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Sacra Soberana

Wanju Duli
2016
Imagem de Capa: © Korionov | Dreamstime.com

Design de Capa: Luiggi Ligocky


Sumário
Capítulo 1: Casa de Carnes.............................................5
Capítulo 2: O Chicote de Deusa..................................28
Capítulo 3: As Duas Cobras e os Dois Arco-íris......48
Capítulo 4: O Peregrino do Deserto e o Pássaro do
Céu...................................................................................74
Sacra Soberana

Capítulo 1: Casa de Carnes

– Por que está me olhando?


Levei um susto. Eu não tinha intenção de olhar na
direção dela. Foi realmente sem querer.
No entanto, fiquei sem palavras. Baixei os olhos.
– Por que baixou os olhos?
Nesse momento, eu estava suando.
Pronunciei algumas palavras. Ainda assim, a voz
não saiu.
Ela se aproximou de mim. Quase dei um passo
para trás.
– O que foi? – ela perguntou – não ouvi.
– Eu... eu não...
– Eu ordeno que você fale em voz alta e clara.
– Meus olhos se perderam – eu disse – esses olhos
estúpidos.
– Você é estúpido e não os seus olhos – ela
retrucou – espero que tenha mais educação daqui em
diante.
– Sim, senhora.
Ela continuou a me fitar com aqueles olhos
negros e arrebatadores.
– E então?
– Perdão? – perguntei.
– Exijo que peça desculpas. Onde estão as suas
maneiras?
– Me desculpe.

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A expressão dela mudou ligeiramente. Ela me


olhou com uma intensidade maior. Aquela força me
machucou.
– Você me pede desculpas assim, como se tivesse
olhado para um cachorro ou um porco? Não é assim
que deve ser feito. Ajoelhe-se.
Não contestei. Ajoelhei-me diante dela, baixei a
cabeça e disse:
– Peço profundas desculpas, senhora. Isso não irá
se repetir.
– Você é atrevido. Quero que seu corpo inteiro
toque o chão, numa reverência de completa expiação.
Eu obedeci. Deitei-me no chão sujo da rua, de
barriga para baixo. Meu rosto também tocou o chão.
– Fale – ela pronunciou, com sua voz grave.
– Senhora, eu sou um verme. Jamais deveria ter
permitido que esses olhos malditos se voltassem para
a vossa existência sublime. Mereço o mais severo dos
castigos.
Ela revirou os olhos e cruzou os braços.
– Mas que exagero. Que teatro! Por que se
humilha dessa forma? Por que se degrada?
Eu não respondi. Continuei com a testa no chão.
– Eu te fiz uma pergunta – insistiu ela.
– Não é uma degradação, minha senhora. Como
foi tão bem colocado pela madame, é uma expiação.
Que Deusa me perdoe.
– É claro que ela não vai perdoar um pedaço de
merda como você.
Ela cuspiu na minha cabeça. E saiu de lá.
Ainda esperei alguns segundos para me levantar.
Quando o fiz, estava aliviado. Tive quase certeza de
que seria espancado. Eu tive muita sorte.

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As pessoas que passavam na rua naquele instante


nem pararam para me olhar. Afinal, aquela era uma
cena comum.
Eu ainda me sentia um pouco culpado por ter
fitado uma respeitável mulher. Por isso, antes de
voltar para a Casa das Carnes, resolvi passar na igreja
para me confessar.
A igreja local, chamada Paróquia Nossa Senhora
Suprema, era um dos lugares que mais me dava
alegria. Eu me sentia muito bem ao estar na sagrada
casa de Deusa. Afinal, Deusa é justa. Mas Deusa
também perdoa aquele que sinceramente se
arrepende.
E meu arrependimento não era somente um
fingimento. Eu tinha um sentimento genuíno de ter
cometido um erro e agora ia fazer a coisa certa:
buscar a misericórdia e o perdão de Deusa.
Quando entrei naquele templo maravilhoso,
encantei-me ao fitar seu interior. Eu nunca deixava
de me encantar com aquela beleza. Afinal, as ruas de
nossa cidade eram sempre muito sujas e feias. Mas lá
dentro era um dos únicos lugares que eu tinha
permissão de entrar que era extremamente limpo e
belíssimo.
No altar, estava a estátua de Deusa, aquela que
morreu por nós. Ela estava lá, com toda sua
magnificência, derramando seu sagrado sangue
menstrual.
Eu admirava muito o fato de as mulheres serem
assim, sempre tão fortes e tão heroicas. Afinal, como
estava escrito na Biblilia, somente as mulheres
possuíam força e coragem inatas. Além de serem
superiores aos homens por serem capazes de gerar

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um filho, elas suportavam as dores do parto. Para


aguentar tamanha dor e a dor mensal das cólicas
menstruais, com a visão do sangue, elas possuíam,
sem dúvida, uma força de vontade e tenacidade
muito superior ao homem. Isso fazia muito sentido
para mim.
Os ensinamentos da Biblilia eram muito lógicos. A
Biblilia ensinava que apenas uma Deusa, e jamais um
Deus, poderia morrer pela mulheridade. Os homens
eram fracos e ficavam em dúvida. As mulheres eram
fortes e sempre sabiam o que queriam. Além do mais,
elas possuíam o ideal de sacrifício, uma capacidade de
salvar os outros, dedicar a vida e a morte pelos
outros. Os homens não eram capazes disso. Eles só
possuíam uma força grosseira e bruta, enquanto as
mulheres possuíam beleza e inteligência.
Por isso, eu achava muito natural as ordens da
Biblilia: as mulheres comandavam e os homens
obedeciam. E eu poderia dedicar minha vida a elas e
morrer por elas.
Ajoelhei-me diante de Deusa e rezei cinquenta
“Mães Nossas”.
Depois de rezar, fui confessar-me com a
sacerdotisa.
A sacerdotisa ficava no interior de um local
fechado de cristal rosa e brilhante. Toda a igreja era
rosa. Eu jamais era capaz de ver o rosto da
sacerdotisa da minha paróquia, pois os homens não
possuíam permissão para isso. Apenas as mulheres.
Os homens tinham que cobrir o rosto inteiro com
um véu rosa quando rezavam, pois eles não eram
considerados dignos de fitar a estátua da Deusa sem
esse véu.

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Em vez de achar isso ruim, eu achava muito bom,


pois os mandamentos de Deusa são perfeitos.
Achava perfeito que houvesse essa diferença entre a
reza dos homens e das mulheres. Deusa não era
igualitária, ela era justa, e tratava cada um conforme
merecia.
Eu não tinha escolhido nascer homem, mas
mesmo assim tinha orgulho de ser homem, pois
Deusa criou o melhor dos mundos possíveis. Um
mundo em que homens eram cuspidos com justiça
era melhor que um mundo em que homens não eram
cuspidos. Pois Deusa tem sabedoria infinita e só
pode ter criado o melhor mundo.
Como sempre, era tudo de uma lógica impecável.
– Ajoelhe-se, homem.
Eu ajoelhei-me. A voz da sacerdotisa era
melodiosa, bela e respeitável.
– Antes da confissão, repita dez vezes: “Perdão
por ter nascido homem, Deusa. Perdão por ter
nascido esse ser ridículo, violento e burro. Eu honro
as mulheres, nobres, pacíficas e inteligentes”.
Repeti dez vezes.
Alguns críticos da Igreja usavam esse ritual como
argumento de que a Igreja era misândrica e
considerava os homens como inferiores. Mas esse era
somente um erro de interpretação.
É claro que esse ritual não devia ser interpretado
de forma literal, mas apenas simbólico. Todo ser
racional poderia constatar que eu não tive culpa de
nascer homem, mas eu pedia perdão mesmo assim
apenas por humildade, para aprender a não colocar a
culpa do meu sofrimento em Deusa e sim nas minhas
próprias fraquezas.

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Além do mais, é claro que homens e mulheres não


são iguais. Homens possuem mais força física.
Mulheres mais inteligência. Qualquer um pode
constatar essas diferenças, pois elas são
incontestáveis. Logo vê-se que é natural que os
homens nasceram para obedecer as mulheres,
servindo-as com o auxílio da força física e realizando
predominantemente trabalhos braçais, enquanto as
mulheres, como imagem de Deusa, ocupavam-se dos
trabalhos intelectuais, já que eram mais capacitadas
para isso.
– Pode começar a falar, homem – disse a
sacerdotisa.
– Muito obrigado. Vim fazer uma confissão.
– Isso logo percebe-se. Não sei porque os homens
possuem tanta necessidade de fazer obervações
óbvias e evidentes.
– Perdão. O fato é que hoje mais cedo uma
mulher passava na rua e olhei para ela por alguns
segundos, embora não tivesse a intenção.
– Isso é muito grave. Reze setenta e sete Mães
Nossas.
– Está certo.
– Não desanime. Você sabe bem que os homens
também possuem um papel nos planos de Deusa.
Até mesmo louva-se o Pai de Deusa, nós o
homenageamos. Afinal, o maior feito que um homem
pode fazer é gerar uma filha mulher.
– Eu sei. Obrigado.
– Que Deusa conserte sua estupidez e suas
naturais tendências masculinas violentas.
– Agradeço profundamente...
E eu saí da igreja, repleto de paz e felicidade.

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Aquela era mesmo uma boa religião.


Sinceramente, se não fosse a crença em Deusa, eu
possivelmente já teria entrado numa depressão
profunda.
A minha vida na Casa de Carnes não era fácil. Mas
eu ainda assim me sentia agradecido, pois eu era parte
de uma das classes sociais mais altas possíveis para os
homens.
Assim que entrei na Casa, peguei balde e esfregão
e ajudei meus amigos a limpar o chão. Afinal, se a
inspeção viesse e a Casa estivesse suja, podíamos ser
punidos. Por isso, limpávamos todo dia a Casa de
forma dedicada.
– Olá João – cumprimentou-me Gabriel – como
tem passado?
– Muito bem – eu disse – tive apenas um pequeno
incidente no caminho e fui me confessar na igreja.
– Que incidente?
– Olhei para uma mulher.
– Como você é descuidado!
– Sou mesmo. Reconheço que errei, mas agora já
me sinto limpo. Fiz minha confissão.
– Você é um grande idiota, sabia? Por que foi se
confessar? Sabe bem que não tem nenhuma
obrigação de fazer isso.
Aquele era Miguel.
Miguel, diferente de todos nós, era um intelectual.
Ele gostava de ler livros.
Poucos de nós sabíamos ler. Saber ler não era
necessário para um homem. Eu mesmo era
semianalfabeto. Só aprendi a ler um pouco para
poder ler passagens da Biblilia, embora isso não fosse

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tão necessário, já que eu conhecia meu trechos


preferidos de cor.
Mas com Miguel foi diferente. Ele aprendeu a ler
sozinho, já que nós homens não tínhamos permissão
de frequentar escolas. A educação era algo somente
para mulheres. Nós, homens, só aprendíamos ofícios
predominantemente braçais, como limpar o chão ou
levantar coisas pesadas.
Nós éramos terminantemente proibidos de
aprender a cozinhar e a costurar. Esses dois eram
considerados ofícios sagrados e artes. Ser cozinheira
ou costureira estavam entre as profissões mais
respeitáveis do país e eram alguns dos cursos mais
procurados nas universidades.
Desnecessário dizer que essas duas atividades
nobres eram proibidas para homens. Quando muito,
homens de alta classe social podiam ser auxiliares de
cozinha e apenas obedeciam as ordens da cozinheira
chefe nas tarefas menos importantes. Mas mesmo
isso era uma grande honra, privilégio de poucos.
Nas universidades, as cozinheiras estudavam os
princípios da nutrição e as costureiras estudavam
tudo sobre moda. Eram, indubitavelmente, ofícios
importantes e grandiosos, que não podiam ser
entregues para qualquer um. Afinal, comer e se vestir
estavam entre as atividades mais básicas.
As mulheres também exerciam profissões como
medicina, farmácia, arquitetura, engenharia, dentre
muitas outras. Mas os homens eram chamados para
ser pedreiros, pois quando envolvia força física os
homens eram normalmente usados, nem que fosse
para apenas obedecer sem tomar decisões
importantes.

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Na verdade, nós homens não tínhamos permissão


de saber muitas coisas. Mas Miguel estudou e nos
contou.
Poucos livros eram permitidos para homens. Até
mesmo os livros religiosos foram proibidos a nós por
muito tempo. E os homens só tinham permissão de
ler a versão masculina da Biblilia. Não podíamos ler a
versão feminina, que era uma bela Biblilia cor-de-rosa
felpuda, dez vezes maior e trilíngue.
Miguel tinha acesso a livros proibidos e se uma
mulher chegasse a descobrir isso poderia delatá-lo. Se
as autoridades tomassem conhecimento, Miguel seria
enforcado.
Um homem não poderia delatar Miguel. Se
qualquer um de nós contasse às autoridades que
Miguel estava lendo livros proibidos, nenhuma das
oficiais o levaria a sério. Afinal, homens são burros e
pouco confiáveis. Eles provavelmente estariam
contando mentiras.
De fato, já se teve vários relatos de homens que
contaram mentiras para as oficiais, então, por
experiência, eu só podia concordar que homens eram
realmente mentirosos por natureza e pouco
confiáveis.
Como vê, o mundo possui regras próprias, que
podem ser facilmente percebidas pela lógica e pela
experiência. Mas às vezes a nossa lógica e nossos
sentidos físicos podem nos enganar. Por isso,
devemos confiar nos mandamentos de Deusa.
Os mandamentos eram os seguintes:
1- Adorar a Deusa e amá-la sobre todas as coisas.
2- Não usar o Santo Nome da Deusa em vão. Isso
inclui não chamar mulheres por seus nomes e sempre

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referir-se a elas por “senhora”, pois elas são a


imagem da Deusa.
3- Santificar as Sextas e festas de guarda, pois
sexta é o dia regido por Vênus.
4- Honrar pai e mãe, mas honrar mais a mãe, já
que ela representa a sabedoria e domina o lar, e o
homem é só a força bruta e a obedece.
5- Não matar, a não ser que você seja uma mulher
e mate um homem. Nesses casos é permitido, pois é
como matar uma galinha e se alimentar dela. Não há
grande pecado se o motivo que levou a mulher a
matá-lo é bem justificado.
6- Guardar castidade nas palavras e nas obras. As
mulheres podem fazer sexo com quantos homens
quiserem. Os homens, pelo contrário, devem manter
a virgindade até os vinte anos. Uma semana antes de
completar vinte anos, deverão oferecer o seu esperma
para uma mulher que os escolheu. Posteriormente, os
homens serão sacrificados, pois uma vez que não são
mais virgens estão impuros e não servem para nada.
7- Não furtar, mas é aceitável que uma mulher
roube bens da casa dos homens quando precisa. Um
homem que rouba uma mulher deve ser enforcado.
8- Não levantar falsos testemunhos. Uma mulher
pode mentir quando necessário, pois possui a
sabedoria para contar mentiras sem causar dano. Os
homens, por outro lado, são naturalmetne
mentirosos e devem se policiar para sempre dizer a
verdade.
9- Guardar castidade nos pensamentos e desejos.
Uma mulher pode olhar um homem de forma lasciva
e fazer sexo com ele quando desejar, incluindo
violentá-lo. Um homem deve se sentir grato por ter

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sido violentado por uma mulher, mas caso isso


aconteça ele deverá ser sacrificado em seguida, pois já
não é mais puro. Por outro lado, o homem jamais
pode sequer olhar para uma mulher. Caso encoste
nela, mesmo que por acidente, deve ser chicoteado.
10- Não cobiçar as coisas alheias. A mulher pode
cobiçar porque sua cobiça é pura. O homem, por
outro lado, é traiçoeiro.
– Sei que não tenho obrigação de me confessar –
eu disse para Miguel – mas me confesso mesmo
assim porque é a coisa certa a fazer.
– Quem disse? – ele perguntou – por que você
segue essa religião ridícula? Você concorda mesmo
com esses mandamentos absurdos?
– Claro que concordo, pois eles são divinos. Se eu
não os entendo plenamente, é porque minha visão é
limitada, mas Deusa sabe mais.
– Em primeiro lugar, porque é uma Deusa e não
um Deus? – perguntou Miguel.
– Mas isso é óbvio – respondi – somente uma
Deusa mulher poderia ter a sabedoria e coragem de
morrer por nós e nos salvar. Homens são burros e
covardes, não conseguem salvar nem a si mesmos.
Eles são como bestas de carga, só possuem força
física e feiúra. Como um macaco peludo poderia ser
um Deus?
– Você está cego – disse Miguel – concorda com
essas tolices, Gabriel?
– Eu... eu não sei – respondeu Gabriel – prefiro
não opinar.
Gabriel era sempre bonzinho e educado. Queria
ser amigo de todos. Ele ia na igreja comigo, mas
também escutava Miguel. Tentava sempre agradar

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todo mundo. Era a pessoa mais sincera e gentil que


eu conhecia. Ele até mesmo nos ajudava a limpar a
casa mesmo quando já tinha terminado sua parte, só
para nos agradar.
Ele era tão bom e puro quanto uma mulher.
Quando eu disse isso para ele uma vez ele sorriu,
pois é claro que ele se sentia muito honrado por ser
comparado com uma mulher.
– Quem disse que uma mulher é mais inteligente
que um homem? – perguntou Miguel.
– Isso é lógico, não vê como as maiores invenções
sempre são realizadas por mulheres? – perguntei.
– Isso porque elas não permitem que a gente
frequente colégios e universidades e tenhamos uma
boa educação! – protestou Miguel.
– Mas lugar de homem não é no colégio – eu disse
– lugar de homem é na pedreira.
– Você precisa ler – disse Miguel – eu descobri
recentemente que nem sempre foi assim. É verdade
que pela maior parte da história as mulheres tem nos
oprimido, mas eu descobri em livros que há muito
tempo, uns dois mil anos atrás, houve civilizações em
que homens também tinham direito a participar dos
estudos intelectuais e eram capazes de se destacar
neles.
– Mas isso são exceções – argumentei – é verdade
que um ou outro homem talvez possa mostrar
destaque intelectual. Mas, como regra geral, a maior
parte das mulheres são mais inteligentes que os
homens. Isso é a natureza. Um homem pode se
esforçar e tentar ser tão bondoso e esperto como
uma mulher. Mas isso é só uma alegoria. É como um
homem que tenta se tornar a Deusa. Muita pretensão.

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Precisamos ser humildes e aceitar o que nos é


imposto. É isso que ensina a nossa religião.
– Eu questiono essa religião – disse Miguel – veja
só esse segundo mandamento. Sabemos que se nos
referirmos a uma mulher por “menina” ou “garota”
poderemos ser mortos. Elas, por outro lado, nos
chamam de “menino” o tempo todo, como forma de
nos ridicularizar e nos infantilizar.
– É que, perto delas, somos como crianças, em
quesito sabedoria e desenvolvimento espiritual.
– Elas dizem que os homens são naturalmente
violentos e possuem um desejo sexual muito forte e
que por isso precisam ser domados – prosseguiu
Miguel – para início de conversa, eu não tenho
nenhum desejo sexual por mulheres, pois sou gay.
Então que negócio é esse? Elas querem me proibir de
olhar para elas ou tocar nelas, quando não tenho o
menor desejo de fazer isso.
– Bem, mas é melhor se precaver, pois pode ser
que um homossexual tenha tendências heterossexuais
ocultas.
– Que bobagem – disse Miguel – você é
heterossexual. Se considera com tendências
homossexuais ocultas?
– Não sei ao certo. Provavelmente não, mas talvez
sim? Só Deusa sabe.
– Você é muito passivo.
– Obrigado. Sinto-me honrado. Está na Biblilia
que os homens devem ser submissos, passivos,
obedientes e silenciosos, pois isso agrada as
mulheres.
– Cara – disse Miguel – você sofreu uma lavagem
cerebral severa.

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– Obrigado. Está na Biblilia que quando um


homem sofre lavagem cerebral pela religião, trata-se
de uma lavagem sagrada e muito pura. É diferente de
sofrer lavagem cerebral por essas tendências
igualitárias que estão tão na moda hoje em dia. Essas
coisas são criações impuras dos homens e não de
Deusa.
– O meu maior medo é que sei que você
realmente acredita nisso – falou Miguel – e você
também acredita que os homens são naturalmente
mais violentos que as mulheres?
– É claro que sim. Nós possuímos mais força
física e somos burros. Somos quase animais. Se não
formos domados pelas mulheres, é óbvio que
seremos tomados por nossos instintos animais e
iremos matar pessoas e violentar mulheres. Você, que
já leu tanto, nunca ouviu falar no alto número de
estupros que os homens realizavam no passado? Mais
de 99% dos estupros eram cometidos por homens!
– De onde você tirou essa estatística? – perguntou
Miguel, desconfiado – infelizmente, hoje 100% dos
estupros, torturas e assassinatos são cometidos por
mulheres. O que tem a dizer sobre isso?
– Bom, mas se tratam de estupros e assassinatos
sagrados – expliquei – realizados com equanimidade
e sabedoria.
– Caralho – disse Miguel – você está mesmo
falando sério?
– Não pronuncie essa palavra – eu disse – você
sabe que os órgãos sexuais dos homens são feios e
impuros, ao contrário dos órgãos sexuais das
mulheres.

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– Desisto de conversar com você – falou Miguel –


o que tem a dizer sobre isso, Gabriel?
– Eu... não tenho a dizer nada – falou Gabriel.
– Não sei o que detesto mais, as visões absurdas e
fanáticas de João ou a sua absoluta falta de
posicionamento – disse Miguel – diga alguma coisa!
Qualquer coisa!
– Bem... – começou Gabriel, timidamente – acho
que vocês dois levantaram bons pontos. E, de certa
forma, cada um está certo dentro de seu determinado
ponto de vista.
– Está afirmando que a verdade é relativa? –
perguntei, escandalizado – sabemos bem que a
verdade está na religião e na Deusa.
– Não disse que a verdade é relativa – defendeu-se
Gabriel – só disse que, considerando a visão religiosa,
você está correto. Mas que Miguel também está
correto em estudar para aprender mais.
– Você acha correto questionar a nossa religião,
quando Deusa deixou bem claro que não é
apropriado que os homens estudem? – desafiei-o.
– Mas se Miguel não tivesse lido livros, não
saberíamos que é possível esquentar comida fria com
um pouco de fogo – argumentou Gabriel.
– Grande coisa! – exclamei – por que você se
preocupa com prazeres mundanos como comer
comida quente, quando o desenvolvimento espiritual
é muito mais importante?
– Mas não é só prazer, é também questão de
saúde – disse Gabriel – Miguel nos ensinou que
cozinhar alimentos é importante para matar os
germes.

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– Há três coisas erradas no que você disse – falei –


primeiro, saúde não é mais importante que
espiritualidade. Segundo, homens não podem
cozinhar, devem apenas receber com gratidão os
restos de comida fria e estragada que as mulheres
gentilmente nos dão de esmola. Terceiro, não existem
germes! Isso é um mito! Deusa não falou nada sobre
pequenos seres invisíveis na Biblilia, então você não
deve acreditar neles.
– Mas...
– Siga a lógica! – eu insisti – Deusa causa doenças
em quem é pecador e não os germes. Além do mais,
germes não teriam alma se existissem. Imagine um
monte de seres minúsculos com um monte de
alminhas. Que bobagem!
– Eu acho que seria bonitinho... – comentou
Gabriel.
Miguel riu.
– Gabriel, como você é gracioso – disse Miguel –
diga a verdade, João: acha mesmo que Gabriel é mais
violento que uma mulher? Ele não faria mal a uma
mosca!
– Ele pode ser mais gentil que muitas mulheres,
mas não é mais gentil que as mulheres em geral –
argumentei – porque a Biblilia nos diz isso.
– Enfia no cu essa Biblilia!
– O quê?
– Você ouviu.
– A religião proíbe a masturbação masculina – eu
disse – porque devemos estar puros para quando
formos doar o nosso esperma para uma mulher
superior.

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– Eu não quis dizer se masturbar com... ah,


esquece! – disse Miguel – você é mais fanático
religioso que as próprias mulheres. Isso é
inacreditável. Você aceita mesmo que os homens são
naturalmente inferiores às mulheres?
– Mas não é exatamente isso que a religião diz –
expliquei – ela só mostra que homens e mulheres
cumprem papeis diferentes na criação. Além do mais,
podemos interpretar em nossos dez mandamentos
que na verdade as mulheres tratam os homens com
respeito e reconhecem sua importância.
– Se você é capaz de interpretar esses
mandamentos dessa forma, você realmente deve ter
uma inteligência excepcional – comentou Miguel –
até mesmo superior a das mulheres.
– Viu? Você acabou de dizer que as mulheres são
mais inteligentes que nós! – comentei, satisfeito.
– Droga – disse Miguel – bem, foi sem querer. Foi
apenas força de hábito. Eu não penso isso realmente.
– Pensa sim. No fundo esse pensamento está
dentro de nós. Não é uma criação cultural, mas algo
natural. Já parou para pensar que a religião não
expressa fielmente nossos ideais igualitários? A
religião é a verdade. E a verdade nem sempre é bela,
conveniente ou politicamente correta.
– Sei disso – falou Miguel – não acho que a
verdade seja bonita. Mas eu acho que as mulheres
distorceram um pouco a verdade para nos manipular.
E quando digo “um pouco” estou sendo bem
generoso.
– Consigo ter uma boa vida sem ter religião e sem
tampouco ter ideais políticos – disse Gabriel – não
quero saber o que é a verdade e também não tenho

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interesse em questionar os costumes sociais


estabelecidos. Por que cada um de nós não pode
apenas dar o seu melhor na situação em que se
encontra? Apenas faço a minha parte.
– A sua parte é obedecer a ordens cegamente e ser
escravo das mulheres? – perguntou Miguel,
aborrecido.
– Não sou um escravo, eu sou livre – disse
Gabriel – afinal, eu tenho a liberdade de fugir ou
cometer suicídio, mas não quero.
– Suicídio é pecado – falei – sua alma iria para o
inferno masculino imediatamente. E todos sabemos
que o inferno masculino é muito pior que o
feminino. Mulheres raramente caem no inferno, mas
homens caem lá frequentemente.
– O que uma mulher precisa fazer para ir para o
inferno? – perguntou Miguel – explodir a cidade
inteira?
– Matar outra mulher.
– É óbvio, como não pensei nisso antes? –
ironizou Miguel – além do mais, Gabriel, para onde
você fugiria? Todos os países são assim nos dias de
hoje, preconceituosos contra homens, especialmente
os brancos e heterossexuais.
– As mulheres preferem os homens gays porque
elas dizem que eles são mais pacíficos e femininos –
comentei.
– Eu sou gay – argumentou Miguel – você me
considera mais feminino?
– Bem... não – concluí – e também não me parece
muito pacífico, com essas suas ideias subversivas e
perigosas.

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– E por que a pele negra é considerada superior a


branca? – perguntou Miguel – eu sou mulato, mas
você é branco, João. Não se sente discriminado?
– As mulheres já me disseram que não sou
sexualmente atraente, porque sou branco – eu disse –
mas na verdade há um motivo lógico por trás disso.
Não é você o leitor? Vai me dizer que é mentira que
o primeiro ser humano surgiu na África?
– É o que dizem – disse Miguel.
– Além do mais, é óbvio que a pele negra é mais
bela e poderosa – expliquei – ela exalta nobreza. A
pele negra é normalmente mais bonita e jovial. Os
negros demoram mais para envelhecer e ficar com
cabelos brancos. Além do mais, os brancos sempre
estão cheios de espinhas, de manchas, de sardas, de
coisas vermelhas e feias. E os brancos fedem. Já
cheirou um branco quando está suado? Ele cheira
mal. Por outro lado, um negro sempre tem aquele
odor natural como um perfume.
– Eu tenho? – perguntou Gabriel, que era negro.
– Claro que sim – falei – eu o invejo. As mulheres
são loucas por você.
– Você quer dizer, as poucas mulheres que são
heterossexuais – observou Miguel – praticamente
todas as mulheres que estão no poder hoje em dia
são negras e lésbicas. Elas só usam os homens para
reprodução e depois jogam fora. Você acha isso
ético?
– Acho – falei – porque é nosso dever servir as
mulheres. Elas já são bem generosas ao nos deixar
viver até os vinte. Elas já podiam obter o que
queriam quando tivéssemos uns treze anos, mas por
misericórdia nos deixam viver mais sete anos.

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– É claro que elas possuem vantagens nisso, pois


adolescentes mais velhos podem realizar trabalhos
braçais mais pesados – disse Miguel.
– Certo, Miguel, vamos supor que você tenha um
pouco de razão – concedi – mas só um pouquinho. E
o que pretende fazer? Vai iniciar uma revolução? Vai
reunir todos os homens e entrar em guerra contra as
mulheres? Pois saiba que se estiver planejando isso eu
não me aliarei a você. Ficarei do lado das mulheres e
da Deusa.
– Sei disso – falou Miguel.
– Você não acredita mesmo na Deusa?
– Acredito no divino – disse Miguel – mas não
acho que o divino necessariamente seja mulher. E
não acho que esse divino queira escravizar os
homens.
– Deusa não existe para a sua conveniência – eu
disse – apenas aceite a verdade.
– Como você é capaz de reconhecer a verdade? –
perguntou Miguel.
– É verdade porque já tem sido feito desse jeito há
muito tempo. É um conhecimento antigo e ancestral.
– Isso se chama tradição e não verdade.
– A tradição é um princípio democrático –
argumentei – e vale muito mais a pena confiar na
sabedoria da multidão do que na aristocracia de um
poucos pensadores, iludidos pelos preconceitos de
seu tempo, que podem se enganar.
– Onde foi que você aprendeu todos esses termos
difíceis? – perguntou Miguel, impressionado.
– Na Biblilia – respondi.
– É claro, onde mais seria? – disse Miguel.

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Sacra Soberana

Naquele instante, houve uma batida na porta. Nós


nos calamos imediatamente.
Dei alguns passos para frente e atendi. Era uma
mulher.
Nós três baixamos os olhos na mesma hora.
– A que devemos essa honra, senhora? –
perguntei.
– Bem, eu amo sexo e quero foder – explicou ela
– e eu gosto da carne de homens. Aqui é a Casa da
Carne. Isso significa que vocês estão guardando a
virgindade de vocês para o sagrado sacrifício, certo?
– As palavras da senhora são cheias de sabedoria –
observei – é exatamente assim que as coisas são.
– Vocês três estão com dezenove anos?
Nós confirmamos silenciosamente.
Ela nos rodeou, nos analisando dos pés a cabeça,
enquanto ainda mantínhamos os olhos baixos.
Pelo pouco que vi, notei que ela era uma negra
linda, com cabelos negros bem crespos e volumosos.
Ela tinha um ar de nobreza e isso também ficava
claro em suas nobres vestes e joias.
– Você tem olhos e cabelos castanhos – ela
comentou para mim – parece merda!
– De fato, senhora – comentei – fui no banheiro
hoje e me perguntei a mesma coisa: como sou um ser
inferior por ter cabelos cor de cocô.
– Cale-se!
Ela berrou isso no meu ouvido. Foi tão alto que
mesmo depois do grito minha cabeça ainda
continuou latejando por um tempo.
Ousei dar uma espiada, enquanto ela não estava
olhando para mim. Notei que ela fitou Miguel com
algum interesse. Até passou as mãos no peito dele e

25
Wanju Duli

nas costas. Ele, por outro lado, permaneceu imóvel e


sem expressar reação, como era o correto.
Mas foi quando chegou diante de Gabriel que ela
ficou encantada.
– Que gostoso – ela lambeu os lábios – você tem
dezenove anos e quantos meses, bonitão?
– Nove meses, senhora – respondeu Gabriel, de
imediato.
– Ah, então só vai ter mais dois meses e três
semanas de vida – ela concluiu – não faz mal
apressarmos sua cerimônia. Quero verificar sua
certidão de nascimento.
– Entendido, senhora.
Ele foi até a escrivaninha, abriu a gaveta e
entregou a certidão de nascimento. Ela a analisou
com interesse.
– Você é um menino sincero – ela disse – coisa
rara hoje em dia. Mas antes de pegá-lo para mim
quero ver se o tamanho do seu pau me satisfaz.
Sem cerimônia, ela enfiou a mão dentro da calça
de Gabriel. Ele deu um gemido baixo, mas se calou
em seguida e aguentou tudo quieto.
– Que delícia! – ela exclamou, contente – é bem
do jeito que eu gosto. Você é meu. Vamos?
– Sim, senhora – pronunciou Gabriel, com voz
fraca.
Nós éramos ensinados a aguardar nosso dia de
ofertar o esperma e morrer com paciência. Era
considerado uma grande honra.
Mesmo assim, naquele momento senti-me triste.
Achei que Gabriel ainda ficaria mais dois meses
conosco. Fiquei chateado em saber que iríamos
perdê-lo antes do tempo.

26
Sacra Soberana

Pelo menos Gabriel tinha sido escolhido por uma


nobre. Teria uma boa noite de prazer. Ofertaria sua
vida de forma digna. Assim, agradaria a Deusa e
talvez fosse para o céu. Sua vida teria sido a melhor
possível.
Quando a mulher e Gabriel foram embora, Miguel
caiu no chão e escondeu o rosto nas mãos.
– Merda! – ele exclamou – você sabe que sempre
o amei. Sempre amei Gabriel. É tão injusto!
– Não é injusto. Isso é...
– Cala a boca! – disse Miguel – segue o conselho
daquela desgraçada e vê se fica quieto, seu bostinha!
Não quero ouvir seus discursos agora.
Eu me calei. Tinha sentimentos conflitantes sobre
tudo aquilo. Estava triste por perdê-lo, mas feliz de
saber que ele em breve iria para a Deusa.
No entanto, não foi bem isso que aconteceu.
O que aquela mulher fez em Gabriel não foi a
cerimônia sagrada. Ela iria arrancar dele o paraíso e
mandá-lo direto para o inferno.

27
Wanju Duli

Capítulo 2: O Chicote de
Deusa

Gabriel chegou se arrastando no dia seguinte.


Quando escutei as batidas fortes, pensei tratar-se de
uma mulher. Fiquei surpreso quando abri a porta e
deparei-me com ele.
– Pensei que estivesse morto – eu disse.
– Quem dera eu estivesse – respondeu Gabriel.
Ele parecia muito fraco. Mal conseguia caminhar.
Apoiou-se na parede.
– Você não parece bem – observei.
– Preciso deitar.
Ajudei-o a ir até o quarto. Ele se deitou em uma
de nossas camas desconfortáveis e duras.
Notei que ele estava suando e tremendo.
– Precisa de alguma coisa? – perguntei – água ou
comida...
– Sim, por favor – disse Gabriel – não como ou
bebo desde ontem.
Miguel entrou apressadamente no quarto.
– O que aconteceu? – perguntou Miguel, com
urgência – o que ela fez com você?
– No final, ela queria apenas sexo – explicou
Gabriel, com voz meio falhada – e chamou outras
nove mulheres. Fizeram o que quiseram comigo.
– Então por que voltou? – perguntei, meio
irritado – você conhece a lei. Caso um homem seja
violentado por uma mulher, ele não é mais puro e
deve cometer um suicídio ritualístico para expiação.

28
Sacra Soberana

– Que absurdo! – exclamou Miguel – achei que


tivesse dito que suicídio era pecado!
– Mas não o suicídio ritualístico. Essa é uma
morte sagrada. Desculpe, Gabriel, mas devo pedir
que saia da nossa casa. Não é correto que você
permaneça conosco.
– Você não irá expulsá-lo, João! – exclamou
Miguel – que religião é essa que coloca a culpa em
quem não tem culpa nenhuma?
– Mas esse não é só um preceito religioso –
expliquei – de acordo com a lei de nosso país,
homens que não são virgens devem morrer. Essa é
uma regra lógica, já que, se o homem já doou seu
esperma para reprodução, não tem mais utilidade
nenhuma. As mulheres, pelo contrário, ainda
conseguem dar a luz com mais de quarenta anos,
usando vários espermas diferentes.
– E o homem não pode engravidar várias
mulheres diferentes, por acaso? – perguntou Miguel.
– Mas isso seria uma perversão – falei – é evidente
que é uma coisa degradante um homem querer
engravidar mais de uma mulher. Ele está querendo se
parecer com Deusa? Cada um deve saber o seu lugar.
– Pessoal... – pronunciou Gabriel, com voz fraca
– será que tem como discutirem isso depois? Eu
queria tomar água.
– Pegue você mesmo sua água – retruquei,
rispidamente – eu não sirvo nada para pecadores.
Miguel me fitou com muita raiva. Ele mesmo
levantou-se e trouxe para Gabriel um copo d’água e
uns restos de pão dormido.

29
Wanju Duli

Gabriel bebeu toda a água e comeu as migalhas de


pão com avidez. Quando terminou, deitou-se
novamente e fez uma expressão de sofrimento.
– Está com dor? – perguntou Miguel.
– Acho que estou com febre – disse Gabriel – e
com uma enorme dor de cabeça. Também me sinto
meio enjoado. Acho que vou vomitar.
– Vomitar o nosso pão seria um desperdício – eu
falei – já temos pouca comida e você ainda quer jogar
fora o pouco que temos?
– Meus genitais parecem um salame ou carne
moída – disse Gabriel – não sei se um dia irão
funcionar de novo. Preciso de uma médica.
– Você está maluco – falei – não existem médicas
para homens. E não há médicos.
– Existem homens médicos que aprenderam a
profissão ilegalmente – disse Miguel – podemos
contatar um desses.
– Eu não quero mais atividade criminosa aqui em
casa – observei – já estamos aqui dando abrigo a esse
pecador e vocês ainda querem chamar um deserdado
para fazer suas bruxarias?
– Se você não nos quer aqui, irei embora com
Gabriel – decidiu Miguel – já venho pensando nisso
há um tempo. Há algumas comunidades quilombolas
nas fronteiras entre as cidades, onde é terra de
ninguém. Podemos fugir e nos mudar para lá, para
assim termos uma vida digna.
– Nenhuma vida sem Deusa é uma vida digna –
comentei – mas façam o que quiserem. Não me
importo, contanto que não contaminem a Casa de
Carnes.

30
Sacra Soberana

– Vamos, Gabriel – falou Miguel – esse filho do


puto não merece mais nossa companhia. Ele se
perdeu.
Eles não demoraram muito para sair. Apenas
reuniram as próprias coisas numa trouxinha e foram
embora.
Não tínhamos muitos pertences. Aquela era uma
casa comunitária e nenhum de nós ganhava salário.
Por isso, não havia como acumular muitas coisas.
Naquele dia fui convocado pelo governo para
ajudar a consertar uma ponte. Foram mais de doze
horas de trabalho braçal intenso. Voltei para casa
repleto de dores. Mas antes de ir para casa passei na
igreja, para me confessar.
Afinal, eu tinha olhado para uma mulher no dia
anterior. Ela não viu, mas Deusa viu. Deusa vê tudo
e tudo sabe. Ela também sabia que um pecador pisou
na minha casa e por isso desculpei-me por tudo.
Alguns dias depois, enviaram mais dois jovens
para Casa de Carnes, para morarem comigo. Ambos
tinham dezoito anos. Sendo o mais velho, senti-me
responsável por educá-los e ensinar-lhes as regras.
Ordenei que rezassem três vezes por dia: ao
acordar, no fim da tarde e antes de dormir. Além
disso, eu os mandava rezar sempre antes das
refeições. Caso um deles protestasse, não ganhava
comida.
Assim eu os disciplinei muito rapidamente. Tomé
e Elias me obedeciam em tudo.
– Como sabe que Deusa existe? – perguntou
Tomé.
– Você não acredita nela, seu herege? – perguntei,
escandalizado.

31
Wanju Duli

– Como posso acreditar num ser que não posso


ver?
– Você consegue enxergar o amor? – perguntei –
mas mesmo assim consegue senti-lo e sabe que
existe. E é óbvio que o amor é uma mulher, já que
mulheres possuem uma natureza mais bondosa que
os homens. Sendo assim, Deusa é mulher.
– Não estou contestando o fato de Deusa ser
mulher e sim a existência dela – disse Tomé – você
consegue provar que Deusa existe?
– Consegue provar que essa cadeira existe? –
retruquei – não há como provar a existência do
mundo material, então por que devo provar a
existência de Deusa?
– Mas se Deusa é amor, por que nós homens
sofremos tanto?
– Porque é somente através do sofrimento que
podemos aprender o que é amor, é através da dor
que desenvolvemos nossa moralidade – expliquei.
– Tudo bem, mas por que os homens sofem mais
que as mulheres?
– Porque somos mais burros e espiritualmente
atrasados. Então temos que sofrer mais para
aprender.
Elias sempre ficava quieto num canto. Nunca
falava nada. Apenas fazia o que eu mandava, mas
nada além disso. Fazia apenas o mínimo.
Eu os achava muito preguiçosos. Está certo que
eles eram homens, então era natural que fossem
preguiçosos e desajeitados. Mas eu mesmo era
homem e conseguia superar minha preguiça
frequentemente, então era esperado que eles se
mirassem no meu exemplo.

32
Sacra Soberana

Fiquei tão incomodado com a preguiça de Elias e


a falta de fé de Tomé que fui dar queixa na polícia.
Relatei àquelas respeitáveis mulheres (sempre
mantendo meus olhos baixos, é claro) que aqueles
dois mereciam ser torturados e queimados, mas elas
apenas bocejaram e não deram bola.
É claro, eu era só um homem. Elas deviam achar
que eu estava exagerando ou mentindo. Ou, no
mínimo, meu relato era totalmente irrelevante. E daí
que havia dois idiotas na Casa de Carnes? Nenhuma
mulher achava que era relevante o que acontecia num
lar apenas de homens.
Pensando bem, elas tinham razão. Eu precisava
dar conta daquilo sozinho.
Comprei um chicote e mandei consagrar na igreja,
com água benta. Eu usava o chicote para punir Tomé
e Elias toda vez que eles cometiam o menor erro.
– Seus homens inferiores! – eu rosnava –
coloquem-se em seu devido lugar!
Mas é claro que eu não estava esperando uma
condecoração ou recompensa do governo ou da
igreja por estar domando homens. Eu estava apenas
cumprindo meu dever. Era o mínimo que eu podia
fazer.
Houve uma ocasião em que levei Elias para irmos
fazer compras. Ele derrubou uma laranja cheia de
fungos no chão – nós homens só tínhamos
permissão de comprar os alimentos estragados – e eu
o chicoteei em público por tamanho descuido.
– Homem ingrato! Homem sujo! – berrei – seu
filho de um cocô! Seu ser baixo, vil e desprezível.
Vamos, peça desculpas por sua insolência, em nome
de Deusa!

33
Wanju Duli

Duas mulheres pararam para assistir ao espetáculo


e pareceram aprová-lo.
Elas se aproximaram de mim.
– Que garoto mais sexy! – disse uma delas, que era
mulata – disciplina seus servos e ainda teme a Deusa.
Qual é o seu nome, putinho?
Baixei os olhos.
– João, senhora.
– Esse é um nome contido na Biblilia – observou
ela – não é apropriado para um homem. Gostaria de
ter você como meu servo, mas irei mudar seu nome.
Pode ser?
Eu quase caí de joelhos em agradecimento. Ser o
servo pessoal de uma mulher era uma honra muito
grande.
– É claro, madame! Pode me chamar até de Bosta
Frita, que irei servi-la com o maior prazer!
Assim, tive o privilégio de deixar a Casa de
Carnes.
Fui para o lar de Dona Margarida, que era minha
senhora. Ela me honrou tanto que até deu um quarto
só para mim, mesmo sendo um cubículo minúsculo.
Ela sempre deixava para mim as sobras de suas
refeições, que eu comia no meu cubículo com as
mãos num prato de plástico. Nunca comi coisas tão
boas, pois antigamente eu só comia coisas como pão
velho e batata estragada.
Eu tinha até mesmo direito a comer carne e
fígado, que eram alimentos caríssimos. Ela também
me dava algumas folhas de alface, que eram alimento
de nobres.
Bastaram poucas semanas após minha chegada
que minha saúde melhorou muito. Eu estava sempre

34
Sacra Soberana

cheio de resfriados e gripes, dores no corpo e dores


de cabeça. A carne, principalmente, fortaleceu os
meus músculos.
Pela primeira vez, achei-me bonito. Eu raramente
me olhava no espelho, mas ao perceber que eu já não
era tão magrelo e estava ganhando massa muscular,
fiquei cheio de orgulho por ter me tornado um
homem assim tão belo e saudável.
Margarida exibia-me frequentemente para suas
visitas. Eu sempre lhes trazia chá e bolinhos. Ela
conversava com suas amigas na sala e ria alto.
Após um mês em sua casa, inevitavelmente
apaixonei-me por ela.
Eu raramente olhava na direção de Margarida.
Mas quando a via de relance, nunca deixava de
admirar suas belas formas, seus cabelos ondulados
com cachinhos nas pontas.
Além do mais, ela sempre usava perfumes, o que
me atraía ainda mais.
Passei a ser seu auxiliar de cozinha. Ela me
honrava de muitas formas. Eu não merecia tanto.
Até que um dia, ela avançou em mim. Chamou-
me numa madrugada para seu quarto e puxou-me
para a cama. Deu-me um beijo na boca e começou a
passar a mão pelo meu corpo.
Eu desvencilhei-me imediatamente.
– Senhora! – exclamei, chocado – isso não é
correto. Não é uma atitude religiosa. Sabe bem que
devo ofertar meu corpo para o sacrifício sagrado.
– Você não tem obrigação nenhuma de fazer isso
– explicou Margarida – está escrito na Biblialia
feminina que, se uma mulher quiser, pode transar

35
Wanju Duli

com o homem de sua preferência e só depois ele faz


o sacrifício.
– Eu preciso ser virgem para o sacrifício, senhora.
– Mas ninguém vai ficar sabendo...
Ela continuou me agarrando. Quando tentou me
masturbar, eu arranquei sua mão e levantei-me da
cama.
– Isso é uma grande afronta a Deusa! A senhora
devia se envergonhar!
– Que mal agradecido! Te chamo para minha casa,
te dou comida de qualidade, tudo do bom e do
melhor e você ainda me rejeita? Saia da minha casa
imediatamente, corno! E é melhor que faça isso
rápido antes que eu te entregue para a polícia para ser
morto.
E assim fui embora.
Eu tinha certeza que havia feito a coisa certa. A
Deusa estava em primeiro lugar, antes do meu
conforto.
Vaguei por alguns dias nas ruas, sem rumo e sem
lar. Mas bastou ir até o governo para que eles
tentassem dar um jeito na situação.
Eles arranjaram um emprego não remunerado
para eu ocupar o meu tempo, pintando calçadas. Era
uma honra servir meu país, mesmo que para isso eu
precisasse dormir nas ruas, com os ratos, baratas e
pulgas.
Até arranjei um cobertor todo pulguento para
dormir com ele. E agradeci Deusa pela dádiva da
vida.
Um dia, uma mulher negra me encontrou
dormindo na rua. Viu que eu estava com a Biblilia ao
meu lado e apiedou-se de mim.

36
Sacra Soberana

– Vem comigo – ela disse – vou te mostrar algo


bom.
Eu a obedeci e a segui.
Ela me convidou para ir numa igreja especial, em
que as missas eram dadas em outra língua, mas eu
não entendi nada.
– Você não pode ler a Biblilia feminina – ela falou
– mas eu posso ser sua professora para te ensinar os
aspectos fundamentais dela.
A partir daí, passei a visitá-la três vezes por
semana para que ela me desse aulas.
O nome dela era Sara. Ela sempre me servia chá.
Eu me sentia embaraçado por ser servido por uma
mulher, mas ela disse:
– Foi isso que Deusa nos ensinou, para lavarmos
os pés de nossa irmã e de nosso irmão. Então por
que não posso te servir chá?
– Não compreendo – eu disse – achei que nós
dois éramos diferentes.
– Não somos – ela garantiu.
Ela me ensinou novas rezas, que estavam na
Biblilia feminina. Às vezes, eu me ajoelhava e repetia
as rezas por longas horas.
– Isso é um rosário feminino – ela explicou – de
acordo com o número de contas, você reza uma
“Mãe Nossa”, uma “Filha Nossa” ou uma “Espírita
Santa Nossa”.
Minha fé crescia cada vez mais naqueles dias.
Eu descobri que o mundo que eu vivia na verdade
era muito piedoso. Deusa estava acima dessas
questões de gênero, essa coisa de homens e mulheres.
E eu entendi isso.

37
Wanju Duli

Minha prática espiritual passou a ser perfeita. Eu


frequentava a igreja todos os dias sem falta e ia a
todas as missas: às 6 da manhã, às 8, às 10 e às 6 da
tarde. Quando ainda não ficava satisfeito, caminhava
até o outro bairro e achava mais uma igreja.
Em praticamente todo meu tempo livre eu rezava.
E eu me confessava com a sacerdotisa todos os dias.
Não demorou muito para que a sacerdotisa
começasse a gostar muito de mim.
– Você tem ainda mais disciplina para as práticas
que as mulheres. Tem ainda mais amor.
Quando escutei isso, ajoelhei-me em humildade.
– Por favor, não sou digno.
Mas era a pura verdade.
Por isso, quando faltava uma semana para que eu
completasse vinte anos, fui chamado não somente
pela sacerdotisa do templo, mas também pela bispa.
Ela queria falar comigo.
Deitei de barriga e testa no chão diante da
respeitável senhora.
– Nunca se viu algo assim – ela observou – em
geral, os homens são arrogantes demais para rezar
para uma Deusa mulher. Eles não gostam de nossa
religião porque dizem que são discriminados. Mas
você é diferente. Entende o evangelho corretamente.
Sua humildade e amor são perfeitos. Por isso, você
será recompensado.
– Não me dê recompensas – pedi – o amor de
Deusa já é o bastante.
– Nada disso. Em vez de doar seu esperma e
morrer como os outros, você vai ganhar um bônus.
Poderá viver até os trinta anos, contanto que sirva a
Igreja como um auxiliar subalterno, limpando todo

38
Sacra Soberana

dia nosso chão e nossos banheiros. Essa é a função


mais elevada para um homem na Igreja. Sinta-se
grato.
Desatei a chorar.
– Deusa seja louvada, Deusa piedosa, Deusa
grandiosa! – berrei, chorando e chorando.
Ela sorriu.
A partir daí, passei a usar as sagradas vestes de um
funcionário da limpeza da Igreja. Isso me trouxe
muito amor, pois assim eu podia passar o tempo
todo rezando enquanto fazia minhas limpezas.
Porém, algumas semanas depois houve um grande
incêndio na cidade. Diziam que estava estourando
uma guerra.
– Um rebelde – rosnou a sacerdotisa no sermão
daquela missa – quer matar as mulheres. Ele merece a
morte. Arderá no fogo de todos os infernos,
femininos, masculinos e mistos!
Como esperado, Miguel foi capturado. Ele era o
líder da rebelião.
Miguel foi chamado para dentro da igreja durante
a missa. Colocaram-no amarrado a uma pilastra e
suas costas foram chicoteadas pela sacerdotisa.
– Confesse! Confesse!
– Confessar o quê? – gritou ele.
– Que você estava errado – disse a sacerdotisa –
que errou em tentar matar as mulheres.
– E vocês estão certas ao tentar nos matar?
– Nós estamos sempre certas. Nós somos servas
da Deusa e ela sabe mais.
Miguel ficou sangrando no chão. Enquanto isso, a
missa prosseguiu como se nada tivesse acontecido.

39
Wanju Duli

Quando fui limpar o chão, bati com a vassoura


nele.
– Você está atrapalhando a limpeza da Igreja, seu
pecador – eu disse – saia daqui!
– João, seu traidor – disse Miguel – não se lembra
de mim?
– O traidor aqui é você, que traiu a Deusa, a lei e a
ordem de nossa bela pátria. Devia se envergonhar.
Vá se confessar, seu imundo!
Eu o chutei várias vezes, nas costas e na cabeça.
Ele tentou proteger-se.
– Não entendo – falou Miguel – o mundo está
louco.
Eu sentei-me ao lado dele, com paciência.
– Pense bem – comecei – você, que é um amante
da lógica e dos livros. O que é mais provável: que um
país inteiro esteja louco, talvez o mundo inteiro, e
você é o único são? Ou que você tem sérios
problemas mentais para se adaptar ao nosso sistema
social, que é muito efetivo?
– Nós somos todos iguais – ele insistiu – eu não
quero dominar ninguém. Só quero ser igual a todos.
– Deixa eu te contar uma novidade – prossegui –
ninguém é igual a ninguém. Existe uma ordem, uma
hierarquia. Até mesmo a instituição criada pelos
humanos deve ser respeitada, para que se mantenha a
paz. Mas existe uma Lei acima desse mundo, que
transcende o mundo material. Mas você não a
reconhece.
– Eu a reconheço! – berrou Miguel – mas não
acho que essa Lei seja como as mulheres clamam.
Elas a distorceram completamente!

40
Sacra Soberana

– Por que você acha isso? Só porque você é


prejudicado com essa Lei? Então quando o mundo
não te agrada ele está errado? Quando Deusa te
ordena a fazer algo que te desagrada ela está errada?
Esse é seu critério de verificação da verdade: o prazer
que você sente? O sentido da vida não é o prazer,
mas tornar-se melhor e obedecer!
Miguel me fitou um pouco impressionado.
– Quando foi que seus argumentos se tornaram
tão refinados?
– Tive uma professora – expliquei – e minha
prática é forte. Tenho uma fé inabalável em Deusa.
Diferente de você, não sou arrogante e aceito meu
lugar na hierarquia! Eu não sou uma criança, não
quero fazer uma revolta só porque não sou “o
melhor”. Eu dou o meu máximo dentro dos limites
espirituais que foram atribuídos aos homens.
– Limite espiritual? Que bobagem.
– Você é tão cego – prossegui – nunca parou para
pensar que talvez você esteja errado?
– Por que eu devo parar para pensar se você não
para?
– Porque se a razão das mulheres é limitiada, a
razão dos homens é muito mais. Não posso pensar
sobre isso com minha mente do mundo, por isso
entrego-me a Deusa.
Miguel respirou fundo. Parecia estar sentindo dor.
– Essa dor no teu corpo – eu disse – não é nada
perto da dor do espírito daquele que ainda não
encontrou Deusa. Por que faz isso a si mesmo?
Confesse que estava errado. Deixe de ser orgulhoso.
Através da humildade e expiação será salvo.

41
Wanju Duli

– Eu não quero ser salvo – disse Miguel – só


quero queimar esse mundo injusto.
– Viu só? E depois são os religiosos que são os
fanáticos! – exclamei, triunfante.
– Mas vocês começaram! – gritou Miguel – só
taquei fogo em troca de fogo!
– O quão infantil podem se tornar seus
argumentos? “Vocês começaram”, por favor, Miguel.
Você pode fazer melhor que isso.
– Está satisfeito em ser o empregado deles, o
lixeiro?
– Sim, estou! Você não era a favor da igualdade de
classes e gêneros? Então por que acha que um
emprego de limpar o chão e banheiros é pior que
qualquer outro? Será que o preconceituoso aqui não é
você?
Miguel ficou quieto.
– Deusa ensina que não somos iguais, mas que
devemos nos satisfazer com o que temos.
– Isso é conformismo – disse Miguel – esses
ensinamentos existem por razões políticas e
econômicas. Para que as classes sociais que detêm o
poder político e o dinheiro não sejam derrubadas por
quem está embaixo.
– Ninguém está embaixo, Miguel. Dinheiro e
poder político não são nada! Essas coisas são lixo
perto de Deusa! Por que se incomodar com um
monte de lixo? Eu não invejo quem tem muito
dinheiro e precisa se ocupar o tempo todo com
deveres políticos. Essas pessoas estão aprisionadas,
dançando dentro de uma gaiola. Não possuem nem
tempo e nem amor para Deusa. Pois Deusa disse que

42
Sacra Soberana

não podemos amar duas senhoras ao mesmo tempo,


não podemos amar Deusa e dinheiro!
– A velha ladainha... então me responda uma
coisa: por que existe até mesmo uma hierarquia
espiritual? Você pode até desprezar as coisas do
mundo, mas por que trocar o mundo por ser um
escravo do espírito?
– Se sou escravo tanto lá quanto aqui, prefiro estar
com Deusa. Ser escravo de Deusa não é um fardo,
pois ela é toda amor.
– Que afronta! – gritou Miguel – então se é toda
amor por que fui chicoteado?
– Porque Deusa também é justa. Ela pune os
transgressores que não se arrependem, por puro
orgulho. Diga outro motivo de você estar aí no chão
se não for orgulho! Que contestação social que nada!
Você não gosta de estar embaixo, de se sentir
inferior. Por isso quer aboliar as classes, os gêneros e
todas as coisas, porque não suporta ser um verme.
Pois eu amo ser um verme de Deusa!!
Berrei isso com toda a força. Miguel ficou
impressionado.
– Acho que finalmente entendi seu raciocínio
insano e seu fanatismo – disse Miguel – eu pude
compreender de onde vem tudo isso. Essas malditas
que criaram essa religião são umas bastardas gênias.
– Não foram elas que criaram. A religião veio da
Deusa.
– Que seja – disse Miguel – sim, pode ser que
você esteja certo! Talvez eu esteja fazendo tudo isso
por orgulho e porque não gosto de me sentir menos
que um cachorro sarnento. Mas o erro está em mim

43
Wanju Duli

por ser orgulhoso? Por que eu deveria gostar de me


ajoelhar?
– Porque orgulho é um pecado. Nunca ouviu falar
na anja Luciferina? Ela caiu porque desejou ser maior
que Deusa. Por isso, ela desafiou Deusa num
concurso de maquiagem, mas foi derrubada! Porque
ninguém é mais bela que Deusa no desfile de moda
espiritual!
– Entendo.
– Não entende! Arrogância e orgulho são os
maiores venenos e humildade e arrependimento são
os antídotos! Não quer salvar sua alma? Então
confesse! Ou prefere o seu prazer mental? Vai cair no
inferno por ele?
– Pelo menos irei cair no inferno masculino e
nunca mais precisarei ver uma dessas malditas
mulheres na minha frente.
– Ótimo – eu disse – você não entendeu nada.
Então morra.
Na manhã seguinte foi a cerimônia de
esquartejamento de Miguel. A sacerdotisa começou
cortando seu pinto em fatias, como se fosse uma
cenoura. E cortou todo seu corpo da mesma forma,
começando pelos dedos das mãos e dos pés.
Depois disso, houve uma festa. O corpo de
Miguel foi frito e elas ficaram brigando para decidir
quem comeria o pau.
Achei que esse foi um ensinamento muito
profundo da religião. Foi uma cerimônia belíssima.
Aqueles que se escandalizaram com ela ainda não
estavam preparados para lidar com o temor de
Deusa.

44
Sacra Soberana

Afinal, Deusa não era apenas compassiva.


Também era terrível.
Era muito simples: bastava se arrepender. Quem
não queria se confessar, era esfolado, esquartejado,
enforcado, queimado. Onde estava a injustiça nisso?
Porém, no dia seguinte quem foi levada para a
frente da igreja para ser chicoteada foi Sara, minha
professora. Descobriram que ela andava me dando
aulas.
Surpreendentemente, eu não fui punido. Isso
porque eu ia tantas vezes à missa, rezava tantas horas
por dia e limpava tantas igrejas com tanto amor que
elas acharam que isso já tinha valido como expiação.
– Não seja bobo, João – me disse minha
professora – elas não vão te chicotear porque
precisam de você saudável e forte para realizar esses
trabalhos braçais de limpeza. Você tem a resistência
de três homens.
– Obrigado, mestra. Mas acho que não é esse o
motivo. Acumulei muito mérito espiritual.
Felizmente, não mataram minha mestra porque,
além de ser mulher, ela se confessou. Mesmo assim,
ela parou de me dar aulas e nos afastamos.
Naqueles dias, também encontrei-me com
Gabriel. Ele apareceu na missa numa ocasião. Levei
um susto.
– Você já tem mais de vinte anos! – exclamei para
ele – devia estar morto!
– Eu sei, mas eu aceito me confessar. Irei me
tornar religioso como você, para pode viver até os
trinta.
– Nada disso. Eu sou uma exceção. A sua
conversão não seria genuína, se você deseja se tornar

45
Wanju Duli

um faxineiro sagrado apenas porque quer escapar da


morte. Diz a Biblilia para não temermos aquela que
tem capacidade de matar nosso corpo, mas aquela
que pode destruir nossa alma e nos jogar no fogo do
inferno!
Sendo assim, delatei Gabriel imediatamente para
as autoridades. Inicialmente não me levaram a sério,
mas elas queriam testar a nova forca. Ele foi
enforcado na manhã seguinte. Não passou por
tortura porque se confessou. Misericórdia de Deusa!
Fiquei feliz, pois concluí que fiz a coisa certa. O
espírito estava acima do corpo. É verdade que o
corpo também era belo, pois foi criado por Deusa.
Mas o nosso era um corpo feio de homem mesmo,
então nosso espírito sempre valeu muito mais.
Eu me sentia puro e satisfeito naquela época. Já
estava com quase vinte e um anos.
Como eu teria permissão de viver até os trinta, a
sacerdotisa me perguntou sobre a possibilidade de
casamento. Uma mulher podia me escolher para nos
casarmos. Como eu tinha guardado a virgindade até
aquele dia, isso seria permitido.
Concordei imediatamente. Várias mulheres vieram
me visitar na igreja para me analisar. Gostei de todas,
pois todas as mulheres são reflexo da imagem de
Deusa.
Elas brigaram muito por mim, pois eu tinha todas
as qualidades que a Biblilia diz que um homem deve
possuir: docilidade, submissão e silêncio.
Uma mulher de quarenta anos chamada Maria me
escolheu. Fui para sua casa. Ela era muito rica. Ela
iria gerar um filho meu.

46
Sacra Soberana

Embora estivesse satisfeito por ter me casado, eu


sentia saudades de estar na igreja. Por mim, teria
continuado a morar lá, como faxineiro. Porém, a
beleza da paternidade me tentou um pouco.
Tivemos gêmeos: um menino e uma menina.
Os dois teriam criações muito diferentes.

47
Wanju Duli

Capítulo 3: As Duas Cobras e


os Dois Arco-íris

Ester e José. Parecidos como cobras. Ambos


inteligentes e sensíveis. Contudo, receberiam uma
educação mais diferente do que água e fogo.
Aos cinco anos, Ester já iniciou seus estudos de
matemática e linguagens. Aos dez anos, já sabia falar
três línguas, já tinha lido mais de cem livros e já sabia
resolver problemas de nível intermediário de
artimética e geometria.
Aos dez anos, José ainda não sabia ler e escrever.
Nunca tinha aprendido matemática. Não sabia somar
e subtrair e provavelmente nunca aprenderia isso.
Ninguém achava que era necessário. Afinal, o que ele
faria com essas coisas?
Felizmente, tive o privilégio de viver até os dez
anos dos meus filhos. Eu estava com 32 anos. Seria
sacrificado aos 33, a idade em que morreu nossa
Salvadora. Isso me aconteceu porque eu era um fiel
muito devoto. E depois ainda dizem que nossa
amada religião tem preconceito contra os homens!
Enquanto Ester estava aprendendo instrumentos
musicais e esportes, José limpava a casa.
– Para de mover esse sofá do lugar, José! –
reclamava Ester – está me atrapalhando com esse
barulhão!
– Perdão – disse José, com olhos baixos – serei
mais cuidadoso.
José não tinha permissão de olhar diretamente
nem para a mãe e nem para a irmã. Ele foi proibido

48
Sacra Soberana

de nascer por parto normal e de ser amamentado,


pois somente as filhas meninas tinham essa honra.
Assim, José tornou-se uma criança muito fraca e
ficava frequentemente doente. Desde muito cedo já
tinha que realizar atividades físicas pesadas.
Quando íamos para a igreja, eu e José ficávamos
na parte de trás, que era reservada aos homens. Mas
eu não me importava de ficar atrás, pois apenas ter a
oportunidade de entrar na casa de Deusa já me
enchia de alegria.
– Pai – José me perguntou um dia – por que
temos que ficar atrás?
– Porque cada ser possui seu lugar na criação
divina – expliquei – veja como o universo é perfeito:
os vermes rastejam, as galinhas comem os vermes. As
mulheres ficam nos bancos da frente e nós atrás
porque Deusa fica feliz assim. É como deve ser.
– E por que não posso aprender a tocar flauta? –
ele perguntou, chateado – eu realmente queria
aprender...
– Não fale uma coisa dessas, José – ralhei com ele
– isso não é adequado. Flauta é um instrumento de
mulher.
– E qual é o instrumento de homem?
– A britadeira – respondi – é mais adequado para
nossa natureza mais bruta.
– Também gostaria de saber cozinhar e costurar.
Por que não posso usar os belos vestidos de Ester?
– Nem pensar! – exclamei, chocado – um homem
que usa vestido é punido com morte! Deusa morreu
usando vestido. Só as mulheres podem usá-los.
– Entendi.

49
Wanju Duli

Eu temia por ele. José era muito bonzinho, mas


ele era fraco e ingênuo e tinha desejos estranhos.
Caso cedesse a essas tentações, provavelmente não
viveria muito tempo.
– As mulheres também não podem fazer as
atividades destinadas aos homens – eu disse – por
isso, mesmo que queiram muito limpar o chão ou
reunir pedras com cimento elas estão proibidas disso,
já que é uma regra divina.
– Como existe a proibição dos dois lados, parece
mais justo – reconheceu José – mas por que uma
mulher ia querer limpar o chão? Isso é muito chato!
– Não diga isso. Deusa nos deu corpos e objetos
que ficam sujos porque ela queria nos dar a alegria de
limpá-los. É um momento de unir corpo e alma.
– Isso é chato. Minha vida é um inferno. Qual é a
diferença se eu morrer agora ou depois? Por que
Ester pode fazer tudo e eu não posso fazer nada?
Isso é tão injusto!
Senti um pouco de pena do meu filho ignorante.
Por isso, peguei-o pela mão e disse.
– Vamos sair para comer na lanchonete que você
gosta. Que tal?
– Adorei a ideia! – ele abriu um sorriso.
Porém, quando tentamos entrar fomos barrados
na porta.
– Sinto muito – disse o atendente – vocês só
podem entrar acompanhados de uma mulher.
Mesmo assim, não desanimamos. Fomos chamar
Maria. E assim, acompanhados de Maria e Ester,
fomos fazer um lanche.
O garçom, no momento de anotar nossos
pedidos, ignorou completamente a minha existência e

50
Sacra Soberana

a de José. Dirigiu-se apenas a Maria e Ester, embora


evitasse olhá-las diretamente.
Tivemos que dizer a elas o que queríamos para
que elas repassassem o pedido ao garçom. Quando
ele retornou com os pratos, serviu primeiro os delas.
O nosso foi servido depois e já estava um pouco frio.
Embora fossem pratos semelhantes, notei que
houve mais capricho no preparo da comida das
mulheres.
Mesmo assim eu não me incomodei, já que aquele
era um restaurante avançado. Dez anos antes, os
homens não podiam frequentar os mesmos
restaurantes que as mulheres. Além do mais, ainda
havia os locais em que os homens tinham que ficar
em mesas separadas.
Os ônibus até hoje eram separados: havia os
ônibus para mulheres, sempre novos e com ar
condicionado, enquanto os ônibus para os homens
eram velhos, pequenos e com acentos duros. Viviam
lotados, até porque as mulheres tinham maior poder
aquisito para andar de carro ou até ter motorista
particular.
No caso de nossa família tínhamos carro. Mas isso
só era possível porque Maria tinha muito dinheiro.
Viajar também era um problema. As mulheres
recebiam passaportes assim que nasciam. No caso
dos homens, eles só podia tirar passaporte ou viajar
com a autorização de alguma mulher responsável.
Por isso eu gostava da igreja: sempre consegui
entrar lá sem estar acompanhado por uma mulher.
Mas isso porque minha religião era avançada. Outras
religiões não permitiam isso.

51
Wanju Duli

– Marina é tão metida – comentava Ester no


almoço – só porque tira as melhores notas da classe.
Eu estou em terceiro lugar na minha turma, mas sou
melhor que todas nos esportes.
José sempre ficava triste com esses relatos.
Naquele instante, estava mexendo sua sopa com uma
colher.
Geralmente deixámos a melhor parte das comidas
para Ester. O argumento de Maria era que Ester
estava acostumada com as comidas boas de seu
colégio, então era natural que em casa devesse comer
comidas tão boas quanto.
Por outro lado, eu já tinha me acostumado a
comer sobras e já não me importava. Mas José não
aceitava isso bem.
Naquela tarde, ele roubou um bombom de Ester e
ela fez um escândalo.
– Mãããããe! MÃE! José roubou meu bombom!
Que filho de um puto!
Ester tinha todo o direito de xingar, mas José era
proibido de falar palavrões, principalmente algum
que pudesse degradar as mulheres.
Ela ficou tão braba que obrigou o irmão a vomitar
o bombom. Ela forçou-o a fazer isso, batendo nele.
Maria defendeu-a e deu-lhe razão.
– José não deve roubar. Deve aprender isso.
Eu, por outro lado, resolvi não me posicionar.
José chorou depois disso, mas eu lhe disse que um
bombom não era nada.
– Tenha fé na Deusa – lhe falei – que ela lhe dará
recompensas muito superiores a bombons.

52
Sacra Soberana

– Por que vou ter fé nessa Deusa que me faz


sentar lá atrás na igreja? E não era você que dizia que
devemos amar a Deusa sem esperar recompensas?
– Bem, sim – respondi – você é muito novo para
entender isso, José. Mas a fé tem muita beleza. O
divino está muito acima dos nossos preconceitos e
das nossas concepções limitadas sobre a vida.
– Eu não quero o divino. Não quero esse mundo.
Não quero nada.
Fiquei sem palavras.
– Parece que não há lugar para mim nesse mundo
e nem no outro – ele disse – queria acreditar na
Deusa. Queria acreditar que posso ser feliz. Mas isso
é uma mentira. Eu não tenho liberdade. Como posso
ser feliz sem ser livre?
– A prisão é mental – expliquei – caso se liberte
em sua mente, se tornará livre como eu.
– Você não é livre, pai. É mais um peão deles. E
morrerá em menos de um ano. Você se sente grato?
– Eu me sinto – falei, com segurança – é uma
dádiva poder viver 32 anos num mundo em que os
homens vivem apenas 20. Além disso, irei para o céu
quando morrer.
– Para o céu masculino, que é bem menos legal
que o céu feminino – disse José.
– E por que você quer o céu feminino?
– Porque lá elas contemplam diretamente a face
da Deusa, enquanto os homens ficam no céu mais
baixo e não possuem a bênção da graça.
– Acho que só de ir para o céu já me sentirei
grato.
– Você se satisfaz com pouco. É apenas um
conformista. Tenho vergonha de ser seu filho!

53
Wanju Duli

E ao dizer isso ele correu.


Eu me senti mal com isso. Provavelmente falei
algo errado.
Fui me confessar.
– Salve, João! – disse a sacerdotisa com alegria,
quando me viu – você faz muita falta aqui, sabia? Na
época em que esteve aqui, nosso chão era mais
brilhante e mais limpo que o chão do próprio
paraíso. Você era tão caprichoso que até mesmo
limpava os menores cantos com uma escova de
dente.
– Sempre foi uma alegria servir a Deusa.
– Pois é. Queríamos muito que você voltasse a ser
nosso empregado. Ou melhor, o empregado de
Nossa Senhora...
– Não posso fazer isso – falei – eu tenho filhos.
– Mas você vai morrer no ano que vem, não é?
Mas se permanecer como nosso escravo, isto é, como
fiel servo da igreja, quem sabe ela te conceda mais
uns anos de vida?
– Me desculpe, grande sacerdotisa, mas não posso
aceitar. Aprendi com minha fé que não é certo
comprar mais anos de vida para mim mesmo. Serei
muito mais feliz no paraíso.
Ela pareceu se aborrecer um pouco, mas logo se
recompôs.
– Você certamente servirá muito melhor aqui do
que nos céus. Isto é, todos vamos morrer, não é
mesmo? Por que quer apressar o seu tempo? Já faz
dez anos que você nos abandonou. Temos saudades.
– Eu jamais os abandonei – observei – venho
rezar aqui todo dia.

54
Sacra Soberana

– Sim, mas certamente Deusa fica mais feliz


quando você limpa a igreja do que quando reza para
ela.
– Você acha? – perguntei, em dúvida.
– É claro que sim!
Eu nunca tinha pensado dessa perspectiva.
– Você quer dizer que Deusa fica mais feliz
quando lavamos pratos, limpamos o chão e curamos
as pessoas? Mas essas não são apenas coisas do plano
material?
– É verdade, mas Deusa criou a matéria com seu
amor infinito. É bastante natural que ela se alegre
quando cuidamos bem de sua criação.
– Mas ela deve ficar muito mais feliz quando a
louvamos!
– Não é bem assim. As duas coisas são
importantes.
Acabei cedendo e passei a fazer trabalhos
voluntários de limpeza diariamente na igreja.
Minha esposa não gostou. Ela disse que isso me
distraía das tarefas domésticas da nossa casa. Afinal,
se eu não ajudasse a limpar a casa e lavar os pratos, o
pobre José ficaria sobrecarregado.
– José anda com dores ultimamente – disse Maria
– pense primeiro nos seus filhos e na sua família
antes de pensar na igreja.
– Mas isso não está certo. A igreja é mais
importante que a família.
– Se acha mesmo, volte para lá! Não preciso de
você. Está ficando velho, já tem 32 anos e já não é
tão quente no sexo como era dez anos atrás. Já eu,
como mulher, fico mais sexy quanto mais envelheço.
Todos sabem disso!

55
Wanju Duli

– Bem, isso é verdade – reconheci – então será


que devo mesmo partir?
– Mas se você partir, quem vai lavar os pratos e as
roupas?
– Não quero deixar esse fardo para você, querida
– falei – sei que é muito ocupada. Ester também é
muito dedicada aos estudos, então é claro que não
pode se distrair com afazeres domésticos.
Eu ainda estava em dúvida quando o pior
aconteceu: José cometeu suicídio.
Após assistir a seu belíssimo funeral, senti-me
novamente tocado pela força da igreja.
Por isso, abandonei minha mulher e minha filha e
voltei a limpar a casa da Senhora. Só para não ser
injusto, de vez em quando eu ia para casa apenas para
lavar os pratos e roupas que ficavam acumulados,
pois minha esposa e minha filha nunca tinham
limpado as próprias coisas antes e fiquei morto de
pena delas.
No entanto, fui duramente criticado quando as
abanonei. Embora minha esposa fosse muito rica e
minha filha tivesse tudo do bom e do melhor,
frequentemente me diziam na igreja que um pai
jamais pode abandonar a família, que isso é
desumano. Tudo bem que uma mãe abandone a
família, pois as mulheres possuem muitas ocupações
importantes que ajudam a sociedade. Mas um pai
abandoná-la é horrível.
Por isso, tive que fazer algumas penitências pelo
meu ato. Mas depois disso me senti muito bem.
Sentia saudades do meu filho. Até me agradava a
ideia de morrer em breve, porque assim eu iria mais
cedo para o céu masculino.

56
Sacra Soberana

Contudo, não me deixaram morrer. Ainda não.


– Que tal viver até os 40? – perguntou a
sacerdotisa – vai dar para limpar bastante coisa.
E assim fiz. Nunca me senti mais feliz, pois eu
morava na casa de Deusa e rezava muito. Assistia a
todas as missas.
Porém, quando completei 35 anos fui requisitado
para um novo serviço.
– Já que sua virgindade já foi embora mesmo, que
tal se empregar como profissional da carne? –
perguntou a sacerdotisa – existem muitas mães
solteiras em busca de amor, especialmente as
senhoras mais idosas.
Eu aceitei.
Minha primeira visita foi a uma senhora de 50
anos. Na verdade, ela parecia ser até mais jovem que
eu. É claro que ela jamais tinha feito nenhum
trabalho braçal na vida e mantinha-se sempre
saudável com boa alimentação e repouso apropriado.
– Por que mandaram um velho para mim? – ela
perguntou, com desagrado – bem, pelo menos é de
graça. Vamos logo com isso, seu careca!
Sinceramente? Eu não era careca. Mas mesmo se
fosse, não ficaria ofendido. Senti um pouco de pena
daquela senhora, que parecia ter a necessidade de
tentar me insultar, mas falhava em todas as vezes.
Eu não sentia raiva das mulheres como Miguel.
Na verdade, eu achava que elas eram as verdadeiras
vítimas. Aquelas mulheres ricas e desocupadas, que se
esqueceram que Deusa que dava sentido a suas vidas,
e não sexo e dinheiro.

57
Wanju Duli

Mesmo dando meu corpo de graça, eu acreditava


na Deusa. Só estava fazendo aquilo para servir minha
sociedade.
Ela mandou que eu deitasse no tapete. Arrancou
minhas roupas. Depois disso, passou a chupar meu
pau violentamente, como se fosse um pirulito.
– Você acredita em Deusa? – perguntei, enquanto
ela me chupava.
– Cala a boca!
– Você acredita na...
– Cala a boca, já disse!
Depois de ficar satisfeita, ela me deu uma gilete.
– Quero chupar suas bolas, mas não quero engolir
pêlos. Vá ao banheiro se depilar. Mas quero meu
banheiro limpinho.
Eu a obedeci e me depilei. Depois disso, limpei
todo o banheiro. Peguei até balde e esfregão. Fiquei
duas horas lá dentro.
– Mas que diabos você está fazendo, cara?
– Perdão, é que sou viciado em limpar banheiros.
Sou muito bom nisso. E quando vi seus maravilhosos
produtos de limpeza, eu não resisti.
– Como é?
Depois disso, dei um discurso sobre a eficácia de
todos os seus produtos de limpeza e ofereci-me para
limpar o resto da casa.
Levei cinco horas para terminar tudo. Ela ficou
encantada com minha agilidade.
– Que maravilha! – ela exclamou, com alegria –
quanto você cobra?
– Que é isso, é de graça, minha senhora. Sou
viciado em fazer limpezas.

58
Sacra Soberana

Eu descobri aquilo naquele momento: no fundo,


eu não limpava a igreja por causa da minha fé em
Deusa. Eu não limpava a casa da minha mulher todos
os dias por causa da minha obrigação como marido e
pai.
Eu limpava porque essa era a coisa que eu mais
amava fazer.
Muita gente descobre tarde sua vocação na vida.
Eu, aos 35 anos, descobri porque vim ao mundo:
para limpar. Especialmente os banheiros.
Naquele exato instante, reuni todas as minhas
economias, de toda a minha vida. Fui num
supermercado e gastei tudo nos melhores produtos
de limpeza.
Muito satisfeito, passei a oferecer-me como
faxineiro em todas as residências que encontrava.
Logo, eu tornei-me um expert.
Eu já era capaz de limpar uma casa inteira em
apenas 2 horas, por maior que fosse.
Eu era como um raio. Era um super-herói.
Também era um exemplo para os garis nas ruas.
Frequentemente eu os ajudava a recolher lixo. Eu
fazia aquilo como um trovão.
Já era um especialista em marcas de produtos.
Sabia como obter o maior rendimento gastando o
menos possível.
Não importava se as pessoas não tinha os
produtos de limpeza necessários. Eu era capaz de
improvisar.
Acabei buscando livros de química para estudar
sobre a composição dos produtos e passei a testar
algumas combinações.

59
Wanju Duli

Descobri quais eram os produtos menos tóxicos,


os bactericidas e bacteriostáticos. Sabia quais deles
deixavam menos odor e quais não deixavam
manchas.
Eu conhecia os produtos que matavam vírus e
bactérias específicas. Usava desinfetantes
determinados nos lugares certos.
Também estudei um pouco de anatomia para
saber mais sobre os músculos que eu movia em cada
atividade física. Estudei cinesiologia para saber sobre
os melhores movimentos na hora da limpeza.
Ninguém era melhor que eu. Passei a dar
imponentes discursos.
Em pouco tempo, eu já estava discursando em
universidades.
Graças a mim, pela primeira vez abriu o curso
universitário de limpador profissional. Havia
habilitação em lavador de chão, lavador de roupa,
lavador de pratos e o mais procurado, que era minha
especialidade: lavador de banheiros.
No momento em que minha profissão ganhou
status, as mulheres a roubaram para si.
Resultado: em pouco tempo saiu um decreto do
governo proibindo que os homens limpassem coisas.
A partir daí, somente as mulheres queriam se ocupar
disso.
Fiquei triste. Que sentido teria agora minha vida
se eu não pudesse mais segurar um pano de chão e
deixar o chão sujo branquinho e brilhando?
Eu seria condenado à morte se fosse pego
limpando qualquer coisa. Por isso, fui obrigado a
parar.

60
Sacra Soberana

Pela primeira vez na vida, entrei em depressão


profunda.
Entreguei-me à bebida. Mas era muito caro
comprar bebidas. Então eu passei a me embebedar
consumindo produtos de limpeza.
Por sorte, eu sabia quais deles possuíam um teor
de álcool adequado e produtos químicos pouco
tóxicos para não me matar.
Em pouco tempo, fiquei viciado em desinfetantes,
detergentes e sabão em pó.
Ao menos assim eu ainda me mantinha próximo
de minha paixão. Não conseguia mais imaginar
minha vida sem limpar coisas.
Essa atividade tornou-se quase divina para mim.
Era uma iniciação espiritual. Toda vez que eu
limpava uma privada imunda, via Deusa.
Deusa sorria para mim. Deusa ficava feliz ao me
ver limpando o lugar que as pessoas evacuavam.
“Você é o escolhido, João. Porque não tem outro
pior que você”.
Uma vez escutei a voz divina de Deusa me
dizendo isso e senti uma imensa alegria.
Voltei para a igreja, em busca de orientação
espiritual.
– Minha vida não tem mais sentido – confessei –
achei que o que importava na minha vida era Deusa e
meus filhos. Mas descobri que tudo o que tem valor
são os desinfetantes.
– Agora a profissão de limpador de chão está tão
concorrida que é preciso ter ensino superior
completo e passar por um difícil concurso para
limpar a nossa igreja – explicou a sacerdotisa –
mesmo sem haver remuneração para isso. Trabalho

61
Wanju Duli

voluntário de empregada doméstica é popular demais


hoje em dia.
Senti-me triste.
– Você já serviu a nossa sociedade por muitos
anos – falou a sacerdotisa – então que tal se
aposentar até os 40 anos? Pode ficar esses últimos
três anos conosco, apenas rezando...
– Nem pensar! – gritei, ofendido – está dizendo
que sou um inválido? Eu quero trabalhar! Quero
contribuir mais, mesmo que eu não ganhe nada para
isso. Amo meu país. Além do mais, é óbvio que não
irei sobrecarregar as mulheres. Como homem, é meu
dever fazer trabalhos braçais pesados para que elas
tenham mais tempo de dedicar-se ao lazer.
– Muito bem. Então vou te indicar um serviço.
Meu próximo trabalho foi apertar na campainha
das casas e divulgar a igreja verdadeira, a única
religião certa em meio às outras religiões mentirosas.
Eu fazia o seguinte: apertava a campainha dez
vezes seguidas. Ou vinte, caso não me atendessem
depressa.
Quando a porta se abria, eu exclamava:
– Entregue sua vida para a Deusa! Confesse seus
pecados! Arrependa-se!
Depois disso, eu dava um discurso muito bonito,
falando sobre como Deusa era maravilhosa,
inteligente, corajosa, bela e morreu por nós.
Se a pessoa não se convencesse, eu mostrava o
novo decreto oficial do governo, que obrigava que
todos os cidadãos se convertessem à nossa religião,
ou seriam presos.
Foi uma medida muito efetiva. Em pouco tempo,
tivemos muitos convertidos.

62
Sacra Soberana

Aquela foi uma época conturbada. O governo caiu


devido a um golpe. A papisa de nossa igreja tomou o
poder.
Senti-me muito feliz! Pela primeira vez, teríamos
um governo baseado no espírito e não na carne.
A primeira medida foi a seguinte: todos foram
obrigados a doar 90% de seus salários para a igreja.
Com 10%, qualquer um poderia comprar pão
dormido, que era o mínimo para viver.
Segundo ensinava a nossa religião, era o bastante
ter apenas o mínimo. O resto era supérfluo.
Diante dos meus olhos, vi emergir uma sociedade
mais justa.
Todas as grandes mansões se transformaram em
igrejas. Com o tempo não havia mais casas, apenas
igrejas, templos, mosteiros, conventos.
As pessoas eram obrigadas a habitar lares
comunitários, nos quais recebiam apenas o mínimo
de comida e um teto. Tinham apenas duas peças de
roupa sem graça e um ou outro medicamento ainda
chegava, quando sobrava.
As mulheres também foram obrigadas a seguir
essas medidas. É verdade que os melhores lares
comunitários foram reservados às mulheres ricas.
Mas até mesmo esses deixavam a desejar, mesmo
para os meus padrões.
Só era permitido falar de religião. Todos os outros
assuntos foram abolidos.
A arte terminou. Afinal, para que servia essa droga
de arte? Ciência também tornou-se irrelevante. O
tempo de uma vida humana com uns 50 ou 60 anos
já era o bastante para um razoável avanço espiritual.

63
Wanju Duli

Completaríamos o resto de nosso treinamento no


céu.
Assim não tínhamos distrações. Eu achava bem
melhor dessa forma.
Só ficava triste porque não permitiam que os
homens fizessem as limpezas, já que as mulheres
ricas queriam fazer isso, para ganhar status.
Naqueles dias, fui visitar minha mulher e minha
filha para saber se estavam bem alojadas.
Ambas estavam uivando de dor e horror.
– Essa cama feia! – berrou Maria – a estampa
desse cobertor parece um anúncio de molho de
tomate!
– Queria estudar literatura na faculdade – disse
Ester – mas agora a arte foi abolida. Que farei? Não
posso mais tocar flauta e agora os únicos esportes
permitidos são caminhadas.
Fiquei surpreso quando, aos 39 anos, fui
promovido a chefe de igrejas.
Homens não podiam ser sacerdotes, então criaram
o termo “chefe de igrejas” para determinar que eu
teria o cargo mais alto no clero entre homens.
Mas eu já não ligava para Deusa àquela altura. Só
queria saber dos meus desinfetantes.
Por isso, aceitei o cargo com uma condição: que
fosse permitido a mim limpar os banheiros uma vez
ao dia. E nos fins de semana queria poder lavar
pratos e roupas só para matar a saudade.
Agora sim, minha vida estava perfeita! Mas
sempre que eu podia, dava um golinho no detergente.
Quando completei 40 anos, pulei de alegria.
Finalmente chegara o dia de minha execução!

64
Sacra Soberana

Mas, para meu horror, a sacerdotisa do templo


não permitiu isso.
– Mas que ideia é essa? – ela ralhou comigo – você
é chefe de igrejas agora. Deve continuar a ser pelo
menos até os 60 anos!
Desatei a chorar.
– Não, NÃO! – gritei – não acredito que vai fazer
isso comigo, sua bruxa!
– Não adianta me xingar. Após todos os seus
respeitáveis serviços à nossa sociedade, você se
tornou imune. Seria correto dizer que se tornou
“como uma mulher”, embora jamais possa se tornar
sacerdote e usufruir de outros de nossos benefícios.
– Não me interessa os seus benefícios! –
esganicei-me – sua vadia, heterossexual sarnenta,
puta, piranha, vaca, égua, cachorra!!
Comecei a berrar todos os insultos às mulheres
que eu sabiam serem proibidos e punidos com morte,
para que elas me matassem.
Mas a sacerdotisa apenas deu um sorriso leve.
– Não vai morrer – falou ela.
– Me mata, porra!!!
– Não morre.
– Morro sim!
– Morre não.
Saltei para cima dela e tentei estrangulá-la. Por
fim, matei a sacerdotisa.
No entanto, nem isso me enviou para a forca.
Disseram que foi um acidente, que matei sem
intenção.
Agora eu possuía status espiritual próximo ao de
uma mulher, então minha raiva era considerada “pura
e sem perversão, como o ódio feminino”.

65
Wanju Duli

Coloquei fogo numa igreja. Mas nem isso


adiantou.
Acho que matei algumas dezenas de pessoas. A
nova sacerdotisa me explicou que eu matei apenas o
corpo, mas não o espírito, já que eu era
espiritualmente elevado.
Naquele instante, resolvi virar um andarilho do
deserto para resgatar meu sentido da vida. Peguei um
manto velho e rasgado e um bastão.
Quando cheguei no deserto, sentei-me para
meditar perto de uma pedra. Acabei dormindo.
Quando acordei, havia dois rostos diante de mim que
me pareciam familiares.
– Tomé! Elias! Meus queridos amigos!
– Você ouviu o que ele disse, Elias? – perguntou
Tomé – João disse que somos amigos dele. O que
você acha?
– Eu acho que ele precisa de umas pauladas na
cuca para recobrar a memória.
Os dois pegaram seus bastões e desataram a bater
em mim. Bateram tanto até eu ficar inconsciente.
Porém, no dia seguinte quando despertei, eles
ainda estavam por perto.
– Fiquei com pena de você, pobre desgraçado –
falou Tomé – além do mais, Deusa perdoa.
– Não me diga que acredita em Deusa agora? –
perguntei, impressionado.
– Sim – respondeu Tomé – mas foi somente no
deserto que a encontrei. Siga-me.
Eu segui aqueles dois. Eles me levaram até um
oásis.
– Que lugar bonito – eu disse.

66
Sacra Soberana

Abaixei-me para beber a água. Mas quando fiz


isso, desmaiei.
Entrei em transe.
Quando acordei, eu estava sozinho no oásis. Mas
não completamente.
Havia uma senhora nua se banhando no lago. Mas
ela não era apenas um pouco idosa. Devia ter mais de
cem anos e estava toda enrugada e com os peitos
caídos.
Seus cabelos eram muito brancos e crespos. Ela
tinha a pele negra.
– Olá, João. Finalmente acordou.
– Quem é você? – perguntei.
– Eu sou Deusa.
Fiquei chocado. Recuei. Não podia acreditar, mas
no fundo sabia mesmo que era ela.
– Então estavam todos certos – falei, espantado –
Deusa é mulher e é negra!
– E é lésbica também – ela acrescentou.
– Por que está aqui? Por que me deu essa honra
de vê-la? Foram muitos os que morreram sem nunca
fitá-la...
Deusa olhou para o céu cheio de estrelas. Era
noite.
– Não sei o que deu em mim – ela confessou –
acho que te escolhi para me ver porque não achei
outro pior.
– Faz sentido – respondi.
– Vamos fazer uma viagem?
Ela me estendeu a mão e sorriu, num sorriso sem
dentes. Aceitei a mão que ela me oferecia.

67
Wanju Duli

Quando pisquei os olhos, notei que estávamos em


cima de um dragão cor-de-rosa. Ele voou até as
estrelas, como um furacão.
Passeando no céu, vimos a terra e o mar lá de
cima. Eu sentia o vento batendo no rosto. Estava
maravilhado.
– O nosso mundo é mesmo lindo – reconheci.
– Tem razão. Gostaria de conhecer os outros
mundos?
– Não tenho certeza – falei.
Eu queria reencontrar o meu filho. Mas não sabia
se isso era mesmo possível.
– Você irá encontrá-lo – ela garantiu-me.
Então ela lia pensamentos. É claro. Ela era Deusa.
O imponente dragão subiu cada vez mais e cruzou
as nuvens. Eu morri de calor e frio, mas Deusa
protegeu-me para que eu não morresse de verdade.
Chegamos em outros planos de existência. E
Deusa apontou:
– Lá é o céu masculino.
– Então o céu é realmente dividido em masculino
e feminino! – comentei, surpreso – por que criou o
céu assim, Deusa?
– Para incentivar que se formassem mais casais
homossexuais, já que essa é a condição ideal do ser
humano – ela respondeu muito naturalmente.
Fiquei contente por poder conversar com Deusa
em pessoa. Ela dava respostas mais simples, mais
lógicas e melhores do que todas as sacerdotisas do
meu mundo juntas.
Por fim, ela me largou num lugar belíssimo, no
qual se via dois arco-íris.

68
Sacra Soberana

Avistei José. Ele estava com um grande sorriso no


rosto.
– Pai! – ele exclamou, com alegria.
E nos abraçamos.
Ele ainda estava com seu corpo de dez anos. E
tinha uma flauta na mão.
– Aprendi a tocar flauta! – ele comentou, com
alegria – os anjos me ensinaram.
– Que extraordinário! – eu disse – mas achei que
quem cometesse suicídio fosse para o inferno.
– Bem, sim... eu caí no inferno.
– E como fez para subir aqui?
– Eu rezei, pai. Da forma que o senhor me
ensinou. Arrependi-me e pedi a ajuda de Deusa. E
por isso fui salvo.
Fiquei feliz por ter dado uma boa educação para
meu filho. Mesmo que ele não soubesse ler, ele
aprendeu o mais importante: o valor de seu espírito.
– Tem muitos amigos aqui? – perguntei.
– É claro. E também posso cozinhar e costurar.
Quer ver meus vestidos e bolos?
Ele estava tão empolgado que aceitei. José me
mostrou tudo, com animação. Fiquei muito
orgulhoso ao saber que eu tinha um filho tão
talentoso. Sempre pensei que Ester fosse mais
talentosa que ele.
– Eu ainda não morri – avisei – estou só de
passagem. Tenho mais uma pessoa para visitar.
Nós nos despedimos, chorando. Subi no dragão
rosa outra vez.
– Reze por mim! – pedi ao meu filho.
E partimos.
Eu disse para a Deusa:

69
Wanju Duli

– Queria visitar Miguel.


– Ele caiu fundo no inferno. Será difícil.
– Não me importo – falei, determinado – eu
preciso ver o meu amigo. Fui injusto com ele. Agora
arrependo-me.
Nós fomos até o inferno masculino. Miguel estava
lá lavando privadas que transbordavam montes de
bosta.
– Mas que lugar GENIAL!!! – exclamei, com os
olhos brilhando – esse é mesmo o inferno? Por
favor, me mande para cá quando eu morrer! Jura que
manda, Deusa?
– Está bem, você virá para cá – garantiu Deusa.
Senti vontade de beijá-la em agradecimento. Só
não o fiz por respeito.
– E aí, Miguel! – cumprimentei-o com alegria.
– Está tirando com a minha cara? – ele jogou o
pano no chão, com irritação.
– Eu só vim visitá-lo. Não morri ainda.
– Não ouse vir para cá quando morrer, ouviu
bem? – ameaçou Miguel – não quero morar no
mesmo lugar que você.
– Quer ir para o céu? – perguntei – eu posso te
levar para lá.
Ele deu de ombros.
– Aqueles anjos arrogantes – disse Miguel, com
nojo – não quero saber deles. Estou bem aqui
embaixo, obrigado.
– Não seja assim – eu ri – sei que você gosta de
alguns prazeres. Lá no céu tem abacate, que você
gosta.

70
Sacra Soberana

– Abacate? – ele respirou aliviado – só tenho


chupado ossos desde que cheguei. Então, que seja.
Me leve logo para seu céu.
– Não é bem assim – disse Deusa – precisa
arrepender-me primeiro.
– Tudo bem, me arrependo, blá, blá, blá – disse
Miguel – agora vamos?
– Não. Você deve se ajoelhar.
Miguel se ajoelhou no meio da bosta.
– Deusa linda, por favor, salva o titio aqui, por
misericórdia! – implorou Miguel.
– Assim está melhor. Pode subir!
E fomos os dois no dragão. Aproveitamos e
pegamos Gabriel no caminho, que também estava
perdido num inferno meio aleatório, que não era nem
muito ruim e nem muito bom. Quase um purgatório.
Cada um escolheu um céu e deixamos eles lás.
Logo, eu estava sozinho com Deusa outra vez.
– Não pensei que fosse assim tão fácil ir para o
céu.
– É fácil – ela disse – mas merecer o céu é difícil.
– Qual a diferença?
– Quando não se possui o estado mental correto,
não é possível suportar.
E eu pude ver o peso de suas palavras.
Nem Miguel e nem Gabriel aguentaram por muito
tempo a imensa energia emanada pelos céus. Sua
mentes não estavam preparadas, amadurecidas. Eles
acabaram sofrendo muito e caíram de novo no
inferno.
– Não se preocupe – disse Deusa – agora que eles
sabem que ainda podem subir, eles não vão desistir.
A não ser que se distraiam no meio do caminho.

71
Wanju Duli

Fiquei mais tranquilo.


– Deusa, tenho uma pergunta – falei – se eu
morresse agora, aonde eu cairia?
– Num céu – ela disse.
– Mesmo tendo matado tanta gente?
– Sim, mas foi como as profetisas disseram: seu
desenvolvimento espiritual já estava puro.
Aquilo era muito complicado. Desisti de tentar
entender.
– Estou cansado de viver – confessei – só vivi 40
anos, mas estou exausto como se tivesse vivido mais
que o dobro do tempo. Não sinto que quero
continuar. Será que não posso partir?
– Não – disse Deusa – não é o seu momento.
Somente eu posso determinar sua hora.
– E quando será?
– Você morrerá aos 99 anos.
– Merda!!!
Depois daquilo, despertei.
Eu estava no oásis do deserto, mas Deusa tinha
desaparecido. Lá só estavam Tomé e Elias.
– Eu vi Deusa! – exclamei – mas será que não foi
uma ilusão? Se bem que parecia tão real...
– Meu caro – disse Tomé – já parou para pensar
que até uma ilusão pode ser verdadeira? Deusa pode
ter te hipnotizado de propósito, para te mostrar algo
importante. Ser “somente uma visão” não significa
que é falso.
Tive que concordar.
Por muitos anos, vivi com meus dois
companheiros a vida árdua do deserto, como viviam
os antigos monges.

72
Sacra Soberana

Passei a meditar. Se eu ia viver mesmo até os 99


anos, seria uma tortura. Porém, mesmo Deusa me
garantindo o céu, resolvi que passaria o resto dos
meus dias apenas contemplando Deusa nos desertos.
Eu ainda passaria por provações terríveis antes do
meu fim.

73
Wanju Duli

Capítulo 4: O Peregrino do
Deserto e o Pássaro do Céu

– De certa forma, é bom estarmos somente entre


homens – comentou Tomé – assim fazemos as coisas
do nosso jeito e não somos oprimidos. As mulheres
podem determinar quais são os melhores
treinamentos espirituais que servem para mulheres.
Mas nós somos homens. Não nos beneficiamos
exatamente dos mesmos treinamentos.
– Não fale assim – eu disse.
– Não precisa mais conter suas palavras, meu caro
– disse Tomé – nós somos livres.
Liberdade. Eu não me sentia tão livre como um
peregrino do deserto. Na cidade, eu podia me ocupar
com muitas coisas e me distrair. Mas lá não havia
distrações. Eu precisaria encarar os meus próprios
pensamentos.
Não ficamos apenas na região do oásis. Seguimos
adiante, numa jornada.
De vez em quando encontrávamos viajantes no
caminho, em sua maioria homens fugidos da
opressão e da servidão.
– Bom dia, amigo!
– Lindo dia! Por acaso o senhor teria um pouco
de água aí?
Compartilhávamos nossas provisões com alegria.
Estávamos aprendendo muito sobre dar e receber.

74
Sacra Soberana

Porém, chegou um momento em que não


encontramos mais viajantes. Acho que caminhamos
para muito longe, numa direção fora do caminho das
cidades.
Não tínhamos mais água ou comida. Passamos
por um período de grandes privações.
Foi difícil se concentrar no espírito quando o
corpo gritava pelas coisas mais básicas do mundo.
Mas nós fomos fortes.
Aprendi muito com minha dor. Senti, ao esvaziar
minha carne de todas as coisas, que eu não era só
carne. Havia algo por trás de tudo. Eu sentia um
pedaço de minha alma cantando para mim.
Era uma canção belíssima. Dizia mais ou menos
assim:

Não tema, caro desbravador


O dia passa
A noite passa
A vida passa
A morte passa
Mas a alma
Para na sinaleira

– A alma para na sinaleira? – perguntou Elias –


que poema mais ridículo!
Fiquei vermelho.
– É... é... um poema belo! – gaguejei – são as
palavras da Deusa!
– Espero que não – disse Elias – pelo menos a
Deusa para quem rezo tem bom gosto. Apenas pare
de repetir isso todos os dias, sim? Está cansando
meus ouvidos.

75
Wanju Duli

– Você é um chato, sabia? – falei – é insuportável


viver com vocês dois.
Havia momentos em que eu me emocionava ao
estar com meus amigos e sentia uma sensação pura
de grande unidade.
Em outros momentos eu me irritava tanto que me
passava pela cabeça o pensamento de seguir sem eles.
Eu não poderia ser um ermitão? É claro que eu
poderia.
Por outro lado eu tinha um pouco de medo de
morrer sozinho, na imensa solidão e vazio do
deserto.
Mas eu não deveria ter medo. Minha fé em Deusa
seria meu alimento. Morrer de fome e de sede era
apenas a morte do corpo. Eu era espírito.
Chegou um momento em que nós três estávamos
fracos e magros como gravetos. Os nossos músculos
eram consumidos pouco a pouco. A hora da morte
se aproximava.
– Podemos fazer fogo para cozinhar – propôs
Tomé.
E, no meio da noite quando deitamos para
dormir, eu e ele passamos a faca no pescoço de Elias.
Rezamos por ele, para que sua alma encontrasse o
caminho para o paraíso. E depois disso nós o
cozinhamos e comemos sua carne.
– Sei que Elias era um pouco chato – comecei.
– Bem chato – complementou Tomé – não seja
tão gentil.
– Mesmo assim, será que fizemos a coisa certa ao
matá-lo?
– É só a morte do corpo – disse Tomé – e nós
rezamos por ele.

76
Sacra Soberana

– Espero que ele encontre seu lugar no céu


masculino.
E rezei por ele todas as noites desde então.
De certa forma, uma parte dele habitava dentro de
mim agora. Aquilo era estranho.
Nós matamos o corpo dele para que nosso corpo
pudesse continuar a viver. Sendo assim, foi corpo por
corpo, ou, matematicamente falando, um corpo por
dois corpos. Será que algo assim podia ser decidido
por matemática?
Resolvi parar de pensar nisso. Mas era difícil não
pensar que poderia chegar o dia em que Tomé
resolvesse passar a faca em mim.
Pensando bem, aquilo não me incomodava tanto
assim. Todas as noites, eu rezava tão fervorosamente
como se estivesse preparado para morrer durante o
sono. Então, se um dia eu não acordasse mais e
despertasse no outro mundo, não faria diferença.
Não era questão de “se”. Um dia eu
necessariamente despertaria na outra vida. Eis uma
verdade inevitável. Então será que a vida que eu tinha
naquele corpo não passava de uma oportunidade
para preparar o espírito?
Um misto de prazer e dor. Eis a vida.
Ironicamente, passando sede, fome, calor e
sofrimento no deserto, eu era capaz de sentir uma
sensação muito mais incrível que qualquer tipo de
prazer que já vivi.
Isso porque meu corpo estava sumindo. Eu me
sentia desaparecer cada vez mais, restando
praticamente só a alma. Eu era todo alma, todo
espírito, todo Deusa.

77
Wanju Duli

Até o ritmo da minha respiração estava diferente.


Meus batimentos mudaram. Era como se meu corpo
estivesse morrendo pouco a pouco e
desesperadamente se agarrando ao último sopro de
vida.
Duas semanas depois de devorar o corpo de Elias,
já estávamos quase mortos outra vez. Por sorte,
conseguimos um pouco de água com um viajante que
nos sentimos tentados a matar.
Não, nós não o matamos porque ele foi muito
gentil em dividir sua água conosco. Será que
estávamos nos transformando em animais? A fome
era tanta que uma vez tentei comer areia, mas não
deu certo. Também tentei comer meus próprios
cabelos e as minhas unhas, mas aquilo não me saciou.
Comíamos frequentemente as nossas fezes e a
nossa urina, mas era difícil produzir mijo sem beber
água. O nosso corpo se agarrava a cada gota e não
queria perdê-la.
As pessoas da cidade possuem muitas frescuras
sem necessidade. Eu, que sempre fui acostumado a
limpar a sujeira dos outros, já não me incomodava
em lidar com sujeira ou mesmo estar sujo.
Qual era o problema em lidar com dejetos? Era
algo tão natural! Por que algumas pessoas possuíam
verdadeira aversão a isso? Eu não entendia.
A vida era muito simples e bela para se preocupar
com essas coisas tão pequenas. Ali, vivendo num
estado humano de pureza, de solidão, de pequenas
coisas, eu me dei conta de que o ser humano precisa
de muito pouco para viver.
Eu estava feliz. Mais que nunca.

78
Sacra Soberana

Um dia pensei que Deusa só podia ser encontrada


na igreja. Mas ali, na imensidão do deserto, eu via sua
face todos os dias.
Via a face da Deusa na minha sede, no meu
desespero.
Via a face da Deusa no movimento dolorido das
minhas articulações, dos músculos contraídos, que se
negavam a me fazer andar mais um passo.
Quando desabei e não consegui caminhar mais,
respirei aliviado.
Fui salvo por Mateus, um homem piedoso. Ele
me deu de beber um cantil inteiro de água.
Infelizmente, eu me perdi de Tomé no meio do
caminho, em meio a uma tempestade de areia,
quando eu já estava alucinando.
– Que está fazendo aqui? Esse é o fim do mundo.
Quando escutei Mateus pronunciar essas palavras
e me dar de beber, eu o abracei com meus braços de
graveto e derramei um vale de lágrimas.
Era tão puro. Tão simples. Alguns goles d’água
eram capazes de unir profundamente dois homens.
Eram capazes de encher meu coração de amor
infinito.
Jamais senti antes tanto amor por uma pessoa
quanto senti por aquele abençoado desconhecido.
Por isso supliquei-lhe que me desse o seu nome, pois
eu o cantaria em canções religiosas e rezaria por ele
até o último dia de minha existência.
Nosso encontro foi breve, mas me marcou para
sempre.
Ele insistou que eu fosse com ele até a cidade. Lá
ele me levaria para sua casa e me daria pão. Mas eu

79
Wanju Duli

disse que não. Disse que tinha meu próprio caminho.


Eu precisava prosseguir em minha jornada.
Algumas pessoas me achariam burro, mas naquele
ponto eu sabia dizer claramente o que Deusa queria
de mim.
Ela me ensinou algo precioso naquele dia. Me
mostrou porque nós temos corpos de carne. Porque
existe a dor.
Como eu seria capaz de sentir aquela conexão
infinita com um homem que eu não conhecia se
antes eu não estivesse prestes a morrer de sede?
Se você desejar achar Deusa, vá para o deserto.
Eu era capaz de deixar as paredes, o chão e as
janelas da casa de Deusa brilhando. E eu sentia que
ela ficava feliz com o que fiz por ela. Mas no deserto
era diferente.
No deserto não havia chão e janelas. A areia não
pedia para ser limpa. Ela apenas voava, em pequenos
grãos infinitos.
Eu via a infinitude de Deusa em tudo ao meu
redor: na pequenez dos grãos de areia, na sua
incontável quantidade. No horizonte, que jamais
mostrava sinal de vida. No Sol, que nascia imenso e
vermelho, para me cobrir por inteiro. E no céu,
recheado de estrelas.
A noite era fria e terrível. Tudo ficava escuro, mas
eu não temia. As estrelas iluminavam meu caminho e
havia noites em que elas cobriam todo o pano do
firmamento, sem deixar nem mesmo um espaço.
Como alguém podia duvidar da existência de
Deusa ao contemplar as estrelas? Ao contemplar o
Sol vermelho e gigante?

80
Sacra Soberana

No deserto não havia altas edificações e eu podia


contemplar o Sol no momento em que nascia e
morria. Eu percebi que eu também nascia e morria
como ele e isso não era triste: era a condição mais
feliz do mundo.
Peguei o meu bastão e arrastei-me com ele,
reunindo minhas últimas forças para caminhar.
Demorou muito para que eu localizasse meu
próximo oásis. Perdi a noção do tempo. Mas aquele
era bem menos imponente que o primeiro, no qual
encontrei Deusa. Estava mais para uma poça d’água
lamacenta.
Mesmo assim, no mesmo instante mergulhei a
cabeça naquela água suja e bebi tudo. Tirei o meu
manto e fiquei nu. Lavei-o na água. Lavei meu corpo
também.
Alguns dias depois, tive febre alta. Caí no chão e
alucinei novamente.
Vi o Sol chorando lágrimas de fogo. E as estrelas
choravam e derramavam seus pedaços, como cristais.
A areia chorava de forma discreta, quase num
sussurro:
“Sssssshhhhh!”
Era o barulho da areia, que parecia tranquila
demais em meio à fúria do mundo:

Façam silêncio
Sol, céu e estrelas
Dançando demais
Fogo, água e gelo
Muito barulho
Imitem meu passo
Patinação discreta

81
Wanju Duli

Trovão sem tempestade


Eu indico a quietude
Da dança sem música
Shhhhh!

Eu sorri e agradeci a areia que tocava minha face.


Beijei-a, em meio ao meu deleite.
Logo, tive forças para levantar e prosseguir.
A próxima pessoa que encontrei foi uma mulher
vestindo um manto negro. Ela desceu de seu camelo
e foi ao meu encontro.
– Saudações, viajante! Parece cansado.
– Sim, senhora. Eu te saúdo!
Perguntei-me se nossas velhas regras ainda valiam
para o deserto, mas imaginei que sim. Por isso, não
olhei diretamente para a face da mulher.
– Pode me olhar, homem – ela disse – não te
julgo.
– Mas Deusa julga, madame – eu disse – sou o
humilde servo de Deusa.
Ela sentiu-se tocada pelo meu gesto. Dividiu seu
pão comigo.
E assim nos separamos. Pães de mulheres
geralmente eram de alta qualidade. Senti um imenso
prazer com aquela refeição.
Os prazeres sentidos no deserto se multiplicavam
por mil.
Eu já tinha encontrado Deusa. Então por que eu
seguia em minha jornada? A resposta era muito fácil.
Uma vez que se encontra Deusa, não se deseja
mais separar-se dela. No fundo, eu não estava
sozinho. Deusa sempre estava comigo.

82
Sacra Soberana

Eu era um homem que tinha uma amante. A


amante mais sábia, compassiva e fiel.
Mas minha amante não era desse mundo.
Eu mesmo não sentia que me encontrava mais
nesse mundo. Embora meu corpo persistisse, de uma
forma inexplicável, parte de mim já estava do outro
lado.
Eu era esse ser, meio carne, meio espírito, uma
parte gritando mais que outra de tempos em tempos.
Mas as duas partes não eram inimigas. Descobri
isso naqueles dias. Elas se amavam e davam forças
uma para outra.
“Seja forte, corpo. Quem te fala é teu espírito, que
te anima”.
“Seja forte, espírito. Quem te fala é teu corpo, que
te sustenta”.
Quando nasceu meu próximo Sol, levantei os
braços e o saudei. Sorri e gargalhei. Aconcheguei-me
na areia, rolei e dancei.
A areia escorreu entre meus dedos, como
pequenos cristais.
Por que as pessoas buscavam pedras preciosas se
aqueles grãos de areia eram muito mais valiosos?
Eu sentia que os anos se passavam. Eu me
acostumava com a vida do deserto. Não queria mais
voltar para a cidade. Lá no deserto encontrei meu lar.
Depois de muito tempo, aprendi a me guiar pelas
estrelas. Eu sabia que direção seguia através das
constelações. E sabia bem qual era o momento do
dia pelo Sol. As fases da Lua me indicavam a
passagem das semanas.
Eu não precisava de papel. Fazia um mapa mental.
Decorei tudo e aprendi.

83
Wanju Duli

Em pouco tempo, sabia que direção seguir para


encontrar cada um dos poucos oásis do deserto.
Assim, eu nunca passava sede.
Contudo, eu ainda dependia dos viajantes para
achar comida. Mas eu estava tão magro que precisava
comer tão pouco ultimamente! Umas poucas
migalhas já me satisfaziam.
Quando eu encontrava um viajante e este me dava
gentilmente um pedaço de pão, eu o guardava nas
vestes e esse alimento podia durar até mesmo
semanas.
Ri de mim mesmo em meus primeiros dias no
deserto. Eu era tão desajeitado! Achava que precisava
comer e beber o tempo todo. Quando me deparava
com um punhado d’água já o metia todo na boca e
devorava o pão com avidez.
Aos poucos, meu corpo aprendeu a se virar.
Enquanto isso, meu espírito se alimentava de Deusa.
Eu rezava o tempo todo. Me ajoelhava. Louvava o
sagrado.
Agradecia por estar num mundo lindo como
aquele. Agradecia porque Deusa me ensinou todas as
coisas.
Minha vida não era extraordinária? Eu me sentia
mais abençoado do que qualquer mulher rica da
cidade. Me sentia mais sábio que a mulher que
recebeu a melhor educação possível.
Elas sabiam os diferentes idiomas criados pelas
mulheres e sabiam contar os números que elas
criaram.
Por outro lado, eu conhecia o idioma da Senhora.
Ela falava para mim em sussurros, através do sopro
do vento e do brilho das estrelas. E somente no

84
Sacra Soberana

silêncio e na calma do deserto eu entendia suas


palavras de forma clara.
Mas Deusa também podia ser violenta. Em meio
às tempestades de areia sentia toda sua glória. Eu
tremia de medo e fascínio e caía de joelhos. Sentia
adrenalina percorrendo meu corpo inteiro. Ao
mesmo tempo, não temia por meu corpo, porque
sabia que eu era todo espírito.

Pode levar meu corpo nessa tempestade


Deusa, pode me levar
Arrasta tudo
Carne, sangue e ossos
Vou me despedaçar por inteiro
Somente para te ofertar
Uma parte de mim
Mas toda minha alma é tua
Somente tua
Minha amada soberana
Tão santa, tão sacra
Que meus joelhos se dobram
Com o maior amor e terror
Que o deserto me ensinou
Deserto! Leva tudo!
Lava meu corpo, limpa minhas lágrimas
Que é esse sangue que corre?
É somente meu espírito
Correndo para o céu

Cobri a boca com a mão. Vomitei sangue e


derramei lágrimas ao fitar aquele sangue sagrado.

85
Wanju Duli

– Obrigado, Senhora dos céus. Eu me entrego.


Sou teu.
Não sei quantos anos ou décadas permaneci
vagando no deserto. Mas eu me sentia preparado
para deixar meu lar de areia e habitar o lar que não é
areia, nem Sol nem estrelas.
Eu escutei o chamado. Tinha chegado a hora.
Permaneci pronunciando o nome de Deusa até o fim.
Primeiro fiz com palavras. Depois, minha boca
não se abria mais. Pronunciei seu nome em
pensamentos. Quando até mesmo a memória me
deixou, somente o espírito dizia:
“Deusa, sou teu. Me salva”
No fundo, eu já estava salvo há muito tempo. E
por toda minha vida habitei o paraíso.
E então eu voei.
Era como se meu espírito ganhase asas. Como
fogos de artifício estourando no céu.
Eu subi, com uma velocidade mais impressionante
que o dragão rosa de minhas visões. A alma cortava
tempo e espaço, atravessava e conhecia seu exato
caminho.
Por todas as noites, até o último dia, rezei por
todas as dezenas ou centenas de pessoas com a quais
cruzei no deserto. Água e pão. Era só isso que elas
me ofertavam, mas esse pequeno gesto nos uniu para
sempre. Nós uniu através de Deusa.
Enquanto eu atravessava tempo e espaço,
inexplicavelmente senti a presença de uma ou outra
daquelas almas com quem cruzei no deserto, que
também já tinham encontrado seu descanso final.
Quando passei por elas, fiz com que elas
subissem. Não sei explicar como.

86
Sacra Soberana

Enquanto isso, senti outras almas ao meu redor


que me faziam subir.
Então era isso: não estávamos separados.
Estávamos todos juntos. Um fazia o outro subir. Eu
passava por várias delas, como se trocasse apertos de
mão, cumprimentos e sorrisos.
Mas era apenas amor puro.
Reencontrei pessoas que jamais imaginei
encontrar.
Senti a presença de minha professora, que me
introduziu aos ensinamentos da Biblilia feminina.
Então ela também já tinha deixado esse mundo.
E nós dois fizemos com que o outro subisse.
Mas minha vida não era só sonhos. Eu também
fiz o mau. E quando o fiz, eu soube que o tinha feito.
Não tinha a menor dúvida. Não fiz por ignorância.
Aceitei meus erros.
Por isso houve momentos em minha subida que
tombei. Eu caí, tropecei. Mas tive forças para
continuar.
Meus longos anos de arrependimento, confissões,
preces e expiações tinham me libertado da maior
parte do meu fardo.
Eu sempre pedia perdão por cada uma de minhas
ações e tentatava melhorar. Mas eu era apenas
humano.
Até que eu parei. Não fui capaz de subir mais.
Eu contentei-me com isso. Não iria cobiçar subir
mais do que minha existência me concedia. Do que
aquilo que Deusa me dava.
Senti a presença de Elias, lá em cima. Eu queria
pedir perdão, mas não era capaz de subir mais.

87
Wanju Duli

Foi então que ele escutou o meu chamado e


desceu. Ele me deu a mão e me fez elevar.
Não consegui subir tão alto quanto ele, mas me
contentei com o que eu tinha. Ele me perdoou e isso
para mim já foi um presente mais precioso que o
mais alto dos céus.
Eu não era braços nem pernas. Nem corpo e nem
alma. Apenas participava da felicidade da Deusa.
Deusa, você é minha rainha.
Minha soberana, minha Lua, meu Céu
Até a próxima jornada

FIM

88

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