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Resumo
Abstract
E
m ‘Nostalgias Futuras’, tem sido realocado, na contemporaneidade,
Richard Schechner (2010) para ações mais locais e pontuais de
recorre ao Manifesto inclusão artístico-cultural.
Comunista (1848) de Marx
e Engels e aos direitos
‘universais’ das revoluções americana e
Nostalgias Futuras – o vigor da chama
francesa (meio século após) para introduzir
e situar oito manifestos, artísticos e políticos, Os métodos mudam para responder às
que marcaram momentos da história necessidades de uma determinada época e
ocidental de 1909 a 2006. O autor inclui de um determinado lugar (SPOLIN, 1963).
resumos dos manifestos e advoga como o É quando a visão do teatro muda, que se
sentido de utopia e justiça universal, tem procura uma nova pedagogia do teatro
sido realocado, na contemporaneidade, que responda a essa nova visão (FÉRAL,
para ações mais locais e pontuais de 2009). A associação das reflexões de Spolin
inclusão artístico-cultural. e Féral, com espaço de quase 50 anos
entre elas, justificam a ação pedagógica de
transformar uma disciplina teórica em um
Morte do manifesto como gênero
processo performático.
O texto de Schechner apresenta o que se
Os manifestos foram escritos pode considerar como uma espacialização
tradicionalmente com a intenção de dar sonora de sensações, imagens, momentos
forma às ideias e ações políticas. Sua de tensão, e encadeamentos – mais do
origem remonta ao Manifesto Comunista que uma ideia ou conceitos, uma espécie
(1848) de Marx e Engels, um tratado e de pulsação; o texto torna-se vivo. Esta
um chamado às armas. Meio século após, percepção da energia do texto, e da
os direitos ‘universais’ das revoluções síntese realizada pelo autor, de oito
americana e francesa retomaram, embora manifestos - Futurista/Marinetti, DADA/
de forma destorcida, alguns de seus Tzara, Teatro e Crueldade/Artaud,
princípios. Estes três foram os modelos Arte Revolucionária/Trotsky e Breton,
para a maior parte dos manifestos escritos Recusa Global dos Artistas de Quebec,
por artistas. Se considerados em seu Situacionista, Living Theatre/Julian Beck,
conjunto, afirma Richard Schechner, “os ArtGuerrilla – foi compartilhada com os
manifestos emitidos por artistas-chave da quarenta e cinco alunos da primeira fase
avant garde e teóricos influentes, reiterados do Curso de Teatro/UDESC. A proposta
por mais de um século, clamam pela inicial foi que sua leitura e a identificação
destruição da ordem vigente e criação de dos questionamentos e reivindicações
uma nova ordem” (2010, p. 312). Segundo centrais dos manifestos subsidiassem
o autor, considerando-se que a maior debates sobre as relações entre arte,
parte dos artistas que escrevem manifestos estética, ética e política, fundamentos das
não comete a violência que advogam, há disciplinas de Metodologia do Ensino do
que se reconhecer que os limites entre o Teatro. A resposta foi rápida - moveu os
‘real’ e o ‘virtual’ estão se dissolvendo alunos a identificar ‘seus’ manifestos e
e o performativo se atualizando. Para jogarem-se à performance.
Schechner, o grande gesto dos manifestos, O entendimento de que Nostalgias
e seu sentido de utopia e justiça universal, Futuras permitiria uma interação
performativa entre sensações, percepções,
1 Bolsista de Produtividade e Pesquisa CNPq. Professora e ações, movendo os estudantes a
Adjunta na Universidade do Estado de Santa Catarina, onde capturar o artigo sob a forma de um
leciona Metodologia do Ensino do Teatro na Graduação e
Prática como Pesquisa na pós-graduação. Diretora de Artes
evento performático justificou a mudança
Cênicas na Universidade Federal de Santa Catarina. de planos. O desejo do grupo era uma
imediata manifestação de rua. A contenção encena para o suposto ou real leitor, que é
foi conseguida com um ‘poderá vir a imaginado nos procedimentos da encenação;
seguir’, após um necessário experimento em o jogo da apropriação da experiência, onde
sala, caracterizado como uma ‘investigação jogar com o texto consiste na obtenção da
de possibilidades em quatro encontros’. O experiência, através da qual nos abrimos
caráter de investigação e a delimitação do para o não-familiar; o jogo do prazer,
tempo direcionaram a energia do grupo derivado do exercício incomum de nossas
para a busca de formas de atuação. facilidades e habilidades (2002, p.105-118).
O processo de investigação cênica As dimensões do jogo do texto,
adquiriu a forma de um fluxo de apresentadas por Iser, permitem associar
incorporações sensíveis – alguns grupos a distinção feita por Deleuze entre teatro
conseguiram se organizar com pesquisa, da representação e teatro da repetição ao
revisões e reconsiderações, de modo que a processo performático com os manifestos.
apresentação foi se formando e ganhando “No teatro da repetição”, segundo
consistência; para outros, o jorro de ideias, Deleuze, “experimentamos forças puras,
e as diferenças de percepção entre os traços de dinâmicas no espaço que, sem
membros do grupo, causaram mudanças intermediários, agem sobre o espírito (...)
radicais entre os encontros de criação. experimentamos uma linguagem que fala
Quatro alunos optaram por introduzir e antes das palavras, gestos que se elaboram
costurar as apresentações dos manifestantes antes dos corpos organizados, máscaras
nos papéis de apresentadores e jornalistas. antes das faces, espectros e fantasmas
O que é pensar sem subordinar a antes dos personagens ...” (2009, p. 31).
diferença à identidade, pergunta Roberto Os manifestos em performance, como um
Machado ao introduzir recente tradução ‘teatro de repetição’, ressaltaram a energia
de Gilles Deleuze (2010). Repetir um texto, posta em cena e o advogar político dos
argumenta Machado, não é buscar sua participantes, o movimento em oposição
identidade, mas afirmar sua diferença; é ao conceitual e à sua representação.
pensar em seu próprio nome usando o nome A forma encontrada por cada grupo,
de um outro, organizar seu texto a partir o estilo, vista como uma sobreposição
de um ponto de vista, de uma perspectiva de afetos, agenciada por um coletivo,
que faz o objeto estudado sofrer pequenas contaminou ou subverteu os projetos e o
ou grandes torções. Para Deleuze, o imaginário individual. Mesmo que concebida
teatro é crítico quando opera amputando, como identidade de grupo, os manifestos
subtraindo alguns dos elementos do texto permitiram perceber diferenças internas.
original, para fazer aparecer algo diferente. Se o contexto foi coletivo e o estilo foi
Não é apenas a matéria do texto, a história negociado, se houve um acordo, o discurso
original que é modificada; é também sua foi livre e individual. Foi isto intencional
forma, que cessa de ser representação. ou decorrência dos manifestos em si?
As ‘pequenas e grandes torções’ que Para Deleuze, extrapolar a compreensão
amputam e subtraem elementos do texto de uma ideia ou um conceito e chegar à
original para fazer aparecer a diferença, pulsação e plasticidade caracteriza o teatro
caracterizam o jogo do texto. Para Wolfgang de repetição, oposto ao de representação
Iser (1979), o jogo produz diferença – como – um movimento necessário para que o
processo de transformações das posições conceito vá se formando e ganhando força,
e do material pré-dado pelo texto. Iser ressoando: repetição como composição,
acrescenta três dimensões do jogo no texto buscando ritmo e movimento; criando
que refletem as interações observadas entre fluência entre fragmentos do texto;
os estudantes e os ‘textos’ dos manifestos: repetição como refrão, significado
o jogo da performance para uma suposta como fluxo que retorna, circular, pela
ou real plateia, ou seja, o jogo do que se incorporação do sensível.
o mundo sensível, assim como a expressão Brian Massumi, em Parables for the
artística (1996; 2010). Este entendimento Virtual (2002), comenta como a sensação
permite avaliar, a posteriori, o que foi comum é um estado no qual a interação entre
no processo de criação performática dos a ação, a percepção e o pensamento é
manifestos, o que delimitou e configurou as intensa e performativa. De acordo com
vozes, conscientes ou não, que explicitaram o filósofo, o potencial desta interação
as discordâncias subjacentes aos processos dinâmica da sensação e o reconhecimento
de criação em grupo – quem propõe as ações, de sua performatividade apontam
quem as aceita, quem as nega; quem define para a importância de investigar os
a estética da apresentação, quem se rebela; relacionamentos entre ação, percepção e
o acordo e o desacordo na identificação de emoção. Ele está interessado em capturar
objetos de cena e na criação do figurino, que em eventos performáticos as formas pelas
juntos evidenciaram as subjetividades em cena. quais as sensações e sentimentos ligados
A tradução dos manifestos às a momentos do passado formam as
performances revelou o ‘encontro possibilidades das coisas futuras. Na série
discordante das percepções individuais’, Technologies of Lived Abstractions, Massumi
que assim como na política, incluem e seu co-editor Erin Mannix, consideram
momentos de consenso intercalados o corpo e a mídia, tal como a televisão,
com momentos que exigem negociação. o teatro, filmes e internet, processos
Se o impacto inicial com a identificação que operam com múltiplos registros de
dos manifestos e levantamento de sensações, além do alcance da leitura.
possibilidades de ação foram evidentes, a Revisitando a filosofia da percepção de
apropriação e re-significação do texto e sua Henri Bergson através do filtro de Deleuze
experiência performativa, potencializou o e Guattari, Massumi e Mannix associam a
engajamento com a causa e a percepção de lógica cultural da variação a questões de
alguma ressonância com o contexto atual – movimento, afeto, e sensação.
ao nível pessoal e coletivo. Houve grupos O que moveu os jovens alunos neste
que estenderam sua pesquisa ao espaço experimento? O movimento? A energia da
externo, houve manifestações em espaços ação? O protesto? O advogar como forma
públicos (shopping center, McDonald, de identificação?
etc.), registro em vídeo, mas também O caráter de cada manifesto levou
houve grupos onde prevaleceu um sentido a distintas formas de performação. O
de que “poderia ter sido bem melhor”. Há espaço, face à possibilidade e presença
razões para se envolver e engajar em uma da multiplicidade, respondeu aos
situação – parafraseando David Best (1992), desafios da diferença e heterogeneidade.
‘o sentimento é racional em si; podemos O reconhecimento da espacialização e
explicar porque gostamos ou deixamos de multiplicidade coexistiu para a identificação
gostar de alguma coisa’. e articulação estética e política dos grupos.
Porém os grupos não se restringiram a ações
e movimentos – a investigação de referências,
O que nos move? imagens e objetos de cena, sugere a força do
manifesto como forma de apresentação.
No contexto do ensino de Arte, Doreen Massey (1998), ao focalizar
especialmente no de Teatro, é freqüente a construção espacial de culturas jovens,
observar que envolvimento e engajamento salienta dois aspectos que cabem ser aqui
podem diluir-se durante o processo de considerados: os jovens certamente pulam
trabalho, pois seu desenvolvimento depende escalas geográficas em busca de referências,
da articulação de desejos e empenho de cada pois hibridismo é uma condição de todas as
integrante de um grupo com histórias de culturas, especialmente das jovens culturas.
vida, formação e interesses distintos. Ao mudar a conceituação de cultura - de roots