios e praças.

A análise dos conjuntos habitacionais demonstrou que por meio da gramática da


forma foi possível identificar a existência de sistemas combinatórios no projeto das
casas projetadas por Álvaro Siza e Demetre Anastassakis e presente na implantação
urbana do conjunto São Francisco. As situações em que foi possível detectar a
existência de regras subjacentes de combinação apresentam uma complexidade
e/ou variedade geométrica tal que resulta em maior diversidade de espaços e
consequentemente de situações urbanas, contudo, sem onerar demasiadamente o
projeto e a construção, pois existem repetições, ainda que estas estejam
“disfarçadas”.

DISCUSSÃO
A presente pesquisa demonstrou que o método da gramática da forma permitiu
verificar a existência de arranjos combinatoriais nos projetos analisados, dessa
forma, esse método também pode ser considerado uma estratégia viável e eficiente
para gerar novos projetos, pois permite que se obtenha uma variedade de opções a
partir de um número relativamente reduzido de peças, que podem ser cômodos - no
caso da gramática da forma para definição da unidade habitacional – ou blocos de
casas/apartamentos, considerando o âmbito da implantação urbana.

REFERÊNCIAS
ALEXANDER, C. The production of houses, Oxford University Press, Oxford, 1985.

CELANI, G. Beyond analysis and representation in CAD: a new computational


approach to design education. 2002. Tese (Doutorado em Architecture: Design &
computation) - Department of Architecture. Massachusetts Institute of Technology,
2002.

CELANI, G. ; GODOI, G. ; CYPRIANO, D. ; VAZ, C. . A gramática da forma como


metodologia de análise e síntese em arquitetura. Conexão (Caxias do Sul), v. 5, p.
180-197, 2006.
DUARTE, J.P. Personalizar a habitação em série: Uma Gramática Discursiva para
as Casas da Malagueira do Siza. Tese de doutorado. Lisboa: Ed. Fundação
Calouste Gulbenkian, 2007.

KNIGHT, T. W. Transformations in Design: a Formal Aprroach to Stylistic

Change and innovation in the Visual Arts Cambridge, England: Cambridge

University Press, 1994.

KNIGHT, T. W. Shape Grammars in education and practice: history and prospects

International Journal of Design Computing, Sydney, v. 2, 1999-2000. Disponível


em <http://www.mit.edu/~tknight/IJDC>.

Revista Arquitetura e Urbanismo, 1990, Concurso Jardim São Francisco, no 30,


jun/jul. pp. 58-60.

Revista Projeto (1990), Jardim São Francisco, no 130, pp. 110-111.

Revista Projeto (1990), no 134, pp. 86-87.

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