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A pesquisa em educação e a discussão sobre a questão da realidade

Siomara Borba (FE/UERJ)

Introdução

No desenvolvimento do trabalho de pesquisa, uma questão importante, pois define,


de forma objetiva e direta, o desenvolvimento da investigação e, indiretamente, o resultado
da pesquisa é a questão sobre o objeto a ser conhecido. A pesquisa sempre busca conhecer
o real. Independente do tipo de real, natural ou social, histórico, cultural, o seu objeto é
sempre o real. No entanto, afirmar que o objeto da investigação científica é a realidade,
embora pareça uma afirmação óbvia, simples, sem problemas, não o é. Concretamente, no
cotidiano da pesquisa, a forma como o real é entendido indica diferenças epistemológicas
importantes. São essas diferenças que, de modo subjacente, vão orientar o desenvolvimento
do trabalho de pesquisa e indicar os seus resultados.

No trabalho que estamos apresentando, embora não tratemos especificamente do


processo de investigação no campo da Educação, temos como horizonte de discussão a
pesquisa em Educação. Para ajudar a nossa discussão, vamos trazer as contribuições da
análise de Mirian Limoeiro Cardoso. Cardoso, especialmente nos seus trabalhos O mito do
método. (1976) La construcción de conocimientos: cuestiones de teoria y método (1977),
Ideologia do desenvolvimento: Brasil: JK – JQ. (1978) e Para uma leitura do método em
Karl Marx: anotações sobre a "Introdução" de 1857 (1990), discute o processo de
investigação. Ela deixa claro, em um de seus trabalhos, que o que a preocupa é o método de
investigação: O que mais me preocupa é o estabelecimento dos problemas realmente
centrais do método de investigação. [...] (1978, p. 36).

Nos trabalhos acima indicados, os [...] problemas [...] centrais do método de


investigação [...] (1978, p. 36) sobre os quais Cardoso se debruça são as questões que
dizem respeito aos fundamentos epistemológicos do trabalho de investigação. E, em todos
esses trabalhos, o ponto central é a crítica à epistemologia empírica, opção epistemológica
que entende todo o processo de conhecimento da realidade como um processo que é
comandado não só pelo real imediato, concreto, fenomênico, mas, também, pela
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experiência e pela observação. Essa epistemologia funda um método de investigação [...]


que começa pelo real e que identifica, ou confunde, o concreto com o real. A suposição
subjacente a este método, que presumivelmente lhe garante a segurança da objetividade, é
o fundar-se no real – base sólida, [...] (Cardoso, 1990, p. 20)

A Educação, como campo de conhecimento, tem-se dedicado a investigar não só a


ação educativa, em suas diferentes e diversas dimensões e manifestações, mas, também,
tem-se preocupado com a discussão do processo de investigação sobre esse fazer humano.
Nessas discussões, a questão metodológica tem aparecido como uma preocupação, na
medida em que a investigação, especialmente nas Ciências Humanas e Sociais, caracteriza-
se pela complexidade do trabalho de pesquisa. Essa complexidade é concretizada quando o
pesquisador encontra uma situação de identidade ontológica com o objeto a ser conhecido e
uma situação de identidade histórica com a realidade social que envolve não só o
pesquisado bem como suas idéias, sentimentos, ação. No entanto, essa situação de profunda
identidade pesquisador/objeto não é exclusiva da área da Educação. Essa identidade marca
a pesquisa no campo das Ciências Humanas e Sociais.

Além dessa condição de identidade entre o sujeito que pesquisa e o objeto a ser
conhecido, própria da pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas e na área do conhecimento
em Educação, outros aspectos marcam a atividade investigativa em Educação. Dentre esses
aspectos, um diz respeito ao objetivo da pesquisa em Educação. Seu objetivo é o
conhecimento de uma ação. Através do trabalho investigativo, o que se busca conhecer é a
ação educativa, a experiência educacional. A rigor, essa ação humana, a educação, se
realiza em diferentes áreas de atuação: gestão escolar, política educacional, currículo,
avaliação, formação docente, alfabetização, entre outras. Em termos de investigação, essas
diferentes temáticas, pensadas, entendidas e realizadas por elaborações teóricas e
procedimentos próprios, vão apresentar diferentes questões para a investigação.

Outro aspecto que, também, não pode ser esquecido quando estamos pensando o
processo investigativo em Educação é o apoio teórico-conceitual e metodológico das
Ciências Humanas e Sociais, especialmente, História, Sociologia, Economia, Psicologia,
Antropologia, à pesquisa em Educação, concorrendo para o entendimento da ação
educativa. Ao recorrer às Ciências Humanas e Sociais, a pesquisa em Educação traz para o
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debate sobre o fazer educativo referências, formas de pensar e contribuições teórico-


conceituais de uma discussão que acontece fora do cotidiano da ação educacional e
pedagógica, mas dentro das possibilidades da condição humana, bem como, traz horizontes
epistemológicos e metodológicos e procedimentos investigativos próprios de determinados
campos de conhecimento.

Todas essas condições, que marcam a prática da pesquisa em Educação e que, a


rigor, acompanham o desenvolvimento da pesquisa, levam a uma preocupação com o
desenvolvimento do trabalho investigativo. As questões que aparecem como prioritárias, de
forma geral, dizem respeito à escolha e definição do quadro teórico, à escolha de uma teoria
capaz de trazer as informações mais completas e avançadas sobre o objeto a ser conhecido,
e referem-se à definição da metodologia e dos procedimentos técnicos de investigação.

Essas preocupações, que podem ser entendidas como preocupações metodológicas,


não deixam espaço para a discussão das questões epistemológicas, momento que se
interroga a identidade e o significado da própria ação investigativa. Entre as questões que
se abandona quando a preocupação é com o resultado do processo investigativo está a
discussão sobre o objeto de investigação. Esse objeto, sobre o qual o pesquisador se
debruça, é o real como aparece aos sentidos e à experiência ou, em uma perspectiva,
totalmente oposta que afirma a impossibilidade de tratarmos o real como um real dado,
natural, desprovido de teoria, é um objeto teórico?

Essa questão nos parece fundamental de ser pensada, interrogada, ainda que não
seja, imediatamente, respondida. Trabalhar com o pressuposto que o objeto de
conhecimento é o real como nos aparece, a realidade dada pelos sentidos e pelas pré-
noções, não só nos afasta do entendimento do real, bem como não instrumentaliza os
educadores para a ação pedagógica. É preciso pensar de outra forma a prática investigativa
em Educação. O real que nos propomos pensar não é um real puro, é um objeto de
conhecimento. É sobre essa questão que esse trabalho, com base na análise e reflexão da
Profa. Miriam Limoeiro Cardoso, pretende trazer alguns pontos para discussão.
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A questão do real como objeto teórico, como concreto de pensamento.

A ação de conhecimento coloca em relação dois elementos: o sujeito e o objeto: O


conhecimento é o resultado da relação entre um sujeito que se empenha em conhecer e o
objeto de sua preocupação (Cardoso, 1976, p. 63). Nessa relação, o sujeito busca conhecer
o objeto. Esse objeto é o real, cujas evidências mostram a sua existência concreta e
imediata.

Essa afirmação, de forma geral, não comporta discussões. Independente das


concepções de mundo, de conhecimento e de realidade que sustentam a ação de
conhecimento, essa se dará na relação entre esses dois elementos: o sujeito e o real. O que,
nessa discussão, vai ser problemático é como o sujeito e o objeto de conhecimento são
entendidos nessa relação, qual o lugar que cada um desses elementos – sujeito e real -
ocupa no trabalho de investigação. Os argumentos, que pensamos, que podem contribuir
para essa discussão estão apresentados nos quatros trabalhos de Cardoso, já indicados, que
se dedicam, objetivamente, a pensar a questão da produção do conhecimento científico.

No nosso trabalho, não vamos nos dedicar a examinar as questões sobre o sujeito,
sobre o pesquisador. Três aspectos, no entanto, devem ser lembrados no que diz respeito à
ideia de sujeito cognoscente: é na vida social que o indivíduo aprende a pensar; essa
aprendizagem se dá desde o início da vida no mundo e, nesse processo de aprendizagem, a
linguagem tem lugar de destaque, pois é através dela que o indivíduo incorpora a forma de
pensar de uma sociedade. Nas palavras de Miriam Limoeiro Cardoso (1976), [...] O sujeito
que pensa aprende a pensar dentro da sociedade em que se encontra, antes mesmo de se
descobrir como ser pensante. [...] e com a linguagem incorpora a forma de pensar que ela
contém, como própria. [...] (p. 64).

A nossa preocupação é com o objeto a ser conhecido, com o real. Sem perder de
vista que, independente da perspectiva epistemológica que sustente o processo
investigativo, a ação de conhecimento é sempre uma ação que se dá em uma relação,
relação entre o sujeito e o objeto a ser conhecido, nos inquieta «que real é esse sobre o qual
o trabalho de investigação se volta?» e «qual o lugar que esse real ocupa no
desenvolvimento do trabalho de investigação?» Essas questões nos levam à discussão
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epistemológica, já que pensar um dos elementos do processo de conhecimento da realidade


significa, a rigor, discutir o significado de todo processo. Assim, ao trazermos a questão
sobre o objeto de conhecimento para o centro do debate, o que está-se discutindo, de forma
indireta, é a perspectiva epistemológica que comanda o processo de conhecimento das
diferentes temáticas investigadas.

Certamente, quando estamos falando de pesquisa em Ciências Sociais e Humanas e


no campo da Educação essa separação entre sujeito que investiga e objeto que é investigado
não é simples, não é tão pontual como gostaríamos e, que, até certo ponto, nos facilitaria o
trabalho de pesquisa. Essa identidade nos exige todo cuidado e esforço no sentido de
pensarmos os dois – sujeito cognoscente e objeto cognoscível – como sujeitos em lugares
diferentes, com especificidades próprias na dinâmica da investigação, mas, ao mesmo
tempo, como sujeitos em profunda relação.

Esse cuidado e esforço exigem que a objetividade, no caso da produção do


conhecimento nesses campos de pesquisa, seja entendida de forma diferente da ideia de
objetividade própria da investigação no campo das Ciências Exatas e Naturais. Cardoso
(1978) trata a questão da objetividade, no campo das Ciências Sociais, especialmente na
Sociologia, como objetivação progressiva (p. 34). Nesse processo de aproximação da
produção de um conhecimento objetivo, a cada momento, a retificação do conhecido, ideia
que Cardoso buscou em Gaston Bachelard, vai ajudando no processo de objetivação,
superando e negando a subjetividade, fazendo da objetividade uma tendência, uma
perspectiva.

Considerando, ainda, a definição de conhecimento, Mirian Limoeiro Cardoso


(1976) afirma que o conhecimento é o resultado da relação entre um sujeito que se
empenha em conhecer e o objeto da sua preocupação. [...] (p. 63). Essa definição supõe,
como condição de produção de resultados, uma relação. Tal relação é uma relação de
precariedade, quando, apesar de um longo processo de acúmulo de conhecimento, esse se
mostra precário frente ao seu próprio objeto, esse se mostra sem condições de resolver as
novas dúvidas que o objeto teórico apresenta.

Posteriormente, em um trabalho publicado em 1978, Cardoso completa a definição


inicial de conhecimento ao afirmar não só o comando do conhecimento no processo de
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entendimento do mundo, bem como, a distinção, a diferença entre o objeto real e o objeto
do conhecimento : É o conhecimento que coloca o mundo real como seu objeto, que desde
então é uma formulação, uma construção, a construção do objeto do conhecimento,
distinto do objeto real. [...] (p. 25). Nos dois momentos do esforço de definição,
encontramos indicadores de uma nova epistemologia. Esses indicadores, quais sejam, a
afirmação de que é o conhecimento que tem a possibilidade de fazer do mundo, objeto do
conhecimento, a ideia de relação de precariedade entre o conhecimento e o objeto teórico e
a certeza que há diferença epistemológica entre o objeto real e o objeto do conhecimento,
negam alguns pressupostos centrais à perspectiva epistemológica que está fundada na
experiência.

Para Cardoso (1976 e 1978), o conhecimento é um ato determinado pelo sujeito que
busca o conhecimento do mundo e, que, portanto, faz do mundo seu objeto de estudo. A
ação de conhecer é uma ação própria do homem, como sujeito capaz de pensar e de
construir os significados do mundo. De forma nenhuma, é o real que se dá a conhecer, de
forma nenhuma é a realidade que se faz objeto de conhecimento. É na relação entre o
sujeito e o mundo, que a realidade se torna objeto de conhecimento. Fora desse encontro,
não existe objeto a ser conhecido. Existe realidade, no entanto, [...] A realidade ela mesma
só se torna objeto como termo da relação, como coisa pensada [...] (p. 65. Grifos da
autora).

No que diz respeito à realidade, a autora (1976) afirma, ainda, que ela essa não é
simples. E, justamente, por essa condição, ou seja, por ser complexa e dinâmica, que o
conhecimento produzido sobre ela será sempre incompleto: [...] a realidade que a pesquisa
pretende conhecer permanece sempre mais rica do que a teoria que a ele se refere. [...] (p.
66). No entanto, apesar da sua complexidade, dinâmica e riqueza de sentidos e de fazeres,
Cardoso (1976) reafirma os limites da realidade na definição do processo de construção do
conhecimento, chamando a atenção para o fato de a realidade não dirigir o seu próprio
processo de entendimento, pressuposto primeiro da epistemologia empirista: [...] No fundo
é a realidade que importa, mas não é ela que comanda o processo de sua própria
inteligibilidade. [...] (pp. 64-65). Reconhecer a impossibilidade de o real trazer em si a sua
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inteligibilidade é, em outras palavras, questionar um princípio central na epistemologia


empirista que coloca a realidade na direção do processo de conhecimento.

Ao retirar da realidade o comando das regras e dos procedimentos de seu próprio


entendimento, certamente, Mirian Limoeiro Cardoso (1976) não está negando a existência
da realidade. Cardoso (1976) afirma a existência da realidade: a realidade existe, nos afeta
e nos [...] fornece elementos que os sentidos podem captar. Eles são percebidos,
apreendidos, interpretados, colocados como evidência a confirmar ou infirmar
formulações anteriores. [...] (p. 65). Entretanto, apesar de sua densidade, a informação que
recebemos do real, tudo que o real fala sobre si, não é suficiente para garantir o
entendimento da realidade. É preciso uma ação do pensamento sobre o real. Ação que não
vai idealizar o real, ação que não vai abstrair o real das suas marcas de existência, mas que
vai fazer com que esse real seja tratado de forma epistemológica, como um objeto teórico,
como um concreto de pensamento. A categoria de concreto de pensamento significa que,
diferentemente, do concreto real que é caótico, o concreto de pensamento é o real
apresentado como síntese de determinações: [...] um concreto do pensamento, diferente do
concreto real: enquanto esse é caótico, aquele é síntese determinada. (Cardoso, 1978, p.
36).

Essa discussão sobre objeto teórico como concreto de pensamento está baseada no
texto O método da economia política, de Karl Marx. Esse texto é uma parte da Introdução
publicada no livro Contribuição à Crítica da Economia Política. Cardoso, em 1990, faz
um estudo profundo sobre esse texto e mostra a crítica de Marx ao método para o
conhecimento das relações econômicas. Segundo Cardoso (1990), para Marx, os
economistas clássicos começaram o processo de conhecimento pelo real imediato,
confundindo o concreto com o real, partindo de categorias abstratas para tentar chegar a
categorias simples. Tal procedimento, a rigor, significa entender o mundo como um
conjunto de fenômenos, fenômenos que podem até se articularem entre si, apesar da
completude isolada de cada um, mas que não permite se chegar ao entendimento da
realidade:

Se a realidade não tem determinações, o mundo é um mundo de


fenômenos, completos em si mesmos, que quando muito se articula uns
com os outros. Nesse caso, o estudo não pode chegar propriamente a
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explicações, mas somente a descrições que precisem cada fenômeno, na


sua inteireza e nas relações (de superfície) que mantêm uns com os
outros. [...] (pp. 20-21)
No final do processo, é preciso um grande esforço no sentido de reunir todas as
informações sobre o real, pois partir do real para o abstrato, confundir o real com o
concreto, chegar ao abstrato pela fragmentação do concreto, do real não permite a
reapropriação, a reaproximação do real, pois o concreto, como ponto de partida, o real,
como aparece aos sentidos, é caótico, não faz sentido.

Em oposição a essa proposta epistemológica, Cardoso (1990) mostra que Marx


entende que o método científico correto é o que parte do abstrato, do teórico para o
concreto, entendido como o real com suas determinações: [..] O caráter de concreto está
estreitamente vinculado ao de determinação. O que conta de fato são as determinações.
Atinge-se o concreto quando se compreende o real pelas determinações que o fazem ser
como é. [...] (Cardoso, 1990, p. 24).

Para Marx (1974), partir dos fatores isolados e chegar à totalidade,

[...] é evidentemente o método científico correcto. O concreto é


concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da
diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de
síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o
verdadeiro ponto de partida e, portanto igualmente o ponto de partida da
observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a
plenitude da representação a uma determinação abstracta; pelo segundo,
as determinações abstractas conduzem à reprodução do concreto pela via
do pensamento. (p. 228)
Segundo Cardoso (1990), [...] Marx está propondo um procedimento novo, do
abstrato (determinações e relações simples e gerais) ao concreto (que então não é mais “a
representação caótica de um todo” e sim “uma rica totalidade de determinações e de
relações diversas”) (p. 23). O real só passa a ter sentido, só é conhecido, quando, no
processo de conhecimento, são explicitadas suas determinações. [...] O caráter de concreto
está estreitamente vinculado ao de determinação. O que conta de fato são as
determinações. Atinge-se o concreto quando se compreende o real pelas determinações que
o fazem ser como é. [...] (Cardoso, 1990, p.24). As determinações, embora sejam concretas
e reais, como objetos teóricos, são construídas, são identificadas pela ação do pensamento.
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Então, partindo do princípio que a concretude do mundo não está em ser real, pois
[...] para esta concepção, não basta ter realidade para ser concreto, (p. 24) chegamos ao
conhecimento quando encontramos as determinações desse real, quando fazemos desse
real, concreto de pensamento: [...] esse concreto é um concreto novo, porque pensado. É
um concreto produzido no pensamento, para reproduzir o concreto real (“as
determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento”)
[...]. (pp. 23-24). Mas, é preciso chamar a atenção que nessa forma de pensar o processo de
conhecimento do mundo, de modo algum, está-se afirmando que o concreto de pensamento
é o real. A realidade existe; não é uma construção teórica. O que está sendo explicitado
nessa questão é a distinção entre o real e o objeto teórico, entre o campo do real e o campo
do teórico (Cardoso, 1990, p. 290). Essa explicitação é dada nos seguintes termos: O
concreto produzido pelo pensamento não é o próprio real. A atividade do pensar não
produz senão pensamentos (ideias, conceitos) no campo que lhe é próprio, que é o campo
das abstrações. A atividade do pensar não é capaz de produzir realidades. [...] (Cardoso,
1990, p. 29)

Continuando a questão do comando do processo de conhecimento, Cardoso (1990),


com base no texto de Marx sobre o método da economia política, entende que cabe à razão
essa direção. No entanto, apesar de definir o processo de entendimento, o processo de
investigação, esse comando da razão só se realiza na sua relação com o real: [...] é a razão
que comanda o processo do conhecimento, mas ela não se torna realizante a não ser em
relação com a realidade. [...] (Cardoso, 1976, p. 32). Ao colocar o real como condição
para o exercício da razão, Cardoso dá lugar de destaque à experiência no processo de
construção do conhecimento. No entanto, dar lugar de destaque, reconhecer a necessidade
e a importância da experiência, certamente, não significa negar à razão a sua condição de
comando do processo de investigação. Cardoso (1978) reconhece a importância da teoria e
do trabalho teórico na construção das verdades aproximadas e objetivantes sobre o real.
Nesse empenho em afirmar o lugar do teórico, anterior ao lugar dos sentidos e da
experiência, Cardoso (1978) cita Piaget para quem [...] não existe leitura da experiência,
por mais precisa que seja, sem um quadro lógico-matemático; e quanto mais rico for o
quadro, mais a leitura é objetiva. [...] (Piaget apud Cardoso, 1978, p. 34). A essa ideia,
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Cardoso (1978) conclui: [...] O objeto sendo construído pela teoria, a uma teoria mais rica
e rigorosa corresponde um objeto mais específico e preciso. Ao longo das retificações a
objetividade se delineia como tendência. (pp. 34-35).

A necessidade e a importância da experiência aparecem no momento em que a


relação teoria e objeto teórico está frágil, precária, precisando de cuidados para não se
quebrar, para não se desmanchar, necessitando de atenção para se conservar. Nesse
momento, quando o conhecimento não dá mais conta do objeto teórico, surgem novas
questões e informações sobre a realidade e é preciso fazer com que o pensamento,
estimulado pelas informações trazidas pela observação e pela experiência, se volte para as
suas elaborações iniciais e busque uma nova elaboração teórica do objeto:

[...] Como, então, estabelecer-se uma relação de precariedade


entre a teoria e o objeto? Quando surgem dados novos colhidos e
acumulados pela observação e pela experimentação, que levam o
pensamento a voltar-se para os fundamentos da teoria, para “uma reflexão
sobre os conceitos iniciais”, para “uma colocação em dúvida das ideias
evidentes” [...] (Cardoso, 1978, p. 30);
É essa elaboração e re-elaboração teórica sobre o real que faz com que a realidade
se torne objeto de conhecimento. Portanto, sem esquecer que a realidade, ao se constituir
como objeto de conhecimento, é tornada inteligível, dentro de condições sociais e
epistemológicas já construídas pela sociedade, a questão importante, apresentada e
desenvolvida nos trabalhos da Profa. Mirian Limoeiro Cardoso, é a preocupação em deixar
claro que, no seu entendimento, no processo de construção do objeto teórico, que, a rigor, é
a realidade feita objeto de conhecimento, o real, como objeto de conhecimento, é
construído pelo conhecimento teórico, é formulado pela teoria, na relação sujeito – objeto,
passando, a partir do tratamento teórico, a ser fato científico, fato construído: [...] o
importante aqui é a relação entre a teoria explicadora e aquilo que ela explica, relação
que se apresenta no objeto do conhecimento: fato científico, construído. [...] (Cardoso,
1976, p. 65)

Somente esse real pode falar sobre si. E ele pode falar sobre si não a partir de si
mesmo, mas a partir da construção teórica sobre ele, que o faz objeto de conhecimento, fato
científico, fato construído. Assim, só o real, que a teoria, que o conhecimento teórico
formulou sobre, é que pode falar de si, que terá a última palavra sobre si: [...] o real que
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deverá fornecer a última palavra não é externo e concreto, mas o real que a própria teoria
formulou. [...] (Cardoso, 1976, p. 68). Dentro dessa perspectiva, onde não se dá ao real, a
possibilidade de estabelecer a verdade sobre si, Cardoso (1978) chama a atenção para o
pressuposto de que a certeza do conhecimento não vem do contato direto do conhecimento
com a realidade. A certeza do conhecimento vem quando o conhecimento consegue vencer
a dúvida, quando o conhecimento consegue solucionar a dúvida: [...] O conhecimento não é
imediato, a certeza não provém de uma leitura, de um contato direto com um objeto
externo. Não há um objeto inteiramente exterior se dando a conhecer, se mostrando. A
certeza é conquistada contra a dúvida, a certeza é o resultado do erro retificado. (p. 32).

A idéia de objeto teoricamente construído já anuncia uma distância significativa da


epistemologia empirista. No entanto, outro aspecto marca, ainda mais profundamente, a
diferença com a epistemologia tradicional. Esse aspecto é o ponto de partida do
conhecimento. Para a concepção empiricista de conhecimento, o conhecimento começa por
um movimento do sujeito empírico em direção a um real empírico, que se impõe ao
trabalho do sujeito, falando de si. Para a concepção epistemológica apresentada por
Cardoso, o conhecimento começa por um sujeito teórico em direção a um objeto já
teoricamente construído, o que significa afirmar categoricamente: só se pode chegar à
construção teórica do objeto se se parte do real como objeto construído teoricamente.

Essa ideia de objeto construído teoricamente faz com o que o conhecimento seja
caracterizado, também, como um processo de construção. E sendo um processo de
construção, o conhecimento sempre terá como resultado, uma verdade provisória, pois [...]
o conhecimento não é absoluto e [...] a verdade que ele nos dá é sempre uma verdade
aproximada. (1978, p. 25), pois a verdade, que ele nos traz, é sempre produto de uma
construção aproximada, provisória.

Diferentemente dessa forma de entendimento do conhecimento como processo de


construção, a concepção empirista de conhecimento, ao desconhecer essa dimensão de
construção do conhecimento científico e afirmar a possibilidade de os sentidos e de a
experiência nos levar à verdade sobre a realidade, trabalha com a ideia de término do
conhecimento quando se chega à condição de conhecimento verdadeiro ou à condição de
conhecimento falso sobre o real. Nesse processo, mudar a condição de verdade ou de
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falsidade do conhecimento científico pode, ainda que de forma muito tênue, indicar que os
sentidos e a experiência são instrumentos relativamente deficientes no processo de
conhecimento do real. Trazer uma outra verdade sobre o real é, em outras palavras, em
última instância, afirmar os limites dos sentidos para falar do real: se preciso modificar o
que passou pelos sentidos e pela experiência, a responsabilidade pelos limites do
conhecimento, nos parece, pode ser atribuída aos sentidos e à experiência.

Tratar o conhecimento como uma construção, não como o desvendamento de um


fato dado, não como a descrição de uma realidade gratuita, permite, ao processo de
conhecimento do real, lidar com a dinâmica do ato de conhecer, na medida em que aceita a
modificação do conhecimento anteriormente construído: [...] o conhecimento científico é
também uma construção, e como tal passível de sofrer modificações. (Cardoso, 1978, p.
34). E só nessa condição, ou seja, de construção é que o conhecimento da realidade pode
ser alargado, pois ele se faz em cima de construções teóricas, em processo de objetivação.
Uma construção que é feita não a partir do real em si, da realidade que é identificada pelos
sentidos e pela experiência, pois para a concepção epistemológica, aqui apresentada, [...] o
objeto da ciência não é um dado, [...] (Cardoso, 1978, p. 34), mas que é realizada a partir
de outro conhecimento [...] o conhecimento é uma construção. Não pode, pois, deixar de
partir de outro conhecimento. [...] (Cardoso, 1978, p. 33).

Assim, nessa lógica epistemológica, o real, aquilo que é dado aos sentidos, não
pode ser entendido como objeto do conhecimento científico. O que constitui o objeto de
conhecimento é aquilo que já foi construído, teoricamente, sobre o real, é o produto de todo
um processo de construção do conhecimento objetivo sobre a realidade [...] o produto de
uma construção progressivamente objetivante, [...] (Cardoso, 1978, p. 34).

Conclusão

Toda essa discussão trazida pela Profa. Mirian Limoeiro Cardoso, negando um
pressuposto fundamental da epistemologia empiricista, o pressuposto de que o
conhecimento é o esforço de desvendamento dos mecanismos do real tal como aparece aos
nossos sentidos e a nossa experiência, nos possibilita pensar o processo de construção do
conhecimento em novas bases.
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Segundo Cardoso (1976), uma epistemologia que parte da afirmação que o real a
ser conhecido é um pedaço de realidade, [...] concreto [...] (p. 63), independente do sujeito
e como tal não teria como enganá-lo, tenderá entender o sujeito como um indivíduo neutro,
concreto, que, ao mesmo tempo em que é capaz de chegar ao objeto puro, começa o
processo de investigação pelos sentidos e pela experiência, ou seja, um sujeito empírico:

[...] Pode-se supor, seguindo uma epistemologia espontânea, que


esta relação se dê entre o investigador considerado empiricamente, como
indivíduo concreto, personalizado e o pedaço de realidade, também
concreto, que ele tenha decidido pesquisar. Cada pessoa seria
inteiramente responsável pelas formulações que fizesse, pelas explicações
que desse, porque seu pensamento teria sido elaborado a partir do contato
com o objeto, que, sendo concreto e independente dele, não teria como
enganá-lo. Para sair-se bem bastaria que ele não se deixasse enganar por
si mesmo, isto é, se neutralizasse para impedir interferências
deformadoras do objeto, que deveria ser colhido em toda sua pureza.
(Cardoso, 1976, p. 63).
Assim, o entendimento do real como pedaço da realidade, como real concreto, como real
empírico não acontece sem que o sujeito cognoscente seja entendido da mesma forma.
Dessa forma, não é só o real que é empírico. O sujeito que se aproxima desse real, também,
é um sujeito empírico.

Essa concepção epistemológica, que compreende um sujeito que busca conhecer e


uma realidade que se dá conhecer, [...] um pedaço de realidade [...] (Cardoso, 1976, p.
63), como foi destacado, em vários momentos acima, é criticada por Cardoso e pelos
argumentos que afirmam ser o real um objeto construído teoricamente. A crítica não é só
porque tal epistemologia nega o projeto sócio-histórico no qual sujeito e realidade estão
inseridos, mas, também, porque a epistemologia empirista parte do princípio que o
conhecimento é o resultado do investimento racional do pesquisador sobre a realidade que
está a sua frente, realidade que se mostra “pura”, inteira, fenomênica, tal como é.

De forma nenhuma esse é o ponto de partida do conhecimento para Mirian


Limoeiro Cardoso. Cardoso afirma categoricamente que [...] as evidências são
sistematicamente enganadoras. [...] (1978, p. 25). O real, o objeto real, a realidade que se
torna objeto de conhecimento não é o real em si mesmo, não é o real na sua em condição
de coisa concreta. É o real já pensado, já conhecido que é feito objeto de conhecimento.
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Há uma diferença profunda entre o objeto real e o objeto de conhecimento. Não é o objeto
real que se torna objeto de conhecimento. Para que o real se torne objeto de conhecimento
é preciso que esse real seja um objeto teórico. Nessa epistemologia, então, o processo de
conhecimento, ao seu final, chega a um objeto construído teoricamente.

Essa forma de entendimento do objeto de conhecimento indica, concretamente, uma


nova forma de conceber a relação sujeito – objeto que marca o processo de conhecimento.
Essa nova forma de pensar a relação de conhecimento vai colocar nas duas pontas do
processo cognitivo, um sujeito teórico, e uma realidade que é um objeto teórico. O processo
de conhecimento começa e termina no campo do teórico. O teórico não é o final do
processo de conhecimento; é, ao mesmo tempo, seu começo e seu fim. O processo de
conhecimento parte do objeto teórico, não parte das aparências do fenômeno, não parte do
real como tal e termina em um outro objeto teórico, substancialmente diferente do objeto
teórico do ponto de partida.

Referências bibliográficas.

CARDOSO, Mirian Limoeiro. O mito do método. Boletim Carioca de Geografia. Rio de


Janeiro, 1976, Ano XXV, pp. 61-100.

CARDOSO, Mirian Limoeiro. La construcción de conocimientos: cuestiones de teoria y


método. México: Ediciones Era, 1977.

CARDOSO, Mirian Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento: Brasil: JK – JQ. Rio de


Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

CARDOSO, Mirian Limoeiro. Para uma leitura do método em Karl Marx: anotações sobre
a "Introdução" de 1857. Cadernos do ICHF, UFF, ICHF, Rio de Janeiro, 1990.

MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Editorial Estampa,
1974, 228-237

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