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Há Citação Sobre o Mário Ferreira PDF
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Resumo: O artigo apresenta algumas considerações e interpretações sobre a letra e a música da canção
Sobre Todas as Coisas de Edu Lobo e Chico Buarque. A metodologia para tal construção se dá sempre a
partir a partir do objeto que é, em última análise, a canção. Assim, dela derivada, a abordagem se dará a
partir de autores da assim chamada filosofia perene, principalmente CORBIN (1981) e NASR (2002) e
outros autores que giram ao seu redor e que, de alguma forma se aproximam dessa forma de pensamento.
No que tange a canção em si, alguns pontos da proposta de Luiz Tatit será discutida com a complementação
da abordagem que o autor do artigo já vem realizando de modo geral para se chegar às considerações finais.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira. Canção Popular. Filosofia Perene.
Introdução
Derivada do espetáculo de dança estreado no Teatro Guaíra de Curitiba “O Grande
Circo Místico”, a canção Sobre Todas as Coisas foi lançada no LP produzido em 1982.
De título homônimo ao do espetáculo, o disco da gravadora Som Livre pertencente
ao grupo da emissora Globo de televisão e comunicação. As canções de Edu Lobo
e Chico Buarque compostas para esse balé foram baseadas na produção poética de
Jorge de Lima (1893-1953). A canção em questão foi composta para ilustrar a crise
de misticismo da personagem Margareth, uma domadora de feras que, em aluci-
nação, declara amor a Cristo e então tatua imagens sagradas em seu corpo, o que
faz com que elas, as feras, se amansem. Tais imagens também tornam impotente
seu amado, Ludwig que morre por não satisfazer seu desejo sexual. Os arranjos do
disco foram elaborados pelo maestro Chiquinho de Moraes e cada canção teve um
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diferente intérprete. Para essa canção foi escolhido o cantor e compositor Gilberto
Gil. A escolha não poderia, dentro do contexto da produção, ser mais feliz, haja
vista a obra autoral de Gil na qual a temática mística, religiosa e espiritual se fez
presente em canções como Se Eu Quiser Falar com Deus, Expresso 2222, Retiros
Espirituais etc.
Deus Patético
Há “o que se origina”; além do ser, “que é”, há o “Deus que não é” [...]
isto é, o theos agnostos, o Deus incognoscível e imprevisível; e há o Deus
revelado, Seu Nous que pensa e age, que mantém os atributos divinos e é
capaz de relação.
No entanto, não é procurando um compromisso favorecendo uma ou
outra dessas noções, mas mantendo firmemente a simultaneidade da
visão, que chegamos a falar de um Deus patético, não como uma exigência
teórica em oposição às teologias positivas preocupado com o dogma da
imutabilidade divina, mas como uma progressão interna para efetuar, em
nossa experiência, uma passagem do vazio do silêncio para as figuras e
afirmações possuídas de uma fundação positiva. (CORBIN, 1981, p. 112)
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um conhecimento ou saber, além dos saberes nemáticos fáticos (que são dados pela
intuição sensível) e eidéticos (cuja intuição oferece uma noésis1 racional que reduz a
operação racional a um esquema abstrato-eidético), um saber vivencial, páthico ou
patético, que permite maior fusão entre sujeito e objeto do conhecimento. Mas, aqui,
se refere ao pathos do homem em relação a Deus e não o contrário. Nesse contexto,
relacional entre Deus e homem, advém a experiência mística que, ainda segundo
Santos, se trata de um conhecimento direto e experimental e afetivo da divindade,
que se opõe a um conhecimento operatório e racional. Não se trata, porém, de um
conhecimento irracional, segundo diversos autores da chamada filosofia perene,2
mas suprarracional.
Ao Nosso Senhor
Pergunte se Ele produziu nas trevas, o esplendor
Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador
1 “A noésis, na intelectualidade, realiza-se com o objeto, é gnosis, é cum-nos-cere, con-hecer, a qual nos dá
um conteúdo, um nomea, imagem”. (SANTOS, 1960, p. 51)
2 A chamada “Escola Perenialista” (ou Tradicionalista) foi formalizada a partir dos escritos de Frithjof
Schuon (1907-1998) e René Guenon (1886-1951). Outros autores como Titus Burkhardt e Martin Lings
também se somam aos anteriores.
3 Os Hadiths do profeta Mohamad fazem parte da tradição oral do Islã, posteriormente compilada.
Contam fatos, palavras e ações do profeta e é, dentro da jurisprudência muçulmana, considerada como
uma importante chave de interpretação do Corão.
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Cabe ressaltar, porém, que embora, dentro da perspectiva de uma revelação, a ideia
de homem e humanidade pode ser problematizada. É apenas no cristianismo, através
da disputa entre os apóstolos Paulo e Pedro que se concretiza a ideia de uma religião
universal, que esteja disponível para toda a humanidade e assim, no âmbito do
proselitismo, a “mensagem” seja propagada. O Islã já nasce como religião universal
e não relacionada a uma etnia específica, porém, pode-se pensar no Homem que
se relaciona com a divindade, não como uma possibilidade quantitativa, mas, sim,
qualitativa, no sentindo de que, ou pelo “suor da própria fronte”, ou pela eleição
divina, o estado da santidade possa ser alcançado.
Outro aspecto suscitado pela segunda estrofe é o fazer o esplendor a partir das trevas
e da criação do reino animal e vegetal. A primeira se relaciona com o evangelho de João
(“No princípio era o verbo...”) e a segunda com o Livro do Genesis. A letra da canção,
até aqui, encontra-se, através de sua poética e ainda que em sentido interrogativo,
em sintonia com as concepções de criação divina aqui abordada. E a palavra central
dessa ligação entre homem e Deus passa a ser o amor, enfatizando, novamente, a
relação patética entre os dois. Cabe ressaltar as diferentes acepções da palavra amor,
segundo a tradição cristã, derivadas das palavras gregas Philia e Ágape. Esta última
parece mais adequada para representar o tipo de amor aqui abordado, embora esse
fato não seja unânime entre os comentaristas.
4 Cf. KHALIDI, Tarif. O Jesus Muçulmano. Provérbios e História na Literatura Muçulmana. Tradução de
Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001.
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E se o Criador
Inventou a criatura por favor
Se do barro fez alguém com tanto amor
Para amar Nosso Senhor
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Essa estrofe apresenta, a meu ver, a crítica mais contundente em relação a moral
religiosa, principalmente cristã, mas ainda dentro de uma perspectiva profética,
pois pensa como sendo uma crueldade de Deus para com a humanidade, ou seja,
ainda é um Deus cujo traço do pathos se faz presente. A partir da normatividade
da moral religiosa, que nega ou regulamenta os “prazeres da carne”, o pensamento
do filósofo Julius Évola (1898-1974) nos parece extremamente interessante. A
partir dos apontamentos sobre a sexualidade e o sagrado tomadas do clássico A
Metafísica do Sexo, aponta para perspectivas tradicionais nas quais práticas sexuais
foram associadas ou praticadas como exercício de ascese espiritual. Aponta que,
mesmo no cristianismo monástico houve indícios de tais práticas. Entretanto, é
exatamente na questão da finalidade do sexo que o autor se debate em relação
a concepção de que este tenha apenas como finalidade, segundo o catolicismo,
apenas a procriação.
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Evola se diferencia dos demais autores da filosofia perene por achar que as tradições
de caráter guerreiro (Romana, Nórdicas e Cavalheirescas, por exemplo) precedem
tradições sacerdotais do ponto de vista ontológico. Seu olhar, no que tange a sexuali-
dade, parte da perspectiva de sociedades tradicionais, em contraposição a do mundo
moderno de sua época que tem, como base, aquilo que chama de anti-tradicional que
historicamente, paradoxalmente, se deu a partir do próprio cristianismo.
Qual seria a crueldade mencionada na letra então? A da criação do desejo e sua
condenação? Talvez a crueldade de mostrar os vales do leite e do mel, ou seja, os
prazeres mundanos e proibi-los em suas regras exotéricas de conduta (sharia).
Algumas passagens do antigo testamento apontam para a chamada “terra do leite
e do mel”, ou seja, para terras de fertilidade e abundância, como a terra prometida
ao povo de Israel. E, ainda aqui, a letra filia tal fertilidade a um atributo divino, ou
seja, o homem participa do atributo da fertilidade quando realiza o ato sexual que,
em última análise, pertence a Deus.
Esse trecho, do ponto de vista musical, também é classificado como parte B sendo,
o último retorno para a parte A também o retorno da primeira estrofe da letra que
concluía a canção. Um último sentido religioso que se reforça na última repetição
dessa estrofe é também o duplo sentido final de que Deus se zanga com alguém que
foi abandonando pelo próprio amor de Deus, o que finda a canção com um paradoxo
no sentido de que, se se toma uma interpretação literal, Deus estaria zangado consigo
mesmo, por Seu amor ter realizado o abandono.
A Canção em si mesma
A partir das categorias cancionais propostas por Luiz Tatit (2003) para a abordagem
do gênero, percebe-se que a irregularidade métrica da música abordada afasta, ainda
que não completamente, a possibilidade de sua categorização em canção temática.
Não completamente porque sua estrutura se repete, irregularmente, nas diferentes
estrofes. Mesmo assim, as quadras poéticas que compõe as estrofes correspondem
a estruturas binárias de oito compassos. Via-de-regra, estruturas poéticas fixas se
repetem com letras diferentes adaptadas às frases musicais. Entretanto, o início da
canção e, de todas as estrofes se dá por uma repetição de uma mesma nota (Dó#)
adaptada as palavras: “Pelo amor de Deus”, “Ao Nosso Senhor”, “Não, Nosso Senhor”.
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Para a seção B outra nota (Fá#) é repetida para as palavras “E se o Criador” e “Ou será
que o Deus”. Essa mudança em parte não difere do tom queixoso dos primeiros, mas
a mudança da nota é associada à argumentação adversativa. Portanto, esse tom de
lamento e queixa, que de certa forma se aproxima das ladainhas religiosas apontam
exatamente para aquele aspecto passional.
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Considerações Finais
Basicamente a referência teórica para a construção desse artigo gira em torno das
reflexões em torno da filosofia perene, principalmente no que tange ao sufismo, ou seja,
de prática realizada pela mística islâmica. Alguns autores atuaram no seu entorno no
sentido de corroborar as discussões levantadas e também para trazer algo da tradição
cristão e da escolástica a fim de enriquecer os pontos levantados pela canção.
Do ponto de vista estrutural, observa-se que, apesar da pertinência da abordagem de
Tatit, no sentido de reforçar a ideia da passionalidade que está na canção e também
na questão do Deus patético enquanto uma isomorfia entre significado e significante
foi possível, mesmo assim, aborda-la dentro do padrão da correspondência entre
poesia e fraseologia musical já apontada em outros estudos (TINÉ, 2013). Isso
não quer dizer, porém, que uma abordagem obstrua a outra, mas que podem ser
complementares, pois uma verifica o significado extrínseco entre a fala e a música,
fato que se relaciona com conteúdo da letra e, o outro, atua no âmbito intrínseco,
se relacionando com aspectos puramente musicais.
Historicamente uma importante distinção deve ser realizada entre a classificação
das canções da música popular do Brasil e a chamada Música Popular Brasileira, a
MPB, cuja construção estético-simbólica se deu a partir da década de 1960. Dado o
grande sucesso da música produzida sobre a égide da nova sigla a partir do contexto
do nacional popular e dos CPCs (Centro Popular de Cultura), a sigla passou a ser
usada para toda a música popular do Brasil, inclusive a de gêneros instrumentais
como o choro. É fato que, o período denominado por Época de Ouro da música
popular do Brasil, que corresponde ao apogeu da era rádio no Brasil, não poderia,
a rigor, ser considerada como MPB. Está se dá, principalmente, a partir do período
mencionado (década de 1960) e com as diferentes gerações a partir de Edu Lobo,
Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e outras posteriores
como Ivan Lins, João Bosco, Djavan, etc. Certo modo, esse período corresponde
ao apogeu da televisão e, num primeiro momento, ao das fórmulas dos festivais
da canção, a “era dos festivais”, para citar o livro de Zuza Homem de Mello (2003).
Assim poderia ser pensado que, se houve uma época de ouro, teríamos uma idade
de prata a partir da MPB, não no sentido de se hierarquizar os períodos, mas man-
tendo a simbologia proposta pelos autores desse artigo, principalmente Julius Evola
e Mario Ferreira dos Santos.
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Finalizando e voltando à canção, claro está que não se pretende aqui colocar que
o propósito da canção seja ilustrar pensamentos teológicos, mas que o paradoxo
poético, que não afirma nada categoricamente, mas aponta para possibilidades,
suscita tais discussões. Nesse sentido, parece pertinente a frase o poema de San
Juan de La Cruz que, a meu ver, tão bem se aplica o propósito da fruição da arte,
que é o “entender não entendendo, toda ciência transcendendo”. A insinuação e o
paradoxo como mote.
Referências
CHEDIAK, Almir. (Org.). Songbook Edu Lobo. Rio de Janeiro: Lumiar, 1995. 1 partitura.
CORBIN, Henry. Creative Imagination in the Sufismo of Ibn Arabi. Tradução de Ralph Manheim.
Princeton: Princeton University Press, 1981.
EVOLA, Julius. A Metafísica do Sexo. Tradução de Elisa Teixeira Pinto. 2. ed. Lisboa: Vega, 1993.
LOBO, Eduardo; BUARQUE, Chico. O Grande Circo Místico. Rio de Janeiro: Som Livre, 1983. 1 cd.
MELO, Zuza Homem. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.
NASR, Seyyed Hossein. The Heart of Islam: Enduring Values for Humanity. Nova Iorque:
HaperCollins Publishers, 2002.
SANTOS, Mario Ferreira. O Homem Perante o Infinito. 3. ed. São Paulo: Logos, 1960.
TATIT, Luiz. Elementos para a Análise da Canção Popular. In: CADERNOS de Semiótica Aplicada.
São Paulo: Casa, 2003. v. 1, n. 2.
TINÉ, Paulo J. S. A Poesia e a Fraseologia em alguns exemplos de Música Popular do Brasil. In:
SIMPÓSIO DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 9., 2013, Bélem. Anais... Bélem: UFPA, 2013.
RIZEK, Ricardo. Sumário para a Preleção sobre a Tradição Cristã. In: CICLO DE ESTUDOS
DAS RELIGIÕES, 1., 2000, Ouro Preto. Anais... Ouro Preto: UFOP, 2000.
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