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SEGURANÇA ALIMENTAR

O conceito de Segurança Alimentar aparece atualmente de forma


diversa, distorcida e muitas vezes até de forma oportunista, dependendo de
interesses econômicos, políticos, grupais, profissionais, etc.
É nossa intenção trabalhar este conceito de um ponto de vista, o mais
amplo possível, considerando aspectos históricos, antropológicos, ecológicos,
sociológicos, econômicos, com o intuito de compreender a sua essência, o seu
verdadeiro significado.
A Segurança Alimentar aparece como responsabilidade social em todas
as fases da evolução do ser humano, como famílias, comunidades, civilizações e
culturas.

A existência de todo grupo social, pressupõe a obtenção de um equilíbrio


relativo entre as suas necessidades e os recursos do meio físico,
requerendo, da parte do grupo, soluções mais ou menos adequadas e
completas, das quais depende a eficácia e a própria natureza daquele
equilíbrio. As soluções, por sua vez, dependem de quantidade e qualidade
das necessidades a serem satisfeitas...
Com efeito, as necessidades têm um duplo caráter natural e social, pois se a
sua manifestação primária são impulsos orgânicos a satisfação destes se dá
por meio de iniciativas humanas, que vão se complicando cada vez mais, e
dependem do grupo para se configurar. Daí as próprias necessidades se
complicarem e perderem em parte o caráter estritamente natural para se
tomarem produtos da sociedade. De tal modo a podermos dizer que as
sociedades se caracterizam, antes de mais nada, pela natureza das
necessidades de seus grupos, e os recursos de que dispõem para
satisfazê-las.
O equilíbrio social depende em grande parte da correlação entre as
necessidades e sua satisfação (CÂNDIDO, 2001, p. 29).

Este aspecto antropológico coloca o fato social da organização para a


satisfação das necessidades de subsistência como fundamento, como mola
mestra para a evolução do ser humano.

O homem não precisa apenas de comida, mas de uma organização para
obter comida”. (GOODFELLOW, 1939, p. 260).
O alimento é o recurso vital por excelência e a alimentação ilustra o
caráter de sequência ininterrupta, de continuidade que há nas relações do grupo
com o meio, caracterizando um vínculo entre o homem e o meio numa
solidariedade profunda e indissolúvel, é quando a natureza vira gente.
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A alimentação é o processo natural, maravilhoso, divinal de


transformar sol, água, solo, ar em vida, em gente, em seres humanos. A
alimentação é muito mais que o simples processo de reabastecimento de energia
para os organismos, é muito mais que satisfazer as necessidades nutricionais, é um
momento sublime, amoroso, divinal, transcende a matéria, espiritualiza, nos
potencializa como seres humanos. Por isso muitos rituais religiosos, através dos
tempos, envolvem atos de preparo, comensalidade e comunhão de alimentos. Por
isso também que, por esta afinidade, se formam os grupos, as famílias, as tribos.
Malinowski (2009) conceitua a grande busca do ser humano como a
busca do bem estar, da felicidade. Entende que ninguém é feliz com fome,
subnutrido, doente, descalço. Assim para o ser humano, como para todo animal,
como para todo ser vivo a sobrevivência, que é constituída de alimentação,
reprodução e defesa do corpo, da família, do território, é o elo, é a ligação
fundamental, é o fundamento maior da existência, da vida.
O grande salto de evolução do antropóide para o ser humano foi se
erguer, ficar de pé, pois bípede era mais eficiente, eficaz e efetivo na busca de
alimentos (LEACKEY, 1981). Foi o início da Segurança Alimentar! O ser humano
se destacou, pois ficou de pé, ereto, teve suas mãos liberadas e adaptadas para o
trabalho e olhou para cima; adquiriu uma visão a cores, em profundidade, em três
dimensões e com uma amplitude de 180 graus podendo assim observar mais
atentamente a natureza; teve o cérebro aumentado em peso e complexidade
podendo analisar, pensar, planejar, organizar seus instintos, principalmente
produzir alimentos para si, para sua família, para seu grupo, para sua
comunidade. É o anthropus, que no idioma grego significa o ser que se levanta, que
se movimenta para cima, para o alto, quer mais, quer o desenvolvimento pelo
conhecimento, trabalho, saúde, logística, lazer.
Desde épocas remotas no planeta com as glaciações, e considerando a
última delas e o seu degelo que propiciou ao ser humano um grande aumento de
suas chances de sobrevivência, em especial das condições de alimentação, a
Segurança Alimentar aparece para a humanidade como uma busca prioritária e
obstinada, tornando o Homo sapiens produtor. Como nos mostra Marconi e
Presotto (2009) isto não foi um salto, um milagre, mas um processo de evolução
que nos remete a um passado remoto de 1 milhão a 12.000 anos a.C. na época
cultural do Paleolítico ou “Pedra Lascada” quando o ancestral humano aparece
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como “apanhador de alimentos”, usuário do fogo e habitante das cavernas. De 40


mil a 12 mil anos a.C., o homem ainda coletor e caçador apresenta rudimentos de
uma organização social sugerindo uma pré economia em função da alimentação e
da reprodução. Manifesta uma indústria mais aprimorada de propulsores como
arcos, flechas, atiradeiras para caçar alimentos. Apresenta manifestações artísticas
com ossos, marfim, esculturas, pinturas policrômicas nas paredes das cavernas
sugerindo alimentação e sexo. Apresenta manifestações espirituais como
sepultamento, ritos fúnebres com alimentos como oferendas.
De 12 mil a 10 mil anos a.C. na época cultural do Mesolítico acontece o
recuo das geleiras no hemisfério norte com a flora e fauna diversificadas e
enriquecidas propiciando mais alimentos para o homem. É notório um avanço
material e intelectual do homem. Aparecem os rudimentos da economia com o
homem criando seus próprios recursos predando os Recursos Naturais para se
alimentar. Desenvolve os propulsores (arco, lança, arpão), inventa o anzol. O
homem mesolítico se apresenta como eficientes coletores, caçadores e pescadores
de alimentos mesmo dependentes da sazonalidade e do acaso. Inicia-se a
organização social, a cooperação. Formam-se as hordas, os bandos, as tribos.
Organiza-se o trabalho e o território em função da Segurança Alimentar (água e
alimentos).
De 10 mil anos a.C. na época cultural do Neolítico ou “Pedra Polida” ainda
na pré-história o homem fabrica instrumentos de pedra polida, amolada, afiada,
mais eficientes para cortar. Domestica plantas e animais.
Em função da baixa dispersão dos cereais domesticados o homem
descobre a semente e começa a plantar e a limpar em volta dos grãos plantados e
nascidos para protegê-los das outras ervas. Inventa a enxada. Cria a roça, a
lavoura, surge a agricultura.
O ser humano, desde a descoberta da agricultura, em função de ter que
cuidar das plantas que ele domesticou e passou a semear, começa, empiricamente,
a observar o desenvolvimento dessas plantas, o melhor local (solo) para serem
plantadas, a melhor época (clima) para isso. Foi assim, observando, percebendo e
descobrindo os melhores materiais e os melhores métodos para tal que a
humanidade garantiu a segurança de se alimentar, atenuando os acasos e as
aleatoriedades climáticas e sazonais, garantindo sua sobrevivência no espaço e no
tempo e evoluiu formando a família, os grupos, as comunidades, as grandes
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civilizações.

Estas obrigações, tecnologias e metodologias levaram o homem à


sedentarização. Também, em função da domesticação dos animais, estes tinham
que ficar reunidos e serem pastoreados o que levou o homem a ser sedentário e
organizar o trabalho do grupo e da família, surge o domicílio, o lar e, porque não, a
pátria.
Assim o homem deixa de ser coletor e caçador e passa a ser produtor de
alimentos, o que lhe da mais Segurança Alimentar, na medida em que se
organiza atenuando o acaso e a sazonalidade da caça e da coleta. Cria utensílios
de cerâmica, principalmente em função do cozimento, guarda e durabilidade dos
alimentos.
Forma famílias e organiza o trabalho. Forma tribos e comunidades e
organiza o território.
Ao processo de organização da produção de alimentos foi concomitante
o processo de formação da família e de organização social como um todo. “Quer se
trate de povos mais primitivos... ou de comunidades... altamente sofisticadas,
encontram-se sempre atos de comensalidade. Em regra, as pessoas comem em
conjunto... Seria mesmo possível mostrar que, em todas as civilizações humanas e
no respeito a cada indivíduo em qualquer sociedade, o ato de comer insere-se numa
instituição bem específica: o lar, o restaurante ou a pensão.” (MALINOWISKI, 2009,
p. 105).
A constituição da família e do lar exige que seja este grupo o cenário
predominante onde se desenrola o processo de consumo e, em regra, também de
preparação de alimentos. A Segurança Alimentar é, pois, o grande motivo para a
organização grupal.
Ainda segundo Marconi e Presotto (2009) grandes mudanças ocorreram
nos modos de pensar e agir do homem neolítico que, a partir de então tinha sua
autossuficiência assegurada, ou seja, tinha Segurança Alimentar. Desenvolve-
se o culto à fecundidade e a mulher ganha status na sociedade por plantar e
reproduzir. A sobrevida do homem se amplia e o aumento populacional é evidente,
formando-se grandes aglomerados. Ao pensar no advir com garantia,
autossuficiência e segurança de se alimentar, refletiu, desejou, sonhou, inventou,
planejou, organizou o trabalho, formou famílias e comunidades, criou nações,
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impérios e civilizações. Percebeu que ao plantar um grão e colher espigas com


muitos grãos estava garantindo o alimento do amanhã para si e para suas famílias e
comunidades.
Ao observarmos estes aspectos da evolução humana, percebemos que
Segurança Alimentar é um conceito ancestral, tão antigo como a agricultura, a
roda, o uso do fogo e dos metais.
Para que a humanidade possa sobreviver, se desenvolver, evoluir, viver
em bem-estar e ser feliz o grande fundamento, a prioridade absoluta é a
alimentação, é a segurança de se alimentar.

Pelo Caminho das Águas

Esses estágios da evolução humana se deram e prosperaram ao longo de


rios e grandes lagos e de mares. As primeiras grandes civilizações se deram no
tempo do neolítico e do calcolítico e no espaço chamado Fértil Crescente que
abrange a região da Foz do rio Nilo (Egito), da bacia do rio Jordão, margem oriental
do mar Mediterrâneo até os rios Tigre e Eufrates (Mesopotâmia). O Fértil
Crescente identifica a interação sinérgica do ser humano, da água, do solo e clima
próprios para a produção de alimentos e, portanto, para a Segurança Alimentar.
Da mesma forma surge a civilização chinesa (rios Amarelo e Yangtse);
civilização indiana (rios Indo e Ganges); civilização Síria/Fenícia/Grega/Helênica
(rios Jordão e Eufrates e Mar (Mediterrâneo); Império Romano, todas estas com
base na disponibilidade e abundância de ÁGUA para o uso do solo, das
plantas,para melhor nutrição, higiene e saúde das pessoas, bem como para o
domínio e hegemonia de suas conquistas.
Durante o desenvolvimento da civilização helênica surgem os primórdios
da ciência e da filosofia (TOYNBEE, p. 223). Destaca-se dentre os pais da ciência
grega Tales de Mileto (624-546 a.C.) que se liberta dos dogmas religiosos
subjetivos, objetiva e materializa as observações, as reflexões, o pensamento na
ÁGUA como a matéria fundamental para a VIDA, como a substância primordial,
como sendo a origem de todas as coisas, o que hoje a ciência confirma.
Ironicamente Tales morreu de sede... E nós, se não cuidarmos...

O homem criou o futuro!


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O ser humano produtor, no afã de buscar a Segurança Alimentar, se


confundiu nos meios e perdeu seus fins a ponto de por em risco a sobrevivência da
espécie. Assim desmatou sem critérios, usou o solo sem cuidados, criou tecnologias
e métodos impertinentes aos seus territórios, criou poderes inescrupulosos e
gananciosos concentrando riquezas, humilhando e indignando seus semelhantes.
Neste processo acelera enormemente a degradação dos recursos naturais, em
especial do solo e da água.
“Um agravamento desse fenômeno significaria, sem dúvida, o fim da
humanidade, ou, pelo menos, da civilização contemporânea” (DORST, 1973, p.
139).

A agricultura moderna transformou-se em indústria, esquecendo, assim,


que depende de fenômenos biológicos regidos por leis rigorosas e
universais, às quais o homem não pode fugir. Até mesmo a matéria-prima
principal, o solo, funciona como um ser vivo, sujeito a modificações em
grande parte incontroláveis. As grandes catástrofes que devastaram e
continuam devastando o mundo atual resultam desse equívoco. A fome
dos homens não se saciará com a violação da terra (DORST, 1973, p.
179).

A Babilônia, como parte da civilização mesopotâmia, decaiu não só por


ataques de inimigos ou invasores, mas, principalmente, pelo mau uso do solo e da
água. Sua decadência foi por descaso com a Segurança Alimentar dado a
salinização, erosão e improdutividade de seus solos. O rei caldeu Nabucodonosor
havia previsto isso quando sonhou com uma estatua com cabeça de ouro, tronco de
prata, pernas de ferro e pés de barro. O rei caldeu não foi vidente só de sua
civilização babilônica, mas de toda humanidade até nossos dias que tem uma
riqueza enorme apoiada em uma base fraquíssima com pés de barro. De que
adianta todo o conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico que não
servem à felicidade humana, mas sim aos poderes dominantes e hegemônicos. O
que adianta o império capitalista onde alguns oligopólios têm lucros exorbitantes
conseguidos à custa do empobrecimento dos povos, da destruição do meio
ambiente, da destruição das tradições, da moral, da família com a implantação da
ideologia do consumismo e da deterioração da qualidade de vida?
Esse processo civilizatório caminhou para o ocidente passando por Grécia
e Roma. Os gregos e os romanos saíram dos vales, dobraram os espigões e se
tornaram conquistadores.
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A civilização grega primou pela busca do conhecimento, com a filosofia e


a ciência (Tales de Mileto, Pitágoras, Euclides, Arquimedes) e em especial pela boa
alimentação e boa higiene. A espiritualidade grega foi equilibrada com as questões
existenciais e desta forma aparece a deusa Deméter, deusa da terra cultivada e
das colheitas, e ensinava aos homens cuidarem da terra e das plantações. O trigo
era o símbolo da civilização grega. Aí surge a medicina com Hipocrates que
prescrevia: “faça do seu alimento o remédio e do remédio o alimento”.
Os romanos formaram uma civilização inteligente e como conquistadores
entendiam que os povos conquistados para não reagirem e se incorporarem
organicamente na civilização romana deveríam estar bem alimentados e sadios
(“Mens sãna in corporis sanus”). As primeiras providências nos territórios
conquistados eram o levantamento das minas d’água e a distribuição desta água
para todo o povo dominado. A política prioritária da conquista sustentável era
“panes et circenses”.
Na mitologia romana aparece Ceres a deusa da agricultura que era
retratada com um cetro, um cesto de flores e frutos e com uma coroa feita de
espigas de trigo. A palavra cereal deriva de Ceres, associando a deusa com os
grãos comestíveis.
Os romanos, que saíram dos vales fertilizados pelas águas e tiveram que
produzir nos espigões, promoveram o uso da adubação verde, a rotação de
culturas, o pousio do solo por pelo menos um ano sob vegetação nativa, os
aquedutos para o bom uso da água, as boas estradas para transportar a produção,
levando tecnologias boas para os territórios dominados, levando principalmente
Segurança Alimentar. A civilização romana não sucumbiu por descuidar das suas
virtudes, mas começa a decair e se toma vulnerável pela embriagues, gula, lascívia,
desvios de conduta. Foi tão marcante esta fase que então criaram o vomitório para
que ali vomitassem após se locupletarem em suas orgias e assim poderem comer
mais e novamente vomitarem e comerem mais...
Ora, tais fragilidades permitiram aos chamados bárbaros, barbarizarem de
fora para dentro o Império Romano. Não tinham estes bárbaros nenhuma proposta
de Segurança Alimentar. Faziam a guerra como fim e não como meio de defesa de
família, da comunidade, do território. A Germânia, ao norte da Europa, era um
território infértil e coberto por pântanos o que dificultava muito a agricultura para
subsistência não permitindo a Segurança Alimentar. Por isso, os godos, e outros
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povos germânicos eram bárbaros e nômades e viviam em hordas praticando saques


e pilhagem para sua sobrevivência, até que liderados pelos hunos, povo bárbaro de
origem asiática, invadem o, já decadente, Império Romano onde as terras eram
férteis. Neste processo, na medida em que avançavam belicamente sobre o
território romano dominado, as terras eram divididas para os guerreiros bárbaros
que tomavam posse dos chamados feudos e ali ficavam com a família para produzir.
Surge assim o sistema feudal que prevaleceu até o advir do sistema capitalista com
os burgueses. No século V, por volta do ano 476 cai definitivamente o Império
Romano marcando o fim da Idade Antiga e iniciando a Idade Média com poderes
absolutos da Igreja Romana que influenciou muito nos rumos do sistema feudal. Foi
um tempo de violência, obscurantismo e insegurança, quando os valores da alma
prevaleciam sobre os valores do corpo. A alimentação, a higiene, o conforto eram
secundários em relação à alma. A Idade Média foi, por consequência, obscura em
função dos dogmas religiosos e o ser humano “andou para trás”. Foi a época das
grandes pestes e de uma retração e repressão ao conhecimento pela inquisição e
pelas cruzadas que dentre outras ações obscuras destruíram a biblioteca de
Alexandria onde estava contido grande parte do conhecimento humano de até
então.
No entanto houve um avanço na Segurança Alimentar neste período
feudal que foi o pousio das terras, um sistema sustentável para não esgotar o solo
fértil, que dividia as propriedades agrícolas, ou feudos, em três partes, de tal modo
que sempre uma dessas partes permanecia em descanso repondo matéria orgânica
e mantendo a fertilidade das terras (PIRENNE, 1964).
O poder no sistema feudal era a posse da terra. O capital praticamente
não existia na sua forma circulante, mas sim imobilizado em terras, cervos e animais
(HUBERMAN, 2013, p. 13). Não havia leis. As contradições eram julgadas de
acordo com os costumes e interesses de cada feudo, de cada senhor feudal.
A Igreja constituía uma organização que se estendeu por todo o mundo
ocidental, mais poderosa, maior, mais antiga e duradoura que qualquer coroa.
Tratava-se de uma época religiosa, e a Igreja, sem dúvida, tinha um poder e
prestígio espiritual tremendos. Mas além disso, tinha riqueza, no único sentido que
prevalecia na época - em terras (HUBERMAN, 2013, p. 11).
Prevalecia o escambo, praticamente não existia mercado. O comércio era
local.
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A valorização da moeda nas transações e as navegações intensificaram o


comércio e se estabeleceu uma economia de muitos mercados. Surgem as cidades,
os burgos, surgem as corporações, cresce a influencia dos mercadores. O
artesanato se profissionaliza, a indústria deixa de ser caseira e passa a ser fabril, o
burguês substitui o senhor feudal.
A Segurança Alimentar deixa de existir como prioridade dos povos e
passa a dominar a ganância dos poderosos, cada vez mais poderosos e o acúmulo
de capital passa a ser a estratégia não dos povos, mas, dos dominadores, dos
burgueses, ou seja, daqueles que moravam nos burgos e nas suas imediações que
eram os mercadores. A vida na cidade era diferente da vida no feudo, e novos
padrões e valores foram criados.
As grandes navegações, as descobertas estabeleceram a “Revolução
Comercial’ e a “Revolução Industrial” com o reinado dos bancos, com grande
prosperidade de uns poucos, e que tinha em seu ventre a contradição com a
miséria, com a mendicância, com a marginalidade. Era necessário a guerra! A
guerra cumpria bem o papel de eliminar a miséria, como bem fez a Guerra dos
Trinta Anos que eliminou cerca de dois terços da população total da Alemanha. As
fortunas, os tesouros, a ostentação passaram a ter muito mais importância que os
alimentos e a guerra respaldava isso.
O desenvolvimento do comércio, da indústria fabril, a revolução dos
preços, o poder da burguesia tornaram o dinheiro mais importante que os homens.
Surge o Capitalismo, sistema que prevalece até os dias atuais.
Com a Primeira Guerra Mundial o conceito de que um país poderia
dominar o outro controlando seu fornecimento de alimentos gera o termo
“Segurança Alimentar”, o que fortalece também a ideia de que a soberania de um
país dependia da sua capacidade de auto suprimento de alimentos via capacidade
de produção agrícola e formação de estoques reguladores de alimentos.
Os europeus, os japoneses, os norte-americanos, em função de
cataclismas e das guerras, cuidaram de nunca faltar os alimentos a seus cidadãos,
conceituaram então Segurança Alimentar e estabeleceram políticas de Segurança
Alimentar que deram base para o desenvolvimento dessas nações e para uma
elevada qualidade de vida para seus povos. O “NEW DEAL” estabelecido nos
Estados Unidos por Roosevelt nos anos 30 e a Revolução Cultural da China
liderada por Mao Tsé Tung nos anos 60 tiveram como base a volta ao campo para
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produção de alimentos com o objetivo de acabar com a fome da população e criar,


assim, as bases para um crescimento autossuficiente. E funcionou como funciona
até hoje nessas grandes nações.
Ao se criar a Comunidade Econômica Européia em 1958, o Tratado de
Roma contemplou a adoção da chamada Política Agrícola Comum (PAC), com o
objetivo de garantir a Segurança Alimentar com base em quatro aspectos:

 aumentar a produtividade agrícola;


 proporcionar bem estar e segurança aos agricultores;
 estabilizar o mercado de produtos agrícolas;
 oferecer preços razoáveis aos consumidores.

O forte apoio da Política Agrícola Comum ao seu sistema produtivo


assenta numa política de Segurança Alimentar, uma obsessão para um continente
que sofreu a experiência da escassez e da fome durante toda sua história.
O Japão adotou uma política de Segurança Alimentar alicerçada na
pequena disponibilidade de terras, na alta densidade demográfica e numa aguda
consciência do problema dos recursos disponíveis, especialmente alimentos. Após a
2a Guerra Mundial, na década de cinquenta, período difícil de reconstrução do país,
precisava, num curto espaço de tempo, superar a escassez de alimentos. Mesmo
destruído, com recursos naturais limitados, o Japão, como resultado da política de
Segurança Alimentar, em 1961 atingiu 75% de sua autossuficiência em produtos
agropecuários. Até o final do 2 o milênio, apesar de inúmeros percalços e
dificuldades, a política de Segurança Alimentar do Japão explicitava o esforço
constante da sociedade para:

 manter a segurança e a estabilidade na oferta de alimentos;


 garantir a dieta baseada no consumo de alimentos de menor caloria;
 proteger todos os recursos naturais;
 fortalecer a integração dos vilarejos rurais.

Bem, a história dessas nações desenvolvidas nos mostra que por


adotarem uma política de Segurança Alimentar houve crescimento econômico
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estável com melhor distribuição do bolo, melhor qualidade de vida para sua gente e
uma razoável proteção de seus recursos naturais.
Considerados esses aspectos antropológicos, históricos, econômicos,
sociais, ecológicos, podemos compreender a definição do que seja Segurança
Alimentar como o “acesso assegurado a cada família à quantidade necessária de
alimentos para garantir uma dieta adequada a todos os seus membros para uma
vida saudável” (ABAG, 1993).
Por mais de meio século esta ideia se confirmou, inclusive na
Conferência Mundial de Alimentação, promovida pela FAO em 1974, o que
reforçou em muito o processo em curso da chamada “Revolução Verde” que se
inicia após a Segunda Guerra Mundial com o avanço da modernização agrícola
através da mecanização intensiva e do uso maciço da agroquímica com fertilizantes
sintéticos e agrotóxicos. Mas a Segurança Alimentar não é um milagre ou uma
mágica, mas sim parte de um processo de desenvolvimento equilibrado, harmônico,
sustentável de uma nação que necessita concomitantemente de uma serie de
decisões e políticas. De fato a produção mundial de alimentos cresceu e os preços
baixaram, mas a desnutrição e a fome aumentaram em uma importante parcela da
população mundial. Em 1982 o Comitê Mundial de Segurança Alimentar da FAO
afirma que a capacidade de acesso aos alimentos era a dificuldade crucial para
a Segurança Alimentar por parte dos povos, mais que a oferta de alimentos.
Em 1986 o Ministério da Agricultura do Brasil elabora um documento para
uma política de abastecimento com base na autossuficiência alimentar nacional,
e na questão do acesso universal aos alimentos. E o início da preocupação com um
mercado interno forte com base na produção familiar, na reforma agrária e,
logicamente, com a Segurança Alimentar.
Em 1994 em Brasília acontece a I Conferência Nacional de Segurança
Alimentar a qual diagnostica que a concentração da renda e da terra constituíam os
determinantes principais da situação da fome e insegurança alimentar no Brasil.
O resultado desta conferência que para, um desenvolvimento sustentável é
necessário o Estado garantir, obrigatoriamente, a Segurança Alimentar e
Nutricional para todos os brasileiros, o que dá início a conceber e formular uma
Política Nacional de Segurança Alimentar Nutricional.
Em 1996 em Roma acontece a Cúpula Mundial da Alimentação onde
firma-se a importância da autonomia alimentar dos países associada à geração de
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empregos dentro do país e à menor dependência das importações e flutuações de


preços do mercado internacional. Também nesta oportunidade estabeleceu como
importante a preservação da cultura alimentar de cada povo ao não aceitar a
imposição de padrões alimentares estranhos a suas características e tradições.
Ainda como produto desta Cúpula Mundial de 1996 aparece forte a ideia da
sustentabilidade do sistema alimentar como uma postura crítica e alternativa à
produção agrosilvopastoril convencional com base na monocultura, na mecanização
intensiva e no uso abusivo da agroquímica que produz indiscutíveis danos à
sustentabilidade.
Em 2004 em Olinda-PE acontece a II Conferência Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional com o objetivo de propor diretrizes para o
Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A deliberação principal
desta II Conferência foi a proposta de Lei que cria o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional.
Em 2006 a Segurança Alimentar no Brasil deixa de ser uma política de
governo para se transformar em uma política de Estado, pois foi aprovada pelo
Congresso e sancionada a Lei n° 11346 que cria o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito
humano à alimentação adequada e define a Segurança Alimentar com base na
produção sustentável de alimentos sadios; na produção familiar; na geração de
empregos; na redistribuição da renda; na ampliação das condições de acesso aos
alimentos por meio do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a
água; na conservação da biodiversidade; na qualidade biológica, sanitária,
nutricional e tecnológica dos alimentos; na produção de conhecimento (pesquisa) e
acesso à informação e respeito às múltiplas características culturais do país; bases
essas que caracterizam a agroecologia. A propósito vale registrar a posição da
FAO, manisfestada pelo seu diretor geral em fevereiro de 2015, quando observa
que a humanidade corre grande risco de Segurança Alimentar em função do
processo produtivo dominante no mundo que pelo lucro e ganância, promove a
erosão do solo, a simplificação da biodiversidade, a contaminação do ambiente e
dos alimentos. Como alternativa viável para a Segurança Alimentar da
humanidade recomenda a Agroecologia.
Em 2007 em Fortaleza realiza-se a III Conferência Nacional que propôs
diretrizes para a incorporação da Segurança Alimentar e Nutricional nos eixos
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estratégicos de desenvolvimento do País e da sua inserção internacional; diretrizes


e prioridades da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; bases
para implementação e normatização do Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (SISAN).

REFERÊNCIAS

ABAG, Segurança alimentar: uma abordagem de agribusiness. São Paulo: Abag,


1993.

CÂNDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a


transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Editora, 2001.

CÂMARA INTERMINISTERIAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL.


Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: 2012/2015. Brasília, DF:
CAISAN, 2011.

DORST, Jean. Antes que a natureza morra. Trad. Rita Buongermíno. São Paulo:
Ed, Edgard Blücher, 1973.

GOODFELLOW, David Martin. Princípios de sociologia econômica. 1939.

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Ltc, 2013.

LEAKEY, Richard Erskine. A evolução da Humanidade. Melhoramentos; Circulo


do Livro S.A: São Paulo; Ed. Universidade de Brasília: Brasília, 1981.

MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria cientifica da cultura. Portugal: edições 70,


2009.

MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia:


Uma Introdução. 7. ed. 2. Reimp. São Paulo: Atlas, 2009.

PIRENNE, H.. História Econômica e Social da Idade Média. São Paulo: Editora
Mestre Jou, 1964.

SILVA, José Graziano, Fome Zero: A experiência brasileira. José Graziano da Silva;
Mauro Eduardo Del Grossi; Caio Galvão de França (orgs.). Brasília: MDA, 2015.

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