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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

MARCELLA GRECCO DE ARAUJO

REPRESENTAÇÕES DO FEMININO
NO CINEMA BRASILEIRO DE FICÇÃO:
Mar de rosas, Um céu de estrelas e Trabalhar cansa

CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES

MARCELLA GRECCO DE ARAUJO

REPRESENTAÇÕES DO FEMININO
NO CINEMA BRASILEIRO DE FICÇÃO:
Mar de rosas, Um céu de estrelas e Trabalhar cansa

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para
obtenção do título de Mestra em Multimeios.

Orientador: Prof. Dr. Március César Soares Freire

CAMPINAS
2015
RESUMO
A presente pesquisa tem por finalidade explorar as relações do cinema com a história a partir
das representações do feminino em três filmes brasileiros de ficção. Para tanto, foram
escolhidos os longas-metragens Mar de rosas (1977), de Ana Carolina, Um céu de Estrelas
(1996), de Tata Amaral e Trabalhar cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra como
documentos históricos e como agentes da História. Como vetor principal de nossas análises,
estabelecemos paralelos entre uma história do feminismo no Brasil e as exposições do feminino
nos filmes em questão. As representações engendradas pelo artefato fílmico sugestionam muito
na construção dos estereótipos de gênero e, da mesma forma, influem no sentido de
desconstrução desses mesmos estereótipos. Por esse motivo, consideramos os filmes como
agentes da História e como documentos históricos. As três obras por nós estudadas foram
dirigidas por mulheres; ao destacá-las no contexto da produção nacional dos trinta e quatro anos
que separam a primeira da última delas, um dos nossos objetivos foi jogar luz sobre a presença
cada vez maior de mulheres na direção dos nossos filmes. Chamar atenção para os nomes das
diretoras que participaram e participam da construção do cinema brasileiro é importante para
mostrar que também nessa área as conquistas do feminismo foram efetivas, assim como, em
lhes dando visibilidade, contribuir para incentivar outras mulheres a se arriscar na direção. Não
é difícil constatar que existe pouco material bibliográfico disponível sobre diretoras mulheres
em nosso mundo cinematográfico, e isso apesar do número delas ter aumentado
significativamente desde a década de 1930, quando tivemos o primeiro longa de ficção com
direção feminina. Ademais, os avanços do movimento feminista nos âmbitos social e
econômico também se deram na área da cinematografia, haja vista o já citado aumento de
diretoras e as mudanças nas representações do feminino como aquelas presentes nos filmes por
nós analisados.
Palavras-chave: Cinema brasileiro; Feminismo; Cinema - História
ABSTRACT
The present research aims to explore the relations between cinema and history starting from the
female’s representations in fiction Brazilian movies. To do so, we took the films Mar de rosas
(1977), from Ana Carolina, Um céu de estrelas (1996), from Tata Amaral and Trabalhar cansa
(2011), from Juliana Rojas and Marco Dutra as historical documents and as agents of History.
As the main vector of our analyzes we have established parallels between one history of
feminism in Brazil and the female’s representations in each movie in question. The
representations in movies affect very much the construction of gender stereotypes, similarly,
they affect towards desconstructing these stereotypes. For this reason, we took the movies as
agents of History and as historical documents. The three films studied by us were directed by
women; to highlight them in the context of the national production of the thirty-four years that
separate the first of the last one, was one o four goals to throw light on the growing presence of
women in the direction of our movies. Calling attention to the names of the directors who
participated and participate in the construction of Brazilian cinema is important to show that
also in this area the achievements of feminism were effective, as well as in giving them
visibility, help to encourage other women to venture in the direction. It is not difficult to note
that there is little bibliography available about female directors in the film world, and this
despite the number of them have increased significantly since the 1930s, when we had the first
feature film with feminine direction. Furthermore, movement advances in the social and
economic spheres also were given in the field of cinematography, given the aforementioned
increase in directors and changes in the female representations as those present in the films that
we studied.
Key words: Brazilian cinema; Feminism; Cinema - History
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 7

CAP. 1 CINEMA-HISTÓRIA ............................................................................................. 16


1.1 Relações do cinema com a história ................................................................................ 16
1.2 Cinema, história e representações de gênero ................................................................ 21

CAP. 2 A MULHER E O CINEMA NA DITADURA ....................................................... 30


2.1 Lutas sociais e cinema nas décadas de 1970 e 1980 ...................................................... 30
2.2 Matrimônio, maternidade e liberdade sexual em Mar de rosas (1977),
de Ana Carolina ..................................................................................................................... 36

CAP. 3 A MULHER E O CINEMA NA REDEMOCRATIZAÇÃO ............................... 49


3.1 Lutas sociais e cinema na década de 1990 ..................................................................... 49
3.2 Independência financeira e violência contra a mulher em Um céu de estrelas (1996),
de Tata Amaral ...................................................................................................................... 54

CAP. 4 A MULHER E O CINEMA NO CONTEXTO ATUAL ...................................... 64


4.1 Lutas sociais e cinema a partir de 2000 ........................................................................ 64
4.2 Trabalho informal, dupla jornada e inversão de papéis em Trabalhar cansa (2011),
de Juliana Rojas e Marco Dutra .......................................................................................... 70

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 88


7

INTRODUÇÃO

Em que pesem os progressos alcançados em relação ao papel da mulher na sociedade,


muito resta a ser conquistado, notadamente na sociedade brasileira. Em nosso campo de estudo,
chamar a atenção para as representações do feminino no cinema de ficção feito em nosso país
não significa simplesmente apontar como a mulher foi e é subjugada nas telas, mas, também -
e sobretudo - investigar os mecanismos através dos quais as representações dessa condição
influem na construção de identidades. No caso que aqui nos interessa, identidades do gênero
feminino. Em outras palavras, torna-se importante investigar de que artifícios se servem os
construtores desses artefatos audiovisuais para elaborar suas narrativas e, assim, contribuírem
para conformar o caráter de um povo, de uma cultura.

Ao filmar, ao registar elementos que foram organizados para a câmera, uma história é
escrita a qual está impregnada de elementos objetivos e subjetivos que pertencem à visão de
mundo de quem a cria. Segundo Aumont (1995), o filme é o local de encontro do cinema e de
outros elementos não propriamente cinematográficos, como o econômico, o mercadológico, o
cultural e o sociológico. Os personagens na tela são arquétipos de uma sociedade e, portanto,
um filme traz algo mais do que o seu simples conteúdo visível e audível.

Partindo dessa premissa, o audiovisual começou a ser considerado, por volta de 1960,
entre os documentos passíveis de constituírem fontes históricas a serviço do historiador.
Segundo Freire (2006), foi principalmente na França, com o advento do movimento que recebeu
o nome de Nova História, ainda nos anos 1920, que a história deixou de ser apenas factual e
outras formas de representação passaram a ser estudadas e tidas como documentos primários a
serviço dos historiadores.

Em consonância com o pensamento de Marc Ferro, podemos argumentar que o filme de


ficção, assim como o de não ficção, podem ser lidos como um documento histórico e como um
agente da História. Como documento ele se revela ao deixar transparecer, por exemplo, as
condições de produção, as tecnologias utilizadas, a temática por ele abordada, a estruturação
dessa temática em um gênero, o processo de comercialização a que será submetido etc. Ele é
um documento histórico mesmo quando não tem como tema eventos de cunho histórico em seu
senso estrito, pois, pelo fato de ter sido produzido em determinado contexto já nos traz,
obrigatoriamente, uma considerável abundância de informações sobre esse contexto.
8

Indo mais além, podemos dizer também que qualquer artefato audiovisual é um agente
da História, pois em cada produção pode-se encontrar mais do que aquilo que foi por ela
explorado e divulgado. Detalhes e minúcias ignorados por uma história já contada são passíveis
de serem recuperados em tais artefatos, notadamente naqueles até então pouco explorados.
Dependendo da sociedade que está recebendo a produção, a leitura também tende a mudar.
“Desempenhando assim um papel ativo, em contraponto com a História oficial, o filme se torna
um agente da História pelo fato de contribuir para uma conscientização.” (FERRO, 2010, p.11).

Levando em consideração as asserções feitas acima, pretendemos com esta pesquisa


explorar as representações do feminino em três produções nacionais, Mar de rosas (1977), de
Ana Carolina, Um céu de estrelas (1996), de Tata Amaral e Trabalhar cansa (2011), de Juliana
Rojas e Marco Dutra. Tais produções serão tratadas como documentos históricos para que se
possa relacionar o contexto em que foram elaboradas com a representação do feminino existente
em cada uma delas. Além disso, estabeleceremos paralelos entre as produções de forma a
verificar mudanças nas suas formas de representação, caracterizando os objetos de estudo
também como agentes da História.

No primeiro capítulo da dissertação montamos um breve panorama das relações do


cinema com a história e exploramos o método de análise que pretendemos empreender no
decorrer do texto. Apresentamos a Nova História, as diferentes vertentes no estudo das relações
do cinema com a história e alguns dos autores de destaque nesse campo. Nosso intuito é, em
um primeiro momento, explorar o cinema como uma prática social que é passível de atuar como
documento e como agente da História, além de indicar como se dão as representações e as
formas, tais como estereótipos sociais, podem ser criados e difundidos pelos filmes.

Os nossos objetos de análise podem ser considerados marcos na discussão da questão


feminina no Brasil, o que comentaremos com mais detalhes posteriormente. Os três filmes
trazem representações do feminino que, de alguma forma e de acordo com o contexto em que
estavam inseridos, questionam a submissão supostamente natural da mulher em relação ao
homem e os papéis que lhes eram atribuídos dentro e fora das telas. Para que pudéssemos
relacionar devidamente cada filme com o contexto histórico em que estavam inseridos e com
as discussões das lutas feministas no Brasil, separamos um capítulo para cada filme. Dessa
forma, o capítulo 2 ficou destinado ao longa-metragem Mar de rosas e ao contexto histórico
das lutas feministas no período da ditadura, mais especificamente nas décadas de 1970 e 1980.
Para chegarmos a esse período fizemos uma retrospectiva das lutas feministas até o final dos
anos de 1980. Como não temos formação em história, montamos apenas uma breve
9

retrospectiva de uma história do feminismo no Brasil suscetível de alimentar, de forma


consequente, a análise no filme propriamente dita. Aproveitando esse mapeamento no campo
do social, estabelecemos paralelos com a atuação feminina na direção de longas metragens de
ficção no Brasil. Com isso, demonstramos como as conquistas no interior da sociedade
acabaram também influenciando a tomada de espaço na direção de longas metragens.
Apontamos as primeiras diretoras mulheres no nosso país nesse subcapítulo e, no subcapítulo
2.2 empreendemos a análise fílmica de Mar de rosas, de Ana Carolina.

O capítulo 3 ficou destinado ao filme Um céu de estrelas e ao contexto das lutas


feministas na época em que o país passava por uma redemocratização, mais especificamente na
década de 1990. Para chegar aos anos de 1990 voltamos um pouco no tempo de forma a
contextualizar melhor o que se passava no país. Apresentamos mais alguns dados a respeito das
lutas feministas nas décadas de 1970 e 1980 para, enfim, chegar ao período em que o filme foi
lançado. Além dos dados acerca das lutas feministas nos anos de 1990, montamos também um
breve histórico do cinema brasileiro na época. Da mesma forma que fizemos no subcapítulo
2.1, o subcapítulo 3.1 ficou, portanto, destinado a um cruzamento das lutas feministas no
período com o cinema feito por mulheres em nosso país. Apontamos as diretoras de longas
metragens de ficção em destaque na época e, já no subcapítulo 3.2 empreendemos a análise
fílmica do filme de Tata Amaral, Um céu de estrelas.

Por fim, o capítulo 4 ficou destinado ao longa-metragem Trabalhar cansa e ao contexto


das lutas feministas a partir dos anos 2000. Da mesma forma que fizemos nos outros capítulos,
reservamos o subcapítulo 4.1 à contextualização das lutas feministas no período,
nomeadamente dos anos 2000 em diante, e fizemos um cruzamento entre as conquistas no
âmbito social e as conquistas no campo do cinema. Para tanto, destacamos pontos relevantes
das lutas feministas do período e apresentamos as mulheres que atuaram na direção de longas
de ficção na época. Muitas ainda continuam dirigindo filmes em nosso país e contribuir para
divulgar e, se possível, estimular cada vez mais a inserção da mulher no campo cinematográfico
é uma de nossas intenções, assim como ajudar a inscrever devidamente essas profissionais na
história do cinema brasileiro. Após essa revisão histórica, dedicamo-nos, já no subcapítulo 4.2,
à análise fílmica de Trabalhar cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra.

Atualmente podemos encontrar um número considerável de longas-metragens dirigidos


por mulheres no Brasil. No entanto, pelo menos até os anos de 1980, estes eram bastante
escassos. Segundo uma pesquisa realizada por Elice Munerato e Maria Helena Darcy de
Oliveira em 1982 e publicada no livro As musas da matinê, até os anos de 1980 tínhamos
10

oficialmente registrados apenas 21 longas de ficção dirigidos por mulheres desde o surgimento
do cinema no Brasil1. A inauguração foi conferida a Cleo de Verberena com o filme O mistério
do dominó negro, de 1930.

Durante os anos de 1940 a 1960 o cinema brasileiro viveu uma tentativa de


industrialização. Muitos longas foram produzidos em estúdios como Atlântida e Vera Cruz,
sendo frequente a presença de mulheres em funções menos nobres como scriptgirls. Bem ou
mal, algumas cineastas conseguiram também se destacar nesse período, como Carmen Santos
e Gilda de Abreu. Entretanto, tal cenário sofreu algumas transformações e, durante os anos de
1960, temos apenas um longa dirigido por mulher: As testemunhas não condenam (1962), de
Zélia Costa.

A contribuição feminina, neste período, se dá por um número maior de


mulheres trabalhando na montagem, produção e música, e como
documentaristas e curta-metragistas. Algumas delas, como as atrizes Vanja
Orico e Rosangela Maldonado ou as documentaristas Tereza Trautman e
Ana Carolina integrarão o corpo de diretoras dos anos 70. (MUNERATO;
OLIVEIRA, 1982, p.27).

Segundo essas autoras, dentro do contexto de produção cinematográfica daquela época


as mulheres eram frequentemente relegadas a tarefas tidas como “femininas”, como a
montagem, pois aqueles que comandavam as equipes acreditavam que tal ofício se parecia à
arte de costurar. As pesquisadoras afirmam ainda que, talvez, muitas outras cineastas tenham
atuado no período de 1930 a 1982. No entanto, o crédito lhes pode ter sido retirado por não se
tratar de um métier compatível com a honra de uma boa moça. Na realidade, para as mulheres,
qualquer trabalho, seja no campo do cinema, do teatro ou mesmo nas áreas da medicina e da
engenharia, por exemplo, era visto com desconfiança. Lugar de mulher era em casa, cuidando
dos filhos e do lar, para que o marido tivesse o apoio necessário para ser bem-sucedido. E mais,
“o trabalho doméstico tinha de ser acompanhado pelo esforço sem precedente histórico de
tornar invisível cada sinal desse trabalho” (MCCLINTOCK, 2010, p.243). Através de manuais
e de guias as mulheres aprendiam a ser boas donas de casa e eram levadas a crer que este era
um dom natural feminino. Trabalhar fora de casa era tido, no máximo, como uma “ocupação
transitória, a qual deveria ser abandonada sempre que se impusesse a verdadeira missão
feminina de esposa e mãe” (LOURO, 2001, p.453).

1
Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira deixam indicado no livro que, ao final da pesquisa, Gaijin –
Os caminhos da liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki foi lançado, não havendo tempo para a sua inclusão no
escopo da publicação. Além disso, afirmam que, Das tripas coração (1982), de Ana Carolina, e As pequenas taras
(1982), de Maria do Rosário, estavam com o lançamento previsto na época da finalização do livro.
11

Estima-se que desde a época da Revolução Francesa, no século XVIII, exista uma
efetiva luta pelos direitos das mulheres. No Brasil não foi diferente e, inicialmente, esta luta foi
liderada, principalmente, por Bertha Lutz que, durante a década de 1920, empenhou-se na
conquista de direitos políticos. O movimento feminista tem e sempre teve diferentes facetas,
pois, “ser mulher” envolve outras questões como aquelas de caráter étnico e de classe social. É
tarefa difícil atingir uma uniformidade no movimento e na luta. Não obstante, a busca por
transformações na condição feminina passou a ser uma realidade. Destinadas a papéis
secundários e pré-estabelecidos, elas queriam mudanças, queriam ser protagonistas de suas
vidas e discutir o porquê do fato de “ser mulher” trazer uma série de obrigações e de restrições
ao seu papel social.

Com os inúmeros desdobramentos do movimento feminista e, sobretudo, com a sua


efetiva chegada ao âmbito acadêmico brasileiro, entre os anos de 1980 e 1990, passou-se a
discutir questões sobre gênero e sexualidade. Foram então criados núcleos para o estudo de
gênero, como o Pagu, da Universidade Estadual de Campinas, instituição em que a presente
pesquisa se desenvolveu, com o intuito de debater as diferenças entre os sexos, visto que estas
são socialmente construídas e não naturais. Para Joan Scott (1995), gênero é uma categoria
social.

Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que


encontram um denominador comum para diversas formas de subordinação
feminina, nos fatos de que as mulheres têm capacidade para dar à luz e de que
os homens têm uma força muscular superior. (SCOTT, 1995, p.75).

Scott ainda acrescenta que “o termo ‘gênero’ torna-se uma forma de indicar
“construções culturais – a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos
homens e às mulheres.” (SCOTT, 1995, p.75). Esses papéis são constantemente difundidos e
assegurados por tecnologias do gênero. Para Teresa de Lauretis (1994), o cinema é uma
tecnologia que influi consideravelmente na construção dos gêneros e, portanto, operá-lo é um
dos meios fundamentais para trabalhar a construção de identidades.

Como já dito, nesta pesquisa foram estudados, Mar de rosas, Um céu de estrelas e
Trabalhar cansa, todos eles filmes dirigidos por mulheres. Tivemos como finalidade investigar
as representações do feminino e, ao mesmo tempo, chamar a atenção para o cinema feito por
mulheres, já que frequentemente somente cineastas homens são lembrados como agentes ativos
na construção do cinema nacional. Apesar de pouco numerosas, a quantidade de mulheres
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cineastas vem crescendo. Ademais, mesmo sendo esse percentual pouco expressivo, isto já é
por si só uma razão para que essas cineastas sejam estudadas e inseridas, com todas as
credenciais que lhes são próprias, no escopo dos estudos de cinema em nosso país.

É importante destacar que, apesar do recorte, não consideramos que o fato de ser mulher
influa no sentido de uma representação mais ou menos estereotipada do feminino no cinema.
Tampouco que exista um “estilo” feminino no fazer cinematográfico. Muitas mulheres atuam
reproduzindo na tela os clichés infligidos ao seu gênero enquanto certos homens não.
Entretanto, conforme mencionamos acima, escolhemos diretoras mulheres para estimular novos
olhares sobre o cinema nacional. É fundamental, também, que um nome como o de Ana
Carolina nunca seja esquecido e que Tata Amaral e Juliana Rojas sejam cada vez mais
estudadas.

Dentre os 21 longas-metragens de ficção rodados por mulheres até os anos de 1980,


Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira analisam 16 em As musas da matinê, uma
vez que não tiveram acesso ao restante dos filmes. Apesar de terem sido realizados por
diretoras, em todos eles a mulher era tratada como um apêndice do homem e a sua imagem
continuava estereotipada. Segundo consta, “Os filmes analisados não só não colocam em
questão ‘o destino natural’ da mulher, assim como este ‘destino’ aparece bem mais explicitado
nos filmes de 40 e 50”. (MUNERATO; OLIVEIRA, 1982, p.73). Todavia, observa-se a
existência de uma exceção, pois, para as pesquisadoras, Mar de rosas, de Ana Carolina, possuía
uma protagonista nunca antes vista. Felicidade (Norma Bengell) “está consciente de que ser
mulher significa viver uma série de imposições, implica cumprir determinado papel”.
(MUNERATO; OLIVEIRA, 1982, p. 73).

Com base no livro, podemos afirmar, portanto, que Mar de rosas foi o primeiro longa-
metragem de ficção brasileiro dirigido por uma mulher a contestar a submissão feminina. No
ano de seu lançamento, em 1977, experimentamos uma nova representação do feminino e, a
partir daí, demos início à nossa análise, procurando explorar a desconstrução de muito do que
até então se vira nas telas de cinema. Durante a narrativa acompanhamos Felicidade, que tenta
assassinar seu marido com uma lâmina de barbear em um quarto de hotel e parte com sua filha,
Betinha (Cristina Pereira), em uma espécie de road-movie, ambas rompendo com os cânones
da condição feminina que predominavam à época.

Ao estrear nos cinemas o filme causou muita polêmica e dividiu a crítica. Ele teve boa
repercussão internacional e participou, por exemplo, do II Festival Internacional de Cinema de
Paris. Com Mar de rosas somos expostos, em plena ditadura militar, a discussões e a “uma
13

sociedade autoritária em suas experiências cotidianas no seio das quais poderes e contrapoderes
revelam sua face microscópica e papéis atribuídos ao feminino e ao masculino são postos em
questão”. (ESTEVES, 2007, p.57).

O filme faz parte de uma trilogia que tem como continuação Das tripas coração (1982)
e Sonho de valsa (1986). O foco das três produções é a condição feminina e Flávia Cópio
Esteves (2007) resume da seguinte maneira o conjunto da obra:

personagens femininas de destaque que, defrontando-se com as faces variadas


assumidas por um poder microscópico, colocam em questão a própria posição
das mulheres na sociedade e, de modo mais estreito, no cinema brasileiro.
(ESTEVES, 2007, p. 20).

Ana Carolina é frequentemente enquadrada como uma feminista, rótulo que ela recusa
categoricamente. Em entrevista concedida ao Jornal do Brasil no ano de 1987 ela afirmou:
“Faço filmes sob2 as mulheres. Me irrito quando dizem que faço um cinema feminista”.
(CAROLINA apud ESTEVES, 2007, p. 54). Entretanto, tal recusa não a impede de ter seus
filmes relacionados à condição feminina. A inserção da obra entre os objetos de análise desta
pesquisa se deu pelo caráter inaugural no tratamento do feminino, pela repercussão na crítica,
pelo fato de ter uma mulher na direção e pela constante classificação da cineasta como uma
autora feminista, apesar de sua discordância.

No ano de 1980, Mar de rosas foi exibido no Festival Internacional de Filmes de


Mulheres de Créteil, na França. Este fora criado no ano anterior justamente para acolher
produções feitas por mulheres no sentido de estimular o debate acerca da condição feminina
dentro e fora do cinema. Também participou desse festival o segundo longa-metragem que
analisamos. O filme Um céu de estrelas, de Tata Amaral, foi exibido no ano de 1997 e recebeu
o Prêmio Especial do Júri na ocasião.

Em Um céu de estrelas a condição feminina é debatida e durante a narrativa somos


apresentados à protagonista Dalva (Leona Cavalli), uma cabeleireira que vive em conflito com
seu ex-noivo, Vítor (Paulo Vespúcio). O longa se passa quase que inteiramente dentro da
residência de Dalva que, após ter ganhado em um concurso de penteados uma viagem para
Miami (EUA), arruma suas malas. Vítor se nega a deixá-la viajar, assim como sua mãe. A
passagem para Miami serve como uma possibilidade de libertação da dominação materna, da

2
Ana Carolina se diz uma cineasta que fala “sob as mulheres” e não “sobre as mulheres”. Ver ANA CAROLINA.
Uma artista brasileira. Jornal do Brasil, 08 dez. 1987, Caderno B, p. 08.
14

dominação masculina e da condição de vida e de trabalho na cidade de São Paulo. O filme está
inserido em outro contexto histórico e as relações deste com a representação do feminino na
obra é o que investigamos no capítulo 3 da dissertação. Um céu de estrelas recebeu importantes
prêmios no Festival de Brasília e no Festival de Cinema de Havana. No ano de 1997 recebeu o
Prêmio Humberto Mauro de cinema concedido pelo Ministério da Cultura, figurando entre os
maiores sucessos da história do cinema brasileiro. Tal obra foi selecionada para compor o
corpus fílmico que analisamos justamente pelo tratamento dado à condição feminina e pelo
sucesso alcançado, além de ter sido dirigido por uma mulher.

Por fim, o último de nossos objetos de análise é o longa-metragem Trabalhar cansa


(2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra. Uma produção mais recente e inserida em um contexto
em que o movimento feminista se encontra bastante ramificado, atuando principalmente por
meio de ONGs. Em Trabalhar cansa acompanhamos o drama de uma família de classe média
a partir do momento em que Otávio (Marat Descartes) é despedido de seu emprego e Helena
(Helena Albergaria) decide comprar um mercadinho de rua para ajudar com as contas. Somos
expostos, então, a uma teia de micropoderes na qual é a invasão de espaços a tônica principal.
O homem, normalmente o chefe da família, vê seu espaço invadido e tem que aprender a lidar
com o comando financeiro de sua mulher. Aos poucos, fica claro que o comando financeiro
influencia também no comando de outras atividades e pode-se dizer que uma “crise de
masculinidade” é instaurada.

O filme foi exibido na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes no ano de 2011
e ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Paulínia no mesmo ano. Trabalhar cansa foi
a estreia em longas-metragens de Juliana Rojas e Marco Dutra, ambos formados em cinema
pela ECA-USP. Os três filmes que integram o nosso estudo trouxeram contribuições para o
debate da condição feminina. Partindo da ideia de que o cinema é um poderoso meio de
representação e de construção de identidades e de que quem constrói o discurso está inserido
em um contexto histórico do qual sofre influência, apontamos para uma urgência em estudar a
forma como a mulher vem sendo representada no cinema e os reflexos que produz na sociedade
como um todo.

Também faz parte dos objetivos desta pesquisa reafirmar a mulher como agente ativo
na construção do cinema nacional. Chamaremos a atenção para a carreira e as obras de cineastas
como Ana Carolina, Tata Amaral e Juliana Rojas, de forma a ilustrar a enorme variedade de
caminhos no campo dos estudos de cinema. Com esta pesquisa gostaríamos, por fim, de
15

estimular ainda mais a inserção da mulher na história, seja do cinema ou não, e de lançar luz
sobre os papéis geralmente por elas desempenhados, dentro e fora das telas.
16

CAP. 1 CINEMA-HISTÓRIA

1.1 Relações do cinema com a história

Relacionar cinema e história talvez não seja mais tão surpreendente hoje em dia. No
entanto, não faz muito tempo, ambas as disciplinas eram tidas como objetos totalmente
independentes.3 Foi em meados de 1960 que Marc Ferro sistematizou e tornou saliente algo que
já vinha sendo indicado há algum tempo, como podemos observar no livro de Siegfried
Kracauer De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, lançado no ano de
1947, no qual o autor procurou estabelecer paralelos entre o conteúdo da produção
cinematográfica alemã do pós Primeira Guerra Mundial e a subida de Hitler ao poder.

A expressão cinema-história foi, segundo Jorge Nóvoa e José d’Assunção Barros,


cunhada por Ferro e

além de permitir que se dê nome, simultaneamente, a uma problemática-objeto


e a uma epistemologia específica, implica uma relação que não admite a
superposição de um termo pelo outro, mas sim a interação, a interpenetração,
uma síntese de ambos (NÓVOA; BARROS, 2012, p.13).

Desde as origens do cinematógrafo já parecia haver uma conexão entre esta nova forma
de registro do movimento e a história, isto se observarmos, por exemplo, as primeiras películas
de que temos notícia, como L’arrivée d’un train à La Ciotat (1985), dos irmãos Lumière, na
qual observamos registros da realidade vivida; a forma de andar, o vestuário, as expressões, o
sexo dos que transitam, tudo isto são elementos que vão se tornar de grande valia para o
historiador. No entanto, muitos anos se passaram entre esse evento e o efetivo ingresso das
imagens em movimento no conjunto de abrigos no interior dos quais se encontram informações
preciosas para aqueles que se dedicam à investigação do passado. Com efeito, para que tais
imagens passassem a ser consideradas “documentos históricos” foram necessárias não apenas
mudanças nos paradigmas da disciplina, mas, também, a superação de resistências acadêmicas.
É o que nos esclarece Marc Ferro ao afirmar: “quando se cogitou, no início da década de 1960,

3
Em que pese o fato de, já nos idos de 1896, o polonês radicado em Paris, Bolesław Matuszewski, ter se
manifestado a respeito do futuro valor histórico da fascinante nova máquina que podia projetar imagens em
movimento.
17

a ideia de estudar os filmes como documentos, e de se proceder, assim, a uma contra-análise da


sociedade, o mundo universitário se agitou. ” (FERRO, 2010, p.9).

Segundo Freire (2006), malgrado a evidência de que já no século XIX alguns


historiadores, tanto ingleses quanto norte-americanos terem contestado os preceitos da história
factual, coube aos franceses, com o advento do movimento que recebeu o nome de Nova
História, ainda nos anos 1920, fazer com que a disciplina deixasse efetivamente de ser apenas
o registro de fatos relativos ao poder estabelecido – a história dos poderosos - e passasse a se
debruçar sobre as mentalidades dos indivíduos cuja forma de estar no mundo, se constituir em
sociedade e nela produzir acontecimentos, estavam sob escrutínio. Para tanto, os documentos
escritos já não eram suficientes e outras formas de representação passaram a ser exploradas.

A Nova História é basicamente o produto de um grupo de historiadores como Lucien


Febvre, Jacques Le Goff e Marc Bloch, associados à revista Annales d'Histoire Économique et
Sociale, posteriormente mais conhecida apenas por Revue des Annales, criada em 1929, que
sugeria, entre outras coisas, a substituição da narrativa de acontecimentos por uma chamada
história-problema, a ampliação da história para todas as atividades humanas - não somente à
atividade política - e a conexão com outras disciplinas, como a geografia, a psicologia e a
sociologia, por exemplo. A École des Annales, nomeação geralmente atribuída ao movimento,
era constituída por um grupo de intelectuais de peso, mas havia divergências individuais. Além
disto, ela foi dividida em fases, em gerações, de acordo com o pensamento dos seus principais
mentores.

Segundo Peter Burke, foi entre as décadas de 1930 e 1940 que Lucien Febvre escreveu
a maior parte dos ataques à história até então desenvolvida e dedicou-se aos manifestos “e
programas de defesa de um ‘novo tipo de história’ associado aos Annales – postulando por
pesquisa interdisciplinar, por uma história voltada para problemas, por uma história da
sensibilidade etc.” (BURKE, 1991, p. 39). No entanto, de acordo com Ferro, o cinema somente
foi enquadrado nessa perspectiva interdisciplinar por volta de 1960.

Alguns anos tiveram de passar para que as imagens fossem levadas em conta, não apenas
como mera ilustração de um texto histórico, e sim como ponto de partida para o
desenvolvimento do mesmo. Nas pinturas, nas fotografias e no cinema, há história. Para Marc
Ferro (2010) o cinema atua como documento histórico e como agente da História. Tanto o filme
de ficção quanto o documentário deixam transparecer detalhes da época em que foram
produzidos, seja através da escolha e da abordagem de uma temática, do processo de
comercialização, do tratamento de um gênero; seja pelo vestuário, pelos diálogos, pelas
18

expressões, movimentos de corpo, de câmera, iluminação, entre outras coisas. Tudo isso são
registros do mundo histórico apreendidos pela imagem, tenha sido essa ou não a intenção do
realizador. Portanto, o filme é um documento histórico mesmo quando não está tratando de uma
temática histórica, já que pelo fato de ter sido produzido em determinado contexto ele traz,
obrigatoriamente, uma série de informações, de marcas desse contexto.

Para mais além, Ferro afirma também que o cinema atua como agente da História.
Segundo o historiador, “desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a
intervir na História com filmes documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a
aparência de representação, doutrinavam e glorificavam” (FERRO, 2010, p.16). Somado a isto,
o cinema pode constituir uma contra-história, uma história não oficial ou não contada pelos
vencedores, como era o caso da história factual, pois agora estava “liberada parcialmente,
desses arquivos escritos que muito amiúde nada contêm além da memória conservada por
nossas instituições” (FERRO, 2010, p.11).

José d’Assunção Barros caminha no mesmo sentido de Ferro, porém, esquematiza ainda
mais as possíveis relações entre cinema e história na atualidade. Para o historiador brasileiro, o
cinema atua em quatro dimensões da história: expressão, representação, tecnologia e ação.
Segundo o autor, durante a primeira metade do século XX ocorreu uma expansão daquilo que
é considerado “fonte histórica” e, com isto, houve um progressivo interesse pela cultura
material, pela história oral e pelas fontes iconográficas. Quando ele afirma que o cinema atua
na dimensão da expressão podemos considerar que o está tratando como fonte histórica.

Nesse sentido, o cinema – incluindo todo o imenso conjunto das obras


cinematográficas que já foram produzidas e também as práticas e os discursos
que sobre elas se estabelecem – pode ser considerado nos dias de hoje, uma
fonte primordial e inesgotável para o trabalho historiográfico. Com base em
uma fonte fílmica, na análise dos discursos e nas práticas cinematográficas
relacionadas com os diversos contextos contemporâneos, os historiadores
podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e
da contemporaneidade (BARROS, 2012, p. 55).

Dentro da categoria cinema/expressão da história, Barros aponta três principais


vertentes de filmes: filmes históricos, filmes de ambientação histórica e documentários
históricos. Os primeiros são basicamente obras que representam ou de alguma forma estetizam
eventos históricos conhecidos. Este tipo de fonte histórica é também conhecido por filme épico,
por exemplo, e trazem personagens históricos bem embasados e reconstituem eventos com certa
19

fidelidade. Os filmes de ambientação histórica, por outro lado, são constituídos de enredos
livremente criados, ou seja, a história fica muitas vezes como mero pano de fundo para um
romance ou intriga específica. Diferenciando-se dos dois primeiros, o documentário histórico
apresenta um rigor documental e, para o autor, se constitui em verdadeiro trabalho de
representação.

O ‘documentário historiográfico’ analisa os acontecimentos à maneira dos


historiadores, comparando depoimentos e fontes, sobrepondo imagens da
época, analisando situações por meio da lógica historiográfica e do raciocínio
hipotético-dedutivo e encaminhando uma série de operações similares àquelas
das quais os historiadores lançam mão ao examinar um processo histórico em
obra historiográfica em forma de livro (BARROS, 2012, p.58).

O cinema atua também como representação, e, neste sentido, é preciso aprender a


enxergar no filme a sociedade que o produziu para, assim,

analisar a fonte fílmica como um produto complexo que se vê potencializado


pelo fato de que, para ela, confluem diversos tipos de linguagens e materiais
discursivos denunciadores de uma época, de caminhos culturais específicos,
de agentes sociais diversos, de relações de poder bem-definidas, de visões de
mundo multidiversificadas (BARROS, 2012, p. 72).

Outra possível dimensão na relação entre cinema e história para Barros é a tecnologia,
ou seja, a utilização do cinema para o ensino da história em salas de aula e para o apoio de
pesquisa histórica, como há tempos é feito na antropologia, por exemplo. Situações da vida
cotidiana ou estruturas urbanas podem ser filmadas por um historiador para posterior análise
detalhada. Por fim, a dimensão da ação evocada por Barros é basicamente a dimensão de agente
da História reivindicada por Marc Ferro, atuando não mais na história como propriamente um
campo do saber, mas sim na vida social atual. O filme pode construir uma contra-análise da
sociedade, principalmente por ser capaz de dar voz a parcelas até então pouco representadas da
sociedade. No entanto, ele também é um poderoso instrumento de difusão ideológica do Estado
e de instituições diversas. Assim sendo:

Desde cedo, as diversas agências associadas aos poderes instituídos


compreenderam a importância do cinema como veículo de comunicação, de
difusão e até de imposição de ideais e ideologias. Trata-se de um
documentário, de um filme de propaganda política ou de uma obra de ficção
20

cinematográfica. O cinema tem sido utilizado em diversas ocasiões como


instrumento de dominação, de imposição hegemônica e de manipulação pelos
agentes sociais ligados ao poder instituído (partidos políticos, instituições
governamentais, igrejas, associações diversas) [...] (BARROS, 2012, p. 64).

Levando em consideração as asserções feitas acima, para estudar as representações do


feminino nos filmes Mar de rosas, Um céu de estrelas e Trabalhar cansa de forma a enquadrá-
los como documentos históricos e agentes da História, é preciso analisar não somente as
dimensões textuais e estéticas dos filmes, mas também suas determinantes contextuais,
dedicando especial atenção à sociedade que os produziu e que os recebeu, além de examinar
cuidadosamente suas condições de produção. Antes de passarmos para o próximo item deste
capítulo e de nos aprofundarmos na produção das representações do feminino no cinema,
gostaríamos de destacar algumas polêmicas nas relações cinema-história, visto que não há
unanimidade neste quesito dentro do mundo acadêmico.

Um dos principais debates entre historiadores é o da objetividade e da subjetividade


daquilo que é filmado. Sem dúvidas não se pode ignorar a fonte emissora, nem as condições de
produção ou até mesmo a função que o filme terá. Segundo Ferro (2010), “Não existe
documento politicamente neutro ou objetivo: nem as decisões tomadas pela firma que dá
emprego ao cameraman, nem as escolhas dele próprio são totalmente inocentes, mesmo quando
são necessariamente conscientes” (FERRO, 2010, p.94). Assim sendo, de alguma forma há um
recorte na realidade histórica que está sendo retratada. Bem, mas até mesmo nos textos escritos
isto ocorre, como pelo interesse por um determinado tema, a forma de caracterizar os
personagens, a linguagem utilizada, o uso das convenções de gênero, entre outras coisas. Para
Hayden White (1988), “Toda história escrita é um produto de processos de condensação,
deslocamento, simbolização e qualificação, exatamente como aqueles utilizados na produção
de uma representação filmada” (WHITE, 1988, p.1194). 4

Outro ponto questionado nas relações do cinema com a história é se a obra audiovisual
seria capaz de transmitir tantas informações importantes e pontuais como o texto escrito pode
fazê-lo. E, ainda, se estas informações poderiam ser devidamente absorvidas, uma vez que os
fotogramas do filme se sucedem rapidamente e o espectador pode não ter a possibilidade de
rever aquilo que, eventualmente, deixou de perceber ou entender. Na realidade, os meios são
diferentes e a forma de lidar com o que neles está representado também o é. Para Robert
Rosenstone (1988) “O desafio do filme com a história, da cultura visual com a cultura escrita,

4
Tradução nossa.
21

pode ser parecido com o desafio da história escrita com a tradição oral, de Herodotus e
Thucydides com os contadores de contos históricos. ” (ROSENSTONE, 1988, p. 1184).

Um filme, mesmo que não trate de um tema histórico, possui muita história. Por
exemplo, em um cenário veremos objetos que foram escolhidos para estarem ali. Estes objetos
são referentes ao período representado. Um filme dos anos 1980 terá computadores dos anos
de 1980, telefones dos anos de 1980, roupas dos anos de 1980, sofá, cadeiras, geladeiras, carros,
tudo isto é história dos anos de 1980. Um texto sobre determinado acontecimento dos anos de
1980 não terá este tipo de detalhes, porém, pode apresentar dados que dificilmente seriam
trabalhados efetivamente em filmes. Não é preciso escolher um meio em detrimento do outro,
mas sim tomar todos como documentos passíveis de análise. Segundo Jorge Nóvoa (2012),

quando aceitamos as hiperespecializações dos saberes (que passaram a ser


verdadeiros fetiches desde o século XIX), criamos bloqueios para que a
produção e a circulação do conhecimento possam se fazer de modo ainda mais
eficaz! (NOVOA, 2012, p.31).

1.2 Cinema, história e representações de gênero

O cinema é, para Barros, (2012) “um poderoso instrumento de difusão ideológica, ou


mesmo uma arma imprescindível no seio de um bem articulado sistema de propaganda e
marketing” (BARROS, 2012, p. 63). Ele tem sido utilizado como instrumento de dominação
por agentes ligados ao poder, como partidos políticos, igrejas e instituições diversas. Daí a
importância de estudá-lo não somente como expressão artística, mas também como uma prática
social.

Para José Mário Ortiz Ramos (1983), existem dois eixos básicos a serem considerados
por quem pretende estudar as relações entre o cinema e as dimensões sociais que o envolvem.
O primeiro destes eixos é o que toma como ponto de partida a estruturação interna das obras,
ou seja, uma análise imanente. Já o segundo eixo proposto por Ortiz Ramos é o que toma o
cinema como um produto cultural ou como um bem simbólico. Para o autor

Seguir a primeira vertente, a da análise interna, significa uma priorização da


dimensão estética; [...] Já a segunda opção vai inserir as obras cinematográficas
no movimento amplo da cultura e, portanto, a atenção será centrada na
impregnação ideológica da produção (ORTIZ RAMOS, 1983, p.12).
22

É um pouco sobre essa plataforma metodológica que trabalharemos ao longo da


pesquisa, ou seja, procedendo a um estudo tanto imanente quanto contextual das obras que
fazem parte de seu corpus fílmico para apreender as representações do feminino. As
representações de que se alimentam as projeções nos cinemas são reflexo de uma teia de
poderes que se desenvolve dentro e fora das instituições cinematográficas. Segundo Roger
Chartier (1990) “As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas
para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe ou tenta impor a sua concepção
do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 1990, p. 17).

Para Michel Foucault (1979) o poder é mais do que uma instância negativa que tem
como função primordial reprimir. Acima de tudo, o poder é produtivo. Segundo o autor, a
sociedade cria saberes, cria modelos, cria leis e o poder é exercido através de práticas
normativas culturais que influem no sentido de como nos relacionamos e experimentamos o
mundo. Manipular as representações do feminino no cinema é, portanto, exercer o poder pelo
saber.

De modo a estabelecer um ponto de partida para discutirmos gênero e as representações


do feminino no cinema, consideremos que desde a conhecida frase de Simone de Beauvoir
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1960, p. 9) muitas asserções acerca
do “ser mulher” passaram a ser consideradas. Para Piscitelli (2002) a publicação em 1975 de O
Tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo, de Gayle Rubin, “marcou o
pensamento feminista ao introduzir o conceito de gênero no debate sobre as causas da opressão
da mulher. ” (PISCITELLI, 2002, p.8). A autora ainda acrescenta que apesar de o termo gênero
já ter sido utilizado, “foi a partir da conceitualização de Gayle Rubin que este começou a
difundir-se com uma força inusitada até esse momento” (PISCITELLI, 2002, p.8).

Existe “um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a
sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais
transformadas são satisfeitas” (RUBIN, 1993, p. 2)5. Essa é a definição preliminar do “sistema
de sexo/gênero”, arranjos sociais que transformam fêmeas em mulheres domesticadas. O
conceito gênero foi recebido com muito entusiasmo, tendo, entretanto, sido reformulado em
diferentes épocas e de acordo com diferentes abordagens disciplinares. Para Joan Scott, por
exemplo, (1995) “o termo ‘gênero’ torna-se uma forma de indicar ‘construções culturais’ – a

5
Originalmente, o ensaio de Gayle Rubin foi publicado em 1975, quando ela ainda fazia pós-graduação sem, no
entanto, uma tradução para o português.
23

criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. ”
(SCOTT, 1995, p.75).

Judith Butler (2003), filósofa e outra importante teórica da área, atenta ao fato de que
não devemos tomar sexo como um dado natural e o gênero como um dado cultural da forma
como primeiramente pode ter sido conceitualizado o “sistema de sexo/gênero”. Isto porque, a
dualidade sexual foi construída através de um discurso científico específico que deve ser
historicizado. Butler também argumenta que por trás de uma identidade de gênero não há um
sexo verdadeiro que seria a sua base biológica e a sua causa. A identidade de gênero, para
Butler, não é uma consequência do sexo, mas, um ideal construído e regulado por uma rede de
saberes e de poderes.

Os papéis adequados aos homens e às mulheres são construídos, mantidos e moldados


de acordo com aquilo que a sociedade espera deles em determinado momento. O rádio, a
fotografia, o cinema e a televisão, por exemplo, são tecnologias que contribuem para a
disseminação e manutenção desses modelos. A subordinação feminina ao jugo masculino é
discussão recorrente há muito tempo, haja vista os inúmeros desdobramentos das lutas
feministas, algumas das quais iremos abordar nos capítulos seguintes, especialmente com
relação aos fatos que se deram no Brasil. Não pretendemos, no entanto, esgotar o assunto, nem
mesmo traçar uma história do feminismo no Brasil, mas gostaríamos de discutir brevemente
sobre como as diferenças entre os sexos e os gêneros são criadas e mantidas pelas mídias.

Thomas Lacqueur, em seu livro Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud
(2001), aponta como muitos médicos até meados do século XVIII acreditavam que as mulheres
e os homens tinham basicamente a mesma genitália. Era como se existisse uma linha horizontal
do “sexo único” e os homens estavam mais perto da perfeição nesta linha, sendo que as
mulheres estavam bem mais para trás. Isto porque, ao estudarem os órgãos reprodutores de
ambos os sexos, eles chegaram à conclusão de que eram parecidos, no entanto, o sistema
reprodutor masculino era considerado mais evoluído, e os das mulheres menos. Por exemplo,
os lábios vaginais eram equivalentes ao prepúcio dos homens, o útero ao escroto e os ovários
aos testículos. Uma pessoa com “calor” suficiente conseguiria avançar na linha do “sexo único”
e chegar mais próximo ao padrão masculino.

Essa concepção de sexo é bastante diferente daquela que temos hoje, segundo a qual
existem homens e mulheres, e nunca, pelo menos sem alguma intervenção cirúrgica, uma
mulher vai avançar na suposta linha do “sexo único” sustentada por especialistas do século
XVIII e virar um homem. É muito interessante notar como os conceitos de sexo e gênero vão
24

sendo modelados ao longo dos séculos, seja devido a inovações tecnológicas, aos progressos
da medicina e/ou às lutas dos grupos organizados para defender os seus direitos no seio da
sociedade. Hoje, por exemplo, uma pessoa que ao nascer possui uma vagina é considerada
mulher. Com isto, uma série de pressupostos já é estabelecida e uma espécie de roteirização de
sua vida é feita pela sociedade. Espera-se, entre outras coisas, que esta pequena menina vá
gostar de meninos. Espera-se que ela goste de se maquiar e de usar salto alto; que ela queira se
casar e ter filhos; além disso, que abra mão de quase tudo para criar seus futuros filhos, já que,
supostamente, uma mulher sem filhos nunca irá se sentir plenamente realizada.

Durante os anos de 1960 diferentes correntes feministas, especialmente nos Estados


Unidos e na Inglaterra, começaram a apontar percepções variadas com relação às origens e
também às causas da opressão a que eram submetidas as mulheres. Uma vertente da corrente
do feminismo radical, por exemplo, que teve como uma das principais pensadoras Shulamith
Firestone, afirmava que as origens estavam localizadas na forma de reprodução da espécie. Ou
seja, já que a mulher é a responsável por dar à luz e assegurar o futuro do bebê, ela sempre vai
estar subordinada a esta tarefa, que tem prioridade na organização de sua vida, social e
profissional. Uma das vertentes da corrente mais socialista do feminismo afirmava que somente
com o fim da sociedade baseada em classes e na iniciativa privada a opressão e a desigualdade
entre os sexos teriam um fim, visto que a base da opressão estaria na estrutura de classes. Já
vertentes da corrente do feminismo liberal afirmavam que haveria de ter igualdade de direitos
civis para todos, sem discriminação de sexo, além de enfatizarem a potencialidade e a igualdade
dos sexos. Enfim, foi nesse período que se começou a questionar mais fortemente a submissão
considerada natural da mulher ao homem. Não era algo natural, biológico, e sim socialmente
construído, independentemente das premissas com as quais essas feministas estavam
trabalhando. Assim sendo, por ser algo socialmente construído, ao se identificar a forma como
se deu tal construção, poder-se-ia dar início a uma desconstrução.

Se os gêneros são construções sociais, se ser mulher envolve uma série de outras
categorias que também são construídas socialmente, é de extrema importância investigar e
avaliar como tais construções são engendradas. Em História da sexualidade I: a vontade de
saber (1997), Foucault se debruça sobre as tecnologias sexuais desenvolvidas, principalmente
a partir do século XVIII, para controlar a sexualidade dos sujeitos, visto que, nesse período, o
sexo passa a ter uma importância capital. A sexualidade se tornou um construto essencial na
determinação do valor do sujeito e na determinação da sua saúde, desejo e identidade. Segundo
25

o autor, durante o século XVIII não só se passou a falar muito sobre sexo, como também se
passou a formular verdades absolutas sobre o assunto.

A sociedade que se desenvolve no século XVIII – chame-se, burguesa,


capitalista ou industrial – não reagiu ao sexo com uma recusa em reconhecê-
lo. Ao contrário, instaurou todo um aparelho para produzir discursos
verdadeiros sobre ele. Não somente falou muito e forçou todo mundo a falar
dele, como também empreendeu a formulação de sua verdade regulada. Como
se suspeitasse nele um segredo capital. Como se tivesse necessidade dessa
produção de verdade. Como se lhe fosse essencial que o sexo se inscrevesse
não somente numa economia do prazer, mas, também, num regime ordenado
de saber. (FOUCAULT, 1997, p. 68).

Teresa de Lauretis (1994) dialoga com Foucault e propõe uma tecnologia de gênero.
Para a autora, gênero, “como representação e como auto-representação, é produto de diferentes
tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas
críticas institucionalizadas, bem como práticas da vida cotidiana. ” (LAURETIS, 1994, p.208).
Operar essas tecnologias sociais é, portanto, um dos meios fundamentais para trabalhar a
construção de identidades. Ainda, é precisamente através das tecnologias de gênero que se
processam uma regulamentação e uma normalização, via a instauração de saberes, com relação
aos gêneros. O cinema e a televisão, por exemplo, atuam nesse sentido, construindo e
difundindo estereótipos acerca do “ser homem” e do “ser mulher”.

Partindo dos pressupostos de que tanto o sexo quanto o gênero são construídos e de que
o cinema é um poderoso meio de representação que contribui para essa construção, pretendemos
analisar as formas como as feminilidades foram trabalhadas nos filmes Mar de rosas (1977),
de Ana Carolina, Um céu de estrelas (1996), de Tata Amaral e Trabalhar cansa (2011), de
Juliana Rojas e Marco Dutra. Vamos relacionar esses filmes com momentos das lutas feministas
no Brasil, assim como das lutas políticas, isto porque, conforme mencionamos no subcapítulo
acima, o cinema é documento e agente da História. Portanto, tratar cada um desses filmes como
documento histórico é mapear, ainda que de forma não exaustiva, em que estágio estavam as
discussões acerca da questão da mulher, visto que os três filmes são emblemáticos de um dado
período. Além disso, tratá-los como agentes da História também é significativo, pois cada filme
se relaciona com o contexto em que foi produzido e pode atuar em futuras discussões acerca da
questão da mulher.

As representações no cinema têm significativos aspectos políticos e, de acordo com


Pierre Sorlin (1985), as imagens ocupam um lugar tão importante no nosso dia a dia que
26

dificilmente não levaríamos em consideração os estereótipos por elas criados. Por essa razão,
existe uma urgência em estudar a forma como a mulher vem sendo representada no cinema,
assim como minorias ao redor do mundo. Ao analisarmos os filmes que são nosso objeto de
estudo procuraremos perceber como, através da articulação de sons, de palavras e de imagens
uma realidade “encenada” foi criada e como as representações do feminino se deram, sem
deixar de levar em consideração o contexto histórico, pois, de acordo com Vanoye e Goliot-
Lété um filme “oferece um conjunto de representações que remetem direta ou indiretamente à
sociedade real em que se inscreve”. (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ apud ESTEVES, 2007, p. 59).

Na década de 1980 começou, segundo Joan Scott (1992), um intenso movimento por
uma história das mulheres. Não é como se existisse uma enorme variedade de fatos e feitos de
mulheres prestes a serem descobertos e contados, é algo mais. Louise A. Tilly (1994) nos conta
em seu artigo Gênero, história das mulheres e história social, que certa vez em um seminário
no qual um historiador das mulheres apontava uma interessantíssima forma de interpretar e de
avaliar a recepção dos escritos de Olympe de Gouges durante a Revolução Francesa, um senhor
rude levantou-se e disse: “Agora que eu sei que as mulheres participaram da Revolução, que
diferença isso faz?”. Tilly disse que a partir deste encontro ela percebeu que há duas tarefas
cada vez mais urgentes no que tange a história das mulheres: “Produzir não somente estudos
descritivos e interpretativos, mas também estudos que resolvam problemas analíticos, e vincular
as descobertas decorrentes desses às questões gerais que há muito estão postas à história”.
(TILLY, 1994, p.29).

Ou seja, a autora sugere o desenvolvimento de uma história analítica das mulheres e a


vinculação dos problemas desta (s) história (s) às outras já oficiais. Estamos nos detendo neste
ponto, pois, de certa forma, é também o que procuraremos fazer, no espaço limitado de uma
dissertação de mestrado, com um determinado período da história do cinema brasileiro. As
mulheres foram durante muito tempo relegadas a tarefas menos expressivas no cinema
brasileiro, a tarefas que eram tidas como “femininas”, como a montagem, por exemplo, pois
aqueles que comandavam as equipes acreditavam que tal ofício se parecia à arte de costurar.
Nesta pesquisa iremos estudar filmes dirigidos por mulheres. Não porque acreditamos que o
fato de ser mulher contribua para uma representação menos estereotipada do feminino, mas sim
para incluir devidamente a mulher na história do nosso cinema. No entanto, para irmos além de
um estudo descritivo, estaremos relacionando as conquistas femininas no âmbito
cinematográfico àquelas no âmbito social a partir dos filmes em questão.
27

Nos anos de 1970, Ann Kaplan, uma das fundadoras da abordagem feminista na crítica
cinematográfica, junto a Laura Mulvey e Mary Ann Doane, utilizou referências da psicanálise
e da semiótica em seu livro A mulher e o cinema: os dois lados da câmera (1995) para mostrar
como os signos do cinema são “carregados de uma ideologia patriarcal que sustenta nossas
estruturas sociais e que constrói a mulher de maneira específica” (KAPLAN, 1995, p. 45). A
autora se concentrou na questão do “olhar masculino”, assim como Laura Mulvey, para indicar
como o cinema possui uma linguagem inerentemente masculina e, caso as feministas quisessem
mudar a visão estereotipada do feminino, não poderiam nem mesmo fazer uso deste cinema e
desta linguagem, ao menos não da forma mais usual. Para Laura Mulvey (1983) existem três
tipos de olhares no cinema narrativo clássico: (1) o olhar da câmera, (2) o olhar do espectador
e (3) o olhar dos protagonistas masculinos no filme. As personagens femininas neste tipo de
cinema, destaca Mulvey, geralmente servem para serem olhadas e são passivas, ou seja, elas
não possuem ação nem pensamentos expressivos, elas congelam a narrativa.

Segundo Fabrícia Teixeira Borges (2008), “A presença da mulher no filme também tem
a função de ‘ser olhada’ destacando sua característica passiva mediante um olhar ativo
masculino, ou de uma lógica masculina na organização dos posicionamentos femininos da
sociedade” (BORGES, 2008, p. 40). Assim, os espectadores, independentemente de serem
homens ou mulheres, se identificam com o protagonista masculino, possuidor da ação, dando
sentido ao olhar (2) de Mulvey. Com relação ao olhar (3), o dos protagonistas masculinos, ou
seja, a maneira como o personagem olha o mundo no filme e lida com os seus ideais, é um olhar
típico da sociedade da época de produção, caracterizando as personagens femininas de
determinada maneira e, levando em consideração o olhar (2) de Mulvey, fazendo com que as
espectadoras tenham identificação pelo jeito de ser masculino, no entanto, tendo de agir
socialmente conforme o feminino do filme. Além disso, o olhar da câmera (1) também foi
durante muito tempo masculino, já que até hoje, manusear a aparelhagem que dá origem às
imagens é tarefa primordialmente masculina.

Para Ann Kaplan, uma das opções para as feministas seria buscar um cinema alternativo,
longe da estrutura dos olhares do cinema clássico apresentada por Mulvey. A autora considera
que, através de um cinema livre destas amarras poderiam se mostrar outras representações do
feminino. No entanto, esta forma alternativa de cinema acaba sendo muitas vezes difícil de ser
“consumida”, visto que estamos acostumados com a linguagem cinematográfica do cinema
clássico. Assim, o grande público, digamos, as mulheres que deveriam ser expostas a outras
representações do feminino, acabam frequentemente não tendo acesso, não tendo interesse e/ou
28

mesmo não conseguindo penetrar na lógica de um cinema mais alternativo, ficando à margem
das lutas feministas e as discussões importantes acerca das representações das mulheres ficam
restritas aos grupos já imersos nessas lutas. Além disso, a própria psicanálise foi uma ciência
desenvolvida majoritariamente por homens que acreditavam ter completo domínio sobre o
desejo feminino, portanto, também da psicanálise as feministas não poderiam fazer uso se
quisessem evitar estruturas originárias do patriarcado6.

Procuraremos aqui analisar filmes que, de certa forma, são de fácil acesso e
compreensão e que poderiam ser vistos e absorvidos por mulheres com variados níveis de
interesse. Acreditamos também que muitas vezes a leitura psicanalítica do cinema, conforme o
viés de Kaplan e de Mulvey, acaba dando ao feminino e ao masculino uma ideia muito
universal. Não há como indicar a forma com que todas as mulheres, por exemplo, lidam com o
protagonista masculino, pois existem muitas maneiras de ser mulher. É necessário
contextualizar historicamente e socialmente esses seres. Por exemplo, mulher de qual século,
de qual idade, de qual país, de qual etnia, de qual classe, com quais experiências vividas, etc.
Assim como, nem todos os homens, somente pelo fato de serem homens, produzem filmes
sexistas, ou seja, filmes que, entre outras coisas, perpetuam os estereótipos masculinos e
femininos sem os denunciar.7 Indicar a forma como cada pessoa irá interpretar ou produzir
determinado filme somente com base no seu sexo, é limitar a nossa existência ao nascimento,
como se pelo fato de se nascer mulher, inevitavelmente, todas as mulheres sofrerão as mesmas
opressões. Ademais, devemos evitar trabalhar com binarismos tais como homem/mulher, pois
existem diferentes identidades de gênero e o gênero não é uma consequência do sexo.

Ann Kaplan (1995) lembra em sua pesquisa – e estamos aqui em concordância - que
também os fatores extracinematográficos são importantes para a análise das representações do
feminino no cinema. Assim sendo, “fatos sociais, políticos e econômicos como as modificações
por que estavam passando os modelos educacionais e profissionais das mulheres e as
transformações nos padrões sexistas” (KAPLAN, 1995, p. 112) devem ser levados em conta.
No que concerne à representação do feminino no cinema hollywoodiano, desde a década de
1930 até a de 1990, ela identifica três tipos de mulheres produzidas pelo inconsciente patriarcal
masculino. São eles: cúmplices, resistentes e pós-modernas. O tipo cúmplice renuncia a

6
Patriarcado é um termo que basicamente pode ser definido como uma organização social que beneficia sempre o
homem em detrimento da mulher. Vale destacar que é um termo polêmico conceitualmente falando.
7
Manifesto de Utrecht – Por um cinema não sexista, agosto de 1977 In: MUNERATO, Elice; OLIVEIRA, Maria
Helena Darcy de. As musas da matinê. Rio de Janeiro: Rioarte, 1982.
29

qualquer desejo ou realização pessoal com o intuito de apoiar as ações do protagonista


masculino. Já o tipo resistente luta, entre outras coisas, por emancipação financeira e pessoal,
enquanto que o tipo pós-moderno representa as mulheres que já conquistaram liberdade de
escolha e passam por questões mais complexas e contemporâneas. O feminino é tido nessas
narrativas como algo atemporal, ou seja, com essas motivações, independentemente da época.
Segundo Kaplan, “superficialmente, a representação muda de acordo com a moda e o estilo –
mas se arranharmos a superfície, lá está o modelo conhecido. ” (KAPLAN, 1995, p 17).

A autora afirma que independentemente do tipo representado, somente as mulheres que


se submetem ao patriarcado são redimidas nos finais das narrativas. Mulheres que lutam a
qualquer custo pela independência são geralmente levadas à degradação moral ou punidas de
alguma forma. Por exemplo, uma mulher não pode ser bem-sucedida no amor e na carreira, ou
ainda, inteligência e beleza dificilmente são atributos comuns a uma mesma personagem. Outro
bom exemplo são as “fêmeas fatais” dos filmes noir norte-americanos que influenciaram
bastante o cinema brasileiro da década de 1980. As mulheres neste tipo de filmes são percebidas
como bonitas, sedutoras e inteligentes, no entanto, escondem algum segredo que justificará a
punição no final da narrativa, seja esta a morte, a solidão ou a derrocada financeira.

Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira (1982) analisam 16 dos 21 longas-
metragens de ficção dirigidos por mulheres no Brasil desde o surgimento do cinema até 1980,
pois aos 5 outros filmes elas não tiveram acesso. Das 70 personagens femininas presentes nestes
filmes, 55 só existem devido à relação com algum homem, sendo que, das 15 exceções, 5 são
crianças ou adolescentes. Majoritariamente, as personagens femininas nos filmes estudados têm
idade entre 20 e 30 anos e respeitam o rigor da moda, de acordo com a época e com a camada
social a que pertencem. As mulheres mais velhas são tidas como feias e geralmente aparecem
em papéis ainda mais secundários, como tias solteironas, por exemplo. Uma transgressão a esta
regra foi identificada pelas pesquisadoras no filme Feminino plural (1976), de Vera Figueiredo,
onde a única mulher “velha” em cena vê suas rugas como marcas de conquistas e como algo
positivo. Outro ponto identificado nos filmes analisados pelas pesquisadoras foi o fato de as
mulheres competirem entre si invariavelmente pelo amor de algum homem. Além disto, elas
fazem parte de triângulos amorosos e, quando não, é porque são representadas como escravas,
prostitutas, cafetinas ou freiras, por exemplo. As pesquisadoras relatam também que o
casamento é tido para as personagens femininas como um bem a ser conquistado acima de tudo,
especialmente nos filmes de Gilda de Abreu, nas décadas de 1940 e 1950. Após estas
considerações, passemos agora para a nosso escopo fílmico.
30

CAP. 2 A MULHER E O CINEMA NA DITADURA

2.1 Lutas sociais e cinema nas décadas de 1970 e 1980

Apesar da subordinação da mulher assumir dimensões universais, esta não se manifesta


da mesma forma ou com o mesmo grau de intensidade, variando de acordo com países, classes
sociais, sociedades, épocas e outros fatores. Cada mulher é única e traz consigo uma vida,
relacionada com a de outras pessoas e submetida a diferentes experiências. Não falaremos aqui
sobre uma história do feminismo, pois existem várias. Procuraremos traçar relações entre o
feminino e diferentes lutas sociais, de forma a abranger o contexto histórico no qual os nossos
objetos de análise estão inseridos.

Estima-se que desde a época da Revolução Francesa, em 1789, luta-se efetivamente pela
igualdade entre homens e mulheres. O limitado conceito de “igualdade, liberdade e
fraternidade” foi clamado para todos, entretanto, na prática, abarcou somente os homens,
conforme estabelecido pela Declaração dos Direitos Humanos na época. Para as mulheres, as
filhas e esposas desses homens, restou a liberdade dentro do espaço doméstico e a fraternidade
e igualdade somente entre elas.

A Revolução Industrial, no final do século XVIII e início do século XIX, afastou os


homens de suas casas, levando-os para os centros de produção, as fábricas. Eles,
reconhecidamente chefes de família, venderam sua força de trabalho e, em pouco tempo até
mesmo as mulheres foram levadas a trabalhar nestes locais, principalmente após a burguesia
reconhecer a condição de inferioridade à qual eram submetidas em suas casas e perceber uma
forma de lucrar com isto, dando-lhes míseros salários e lhes oferecendo condições
extremamente insalubres nas fábricas. O rompimento com o ambiente doméstico e a
consciência dos ideais de igualdade acabaram levando muitas mulheres a lutar por seus direitos.
Em um primeiro momento, essa luta se concentrava, principalmente, nas condições de trabalho
e no direito ao voto.

A primeira onda de feminismo organizado no mundo foi o movimento sufragista, que


se espalhou pela Europa e pelos EUA na segunda metade do século XIX e primeira do século
XX. No Brasil não foi diferente, e a primeira fase do feminismo, a sufragista, foi protagonizada
principalmente por Bertha Lutz, na década de 1920. De uma forma geral, essas feministas
estavam preocupadas mais com o direito de votar e de serem votadas. Elas acreditavam em
“reformas jurídicas quanto ao status da mulher com base na noção de que a igualdade nas leis
31

bastaria para solucionar todos os problemas de caráter discriminatório que as mulheres sofriam.
” (COSTA; SARDENBERG, 2008, p. 26).

Para grande parte das sufragistas a mulher deveria ter direitos políticos, pois era algo
bom para a sociedade e não apenas porque não deveriam estar submissas aos homens. A
dominação masculina não era muito questionada, assim como outros assuntos mais amplos,
como o divórcio e a sexualidade. Estes ficavam restritos às vertentes menos expressivas do
feminismo da época. No ano de 1932, o Código Eleitoral Provisório garantiu às mulheres
casadas, com a autorização do marido, o direito ao voto, assim como às mulheres viúvas e às
solteiras com renda própria. Tais restrições foram suprimidas no ano de 1934 com a nova
Constituição e com o Código Eleitoral Brasileiro de então. Entretanto, não havia
obrigatoriedade do voto para mulheres e para homens com mais de 60 anos. Somente em 1946
o voto feminino passou a ser obrigatório e sem restrições. O golpe de 1937 calou toda posterior
movimentação feminista que poderia ocorrer. O Brasil viveu praticamente um totalitarismo até
1945, quando teve fim o Estado Novo e o governo de Getúlio Vargas. Pode-se afirmar que, de
uma forma geral, durante este período o movimento feminista ficou estagnado.

Com relação ao cinema, em 1897 já fazíamos nossos próprios filmes, tendo sido Maxixe,
de Vitor de Maio, o primeiro deles oficialmente registrado, de acordo com Anita Simis (1996).
Desta data inaugural até 1980, tínhamos, no entanto, somente 21 longas-metragens de ficção
dirigidos por mulheres, de acordo com a pesquisa de Elice Munerato e Maria Helena Darcy de
Oliveira (1982). Foi Cleo de Verberena a primeira mulher a dirigir um longa-metragem no
Brasil. O Mistério do dominó negro estreou em 1930 e a diretora atuou também como atriz e
produtora. A segunda mulher que viria a dirigir um filme no Brasil era também atriz, sendo que
nos anos de 1930 ela ainda fundou no Rio de Janeiro sua própria companhia, a Brasil Vita
Filmes, moderno parque cinematográfico na época. Carmem Santos foi diretora, atriz, roteirista
e produtora do filme Inconfidência mineira (1948), uma reconstituição do episódio histórico.
O filme levou de sete a dez anos para ser terminado e hoje dele só restam fragmentos.

Gilda de Abreu foi uma das pioneiras na direção. Primeira mulher a fazer sucesso como
diretora de cinema, Gilda era também cantora, atriz, produtora e roteirista. Seu primeiro longa
foi O ébrio (1946), ainda hoje o maior sucesso da Cinédia, companhia cinematográfica criada
em 1930 pelo jornalista Adhemar Gonzaga. Segundo o site da companhia, que se encontra em
ativa até os dias de hoje, O ébrio teve mais de 500 cópias e permaneceu 35 anos em cartaz.
Gilda de Abreu escreveu e dirigiu Pinguinho de gente no ano de 1949 sem, no entanto, obter o
mesmo sucesso do filme anterior. No ano de 1951, Gilda de Abreu fundou sua própria
32

companhia cinematográfica, a Pró-Arte, a fim de realizar o seu terceiro filme e de conseguir


mais crédito com a equipe técnica. Segundo Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira,
Gilda de Abreu sofreu bastante para dirigir os dois primeiros longas, visto que a equipe técnica,
constituída basicamente de homens, não aceitava bem o fato de receber ordens de uma mulher.
Gilda comparecia ao set de filmagem de calças compridas para receber o devido
reconhecimento, sendo que, somente ao abrir a própria produtora, conseguiu rodar Coração
materno (1951) com o crédito que merecia.

Fundada em 1949, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, situada na cidade de São


Bernardo do Campo, continha modernos equipamentos e uma série de profissionais
especializados. O que diferenciava a Vera Cruz da Atlântida, do Rio de Janeiro e famosa pelas
chanchadas, era a procura por produções com um caráter não tão popular, além da produção
baseada nos moldes da indústria cinematográfica italiana. Este perfil da companhia possibilitou
várias melhorias na profissionalização da atividade cinematográfica no Brasil. Muitas mulheres
passaram a exercer funções técnicas no cinema nesta época, especialmente como montadoras e
scriptgirls.

De forma a suprir a necessidade nacional de profissionais na indústria cinematográfica,


diversos estrangeiros passaram a vir trabalhar no Brasil. Maria Basaglia, por exemplo, já com
vasta experiência no cinema e no teatro na Itália, chegou aqui no ano de 1956. Além de atuar
como assistente de direção, Maria foi diretora de dois filmes: Macumba na alta e O pão que o
diabo amassou, ambos em 1958. Outra italiana que no Brasil chegou foi Carla Civelli, em 1947.
Ela participou da equipe de montagem da Vera Cruz e do departamento de corte da
Cinematográfica Maristela, também em São Paulo. Além disto, dirigiu no ano de 1959 o filme
É um caso de polícia. Esses são os nomes das pioneiras na direção do cinema brasileiro, ao
menos segundo a história oficial. É certo que, se fossemos buscar em arquivos pessoais ou não
oficiais, encontraríamos uma série de aventureiras menos bem-sucedidas e, por isso mesmo,
ausentes dos manuais oficiais.

Voltando ao feminismo, nos anos de 1940, 1950 e parte dos anos de 1960, o movimento
no Brasil ficou bem desarticulado. Isto porque, entre outras coisas, as sufragistas já estavam
satisfeitas com o direito ao voto e as socialistas estavam envolvidas, principalmente, com
questões como a Guerra Fria. Tal cenário sofreria consideráveis mudanças em meados dos anos
de 1960 e, especialmente, nos anos de 1970, já durante a ditadura militar. Uma das principais
características dos movimentos feministas nesta época foi a constatação de que os problemas
enfrentados pelas mulheres possuíam raízes no social, e, portanto, exigiam mudanças coletivas.
33

Este foi um período em que os grupos de debates entre mulheres cresceram significativamente,
nos quais podia-se conversar sobre problemas pessoais. Como retórica da segunda onda do
feminismo, nos anos de 1970, surge a máxima: “o pessoal é político”.

Essa afirmativa implica na postura teórica de que a separação entre a esfera


privada (vida familiar e pessoal) e esfera pública é apenas aparente. Ela existe
a nível de ideologia. Questiona também uma concepção do político
tradicionalmente limitado à descrição das relações dentro da esfera pública,
tidas então como supostamente diferentes em conteúdo e teor, das relações e
interações na vida familiar, na vida “privada” (COSTA; SARDENBERG,
2008, p. 30).

Algo que realmente marcou a história do feminismo foi a decisão da ONU (Organização
das Nações Unidas) de definir o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, fato
decorrente de uma intensa luta que vinha se desdobrando até então nos bastidores.

A questão da mulher ganhava a partir daí um novo status, tanto diante de


governos autoritários e sociedades conservadoras como em relação a projetos
ditos progressistas que costumeiramente viam com grande desconfiança a
causa feminista. (PINTO, 2003, p. 57).

Apesar dos avanços, no campo do cinema, entretanto, tudo caminhava lentamente para
as mulheres, ao menos para as que ficavam atrás das câmeras. Nos anos de 1960 temos somente
um longa de ficção oficialmente dirigido por mulher: As testemunhas não condenam, de 1962,
foi realizado por Zélia Costa, no entanto, dele não resta o menor traço. Neste período estavam
em alta os cinemas nacionais e havia uma preocupação com a unidade do país e com a
valorização da sua cultura. O Instituto Nacional de Cinema (INC), por exemplo, fora criado
em 1966 pelo então governo militar para centralizar a administração do desenvolvimento
cinematográfico. Durante a sua existência, até 1975, houve um crescimento expressivo de
filmes nacionais, no entanto, filmes com uma visão bastante nacionalista do Brasil. O Cinema
Novo, protagonizado por Glauber Rocha, Nelson Pereira e tantos outros, deixou, por vezes,
bastante clara a insatisfação frente à política de produção cinematográfica do instituto, que
procurava utilizar a comunicação de massa para atuar na integração nacional vinculada aos
interesses militares.

Não obstante, o que podemos notar é que mesmo entre os cinemanovistas a participação
feminina na direção era pequena. Tizuka Yamazaki, importante realizadora brasileira, foi
34

assistente de direção em uma série de filmes do período e afirmou, segundo Tata Amaral,8 que
“o Cinema Novo era machista”. As mulheres executavam basicamente as tarefas de assistentes,
figurinistas, continuístas e montadoras. Não lhes era dado espaço mais expressivo,
responsabilidades mais afinadas às suas reais capacidades. Por outro lado, em razão desse
ambiente pouco propício, talvez muitas mulheres nem mesmo tenham querido atuar na direção
e realizar uma obra mais de acordo com os seus próprios questionamentos. A sociedade
brasileira dos anos de 1960 era ainda mais conservadora do que hoje e discussões acerca das
feminilidades não tinha muito espaço por aqui, ao contrário do que vinha acontecendo à época
nos EUA e em parte da Europa. Não há como dizer que todos os atuantes no campo
cinematográfico brasileiro da época eram “machistas”, visto que, além de cada um ter
experiências particulares no decorrer da vida, também aquelas pessoas estavam inseridas em
um contexto do qual sofrem influência; são seres históricos. Contudo, havia mulheres querendo
falar, como Tizuka, e eram silenciadas e tratadas como meras coadjuvantes.

Nos anos de 1960, o cinema brasileiro alcançou grande prestígio, inclusive


internacional, como no caso de Glauber Rocha que teve três filmes indicados à Palma de Ouro
em Cannes. A proliferação de revistas especializadas, de clubes de cinema e de festivais para
amadores estimulou a produção cinematográfica nacional, principalmente de curtas-metragens.
Foi neste período que Helena Solberg iniciou sua carreira no cinema, com o documentário de
curta-metragem A entrevista, em 1966. Foi também na década de 1960 que começaram a surgir
as instituições de ensino de cinema no Brasil, o que permitiu uma aproximação maior das
mulheres com a prática cinematográfica.

Os anos 1970 foram marcados por um aumento considerável de mulheres na direção.


Na realidade, esse foi um bom um período para o cinema brasileiro como um todo. Nesta época,
um grande número de realizadoras começou a trabalhar com curtas-metragens como Suzana
Amaral, Tânia Savietto e Ana Carolina. Em 1973, Vanja Orico dirige o longa O segredo da
rosa e, no mesmo ano, Lenita Perroy dirige o longa Mestiça, a escrava indomável.

Ainda em 1973, Tereza Trautman tenta lançar o longa Os homens que eu tive, que trata,
de certa forma, da liberação sexual feminina. Todavia, ele foi barrado pela censura e lançado
somente em 1980 com o título Os homens e eu. Personagens femininas também ganham
destaque nos longas Feminino plural, de Vera Figueiredo e Marcados para viver, de Maria do
Rosário, ambos os filmes de 1976. Foi, no entanto, em 1977 que um longa-metragem com

8
AMARAL, Tata. Evolução histórica: as mulheres e o cinema brasileiro. In: CREA DOCS CONFERENCE.
Paraguai, abr. 2003.
35

personagens femininos em destaque causou bastante polêmica, especialmente pela temática e


sua abordagem. Mar de rosas, de Ana Carolina, ficou em cartaz durante meses e fez grande
sucesso.

Com relação às lutas feministas, no ano de 1977 a Lei 6.515 deu à mulher o direito ao
divórcio. É importante também mencionar que até 1962 o Código Civil tinha a mulher casada
como “incapaz”, mesmo status conferido aos menores de idade e aos alienados, fazendo com
que elas necessitassem da autorização do marido para uma série de ações e tivessem seu acesso
à propriedade privada e ao mercado de trabalho limitado. Tal situação mudou com o advento
da Lei 4.121 e do Estatuto da Mulher Casada, no ano referido acima.

Após a Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979 pelo presidente João Figueiredo,
muitas mulheres voltaram do exílio depois de terem tido contato com movimentos feministas
no exterior, prontas para aplicarem na sociedade brasileira aquilo que haviam experienciado lá
fora. Além disso, a década de 1980 foi de grande movimentação política devido, notadamente,
ao fim do bipartidarismo em dezembro de 1979. A oposição ao governo militar viu sua unidade
dissolvida e múltiplas expressões que antes se agrupavam sob a sigla MDB surgiram, dando
origem a outros partidos e grupos. As feministas também acabaram se dividindo, não estando
mais todas agrupadas no MDB. Por esse motivo, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas
por diferentes grupos temáticos, com destaque para aqueles que passaram a tratar da saúde e da
violência contra a mulher.

Outro debate muito em voga na época era o da institucionalização ou não do feminismo,


já que então o cenário político permitia tal posicionamento. De um lado, defendia-se a
institucionalização do movimento e a aproximação com a esfera estatal. De outro, entretanto,
defendia-se a autonomia política. As que defendiam a autonomia política diziam que, em sua
essência, o movimento feminista lutava por profundas alterações sociais e, sendo assim, não
poderia se unir ao que combatia. Já as que defendiam a institucionalização, viam este como o
único caminho possível para um real combate político e para a implementação de mudanças.

A institucionalização aconteceu especialmente por meio da ocupação de espaços no


aparelho estatal e da criação de conselhos. No ano de 1985 foi criado o Conselho Nacional da
Condição da Mulher. Até o fim de sua curta existência, 1989, o CNDM tratou de uma série de
assuntos relacionados às lutas feministas, tendo como destaque a conquista de importantes
direitos para a mulher na Constituição de 1988.
36

A década de 1980 foi marcada pela disseminação do vídeo e pelo crescimento de


festivais, mostras e grupos de discussão. Muitas mulheres que antes atuavam no campo do
documentário passam a se arriscar na ficção. Alguns dos longas de sucesso dos anos de 1980
dirigidos por mulheres foram Parahyba mulher macho (1983), de Tizuka Yamasaki, A hora da
estrela (1985), de Suzana Amaral e Das tripas coração (1982), de Ana Carolina. Depois deste
breve histórico, passemos, então, para o primeiro de nossos objetos de análise.

2.2 Matrimônio, maternidade e liberdade sexual em Mar de rosas (1977), de Ana


Carolina

Segundo Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira (1982), o filme de Ana
Carolina foi o primeiro longa-metragem de ficção brasileiro dirigido por uma mulher a contestar
de forma explícita a submissão feminina. As personagens colocam foco em suas insatisfações
e questionam por que o fato de “ser mulher” traz tantas obrigações. Felicidade (Norma Bengell)
é a protagonista e Betinha (Cristina Pereira) é sua filha. Ambas estão em viagem com o pai,
Sérgio (Hugo Carvana), para tentar resolver os problemas do casamento. Depois de uma série
de discussões no carro, Felicidade fere seu marido com uma lâmina de barbear em um quarto
de hotel e pensa tê-lo assassinado. Ela foge então com a filha, que fica um tanto quanto
contrariada, para São Paulo, quando percebem que um carro as estava seguindo. Entra na trama
um personagem que, em razão de suas vestimentas e atitudes, pode ser associado ao governo
militar. Orlando Barde (Otávio Augusto) oferece ajuda para levá-las a São Paulo. Porém,
descobriremos posteriormente que ele trabalhava para Sérgio, que não morrera.

Orlando, Felicidade e Betinha seguem viagem no mesmo carro. Ao pararem em uma


cidadezinha porque Orlando precisava telefonar, Felicidade encontra uma arma no porta-luvas.
Ela tenta fugir com Betinha, mas é quase atropelada e então socorrida por uma mulher que
escutara o ocorrido. Dona Niobi (Myriam Muniz) a leva para casa juntamente com Betinha e
Orlando. Assim, dá-se início a uma sequência que margeia o absurdo, quando, na casa de Dr.
Dirceu (Ary Fontoura) e de Dona Niobi começa uma intensa discussão entre os cinco em uma
sala repleta de areia. Em determinado momento Felicidade e Betinha despistam Orlando e
fogem da casa. Novamente uma perseguição tem início quando Orlando nota que mãe e filha
escaparam. O filme termina dentro de um trem em movimento, quando, já sem saída, Betinha
empurra sua mãe e Orlando para fora do trem e dá uma “banana” em direção à câmera.
37

Mar de rosas faz parte de uma trilogia que tem como continuação Das tripas coração
(1982) e Sonho de valsa (1986), todos os filmes com a mesma temática: a condição feminina.
O enredo de Mar de rosas é basicamente o mencionado acima, sendo que determinadas
sequências serão expostas abaixo. O título do filme é irônico e os cartazes para divulgação
lançados na época transmitem um pouco do “mar de rosas" em que a família vivia (figura1).

Em entrevista concedida a Evaldo Mocarzel, Ana Carolina afirmou o seguinte sobre este
seu primeiro longa-metragem de ficção:

Eu já tinha certa experiência em filmar por causa dos documentários9, mas,


para mim, essa experiência anterior não tinha me obrigado a filmar com um
compromisso rígido de mise-en-scène, de linguagem, onde devo cortar, qual
lente devo usar, etc. Hoje acho que Mar de rosas tem problemas de narrativa.
Se fizesse um remake, mudaria muita coisa no que diz respeito à câmera e à
narrativa. Eu tinha muito pouco vocabulário para a câmera, acho que me saí
bem nos diálogos. (ANA CAROLINA apud MOCARZEL, 2010, p.59).

Os diálogos de Mar de rosas são, realmente, o que há de mais provocativo no filme,


sendo que são nas falas que dedicaremos maior atenção no decorrer da análise, fazendo
comparações com o contexto das lutas feministas no Brasil. Mar de rosas foi coproduzido e
distribuído pela Embrafilme,10 fato que deve ser considerado ao analisarmos as representações
do feminino na obra. Além disso, o filme foi realizado em um momento em que a censura
militar ainda estava em vigor, exigindo que a equipe lançasse mão de muitos artifícios para que
a obra fosse devidamente liberada ao público. Nesse sentido, as personagens podem ter ganhado
ou deixado de ganhar certas características para que o filme não fosse vetado.

9
Ana Carolina estreou em longas-metragens no ano de 1974 com o documentário Getúlio Vargas.
10
Empresa de economia mista criada em 1969 que tinha como objetivo principal promover o cinema brasileiro no
exterior, atuando na distribuição. No entanto, aos poucos o seu poderio foi aumentando, o que levou a Embrafilme
a ser o principal órgão relacionado à produção de filmes nacionais entre os anos de 1969 e 1990.
38

Em Mar de rosas temos três personagens femininas: Felicidade, Betinha e Dona Niobi.
Felicidade, ao contrário do que o nome indica, vive constantemente infeliz, tanto em relação ao
matrimônio como em relação à maternidade. Já no início do filme ela discute com o marido no
carro. Sérgio parece não fazer questão de escutá-la, tampouco Betinha. Esta, brinca com o pai
e o abraça do banco traseiro enquanto ele dirige. Felicidade implora para ser escutada:

Felicidade (00:04:06)
Me deixa falar mais um pouquinho, eu juro que não é mais o mesmo assunto.
Toda vez que eu começo a falar você me interrompe. Me deixa ir até o fim, eu
não quero mais ficar falando sozinha.

Felicidade (00:06:20)
Eu não quero que ela (Betinha) passe o que eu passei com a minha mãe e acho
que minha mãe passou com a minha avó. Olha, eu já consigo estabelecer um
modo diferente da gente viver. Consigo aceitar uma separação. Sei lá, ela
merece mais do que eu tive.

Apesar da preocupação com Betinha, o carinho parece não ser sempre correspondido.
A menina dá mais atenção ao pai e a câmera de Ana Carolina ajuda a explicitar os
posicionamentos naquela relação familiar, sendo que, diversas vezes, somente Betinha e Sérgio
dividem o mesmo enquadramento. Sozinha em quadro, Felicidade continua:

Felicidade (00:05:49)
Olha, eu queria que você me ajudasse, a encontrar um jeito de continuar o
nosso casamento. A porcaria do nosso casamento. Olha, eu queria encontrar
em você um meio de continuar a minha vida.

Com apenas cinco minutos de filme, Ana Carolina traz à tona uma temática que, apesar
de constante em brigas de muitas famílias na época, dificilmente era tratada publicamente. O
casamento era tido como a principal meta das mulheres, sendo que, nos longas brasileiros de
ficção produzidos até então, o sucesso das mulheres era medido com base no sucesso de seus
casamentos. As personagens femininas frequentemente orbitavam ao redor de algum
personagem masculino, este provedor da ação e responsável pelo caminhar da narrativa. Até
meados dos anos de 1990, poucas foram as personagens femininas retratadas com empregos ou
inseridas em alguma esfera que não envolvesse o matrimônio ou a maternidade, sendo que,
quando eram retratadas fora dessa realidade, eram representadas normalmente como prostitutas.
As pesquisadoras Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira (1982) chegaram à seguinte
conclusão através da análise das personagens femininas em 16 longas-metragens de ficção
brasileiros até 1980:
39

Dedicam-se a maior parte do tempo a urdir e manter seus laços afetivos,


satélites que são dos principais astros da galáxia amorosa em que gravitam: os
homens. Não surpreende que deixem de trabalhar quando se casam e só
voltem a procurar alguma atividade quando se separam ou perdem o marido.
Conclusão: o trabalho pode dignificar o homem, mas não produz maiores
gratificações para as mulheres. (MUNERATO; OLIVEIRA, 1982, p. 89).

Felicidade não tem um emprego e o que mais deseja é salvar o seu casamento, no
entanto, ela diz concordar com uma separação caso necessário. Essa condição é que dá à
personagem um caráter inaugural na representação do feminino no cinema brasileiro de ficção,
visto que o tema era tabu e discutido somente entre marido e mulher. Conforme mencionamos
no item 2.1, a lei que dava o direito ao divórcio foi somente aprovada no ano de 1977,
justamente no ano em que o filme foi lançado. Ao trazer de forma tão explícita nos diálogos e
na própria mise-en-scène a insatisfação com o casamento, Ana Carolina contribuiu com a luta
feminista mostrando para uma geração de mulheres que a infelicidade matrimonial é um tema
que pode ser debatido em público e que há soluções efetivas para um casamento infeliz.

Após Felicidade fugir do hotel com Betinha, a menina pede para voltar para ver se o pai
estava bem. O pedido é negado, o que faz com que Betinha passe a realizar uma série de
investidas contra a mãe. Em um primeiro momento, ela a fere no pescoço do banco traseiro do
carro com um alfinete. Em seguida, ao pararem no posto para abastecer, Betinha joga gasolina
no chão, ascende um fósforo e deixa o fogo atingir sua mãe, enquanto do rádio do carro
escutamos a música Isn’t She Lovely, de Stevie Wonder. Mais adiante na narrativa Betinha
ainda tranca sua mãe em um quarto e, quase literalmente, enterra-a viva ao pedir para que um
caminhoneiro despejasse a areia de seu caminhão no quarto em que sua mãe estava (figuras 2,
3 e 4).

2-3-4

Betinha é a primeira pessoa que aparece em cena, agachada na grama urinando, de forma
a poderem seguir viagem. Ela está sempre com os cabelos desarrumados e senta-se como se
40

não estivesse usando vestido (figura 5). Além disto, ela masca constantemente chiclete com a
boca aberta e, como mencionamos anteriormente, dá uma “banana” para a câmera no final do
filme, após empurrar Orlando e Felicidade para fora do trem (figura 6).

5-6

Betinha representa uma nova geração de mulheres, a geração da segunda onda feminista,
que cresceu com outra consciência a respeito das obrigações inerentes às mulheres. As
investidas contra a mãe, na realidade, são investidas contra o autoritarismo. Ela não quer seguir
ordens e não quer fazer parte do cotidiano apático e conservador no qual as outras personagens
estão inseridas. Betinha rompe com estereótipos quanto ao comportamento feminino e não se
envergonha de sua sexualidade, temática muito em pauta na época. Inclusive, em uma
determinada sequência ela completa uma frase de Orlando utilizando a palavra “clitóris”,
palavra, que, para os padrões da sociedade dos anos de 1970, ainda não era bem aceita ser dita
por mulheres ou meninas:

Orlando (00:24:50)
Cliséti, é de família nordestina (referindo-se à sua mulher)

Felicidade (00:24:55)
Ah, de família nordestina?

Orlando (00:24:57)
Pois é, Dona Felicidade, um paulista e uma nordestina. É a integração. A
minha família é pequena, somos só eu e uma irmã. Agora, a família dela não,
é bastante grande, são sete irmãos: Cleonice, Cleantro, Clidenor, Cleonilde,
Cliséti, que é a quinta, Clidemar ...

Betinha (00:25:20)
Clitóris, clicoisa ...
41

Foi, a partir da década de 1970 que, com o advento e a divulgação de métodos


anticoncepcionais, a mulher pôde ter mais conhecimento de seu corpo e controle da reprodução.
O sexo, mais do que nunca, já não se restringia apenas à finalidade reprodutiva e várias
mulheres passaram a conhecer o prazer do ato sexual. Além disto, o medo de ter um filho sem
estar casada era muito grande, o que fazia com que as mulheres não praticassem sexo e nem
tivessem muito conhecimento de seus corpos. Aos homens, porém, era permitido fazer sexo
fora do casamento e geralmente sem a devida proteção, colocando em risco a saúde de suas
esposas que desconheciam os perigos que corriam, como contrair alguma doença sexualmente
transmissível. Tornou-se frequente, especialmente a partir de 1972, com a proliferação dos
grupos de discussão, falar sobre sexo e saúde da mulher nas reuniões feministas.

Tanto Felicidade quanto Betinha não são personagens femininas passivas. Elas se
diferenciam das personagens destacadas por Laura Mulvey (1983), pois são possuidoras da ação
e não congelam a narrativa. A câmera não percorre seus corpos dando ênfase nos contornos
femininos e os primeiríssimos planos não são feitos com o intuito de valorizar a beleza. O uso
do primeiríssimo plano, aliás, ganhou popularidade durante o auge do Star System11 americano,
tendo como principal finalidade congelar a narrativa de forma a valorizar a beleza das estrelas
de cinema e com isso alimentar todo o sistema de publicidade envolvido, além de satisfazer por
meio do voyeurismo12.

Através do primeiríssimo plano, detalhes como a maquiagem, o penteado, as joias e as


expressões faciais, ganhavam destaque. As “musas” do Star System apareciam, muitas vezes,
sem desempenhar função significativa na narrativa, senão para serem olhadas. Era como se
fossem espécies de manequins, com todos os acessórios a serem consumidos pelas mulheres
que desejassem ser iguais a elas. Pode-se dizer que o Star System era um sistema de publicidade,
pois, além da função voyeurística, dava destaque a determinadas atrizes e a determinadas
formas de se constituir como mulher. Muitas mulheres passavam a desejar o mesmo corte de
cabelo, as mesmas joias, as mesmas roupas e os mesmos produtos vistos na tela, o que
alimentava toda indústria de bens duráveis e não duráveis, assim como cultural da época.

No cinema brasileiro de ficção este uso do primeiríssimo plano foi também bastante
recorrente, contudo, em Mar de rosas, Felicidade e Betinha são sujeitos possuidores de ação e,
quando em primeiríssimo plano, elas estão exercendo algum tipo de ação, nem que seja

11
O Star System americano foi uma espécie de fabricação de estrelas de cinema que abrangeu diversas vertentes
da mídia dos anos de 1920 de forma a encantar as plateias. Pode-se dizer que ele existe até os dias de hoje.
12
Voyeurismo é um termo utilizado no cinema referente à prática – e ao prazer – de olhar sem ser visto.
42

subjetiva. No filme em questão, os closes e os primeiríssimos planos valorizam o intelecto


destas mulheres em detrimento da valorização de seus corpos. Por exemplo, quando em
primeiríssimo plano, Felicidade nunca aparece com joias, acessórios, penteada ou maquiada. O
que há ali para ser olhado é, não a figura feminina, mas um ser pensante que está tomando ou
cogitando determinada atitude para dar continuidade à narrativa. Não queremos dizer aqui que
mulheres bem vestidas, penteadas e maquiadas não sejam seres pensantes. Estamos afirmando
apenas que Ana Carolina se utilizou desse artificio.

Durante o período entre as duas grandes guerras mundiais alguns modelos femininos,
como o da dona de casa e o da mulher independente, ganharam força. Esses modelos passaram
a ser considerados potenciais consumidores de massa e o cinema e a televisão tiveram
importante papel na construção dessas identidades, especialmente após a Segunda Guerra
Mundial com a difusão do American Way of Life. Segundo Paiva (2014):

O caráter sexista vai impondo um novo discurso político, psicológico e


estético que caracterizava como próprio do universo feminino os produtos da
cultura de massa e institui novos deveres para as mulheres, como o cuidado
com a pele e com o corpo, o penteado, a maquiagem e o vestuário. (PAIVA,
2014, p. 134).

Durante os anos de 1950 e 1960, filmes e revistas passaram a ensinar as mulheres,


notadamente fãs dessas mídias, a cuidar do lar e da família, enquanto que a publicidade
instigava o consumo dos novos eletrodomésticos e eletrônicos capazes de auxiliar a mulher
moderna nessas tarefas. Lindas, bem vestidas, magras e nunca cansadas, este era o estereótipo
feminino vigente também na época do lançamento de Mar de rosas, ainda que estivesse cada
vez mais ameaçado devido à segunda onda feminista das décadas de 1960 e 1970.

Convencionalmente cabe à mulher assegurar o bom funcionamento da


engrenagem doméstica (afinal, são funções ditas femininas, por tradição) e
concretizar a sua ‘vocação suprema’, que é ter filhos. Com a prole que lhe foi
imposta como o momento mais sublime de suas vidas, seu trabalho se
multiplica. Mas cozinhar, zelar pelos filhos e sua educação, cuidar enfim da
casa e seus habitantes, nenhuma dessas tarefas é considerada um trabalho
produtivo; são tidas, como atividades ‘naturais’, cujas recompensas
praticamente se esgotam na sensação de segurança que o lar provê e na
pretensa satisfação pessoal que o status de mãe e esposa costuma dar.
(MUNERATO; OLIVEIRA, 1982, p. 88).
43

Felicidade não parece nem um pouco adequada a este estereotipo feminino. Esgotada,
infeliz, nervosa e nada vaidosa (figuras 7 e 8), ela não aparece exercendo suas “tarefas” em
momento algum do filme, tampouco é bem-sucedida em seu casamento.

7-8

De acordo com Paiva (2014), as mulheres que viveram a segunda onda do feminismo,
representadas nas telas primeiramente nos anos de 1970 e expandindo-se durante a década de
1980, são mulheres que “exibem um corpo inquieto, questionador, ansioso, confrontando-se
com o sofrimento e a superação dos velhos modos de ser, em filmes que pautam as lutas pelos
direitos à profissão, ao corpo, à vida intelectual, à política etc.” (PAIVA, 2014, p. 142). O anseio
pela mudança, a inquietação, a insatisfação e a superação dos velhos modos de ser podem ser
identificados tanto no agir, no vestir como no falar de Felicidade:

Felicidade (01:04:41)
Eu não aguento mais viver assim. Eu quero viver de algum outro jeito. Ora,
até morrer vale, só que sem hora marcada. Vou me amar sempre, procurando
uma forma de me sentir livre. De amar sem ser sufocada, sem sufocar, sem
precisar ficar envelhecendo por horror de viver uma coisa que não tem nada a
ver comigo. Viver pelo simples prazer de viver. Sem remorso, sem culpa, sem
tempo. Sobretudo, sem tempo. Eu queria sofrer menos. Eu queria sofrer por
menos amor. Ai meu Deus, quanta servidão, quanto constrangimento.

Orlando trabalha para o pai de Betinha e durante a narrativa não dá sinais de qualquer
tipo de afeto em relação a ambas. O que fica subentendido é que ele foi chamado para levá-las
de volta a Sérgio. Apesar de nenhum tipo de afeto ser demonstrado, em determinado momento
do filme Felicidade o chama, pois gostaria de conversar em particular com ele no banheiro. Lá,
após levantar o vestido, Felicidade começa a falar como se fosse com Sérgio, ainda que
estivesse diante de Orlando.
44

Felicidade (01:10:10)
Eu tenho uma vida arrasada, estragada. Porque você quis assim. Chore se for
possível, lave a tua alma, que isto te fará bem. Você diz que sou impulsiva,
quer dizer que você se lembrou de mim. Com tédio, mas lembrou. Quanta
mágoa. Passei a vida tentando falar com você. Isso foi a minha vida. Já me
separei de tanta coisa na minha vida... Continuarei a te escrever cartas e não
mandar. Você não é obrigado a me amar. Eu estou cansada de te pedir carinho
e de você me negar. Eu sou sua mulher e tenho 40 anos ...

Ao se entregar a outro homem pensando em Sérgio, Felicidade parece querer fazer as


pazes consigo, fazer algo que já deveria ter feito e que pudesse lhe trazer algum tipo de sensação
na vida, ainda que fosse o sabor da vingança. No entanto, ela percebe que fazia isso por Sérgio
e não por ela, pois é possível notar em seu olhar distante uma certa tristeza durante o ato sexual.
À procura do carinho e do amor que há tempos lhe eram negados no casamento, Felicidade
busca se ver completa nos braços de outro homem. Orlando, no entanto, lhe manda “calar a
boca” durante o sexo e da tentativa frustrada ela nota que talvez só consigo mesma seria
plenamente feliz e de que nada adiantaria buscar a felicidade em outro homem ou pessoa. O
zoom out da câmera, terminado o sexo, enquadra Felicidade no chão e Orlando se arrumando e
dizendo (figura 9):

Orlando (01:12:40)
Vê se se arruma aí. Veste essa roupa vai. E bota uma pasta de dente nessa boca
que você tá com um hálito horrível.

Sozinha, Felicidade entra em uma banheira e, em uma cena forte para a época e que
ainda hoje causaria polêmica, começa a se masturbar (figura 10).

9 -10

Ao escutar tudo o que acontecera através da porta do banheiro, Betinha caminha em


direção a outro banheiro, pega o sabonete que estava na pia e coloca uma lâmina de barbear
repartida ao meio em ambos lados, deixando-a lá para o Dr. Dirceu usar. Este, ao lavar as mãos,
45

tem os pulsos cortados e morre. Notando que o Dr. Dirceu estava no banheiro e que Orlando e
Dona Niobi conversavam na sala, Felicidade pega Betinha e foge da casa. A fuga termina em
um trem, no qual, algemada à Orlando, Felicidade implora para ir embora. Orlando responde:

Orlando (01:27:50)
Olha, eu tô aqui cumprindo ordens. Eu sempre cumpri as ordens que me
deram. As minhas ordens são para levar a senhora de volta de qualquer
maneira e essas ordens vão ser cumpridas.

Olhando para a câmera, Betinha indaga:

Betinha (01:28:00)
É, e ninguém pode desobedecer às ordens. Ou pode?

Em seguida, a menina empurra a mãe e Orlando para fora do trem e, enquanto este se
afasta, Betinha dá uma “banana” para a câmera e, consequentemente, para quem assiste ao
filme, a sociedade conservadora e, em boa parte, alienada da época. Betinha desobedece às
regras o filme inteiro, deixando claro para a nova geração de mulheres que as regras foram
feitas para serem quebradas e que é o dever de todos questioná-las. Além disso, ao empurrar a
mãe e Orlando do trem, Betinha se livra do conservadorismo e do autoritarismo representados
por estas personagens que durante todo o filme tentam controlar os seus atos.

Ana Carolina afirmou na entrevista concedida à Evaldo Mocarzel: “tudo nasceu da


Betinha, e não sei se ela é uma espécie de alter ego para mim”. Apesar do protagonismo de
Felicidade, é com Betinha que Ana Carolina se identifica. Segundo a diretora, Betinha
representa o caótico; o fora do senso comum. Personagem de destaque na trama, Betinha é um
bom exemplar da geração da segunda onda feminista.

Além de Betinha e de Felicidade, temos Dona Niobi, casada com Dr. Dirceu. As
personagens representam três gerações distintas, sendo Dona Niobi a mulher mais velha. Esta,
consonante com a sua geração, é casada e não pensa em separação, até porque é algo totalmente
incabível para essa geração de mulheres a renúncia voluntária à maior de suas conquistas, o
casamento. Para os vizinhos e familiares tudo parece bem, no entanto, o que não faltam são
brigas e discussões. Em determinado momento, Dr. Dirceu joga um copo no chão, Felicidade
se assusta e Dona Niobi começa a falar:

Dona Niobi (00:47:36)


Uai gente, muito me admira Dona Felicidade se assustar com um barulhinho
desses. Eu e o Dirceu, no fundo, mas bem lá no fundo, até que somos felizes.
46

Então é isto que tem dado sabor, prazer ao nosso casamento. Concorda,
Dirceu?

Dr. Dirceu (00:47:55)


Sem corda

Dona Niobi (00:48:03)


Sim, é claro. Porque se aqui tivesse uma corda, era pra eu me enforcar
imediatamente. Não é, Dirceu? A gente não pode negar, nós, os casados, que
na calada da noite tem sempre um botando a corda no pescoço do outro para
puxar. Graças a Deus, eu sou feliz. Isso eu sou. Mas conselho também dou.
Sabe, o que eu acho do casamento é o seguinte: quem está dentro, não deve e
não pode sair; quem está fora, não deve entrar.

O universo de Dona Niobi é o lar e o casamento. Quando, da cozinha de casa, escuta


um barulho horrível e percebe que uma mulher (Felicidade) quase fora atropelada, Dona Niobi
larga tudo e corre para socorrê-la. O seu universo é tão restrito que qualquer episódio fora de
sua rotina limitada torna-se um evento digno de nota. Ao contar para o Dr. Dirceu como foi o
quase atropelamento de Felicidade, Dona Niobi exagera os fatos tornando-os grandiosos.

Dona Niobi (00:39:12)


Dirceu, eu estava na cozinha, fazendo aquelas batatinhas, aquelas
pequenininhas com casca que você adora. Lembra? Aquelas que você adora?
Que eu ponho numa assadeira com sal, alho e ponho no forno? A senhora tem
esta receita, Dona Felicidade? Uma delícia... Dirceu, eu estava na cozinha e
ouvi um barulho horrível na rua. Fui correndo abrir a porta e, imagine o que
eu vi. Eu não sabia se era um corpo sem cabeça, uma cabeça sem corpo... Meu
Deus do céu! E fiquei pensando assim: vou ou não vou? Ajudo ou não ajudo?
Que faço? Olha que egoísmo, Dirceu! Como é egoísta o ser humano, Dirceu!
Então, Dirceu, eu vi. O ônibus estava cheio e as rodas eram imensas; enormes!
E esta pobre criatura estava enfiada debaixo do ônibus.

Enquanto Dona Niobi narra o ocorrido, Felicidade boceja e Betinha brinca com o
chiclete nas mãos, sentada de pernas abertas. Toda a falação e a fofoca parecem entediar tanto
Felicidade e Betinha, quanto Dr. Dirceu e Orlando. Dona Niobi insiste em dar dicas de cozinha
para Felicidade, assim como de relacionamento. Todavia, Felicidade não dá ouvidos.
Representante de uma geração seguinte à de Dona Niobi, Felicidade não parece se identificar
com tarefas do lar e não pretende levar adiante um casamento que a deixa infeliz somente por
convenção. A Lei do Divórcio é do mesmo ano do filme, 1977, sendo que para Felicidade a
anulação de um casamento é muito mais cabível do que para Dona Niobi, que ainda persiste na
carreira de esposa e de rainha do lar. Betinha, por sua vez, é a representante da mais nova
geração de mulheres da década de 1970. Além de não se importar com tarefa domésticas, com
o vestuário, penteados e bons modos, Betinha age como lhe convém e interfere na narrativa.
47

Fora de sintonia com a passividade e a apatia que parecem entorpecer os outros personagens do
filme, Betinha muda o seu entorno. Ela é o caótico; ela interfere, fere, corta, xinga e mata.

Apesar de cada personagem feminina representar uma geração de mulher, as três


manifestam insatisfação, cada uma à sua maneira e com que o que está ao seu alcance. Dona
Niobi não pretende renunciar ao casamento, no entanto, como vimos, aconselha: “quem está
dentro, não deve e não pode sair; quem está fora, não deve entrar”. Felicidade, apesar de estar
“dentro”, ou seja, casada, pretende “sair”. Já Betinha não responde muito bem a ordens e
normas de uma forma geral, portanto, caso se case algum dia, certamente sabe dos seus direitos
de “entrar” e de “sair”.

A relação de Felicidade com Betinha também não é nenhum mar de rosas. Felicidade
representa uma geração de mulheres que fala e expõe os seus problemas. Certamente, muitas
espectadoras que assistiram ao filme identificaram-se com a personagem por perceber que não
há como ser totalmente bem-sucedida na maternidade e no casamento. Sempre foi algo comum
relacionar a mulher ao lado sensível e o homem ao racional. Com isso, durante muito tempo
coube à mulher o papel de tentar “salvar” o casamento e de tentar manter a paz no lar,
independentemente do que o marido ou os filhos fizessem. A mulher deveria colocar o amor
acima de tudo e entender carinhosamente os delitos e seus motivos. É certo que muitas mulheres
viveram infelizes em suas relações com os filhos e o marido achando que a culpa era somente
delas, afinal, o sucesso desse microcosmo social dependia delas. Discutir sem idealizar as
relações é fundamental e Felicidade não parece envergonhada do rumo que sua vida tomou,
pelo contrário, parece envergonhada por ter se submetido a tanta servidão e constrangimento.
Quando Dona Niobi lhe pergunta, dirigindo-se à Betinha “é sua filha?”, Felicidade responde:
“Não sei”. Da mesma forma, quando é indagada por Dona Niobi se Betinha era filha única,
Felicidade responde: “Não sei”.

Uma certa crise da masculinidade pode ser notada neste filme, a qual intensifica-se ainda
mais nos dois outros longas que analisaremos adiante. Durante a fase da segunda onda
feminista, o homem, de um modo geral, é tido como um inimigo a ser combatido. Natural, até
porque, devido ao patriarcado, as mulheres foram submetidas a certas obrigações e uma série
de esferas lhes foi negada. Com o desenvolvimento do movimento feminista, com a sua
institucionalização durante os anos de 1980 e 1990 e, especialmente, após a virada do milênio,
entendeu-se cada vez mais que o arquétipo masculino também foi e ainda é construído e
percebeu-se a pluralidade do “ser homem”. Com isso, instalou-se uma crise da masculinidade,
haja vista os diferentes caminhos e modos de ser que também os homens passaram a reivindicar
48

em razão das transformações ocorridas na sociedade como consequência das conquistas


feministas, que movimentaram o estabelecido e rearranjaram as peças do jogo.

Segundo Ann Kaplan (1995), as narrativas audiovisuais que se organizam de acordo


com a Lei Paterna, ou patriarcado, valorizam mulheres que se subordinam e obedecem às
normas. O custo da independência feminina é quase sempre a degradação moral ou algum outro
castigo, como a morte ou a solidão, “já que, devido ao sistema machista em que está encerrada,
ela tem que ser punida por sua resistência aos códigos estabelecidos para as mulheres”
(KAPLAN, 1995, p. 104). As primeiras abordagens feministas do cinema já indicavam que as
personagens femininas eram inferiorizadas intelectual e psicologicamente, especialmente nos
filmes de drama ou de comédia nos quais desempenhavam papéis de virgens inocentes ou de
bobas apaixonadas, enquanto que os homens detinham o controle da narrativa interpretando
papéis de viris heróis e de galãs sedutores, ou tinham suas características hiperbolizadas, como
no caso das fêmeas fatais, terrivelmente poderosas e misteriosas, atributos que frequentemente
lhes rendiam a morte no final do filme. Também nos filmes de suspense e de horror, até hoje
em dia, as personagens femininas representam o lado mais sensível e intuitivo, enquanto que o
personagem masculino geralmente é aquele que toma as decisões corretas e age com cautela e
precisão.

No caso de Mar de Rosas, no entanto, o feminino sai vitorioso quando Betinha empurra
sua mãe e Orlando para fora do trem, colocando um fim àquilo que para ela representava o que
poderia se tornar, sua mãe, uma mulher sofrida e cheia de mágoas, e um fim ao controle e ao
autoritarismo de Orlando e dos homens de uma forma geral. Felicidade e Betinha são donas da
narrativa e a história gira em torno delas. O filme não fala somente sobre a falência de valores
como o casamento e a família, mas também sobre “ser mulher” em uma sociedade patriarcal na
medida em que procura romper com os estereótipos femininos.
49

CAP. 3 A MULHER E O CINEMA NA REDEMOCRATIZAÇÃO

3.1 Lutas sociais e cinema na década de 1990

Uma nova onda feminista surgiu na época da ditadura militar. Apesar de estarmos sob
uma terrível repressão, EUA e Europa, no entanto, viviam uma fase de euforia e de mudanças
sociais, especialmente após maio de 1968. Essa nova onda feminista foi diferente da primeira
por introduzir a noção: “o pessoal é político”.

Novo, porque se propõe a ir além da luta por igualdade jurídica de direitos, o


que o distingue, também, do movimento feminista anterior. Trata-se, hoje, de
um movimento que questiona o papel da mulher na família, no trabalho e na
sociedade, luta por uma transformação nas relações humanas e pela extinção
das relações sociais baseadas na discriminação social. (COSTA;
SARDENBERG, 2008, p.29).

Foi somente em 1972, entretanto, que o movimento feminista no Brasil começou


realmente a se mostrar. Neste ano tivemos um congresso promovido pelo Conselho Nacional
da Mulher e as primeiras reuniões de grupos de mulheres em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Obviamente, era bastante complicado manter uma organização desse tipo durante a ditadura
devido ao controle exercido pelo sistema e à repressão que ele gerava. Além disso, a direita não
via com bons olhos qualquer tipo de reunião ou ação contrária ao governo, sendo que as
feministas sempre se posicionaram contra ele. No entanto, a esquerda política também não
costumava gostar dessas reuniões, pois a luta feminista era tida como individualista e como
algo que desviava a atenção de uma preocupação maior, o fim do regime militar.

Conforme mencionamos anteriormente, a Organização das Nações Unidas (ONU)


declarou em 1975 que este seria o Ano Internacional da Mulher. Foi então realizado no Brasil
um evento em comemoração, um grande seminário no qual diversos temas acerca da condição
feminina foram debatidos. A partir daí o feminismo ganhou um novo status e deu-se início a
inúmeras transformações. Se em um primeiro momento lutou-se pelo direito ao voto, em um
segundo declarou-se que “o pessoal é político”, era chegada a hora de olhar para as diferentes
formas de ser mulher.

A partir dos anos de 1980 começamos a ver um feminismo mais organizado e declarado.
Entendeu-se também que ser mulher envolvia outras questões como aquelas de classe social e
50

etnia. O fim do bipartidarismo e a posterior redemocratização do país acabaram


institucionalizando o feminismo brasileiro. Duas temáticas tiveram destaque no final dos anos
de 1980 e começo dos anos de 1990: a saúde da mulher e a violência contra a mulher. Em 1983
foi implantado pelo Ministério da Saúde o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher
(PAISM), sendo que em 1985 surgiu a primeira delegacia especializada em violência contra a
mulher. Antes dessas delegacias especializadas, muitas mulheres tinham medo de fazer
denúncias dos abusos e da violência a que eram submetidas. As delegacias comuns são
constituídas em sua grande maioria por homens e, frequentemente, mulheres eram
desencorajadas à denúncia e, quando quebravam essa barreira e a elas se dirigiam, eram
humilhadas. A proliferação das delegacias especializadas em violência contra a mulher foi,
portanto, um grande avanço para o movimento feminista.

A Constituição de 1988 trouxe uma série de conquistas para a luta feminista,


principalmente, devido à ação do Conselho Nacional da Condição da Mulher, criado em 1985.
Dentre os artigos e parágrafos podemos citar, por exemplo: “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (Art.5°, I apud PINTO, 2003, p. 78);
“licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário com duração prevista de cento e vinte
dias” (Art.7°, XVIII apud PINTO, 2003, p. 78); “proibição de diferenças de salários, de
exercício de funções e de critério de admissão por motivos de sexo, idade, cor ou estado civil”
(Art.7°, XXX apud PINTO, 2003, p. 78); “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal
são exercidos pelo homem e pela mulher” (Art. 226, apud PINTO, 2003, p. 78).

Até a Constituição de 1988, o homem podia matar a mulher em legítima defesa de sua
honra. Ou seja, bastava que uma traição fosse provada e o crime contra a mulher deixaria de
ser tratado como tal. A eliminação da mulher podia ser enquadrada como um direito legítimo,
em razão do amplo leque de interpretações que o instituto da legítima defesa do Código Penal
brasileiro de 1940 garantia, o que estimulava ainda mais a violência doméstica. A constituição
de 1988 previu pela primeira vez na história do Brasil a igualdade entre homens e mulheres. A
partir do princípio da isonomia, a alegação de legítima defesa de honra entrou em desuso, pois
teria como fundamento o privilégio a um determinado gênero e se caracterizaria, portanto, como
inconstitucional. Apesar dos avanços, a ONU estima que, ainda hoje, cerca de cinco mil
mulheres por ano morrem no mundo devido a crimes de honra. Se, como vimos, em 1985 surgia
a primeira delegacia especializada em violência contra a mulher, em 1992 já havia mais de 141
órgãos similares. Nos anos de 1990, portanto, a temática da violência contra a mulher se
manteve em pauta trazendo resultados positivos para o movimento feminista.
51

Planejamento familiar, sexualidade e aborto são outros temas muito em voga neste
período, assim como o da entrada cada vez maior da mulher no mercado de trabalho. São vários
os fatores que explicam este crescimento como o aumento do nível de escolaridade, controle da
natalidade e queda da fecundidade, por exemplo. A crise econômica que o Brasil atravessava
nesse período, contudo, talvez venha a ser um dos principais fatores que influenciaram essa
tendência. A mulher, desde sempre uma mão de obra mais barata e mais suscetível à exploração,
passou a ser convidada a desempenhar certos papéis em empresas diversas. Somado a isso, a
crise econômica levou muitas delas a procurar por um emprego, de forma a contribuir com a
renda familiar.

A crise econômica afetou o Brasil como um todo, e com o cinema não foi diferente. Em
março de 1990 vemos o fim da Embrafilme e do Concine13, assim como o início de um novo
período para o cinema nacional, já que ele perdeu de uma só vez seu principal financiador e
distribuidor, ficando totalmente desprotegido frente ao cinema estrangeiro. De acordo com
Marson (2012) e segundo dados da Secretaria do Audiovisual,

enquanto a média de produção cinematográfica brasileira na década de 1980


era de oitenta filmes por ano, em 1990 foram lançados apenas sete filmes, em
1991 dez filmes e em 1992 apenas três longas-metragens nacionais chegaram
às salas de exibição (MARSON, 2012, p. 44).

No final de 1990, Collor, preocupado com a alta rejeição de seu governo, realiza
algumas mudanças na Secretaria da Cultura, através, por exemplo, da nomeação de Sérgio
Paulo Rouanet para secretário. Com isto, em agosto de 1991, foi divulgado o Programa
Nacional de Apoio à Cultura – Pronac, mais conhecido como Lei Rouanet, aprovado em
dezembro do mesmo ano.

A Lei Rouanet engloba toda a cultura, isto é, destina-se a estimular


investimentos e doações à produção de tipo de bem cultural. No caso do
cinema, pelos parâmetros da Lei Rouanet, essa atividade pode ser financiada
através do Incentivo a Projetos Culturais, isto é, pelo investimento do
contribuinte dedutível do imposto de renda. (MARSON, 2012, p. 44).

13
Criado em 1975, o Concine, ou Conselho Nacional de Cinema, tinha como finalidade assumir um papel
normativo, protecionista e regulador do cinema brasileiro.
52

Dentre os primeiros longas-metragens autorizados a utilizar a Lei Rouanet está o filme


Amélia (2000), de Ana Carolina, uma das três cineastas contempladas no escopo desta pesquisa,
com o filme Mar de rosas (1977). Ainda assim, o cinema nacional precisava de mais apoio
além dessa lei, visto os tristes números da produção mencionados parágrafos acima. Surgem
projetos regionais de apoio ao cinema, como o Projeto SOS Cultura, da prefeitura da cidade de
São Paulo, que liberava recursos para coproduções e finalizações, e projetos que atuavam mais
na distribuição, como a criação da Riofilme, em 1992, pelo município do Rio de Janeiro,
distribuidora de filmes nacionais.

A multiplicação dessas leis, os projetos de incentivo e o caráter regional que muitas


tiveram daí em diante contribuíram para um deslocamento da produção cinematográfica
nacional que antes era basicamente localizada no eixo Rio-São Paulo. Assim, vemos surgir no
circuito uma série de filmes muito interessantes provenientes de locais como o Espírito Santo,
Rio Grande do Sul e Pernambuco, por exemplo. Através desses mecanismos o cinema foi se
protegendo, e após o impeachment de Collor seu sucessor, Itamar Franco, tomou posse e criou,
dentro do Ministério da Cultura, a Secretaria para Desenvolvimento do Audiovisual, que seria
responsável pela política cinematográfica e pela legislação do audiovisual de uma forma geral.
Além disso, em 20 de julho de 1993 foi promulgada a Lei do Audiovisual, baseada em
incentivos fiscais específicos para a produção audiovisual, e foi lançado o Prêmio Resgate do
Cinema Brasileiro, que faria uso de uma verba remanescente da extinta Embrafilme. Com a Lei
Rouanet e o Prêmio Resgate, um grande número de filmes estava em fase de produção nos anos
1993 e 1994. Entretanto, é interessante notar que o dinheiro utilizado para essa retomada do
cinema nacional continuava a vir do Estado devido ao sistema de dedução de impostos adotado.
Ou seja, o dinheiro público continuava a ser investido, mas quem decidia agora quais projetos
seriam selecionados era o mercado, a iniciativa privada.

No ano de 1995, um filme consegue enorme sucesso e desperta o interesse da crítica.


Carlota Joaquina, princesa do Brazil, de Carla Camurati, atrai mais de um milhão de
espectadores para o cinema, sendo que, segundo a Secretaria do Audiovisual, em 1994 o público
total dos sete filmes nacionais lançados havia sido de apenas 271.454 espectadores. Teve assim
início o Cinema da Retomada. Vale destacar que o ano de 1995 foi também o do centenário do
cinema, além disso, foi o primeiro ano de mandato de Fernando Henrique Cardoso, que trouxe
o plano Real para controlar a inflação. “O sucesso de Carlota Joaquina, a euforia do Real e o
centenário do cinema ajudaram a entender porque o ano de 1995 é considerado o ano da
retomada do cinema brasileiro” (MARSON, 2012, p.68).
53

Outros filmes de destaque vêm deste período, como O Quatrilho (1996), de Fábio
Barreto, que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, causando grande euforia no
meio cinematográfico brasileiro. Aos poucos o cinema nacional vai ganhando respeito, dentro
e fora do Brasil, e a imprensa passa a valorizar esse momento através de matérias especiais,
como na Revista Veja, diante da indicação do filme de Fábio Barreto ao Oscar. Outros
destaques são Tieta do agreste (1996), de Cacá Diegues, Terra estrangeira (1996), de Walter
Salles e Daniela Thomas, Guerra de Canudos (1997), de Sergio Rezende e Central do Brasil
(1998), também de Walter Salles, por exemplo. O apoio do Estado ao cinema, o reconhecimento
da mídia e a conquista do público são para muitos pesquisadores o tripé que viria a sustentar o
Cinema da Retomada. Este encontraria seu fim com o final do primeiro mandato de Fernando
Henrique Cardoso, quando sofreu uma série de reformulações e de reestruturações que iriam
resultar nos Congressos de Cinema em 2000 e 2001 e na criação da Ancine, em 2001.

Durante todo esse percurso o cinema brasileiro viu, assim como outros cinemas
nacionais no mundo, o crescimento inevitável do vídeo. Mais barato e tecnicamente viável para
várias pessoas, o vídeo cresceu muito durante os anos de 1980 e 1990. Esse novo suporte abriu
espaço para realizadores e, principalmente, para realizadoras que nele encontraram um caminho
ainda não tão dominado pelo sexo masculino. Somado a isso, durante a crise econômica dos
anos de 1990, ocorreu um verdadeiro boom de curtas-metragens no Brasil, muitos dirigidos por
mulheres. Isto fez com que uma geração de cineastas mulheres estivesse preparada para o
momento da retomada do cinema brasileiro quando então puderam realizar os seus primeiros
longas. O filme de Carla Camuratti, Carlota Joaquina, princesa do Brazil, é o marco inicial do
Cinema da Retomada, conforme já mencionamos. A partir dos anos de 1990 muitas outras
mulheres que começaram na direção de curtas passaram a fazer os seus primeiros longas.

Entre 1990 e 2002, cerca de 40 mulheres debutaram na direção de longas-


metragens, juntando-se aos nomes já conhecidos de outras diretoras que
voltaram a fazer cinema após a crise, e realizando filmes marcados por fortes
identidades femininas. (OTTONE apud ALVES, 2005)

Lucia Murat dirigiu no ano de 1996 Doces poderes, depois do sucesso com o semi-
documentário Que bom te ver viva, de 1989. Já Sandra Werneck está entre as diretoras que mais
dirigiram longas no país, tendo estreado na ficção em 1997 com Pequeno dicionário amoroso.
Outros sucessos de Sandra Werneck são Amores possíveis (2001) e Cazuza – o tempo não para
(2004). Tata Amaral é também uma diretora que estreou em longas de ficção no período, e
sobre o seu filme Um céu de estrelas falaremos a seguir.
54

3.2 Independência financeira e violência contra a mulher em Um céu de estrelas (1996),


de Tata Amaral

Em 1996, Tata Amaral lança seu primeiro longa-metragem, Um céu de estrelas, exibido
em 1997 no Festival Internacional de Filmes de Mulheres de Créteil, na França, e premiado
com o Prêmio Especial do Júri na ocasião. O filme recebeu outros importantes prêmios, tanto
no Festival de Brasília quanto no Festival de Cinema de Havana. No ano de 1997 recebeu o
Prêmio Humberto Mauro de cinema concedido pelo Ministério da Cultura, figurando entre os
maiores sucessos da história do cinema brasileiro.

Dalva (Leona Cavalli) é uma cabeleireira que vive em conflito com seu ex-noivo, Vitor
(Paulo Vespúcio). O longa se passa quase que inteiramente dentro da residência de Dalva que,
após ter ganhado em um concurso de penteados uma viagem para Miami (EUA), arruma suas
malas. Vítor se nega a deixá-la partir, assim como sua mãe. A passagem para Miami serve como
uma possibilidade de libertação da dominação materna, da dominação masculina e da condição
precária de vida e de trabalho em um bairro industrial da cidade de São Paulo.

Quando o filme começa, Dalva está em sua penteadeira passando batom. Em seguida,
ela começa a arrumar as malas e coloca com orgulho o certificado do prêmio do concurso de
penteados dentro de uma delas. A campainha toca e Vitor surge com a desculpa de devolver
uns pertences, quando, na realidade, deseja tirar satisfações sobre a viagem. Dona Lourdes (Néa
Simões), mãe de Dalva, não está em casa e Vitor se sente no direito de ficar um pouco mais. O
clima é de tensão e Dalva o observa com receio enquanto fala. No início ele parece arrependido
da separação e mostra interesse em reatar com ela, no entanto, Dalva está decidida e sabe que,
apesar das promessas, ele não irá mudar. Ao dizer à Dalva que está mudado, ela se olha no
espelho com ar de desdém. Ele quer conversar, mas Dalva não quer saber de assunto. Como
não gosta de ser contrariado, Vitor começa a agir de forma violenta.

O tempo fílmico é basicamente o mesmo do tempo real. Durante a narrativa


acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos dentro da residência de Dalva. Pouco depois
da chegada de Vitor uma vizinha toca a campainha. Dona Iara traz umas coxinhas de presente
e pergunta por Dona Lourdes. Ao puxar assunto com Vitor a conversa se dá da seguinte forma:

Dona Iara (00:16:16)


E você, rapaz. Anda sumido. Trabalhando muito?
55

Vitor (00:16:18)
Não, sai do emprego.

Dona Iara (00:16:20)


Demitiram muita gente na fábrica?

Vitor (00:16:22)
Não, sai mesmo.

Dona Iara (00:16:24)


E o que é que você tá fazendo agora?

Vitor (00:16:27)
Acordo às duas da tarde. Todos os dias às duas da tarde. Vejo TV, ando por
aí. Acabei trocando o dia pela noite. Tô de férias.

Dalva (00:16:44)
Com tanto desemprego por aí ele ainda se dá ao luxo.

Ao ver que não iria conseguir fazer Dalva mudar de ideia com relação a eles, Vitor
começa a falar coisas para irritá-la. Sabendo que a vizinha é fofoqueira, ele conta que pediu
demissão. Depois de Dona Iara sair, Dalva pergunta sobre o apartamento que eles haviam
comprado juntos. Vitor diz não saber o que acontecerá, até porque ela está indo viajar. Dalva
diz que treinou durante um ano para conseguir a oportunidade e que não iria desistir. Ao dizer
que vai junto, Dalva diz a Vitor que ela não o convidou.

Conforme mencionamos no item acima, o Brasil passou por uma séria crise econômica
durante os anos de 1990. Muitas mulheres entraram efetivamente no mercado de trabalho nesse
período de forma a ajudar a incrementar o orçamento mensal da família. Como já vimos, o fato
de a constituição ter promulgado a igualdade entre homens e mulheres, notadamente no que diz
respeito a salários e ao exercício de funções, contribuiu sobremaneira para a efetiva entrada das
mulheres no mercado de trabalho. Apesar de sabermos que, na prática, em muitos locais e
circunstâncias a Constituição até hoje não é seguida à risca, não podemos negar que tal decisão
teve inequívoca influencia para a independência financeira feminina. Importante lembrar
também, que, depois da Lei do Divórcio, instituída em 1977, casos de mulheres divorciadas
passaram a ser muito frequentes. Tendo estas que procurar alguma forma de sobreviver, na
grande maioria das vezes sem a escolaridade necessária para uma efetiva emancipação
financeira, as mulheres passaram a constituir uma grande massa de trabalhadoras informais,
atuando sem direitos trabalhistas como forma de suprir suas necessidades básicas.

Dalva é cabelereira e mora com a sua mãe que, segundo Vitor, “ganha uma pensãozinha
do ex-marido”. Preocupada com o seu futuro, Dalva separou-se de Vitor, já que este não levava
56

a sério o emprego e a relação. Dalva estudou durante um ano para conseguir ganhar o concurso
de penteados e a viagem para Miami, que apesar de não ficar explicito no filme, parece ser uma
ótima oportunidade para crescimento profissional. Como cabeleireira, Dalva não tem
estabilidade financeira, mas com o dinheiro dá para viver relativamente bem e cuidar da casa.

Dalva olha diversas vezes através da janela repleta de grades de proteção (figura 11),
forma de barreira que separa um mundo a ser vivido e apreendido da realidade em que ela está
imersa, sob o comando de sua mãe e de Vitor. Temos a impressão de que a viagem para Miami
é mais do que uma boa oportunidade de aprendizado e de crescimento profissional, sendo, na
realidade, uma possibilidade de fuga do controle materno e masculino.

11

De acordo com Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira, as janelas, assim
como os espelhos, são geralmente associadas ao sexo feminino. Nos filmes pelas pesquisadoras
analisados, o espelho surge como uma espécie de confessionário:

Parece-nos que a função do espelho é não somente testemunhar a mudança


existencial dessas mulheres, sua situação de extrema solidão, assim como só
diante deles elas recuperam a palavra. Tradicionalmente utilizado para
referendar ou desmentir os atributos de beleza física da mulher, o espelho
transforma-se aqui numa espécie de confessionário. (MUNERATO;
OLIVEIRA, 1982, p. 84).

No início de Um céu de estrelas, Dalva aparece se arrumando em frente a um espelho.


Pouco tempo depois, quando Vitor diz que mudou, Dalva olha para outro espelho e recebe com
desdém esta afirmação. Aqui, assim como nos filmes analisados pelas pesquisadoras, o espelho
atua como um amigo das mulheres e como uma espécie de confessionário. É como se o espelho,
por testemunhar a solidão e os monólogos das personagens, atuasse como um companheiro,
dando a força necessária para a superação. Lembramos aqui que, também em Mar de rosas, o
57

espelho desempenha tal papel, inclusive já no início do filme, quando, depois de ferir o marido
com uma gilete, Felicidade diz “matei” olhando para o espelho do banheiro que testemunhara
tudo.

A questão da independência financeira é forte no filme. Dona Lourdes sobrevive com


uma pensão que recebe do ex-marido e com a ajuda de Dalva. Esta não deseja para si o futuro
que sua mãe teve, o que a faz buscar por uma saída que a leve a ser independente
financeiramente. Em um momento de alta taxa de desemprego, Vitor se dá ao luxo de pedir
demissão da fábrica em que trabalhava. Já Dalva, apesar de subjugada, é a pessoa mais
responsável e lúcida do trio constituído por ela, Dona Lourdes e Vitor. Quando Dona Lourdes
chega em casa, ainda no início do filme, e encontra Vitor, ela pergunta à Dalva o que ele estava
fazendo lá. Dalva responde que ele já estava de saída e, pouco tempo depois, ao ver que Vitor
ainda não havia ido embora, tem início a seguinte discussão:

Dona Lourdes (00:22:20)


Esse sujeito ainda está aqui?

Dalva (00:22:24)
Não se mete, mãe!

Dona Lourdes (00:22:26)


Você nunca soube cuidar da sua vida.

Dalva (00:22:28)
Ah, não? E quem é que paga o aluguel? Quem é que trabalha aqui? Acho
melhor a senhora voltar pra cozinha, mãe.

Dona Lourdes (00:22:38)


Olha como fala comigo! Esta casa é minha ou não é? Quando é que você vai
conseguir pôr um fim nesta história? Ele é um atraso na sua vida!

Vitor (00:22:48)
A senhora não tem nada a ver com isso.

Dona Lourdes (00:22:51)


Eu não vou deixar você destruir a vida da minha filha, isso não! O que você
pode dar pra minha filha com essa porcaria de emprego que tem? Você não
tem perspectiva nenhuma. Dá pra ser pai assim? Não dá? Dá pra ter uma
família assim? Não dá. Fracassado. Sem futuro!

Ao escutar estas palavras, Vitor responde com violência, dando um soco no rosto de
Dona Lourdes. Daí em diante o clima do filme é de ainda mais tensão. Como resposta às ofensas
de Dona Lourdes que colocaram em xeque a sua masculinidade, Vitor resolve demonstrar
virilidade e agressividade de forma a deixar claro suas capacidades como homem. Após o soco
em Dona Lourdes, Vitor empurra Dalva no chão e tranca a senhora no banheiro. Temática muito
58

em voga nos anos de 1990 é a da violência contra a mulher, sendo a violência doméstica e
familiar a mais comum delas. A violência doméstica e familiar é praticada por pessoas que
habitam ou habitaram o mesmo espaço doméstico como ex-cônjugues, ex-namorados, ex-
parceiros, genitor ou progenitor. Ela não precisa ocorrer necessariamente na unidade doméstica
e, segundo cartilha da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), pode ser do tipo
psicológica, patrimonial, moral, sexual e física.

No desenrolar da narrativa de Um céu de estrelas, deparamo-nos com todos esses tipos


de violência. Não somente Dalva, mas também Dona Lourdes é vítima de Vitor.
Psicologicamente, ambas parecem perturbadas e apreensivas com a sua presença,
provavelmente devido a alguma atitude agressiva anterior por parte dele. Além disso, a
violência psicológica se dá quando um visa a fazer o outro se sentir inútil ou com medo; por
exemplo, da forma como Vitor age ao chegar na residência de Dalva, ironizando a conquista de
sua viagem para Miami e humilhando Dona Lourdes, ao comentar que ela sobrevive com uma
“pensãozinha” do marido, depois de fazê-la sentir-se inútil e com medo ao arrastá-la e trancá-
la no banheiro de sua própria casa. Esta também poderia ser uma violência moral, que é
caraterizada por ofensas, calúnias ou críticas mentirosas, assim como quando Vitor conta para
Dona Lourdes sobre a viagem de Dalva antes de ela poder contar, dizendo que Dalva iria partir
para bem longe, pois já não aguenta mais viver com a mãe.

A violência psicológica também ocorre quando um tenta controlar a vida do outro, por
exemplo, impedindo que a mulher tenha amigos ou saia de casa. Vitor surge no início do filme
para tentar impedir a partida de Dalva, além disso, ele não consegue aceitar o fato de que eles
já não são um casal. Depois de trancar Dona Lourdes no banheiro, de trancar a porta de entrada
da residência e de esconder as chaves, Vitor diz à Dalva:

Vitor (00:29:30)
A gente precisa conversar.

Dalva (00:29:33)
Que jeito de conversar. Batendo em mim, na minha mãe e invadindo a casa.
Você sempre acha que sabe o que é melhor pra todo mundo, se acha melhor
que todo mundo, sufoca os outros... Me sufoca! Foi você que estragou tudo.
Você não sai, não conhece ninguém, foge de todo mundo... E a gente cada vez
mais aqui nesse fim de mundo. Na verdade, cada vez mais aí, dentro do
“senhor”. E fique sabendo que aí não é tão grande assim... Eu cheguei a ter
medo!
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Vitor joga, então, uma xícara de café no chão e sai da cozinha. Dalva recolhe os cacos
e vai atrás dele. Ao encontrar Vitor deitado em sua cama, ela nota que ele desfizera a sua mala
e jogara no chão o seu certificado de premiação no concurso de penteados. Dalva se senta na
cama para conversar com ele:

Dalva (00:32:01)
Você precisa se acalmar ...

Vitor (00:32:06)
A sua passagem é pra amanhã! Você tava enganando todo mundo. Eu,
sua mãe, escondida ...

Dalva (00:32:31)
Dorme um pouco ...

Vitor (00:32:33)
Eu não quero mais nada.

Dalva (00:32:49)
Quer tomar um calmante?

Vitor (00:32:51)
Você acha que eu tô doido, né?

Dalva (00:32:53)
Eu só acho que você tá muito nervoso; que precisa se acalmar.

A resistência de Vitor com relação à partida de Dalva pode também ser configurada
como uma espécie de violência psicológica. Ele invade a sua casa com o pretexto de devolver
algumas coisas, quando, na realidade, deseja impedir a sua viajem. Dona Lourdes demonstra
não estar satisfeita com a presença de Vitor desde o primeiro momento em que o vê, e, no
primeiro diálogo entre os três personagens, indaga quando ele sairá da vida de sua filha. Já a
violência patrimonial é a menos evidente no filme e é caracterizada por um comportamento que
intenta controlar o dinheiro do parceiro, recusar dar dinheiro ao outro, ameaçar subtrair objetos,
bens, documentos ou ameaçar retirar o apoio financeiro como forma de controle. Vitor utiliza
o fato de ter comprado um apartamento com Dalva para fazê-la ficar. Esta, diz que nada irá
fazê-la mudar de opinião com relação à viagem.

A violência física e sexual são as mais evidentes no filme de Tata Amaral. Os corpos,
sempre suados, transbordam tensão, assim como o movimentar rápido da câmera e dos
personagens. Como já dissemos, logo no início da narrativa Vitor empurra Dalva no chão, fere
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sua mãe com um soco no rosto e a tranca ensanguentada no banheiro. Com o desenrolar dos
fatos, Vitor acaba matando Dona Lourdes ao dar um tiro através da porta do banheiro.
Assustada, Dalva reage gritando e dando socos no assassino. Ela o puxa pelos cabelos e ele a
abraça, o que dá início a uma cena de sexo em frente ao banheiro onde a mãe de Dalva, do outro
lado da porta, agoniza até a morte. Evidentemente, não seria o momento nem o local mais
adequado para embates sexuais, mas, Dalva, com medo de alguma reação maior por parte de
Vitor, se rende, contrariada, ao ato sexual.

A sequência foi filmada sem cortes e é bastante forte. Dalva empurra Vitor contra a
parede e tenta controlar o encaminhar do ato sexual de forma a evitar que ele cometa ações
desmedidas, até porque a arma ainda continuava em sua mão. Ela o desveste de sua regata e o
beija amavelmente no peito. Entretanto, não demora para que Vitor se torne violento outra vez,
apertando o pescoço de Dalva e mantendo-a contra a parede, assim como segurando-a pelos
cabelos diversas vezes. Dalva grita, geme de dor e, logo que se livra dos braços que a
imobilizavam, tenta pegar a arma então jogada no chão. Frustrada em sua tentativa, Dalva corre
para a cozinha e volta à sala com uma faca na mão. Empunhando a faca, Dalva ameaça Vitor.
Este não hesita em apontar a arma para o seu rosto (figuras 11 e 12).

11-12

É com o grito de um policial do lado de fora da casa que esta cena de ameaça tem fim.
Depois dos tiros em direção à Dona Lourdes e de todo o alvoroço no interior da residência, os
vizinhos resolvem chamar a polícia. Já é noite quando as luzes da sirene invadem a escuridão
da sala em que Vitor e Dalva se encontram. Ao escutar o policial, Dalva coloca suas roupas e
recupera a chave da porta de casa que estava escondida na calça de Vitor. Os policiais querem
que Vitor se renda, sendo que, a esta altura, ele já é considerado um sequestrador e
possivelmente assassino.
61

Dalva aproveita a movimentação de Vitor pela casa para ver o estado de sua mãe. Ao
abrir a porta do banheiro descobre que Dona Lourdes estava morta. Dalva vomita e é levada
por Vitor para a cozinha para que juntos assistam ao noticiário, que faz a cobertura dos
acontecimentos pelo lado de fora. Em determinado momento, a luz da residência é cortada e
Dalva, assustada, sai correndo. Vitor xinga e vai ao seu encontro jogando-a no chão e dando
uma série de chutes em sua barriga. Em seguida, Dalva é por ele levantada pelos cabelos e
colocada de joelhos. Vitor a obriga, então, a lhe fazer sexo oral. Neste momento o filme já está
chegando ao fim, alcançando também o ápice da violência contra a mulher.

Da mesma forma que em Mar de rosas, no longa-metragem de Tata Amaral a mulher


sai vitoriosa, apesar da humilhação, servidão e violência psicológica, moral, sexual, patrimonial
e física à que são submetidas as personagens femininas. Após Dalva gritar para os policiais que
se a luz não fosse ligada Vitor a mataria, a casa volta a ter iluminação. O casal se dirige então
à cozinha e Dalva prepara dois ovos fritos enquanto assistem ao noticiário (figura 13). A
movimentação do lado de fora é intensa e há policiais de elite por todos os lados. Dalva termina
a refeição e Vitor lhe entrega a arma. Estamos assistindo às imagens do noticiário através da
televisão de Dalva quando escutamos o barulho de um tiro. A polícia invade a casa, encontrando
Vitor morto e Dalva com a arma na mão (figura 14).

13-14

Um céu de estrelas, consonante com a época de produção e lançamento, lida com


debates dos anos de 1990 acerca da condição feminina no que diz respeito, principalmente, à
violência contra a mulher e à independência financeira. Além disso, a própria caracterização de
Dalva e a sua relação com a câmera dão ao filme um caráter não estereotipado com relação à
representação do feminino. Durante muito tempo persistiu a ideia – com base no que era e ainda
é, em certa medida, veiculado pelas mídias e propagado pela sociedade – de que a mulher
independente não conseguiria manter atributos femininos ao assumir atitudes tidas como
masculina. Por exemplo, era muito comum associar uma mulher bem-sucedida na carreira ao
62

estereótipo de “sapatona” pelo fato desta querer “agir como homem” na sociedade. Ou, ainda,
a ideia de que as mulheres que não são vaidosas – e não cumprem seu papel de seduzir os
machos de sua espécie – não teriam real interesse em atrair um homem, sendo então taxadas
como lésbicas.

Dalva começa o filme se arrumando em frente ao espelho (figura15) e é uma mulher


que busca sucesso na carreira. Ela veste roupas alegres, coloridas e decotadas (figura 16), sem
medo de chamar a atenção, ao contrário de Felicidade, em Mar de rosas, que traja um longo
vestido bege durante toda a trama. Além disto, Dalva tem um cabelo curtíssimo, outra diferença
com relação à Felicidade, que mantém suas longas madeixas sempre presas. O cabelo curto,
estilo masculino, foi um dos artifícios utilizados por mulheres em todo o mundo, ainda nos anos
de 1960, para perturbar os padrões sociais vigentes e romper com estereótipos (figura 17).

15-16-17
63

Há também uma evidente crise de masculinidade em Um céu de estrelas, já timidamente


anunciada no filme da década de 1970, Mar de rosas. Em Um céu de estrelas Vitor está nervoso
e perdido, sendo que em determinado momento da narrativa ele confessa que vivera por Dalva
e que fizera tudo o que fizera por ela. Vitor vive sem saber como lidar com a sua masculinidade
explícita, porém desencaixada da nova realidade introduzida pelos movimentos feministas. Em
Um céu de estrelas, é o homem que está esgotado, infeliz e nervoso, características que antes
conferimos à personagem Felicidade de Mar de rosas (figuras 18 e 19).

18-19

Por se passar em uma única locação, na qual a câmera disputa espaço com os
personagens chegamos a sentir o aperto e o sufocar da situação. Sufocar este que dialoga com
o estado de espírito de Dalva, que se sente enclausurada e sob constante opressão materna e
matrimonial. A pouca iluminação e a ausência de música em grande parte da narrativa são
outros fatores que contribuem para essa sensação. Além disso, Tata Amaral deu preferência a
planos sequências e fez pouco uso de cortes, opção estética que conferiu mais naturalidade às
atuações e aos acontecimentos. Um céu de estrelas é outro exemplo de documento histórico e
de agente da história, configurado como um importante material para os estudos de gênero e
para a história das lutas feministas no Brasil.
64

CAP. 4 A MULHER E O CINEMA NO CONTEXTO ATUAL

4.1 Lutas sociais e cinema a partir de 2000

Depois da virada do milênio muito se perguntou se o feminismo havia acabado. Seja


pela formação de manifestações pós-feministas, seja pela dissolução dos grupos de discussão
ou pelo esmaecimento de um feminismo tal qual nos anos de 1970 e 1980, esse foi um
sentimento característico do período. O fato é que, nos anos 2000, presenciaram-se novas
formas de pensamento em dois cenários diferentes:

o primeiro refere-se à dissociação entre o pensamento feminista e o


movimento; o segundo, à profissionalização do movimento por meio do
aparecimento de um grande número de ONGs voltadas para a questão das
mulheres. (PINTO, 2003, p. 91).

Pode-se dizer, portanto, que ao mesmo tempo em que o pensamento feminista se


generalizou, alcançando diferentes formas de ser e pensar o feminino, o movimento se
especializou por meio do surgimento das ONGs voltadas a causas específicas. Mais do que
nunca é possível notar que “ser mulher” envolve diferentes questões, como étnicas e de classe,
por exemplo.

Nos anos 2000 o feminismo passa, no Brasil, a atuar tanto junto ao Estado quanto junto
à sociedade, seja através da crescente candidatura de mulheres a cargos políticos ou através da
prestação de serviços via ONGs e instituições públicas e privadas. Ainda assim, trata-se de um
feminismo difuso e menos militante do que outrora se vira. É um feminismo “defendido por
homens e mulheres que não se identificam como feministas” (PINTO, 2003, p. 93).

Após as décadas de 1970 e 1980, muitas mulheres que antes atuavam diretamente na
militância tiveram acesso ao ensino superior e se formaram como médicas, advogadas,
educadoras ou psicólogas, por exemplo. Ao longo dos anos, estas mulheres fundaram ONGs
onde passaram a exercer suas profissões a partir de um comprometimento com as mais variadas
causas feministas. Tais organizações privadas sem fins lucrativos agem em defesa de causas
específicas e foi a mais eficiente forma encontrada de lutar por melhorias na condição feminina.

Ainda que esse tipo de organização, as ONGs, tenha os seus problemas, como a
subordinação à agenda de fundações internacionais ou do governo para conseguirem fundos,
ou ainda, como a regulação específica para que uma pessoa se torne membro de uma ONG, por
65

exemplo, este foi um interessante caminho adotado que possibilitou a profusão de


“feminismos”, segundo Celi Regina Jardim Pinto (2003). Na virada do milênio e nos anos
subsequentes, o movimento, mais do que nunca, deixou de ser excessivamente branco, elitista
e heterossexual.

é possível verificar organizações que se ocupam das mulheres rurais, de


mulheres portadoras de HIV, mulheres parlamentares, mulheres negras,
mulheres prostitutas etc. Este conjunto dá a medida de uma das características
marcantes desta nova fase do feminismo de ONG: a segmentação das lutas.
(PINTO, 2003, p. 97).

O Centro Feminista de Estudos e Assessoria, CFEMEA, é uma ONG de mulheres de


grande atuação nos últimos anos. Criado em 1989 e com sede em Brasília, essa organização
tem como principal característica se fazer de intermediária entre o campo político, os
movimentos de mulheres e a sociedade organizada. O CFEMEA é, portanto, uma espécie de
articulador de questões acerca da condição feminina junto ao Congresso Nacional. Outra ONG
de destaque na virada do milênio é a AGENDE, Ações em Gênero, Cidadania e
Desenvolvimento, que se coloca basicamente como uma advogada, representando o interesse
das mulheres e de cidadãos marginalizados. A Articulação da Mulher Brasileira, AMB, é outro
exemplo de ONG que foi criada, em um primeiro momento com a intenção de fiscalizar o
cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil na Conferência Mundial de Pequim,14
no ano de 1995. A AMB também organizou uma plataforma feminista para as eleições de 2000
com reivindicações diversas, além de manter atualmente um panfleto digital mensal em seu site
com novidades acerca das conquistas femininas.

A relação das ONGs feministas com o Estado não se limita, no entanto, a pressões no
campo legislativo, mas também no executivo e no judiciário. “Propostas para o Estado
Brasileiro”, por exemplo, foi um documento elaborado em 1998 por três importantes ONGs, o
CFEMEA, o CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) e a Themis (Themis
Assessoria Jurídica), que previa medidas concretas de combate à violência contra a mulher em
níveis federal, estadual e municipal, atuando por meio do legislativo, executivo e judiciário. As
ONGs tiveram ainda o apoio do Cladem (Cômite Latino-Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher) e da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. O
extenso documento recomenda, entre outras coisas, para o poder executivo a implementação de

14
Aqui nos referimos à IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, no ano de 1995.
66

políticas públicas e de programas educativos, para o poder legislativo a elaboração de leis para
recursos orçamentários e reformulações de códigos já vigentes e, para o poder judiciário, a
promoção de cursos com o intuito de sensibilizar as autoridades judiciárias.

No ano 2000, o Brasil foi um dos 159 países em todo o mundo a aderir à Marcha Mundial
das Mulheres, ocasião na qual se organizou uma campanha internacional contra a pobreza e a
violência sexista. Uma das características do feminismo atual é que a luta não se dá mais de
forma solitária, ou seja, outras minorias apoiam-se mutuamente, sendo que em passeatas, por
exemplo, junto às mulheres gritam homossexuais, travestis, transexuais e homens
heterossexuais. Em grande parte, o feminismo de hoje não luta contra o sexo oposto, pelo
contrário, ele chama a atenção à normatização do masculino e convida os homens também a
lutarem pela pluralidade do “ser homem”.

Um dos pontos que mais encontra resistência hoje em dia é o da questão do direito ao
aborto. Milhões de abortos são feitos ilegalmente no Brasil todos os anos, colocando em risco
a vida da mulher, elevando o índice de mortalidade materna e aumentando os gastos com saúde
pelo Estado. Desde 1940 é permitido realizar o aborto somente em casos de estupro ou de risco
para a vida da mãe. No ano de 2012, porém, o Supremo Tribunal Federal considerou também
constitucional o aborto de fetos anencéfalos.

Outro ponto que ainda está sendo trabalhado é o do enfrentamento à violência contra a
mulher. No Brasil, a Lei Maria da Penha, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada em
agosto de 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, representou grande avanço no
sentido de punir aqueles que praticassem violência doméstica, protegendo com isto os direitos
da mulher. Já em março de 2015, a presidente Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar este
cargo em nosso país, resultado das eleições de 2010, sancionou a Lei do Feminicídio, tornando
crime hediondo o assassinato de mulheres em decorrência do gênero ou de violência doméstica.
Na ocasião, Dilma destacou que, entre os anos de 2000 e de 2010, 43,7 mil mulheres foram
assassinadas no Brasil, sendo que mais de 40% foram mortas em casa pelos companheiros ou
ex-companheiros.

Desde a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) no ano de 2003,


foram realizadas conferências nacionais com o intuito de debater e sistematizar políticas de
gênero no Brasil. O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, recentemente revisado pela
presidente Dilma Rousseff, não somente determina as ações a serem tomadas como também as
direcionam para os mais diversos órgãos com o intuito de colocar em prática a igualdade de
gênero e de proteger os direitos das mulheres.
67

Cada vez mais há, no Brasil, uma redução crescente da taxa de natalidade, o que permite
às mulheres flexibilidade para trabalhar fora de casa. As mulheres ocupam atualmente
diferentes cargos e ainda são submetidas a salários menores e a condições desiguais no trabalho.
Grande parte delas é responsável pelo trabalho doméstico e pelo cuidado dos filhos e de idosos,
além da usual jornada de trabalho. Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
IBGE, constatou que as mulheres gastam em média 24 horas por semana com atividades
domésticas, enquanto que os homens não chegam a gastar nem mesmo 10 horas com as mesmas
atividades. Além de ainda terem de cumprir com a dupla jornada, as mulheres aparecem em
maior proporção nos trabalhos informais, frequentemente sem carteira assinada, sem seguro
social, entre outros direitos. O tempo perdido com a dupla jornada poderia ser utilizado para
estudo e para lazer, o que também é fundamental para se ter sucesso na carreira.

São as mulheres que constituem a grande massa de empregadas domésticas, sendo


interessante notar que nunca nos referimos a empregados domésticos. Quando isto ocorre eles
são tidos como mordomos e não domésticos, além de exercerem tarefas completamente
distintas, geralmente menos braçais e mais intelectualizadas. As empregadas domésticas são,
em sua maioria, provenientes de uma classe social com poucas oportunidades de estudo e,
consequentemente, profissionais, sendo que, apesar dos direitos já previstos na Constituição,
poucos são colocados em prática em consonância com a Lei. Além de receberem baixos salários
e de não terem segurança alguma em relação à continuidade do emprego, o serviço doméstico,
independentemente de quem o pratica, continua sendo visto por muitas pessoas como um
trabalho que não merece o mesmo reconhecimento dos outros.

No ano de 2004 foi realizada a primeira Conferência Nacional de Políticas para as


Mulheres, sendo que, no mesmo ano, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que
2004 seria o Ano Nacional da Mulher. Foi também nesse ano que foi criado o primeiro festival
brasileiro de cinema somente com filmes de diretoras mulheres. O Festival Internacional de
Cinema Feminino, Femina, atingiu no ano de 2014 a sua 11ª edição.

O Femina surgiu no Brasil como um reflexo da atuação das mulheres no campo


cinematográfico. Mais do que nunca as mulheres têm ocupado cargos como a direção em nosso
país e esse festival contribuiu para que o número aumentasse cada vez mais. Conforme já
mencionamos anteriormente, não consideramos que o fato de uma mulher na direção influa no
sentido de uma representação mais ou menos estereotipada ou mais ou menos fidedigna do
feminino. Contudo, muitos profissionais do campo, como em qualquer outra indústria, ainda
não veem com bons olhos mulheres ocupando cargos importantes. Portanto, ao identificarmos
68

um crescimento no número de mulheres atuando na indústria cinematográfica, notadamente na


direção, podemos concluir que as lutas feministas estão surtindo efeito, repercutindo nos mais
diversos ramos da sociedade.

Paula Alves (2011)15, diretora do Femina, analisa, em sua dissertação de mestrado pela
ENCE/IBGE, a proporção de filmes de longa-metragem16 dirigidos por mulheres dentre todos
os filmes de longa-metragem produzidos e lançados no Brasil durante os anos de 1961 a 2010.
De acordo com a tabela 1, entre 1961 e 1970, tivemos 0,68% dos filmes dirigidos por mulheres.
Já entre 1971 e 1980, essa proporção passa para 1,77% dos filmes, representando, portanto,
mais do que o dobro da década anterior. Entre os anos de 1981 e 1990, a porcentagem de
mulheres na direção foi de 3,27%, já entre 1991 e 2000, a porcentagem passou para 11,35%,
período em que o Brasil viveu o início do Cinema da Retomada. Segundo Paula Alves, entre os
anos de 2001 e 2010 a porcentagem de mulheres na direção foi de 15,37%. O total de filmes
dirigidos por mulheres entre os anos de 1961 e 2010 representa, assim, 6,87% do número total
de filmes dirigidos no período.

Tabela 1

15
Paula Alves é mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências
Estatísticas / Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ENCE/IBGE) e bacharel em Comunicação Social e
Cinema pela UFF. É também presidente do Instituto de Cultura e Cidadania Femina, além de diretora do Femina
– Festival Internacional de Cinema Feminino.
16
Paula Alves se baseia em uma classificação utilizada por festivais de cinema internacionais para definir como
longa-metragem filmes com duração igual ou superior a 60 minutos, sejam eles documentários ou ficções.
69

Como já dito, para o estudo também foram considerados documentários, não somente
longas-metragens de ficção. Caso fossemos estudar a porcentagem de mulheres na direção
apenas deste último formato o resultado seria mais decepcionante. Isso porque, segundo Paula
Alves, além de historicamente as oportunidades para mulheres serem diferentes, de acordo com
tudo que já expusemos nos capítulos acima, atualmente, os editais de cinema acabam
priorizando pessoas que tenham a carreira já consolidada. Dessa forma, os homens acabam
saindo com ampla vantagem, tendo em vista que, como vimos, a inserção feminina no meio só
veio a se dar, de forma mais efetiva, bem mais recentemente.

No mesmo período analisado por Paula Alves, pode-se notar que o número de mulheres
escrevendo filmes também aumentou, apesar de ainda continuar pequeno. Não obstante, no que
concerne à porcentagem de mulheres na produção os números são reveladores, já que a
porcentagem não chega nem a 10% do total de filmes produzidos e lançados entre 1961 e 2010.
Reveladores, pois, no mercado cinematográfico brasileiro, persiste uma falsa impressão de que
as mulheres atuam em maior número na produção do que os homens. Quando comparada à
atuação de mulheres na direção, no roteiro e na fotografia, as mulheres estão sim em maior
número na área da produção. No entanto, quando considerados também os homens, a
porcentagem de mulheres na produção entre 1961 e 2010 não chega nem a 10% do total.

Tabela 2
70

Na área de fotografia, que para Paula Alves envolve direção de fotografia, fotografia e
câmera, a porcentagem de mulheres em atuação entre os anos de 1961 e 2010 é ainda mais
alarmante, não chegando nem mesmo a 1,13% do total. A principal fonte de dados de Paula
Alves foi uma pesquisa realizada por Antônio Leão da Silva Neto17 que teve patrocínio da
Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, do Fundo Nacional da Cultura e do Instituto
Brasileiro de Arte e Cultura. Os demais dados foram obtidos nos portais Filme B18,
AdoroCinema19 e no Guia Kinoforum20: festivais de cinema e vídeo, além dos sites oficiais dos
próprios filmes.

Entre os anos de 2001 e 2010 foram lançados no Brasil 1.067 longas, segundo Paula
Alves. Dentre esses, 162 contaram com a estreia de mulheres na direção de longas-metragens.
Alguns dos nomes de destaque da década de 2000 são, por exemplo, Sandra Werneck, que
dirigiu, em 2000, Amores possíveis e, em 2004, Cazuza – o tempo não para e Laís Bodanzky
que dirigiu, em 2001, Bicho de sete cabeças, em 2007, Chega de saudade e, em 2010, As
melhores coisas do mundo. Apesar de já atuar na realização de curtas-metragens desde 2004,
Juliana Rojas estreou na direção de um longa somente no ano de 2011, com o lançamento de
Trabalhar cansa.

4.2 Trabalho informal, dupla jornada e inversão de papéis em Trabalhar cansa (2011), de
Juliana Rojas e Marco Dutra

Primeiro longa-metragem de Juliana Rojas e Marco Dutra - a dupla já havia trabalhado


junto em curtas como O Lençol Branco (2004) e Um Ramo (2007) -, Trabalhar Cansa foi
lançado no ano de 2011 no Brasil. O filme foi exibido na mostra Un Certain Regard do Festival
de Cannes no ano de 2011 e ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Paulínia no mesmo
ano. A trama gira em torno de uma família de classe média paulista composta pela mãe, Helena
(Helena Albergaria), pelo pai, Otávio (Marat Descartes) e pela filha, Vanessa (Marina Flores).
Após Otávio perder o posto de executivo na empresa para um rapaz mais jovem, Helena decide

17
SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionário de filmes brasileiros: longa-metragem. São Bernardo do Campo:
Ed. Do Autor, 2009.
18
FILME B. Database Brasil. Disponível em: http://www.filmeb.com.br/database.
19
ADORO CINEMA. Disponível em: http//www.adorocinema.com/filmes/.
20
ALMEIDA, Lizandra; HINESTROSA, William. Guia Kinoforum: festivais de cinema e vídeo. São Paulo:
Associação Cultural Kinoforum, 2011.
71

pôr em prática algo que já vinha planejando: voltar a trabalhar. Ela compra então um
mercadinho de rua e contrata Paula (Naloana Lima), para cuidar de sua filha e da casa.

No decorrer do filme, Otávio se submete a entrevistas e dinâmicas de grupo como forma


a conseguir um novo emprego. Todavia, os candidatos mais jovens sempre se sobressaem. Após
uma série de investidas frustradas ele começa a ajudar Helena com o mercadinho, mas logo se
sente desconfortável com a nova ocupação, afinal, antes ele trabalhava em uma grande empresa
e seu chefe não era a sua própria esposa. Logo no início do filme Helena coloca o mercadinho
para funcionar, mas coisas estranhas começam a acontecer. Ninguém sabe dos antigos donos e
dos fundos do local exala um cheiro horrível. Além disso, produtos somem das prateleiras e
barulhos estranhos são ouvidos frequentemente da despensa. Em determinado momento, Otávio
descobre uma coleira com lanças fixada em uma parede nos fundos do mercado, na qual se
desenvolvera uma grande mancha negra.

Em casa, com o passar dos dias, Vanessa e Paula criam mais afinidade e se tornam
amigas. Paula não tem a carteira assinada ainda e dorme no local de trabalho, em um quartinho
apertado localizado atrás da cozinha. Como não tem televisão em seu quarto, Paula passa as
noites escutando rádio, pois não gosta de sair nas horas vagas para não criar problemas com
Helena. Vanessa, apesar de gostar de Paula, sente a falta da mãe, que gasta cada vez mais tempo
com o mercadinho de forma a conseguir dinheiro para pagar as contas. Como uma alternativa
temporária, Otávio passa a trabalhar em casa vendendo seguros de vida por telefone.
Consequentemente, ele fica mais tempo com Vanessa e Paula, além de estabelecer para si uma
jornada de trabalho bastante reduzida, o que começa a irritar Helena.

Uma atmosfera claustrofóbica domina o filme. A câmera é quase sempre estática e os


planos são longos e lentos. A ausência de música na trilha sonora colabora para o clima de
tensão e faz com que mínimos ruídos ganhem destaque. Todos os personagens parecem estar
em seu limite: Helena não consegue fazer o mercado prosperar, Otávio não consegue encontrar
um emprego, Paula não gosta da forma como Helena a trata e Vanessa sente falta da mãe
enquanto se adapta à nova realidade. Já no final do filme, depois de muito desentendimento
devido à situação financeira do casal, Helena e Otávio descobrem o que vinha provocando o
mau cheiro e a mancha na parede, além do motivo da coleira com lanças fixada na parede. Uma
espécie de lobo gigante – um lobisomem? – havia sido emparedado nos fundos do
estabelecimento. Em meio a uivos e latidos dos cachorros da vizinhança, o casal leva, então, os
restos do que fora encontrado até um matagal e ateiam fogo.
72

A parede do mercado é reconstruída e no final do filme Helena leva sua filha para
trabalhar com ela. Paula pedira demissão e encontrara um novo emprego, agora com carteira
assinada, como auxiliar de limpeza em um shopping. A última cena do filme mostra Otávio em
uma palestra intitulada “Como sobreviver no mercado de trabalho”. Na sala, dezenas de homens
engravatados escutam de pé o palestrante que dá dicas ao homem moderno, tais como
reestabelecer contato com o lado primitivo. Segundo o palestrante, é preciso canalizar a energia
animal na profissão. O filme termina, então, com Otávio e os outros ouvintes gritando e batendo
no peito com as mãos feito macacos.

Uma das inflexões de Trabalhar cansa é a invasão de espaços, o que leva,


consequentemente, a uma alternância nos papéis sociais. Otávio perde o seu emprego para um
rapaz mais jovem e Helena ocupa o lugar antes de Otávio, no comando financeiro da família.
Já Otávio ocupa o lugar de Helena, como “mãe” de Vanessa, por ficar mais tempo em casa e
dar mais atenção à filha. Já Helena se vê destituída do comando da casa ao contratar Paula.
Quando Inês (Lilian Blanc), mãe de Helena, está em casa, tanto Paula quanto Helena ficam
destituídas do comando do lar, pois, pelo fato de ser mais velha, Inês se vê na obrigação e no
direito de indicar como as coisas devem ser feitas para o bom funcionamento da casa.

O título do filme remete a outra inflexão na narrativa: as dificuldades enfrentadas no


mercado de trabalho. Helena, como empresária autônoma, tem de aprender a lidar com as
dificuldades de manter e de fazer um negócio prosperar. Otávio perde seu posto para um rapaz
mais jovem e se vê diante da necessidade de participar de dinâmicas de grupo bastante
humilhantes para conseguir um novo emprego, além de ter que lidar com o fato de estar ficando
ultrapassado para certos cargos. Paula não tem experiência na área, mas procura por um
emprego em que seja registrada, no entanto, Helena avisa já na primeira entrevista que não tem
condições de arcar com tais despesas. Apesar de contrariada, Paula aceita o serviço de
empregada doméstica e tem de lidar com a desconfortável situação de trabalhar e de morar no
mesmo lugar, sob os olhares constantes dos “chefes”.

A inserção da mulher no mercado de trabalho, conforme mencionamos anteriormente,


foi temática bastante em pauta nas discussões feministas da década de 1990, visto os avanços
conseguidos com a Constituição de 1988 que institucionalizava a proibição de diferença salarial
e de critérios de admissão por motivo de gênero, entre outras medidas importantes. Atualmente,
é a dupla jornada de trabalho – no lar e na profissão - enfrentada por muitas mulheres uma das
temáticas mais debatidas entre os grupos feministas, apesar da condição não ser novidade e
perdurar há séculos. Muitas mulheres já sofreram com tais imposições e de forma ainda mais
73

intensa, haja vista as longas jornadas de trabalho às quais eram submetidas nas fábricas no
século XIX, por exemplo. Se a temática está hoje mais presente no ativismo feminista é porque
este aspecto da condição da mulher é considerado como um dos principais entraves ao seu
sucesso no mercado de trabalho.

Apesar do desemprego de Otávio, o casal decide logo no início do filme contratar Paula
para cuidar da casa e de Vanessa. Nem chega a ser cogitada a hipótese de Otávio exercer as
tarefas que outrora eram de Helena. Outra mulher há de ser posta em seu lugar, de forma que
Otávio fique desimpedido na busca por um novo emprego. Ao contar para Helena que perdera
o emprego, Otávio diz não ser a melhor hora para investir em um novo negócio. Helena, que
acabara de voltar do mercadinho com a corretora, pede para ele deixa-la tentar fazer o negócio
dar certo. Apesar de todos os personagens terem, de alguma forma, os seus espaços invadidos
e passarem por uma readaptação social, é Otávio quem mais parece abalado com as
transformações em seu entorno. É estranho para ele estar em casa enquanto Paula faz a faxina,
assim como viajar sozinho com a filha enquanto a mãe trabalha em um feriado. Otávio fica
desconfortável por não conseguir pagar as contar e por não ser mais quem decide como o
dinheiro vai ser gasto. Em determinado momento do filme, a luz do apartamento em que moram
é cortada e dá-se início ao seguinte diálogo:

Otávio (00:55:16)
Eu acho que você não precisa ficar com essa cara.

Helena (00:55:20)
Que cara que você quer? Me fala? Eu faço pra você.

Otávio (00:55:26)
Helena ...

Helena (00:55:34)
Otávio, a conta de luz era R$60,00. Eu tenho isso.

Otávio (00:55:37)
Eu sei que você tem isso.

Helena (00:55:40)
Então por que não pediu?

Otávio (00:55:42)
Porque eu tava esperando entrar um dinheiro.

Helena (00:55:43)
De onde?! De onde que vai entrar um dinheiro!? Vão te fazer uma doação?!
74

Otávio (00:55:48)
Você não precisa gritar.

O filme parece dialogar com o estágio atual do movimento feminista no sentido de


explorar não só a forma como o conceito de “ser mulher” é criado e difundido, mas, também,
como o “ser homem” sofre enquadramentos, seja pelo cinema ou por outras tecnologias do
gênero. A grande maioria das vertentes do movimento feminista passa atualmente por uma fase
de não mais lutar contra o sexo “oposto”, afinal, há diversas formas de se constituir como
homem. Há na narrativa uma “crise de masculinidade” bastante evidente, a qual já fora
anunciada por nós nos filmes das décadas anteriores. Entretanto, a crise aqui se apresenta de
forma ainda mais explícita, pois Otávio se vê perdido quando destituído de tudo que até então
lhe fora ensinado que o tornava um homem: o trabalho, a chefia da família e a proteção do lar.

No início do filme Helena é uma mulher calma e amável, entretanto, ao tomar para si o
papel social antes desempenhado por Otávio ela se torna nervosa e ríspida. Helena passa por
uma espécie de adaptação à realidade que até então lhe fora negada. Levando em consideração
todas as conquistas dos movimentos feministas desde o seu fortalecimento nas décadas de 1970,
1980 e 1990 no Brasil, o momento agora, dos anos 2000 em diante, parece ser de reflexão. Mais
do que nunca, a ideia de que não se deve haver papéis sociais especificamente masculinos e
femininos está sendo disseminada, inclusive com grande auxílio da nova mídia que vemos
crescer nos anos 2000: a Internet.

Uma crise de masculinidade em Trabalhar cansa se faz bastante evidente, não por
acaso, começamos esta análise falando sobre Otávio. Em Mar de rosas, Felicidade tenta matar
o seu marido logo nas primeiras sequências do filme e, no final da narrativa, Betinha empurra
sua mãe e Orlando para fora do trem. Em Um céu de estrelas, Dalva consegue matar Vitor,
sendo que nos anos de 1990 fosse talvez mais aceitável o assassinato do marido como um
desdobramento da trama. Já em Trabalhar cansa a morte do homem se dá de forma mais sutil,
apesar da crise mais aparente. Helena não mata Otávio, todavia, ele se sente morto.

Em Trabalhar cansa são três as personagens femininas em destaque: Helena, Paula e


Inês. Helena não usa roupas decotadas e em momento algum a câmera percorre seu corpo com
o intuito de realçar atributos físicos. Ela tem cabelos compridos e não exagera no uso de
maquiagem ou de acessórios (figura 20). Ao longo do filme Helena faz uso somente de calças
compridas (figura 21). Ao contrário de sua mãe, Inês, Helena é reservada e contida em suas
atitudes.
75

20-21

A protagonista, Helena, não conversa com o espelho como nos outros filmes aqui
analisados e nem o trata como uma espécie de confessionário. Na realidade, Helena não se olha
no espelho em momento algum do filme. O cuidado com a aparência é posto em segundo plano,
pois ela se vê imersa em muitos outros afazeres cotidianos, não deixando, no entanto, de estar
sempre bem apresentável.

Paula também é recatada e contida em suas atitudes (figura 22). Ela praticamente não
fala e faz o serviço da forma como lhe é indicado. O quarto em que dorme, localizado atrás da
cozinha, é pequeno e sem janelas (figura 23). À noite, mesmo tendo terminado o serviço, não
sai, apesar dos convites da amiga que trabalha no mesmo prédio. Ela prefere passar as noites
escutando rádio em seu quarto, para evitar problemas com Otávio e Helena.

22-23

De modo a evitar uma dupla jornada de trabalho, Helena contrata Paula para cuidar da
casa e de Vanessa. Não obstante, com o passar do tempo ela sente estar abrindo mão do seu
papel de mãe e demonstra ciúmes da relação de Paula com Vanessa em diferentes situações.
Por exemplo, logo no primeiro dia de trabalho cai um dente de Vanessa e Helena só vai saber
da notícia quando chega em casa, já de noite. É Paula que apronta Vanessa para a aula e quem
a coloca na cama, o que desperta ciúmes em Helena. Quando Vanessa vai viajar, é também
76

Paula quem a ajuda a arrumar as malas. O ciúmes de Helena atinge seu ápice quando, uma noite
ao chegar em casa, Paula e Vanessa mostram a árvore de Natal montada e decorada, sendo que
tal tarefa se tratava de um evento especial para mãe e filha (figuras 24 e 25). Na ocasião, dá-se
o seguinte diálogo:

24-25

Vanessa (00:35:40)
Surpresa!!

Paula (00:36:06)
A Vanessa que pediu, Dona Helena. Ela tava ansiosa.

Helena (00:36:10)
É que eu monto com ela, todo ano.

Helena precisa entender que ela pode ser mãe e uma boa profissional e, no caminho para
o entendimento, é Paula quem sofre uma série de represálias. Ser uma boa mãe não significa
necessariamente estar ao lado da filha o dia todo, sendo que muitas mães passam a vida junto
de suas filhas e não chegam a entendê-las. Não é errado a mulher ter um tempo só para ela, seja
investindo na carreira ou executando qualquer outra tarefa. Já no final do filme, é isso que
Helena parece ter entendido, demonstrando estar realizada em outras esferas de sua vida, não
mais somente como mãe e esposa.

Paula representa uma realidade muito comum em nosso país: a das empregadas
domésticas. No ano de 2015 foi aprovada a emenda à Constituição, conhecida como PEC das
domésticas, que prevê uma série de benefícios a essa classe de trabalhadoras, tais como jornada
máxima de 8 horas por dia, hora extra paga e pagamento garantido por lei. Alguns dos direitos
já previstos antes da PEC são integração à Previdência Social, aposentadoria e carteira de
trabalho assinada. Conforme já foi dito, durante a entrevista de emprego Helena avisa Paula
77

que não poderá lhe garantir nada disso, a não ser o pagamento combinado, pois Paula não tem
experiência na área e ficaria muito caro para Helena os encargos trabalhistas. Por precisar do
emprego, Paula aceita, apesar de, mesmo na casa de Helena, continuar procurando por um
emprego com todas as garantias a que tem direito. A situação das empregadas domésticas é um
tema bastante discutido entre as feministas atualmente, visto que a grande maioria dessa classe
é composta por mulheres.

Desde o início, a forma como a mãe de Helena lida com Paula chama a atenção. Inês a
olha com um ar de superioridade e não conversa com ela sobre nada que não seja relacionado
à limpeza. Inês é mulher vaidosa e bem de vida (figura 26), sendo que, possivelmente, pouco
trabalhara ou nunca trabalhou. Inês descarrega em Paula uma vontade reprimida de ordenar,
pois, muito provavelmente, deve ter obedecido a ordens do marido por vários anos. Enquanto
Paula lava a louça, por exemplo, Inês seca e verifica se está satisfeita com a lavagem, caso
contrário, devolve à Paula. Inês também reclama do fato de Paula estar usando uma louça muito
cara no dia a dia, assim como da limpeza da geladeira, que deve ser feita todo mês. Quando está
na casa de Helena, Inês faz questão de cuidar das tarefas do lar (figura 27), ou ao menos de
supervisionar. Ela diz para Paula que irão limpar a geladeira juntas, no entanto, evidentemente
é Paula quem faz o trabalho.

26-27

Há uma rivalidade entre as personagens femininas em Trabalhar cansa que não fora
identificada tão intensamente nos outros filmes aqui analisados. Helena tem ciúmes da relação
de Paula com Vanessa. Inês não deixa a filha fazer nada, talvez com medo de ser superada. Da
mesma forma, Inês é ríspida com Paula e reclama de suas tarefas, pois tem medo que alguém
execute os afazeres do lar melhor do que ela. Paula faz seu trabalho da melhor forma possível,
mas é inevitável não gostar de estar naquela casa, pois Inês e Helena a olham permanentemente
com desdém. O que mais importa na vida de Inês são os afazeres domésticos. Ela ensina como
78

cozinhar, como limpar e como lavar. Depois de um tempo na cozinha com Paula, Inês chega
para conversar com Helena na sala:

Inês (00:38:52)
Pronto, agora a cozinha tá em ordem.

Helena (00:38:55)
Ô mãe, não precisava. A Paula faz tudo sozinha.

Inês (00:38:59)
Eu não ligo, eu adoro serviço de casa. Me relaxa. E aí, Otávio. Helena me
disse que você conseguiu uma entrevista de emprego amanhã.

Otávio (00:39:07)
É uma empresa lá do centro. Vamos ver, né.

Inês (00:39:14)
Ah que bom. Vou ficar de dedos cruzados.

Otávio (00:39:17)
Bom, vou lá preparar a cama da senhora.

A rivalidade entre as mulheres talvez seja mais evidente em Trabalhar cansa devido ao
fato de termos muitas personagens femininas de destaque. Não é só uma rivalidade geracional,
como se pode observar em Mar de rosas em relação a Betinha, Felicidade e Dona Niobi, cada
uma com suas ideias e valores acerca do “ser mulher”, mas principalmente uma rivalidade para
manutenção do espaço. Parece que nos anos 2000, depois de se tornarem conscientes de suas
capacidades, de requisitarem seus direitos e de conquistarem alguns, as mulheres têm a
preocupação de não perder o espaço que conquistaram e de conseguir avançar cada vez mais
nas lutas pelos seus direitos. Em Trabalhar cansa, as personagens femininas são agentes e os
personagens masculinos quase não falam e aparecem muito pouco nas imagens.

Na noite de Natal surge outra personagem que, apesar de participar por apenas alguns
minutos da trama, vale a pena ser mencionada. Samanta (Daniela Smith), irmã de Otávio
aparece em cena contando para a família de Helena uma história antiga de sua infância. Já no
final da noite, após beber algumas taças de vinho, ela e Inês conversam bem próximas uma da
outra no sofá. O diálogo que se dá é o seguinte:

Inês (00:57:57)
Você que tá certa em não casar. Eu me amarrei cedo demais. Estraguei a minha
vida. Podia ter estudado... A Helena também, largou a faculdade pra ficar com
teu irmão.

Samanta (00:58:10)
79

Eu sou independente. Eu não preciso de homem. Nenhum. Eu acho que a gente


podia ir se deitar...

28-29

Com base no diálogo, nas imagens (figuras 28 e 29) e no fato de que não haveria outro
motivo para Samanta surgir na história, podemos inferir que ela seduziu Inês. Samanta aparece
somente por alguns minutos e a personagem parece ter sido construída com o intuito de remeter
ao relacionamento amoroso entre pessoas do mesmo sexo. É nesse ponto que o filme novamente
demonstra consonância com o estágio atual das lutas feministas que, em conjunto com outras
minorias e movimentos identitários, luta por menos discriminação social.

Não por acaso o filme tem o título Trabalhar cansa, pois ele retrata também o desgaste
físico e emocional da manutenção de um emprego. Aqueles que têm trabalho lutam para não o
perder, e aqueles que não têm, lutam para conseguir um. A escolha de uma protagonista para
retratar a pessoa que busca dar economicamente segurança à família reflete o momento pelo
qual as lutas feministas passam na atualidade, quando, o fato de a mulher trabalhar fora de casa
já não é mais considerado fora do normal. Além disso, hoje em dia se questiona igualmente a
normatização do “ser homem”, o que também de alguma forma se reflete no filme. No feriado
do Carnaval, Helena decide abrir o mercado ao invés de ir viajar com a família. Quando Otávio
e Vanessa estão sozinhos na casa de campo eles sentem a falta de Helena, entretanto, a família
parece entender a reestruturação pela qual está passando.

Durante a viagem, Otávio e Vanessa aproveitam para visitar um museu de história


natural. Lá eles observam uma série de animais empalhados e um em específico chama a
atenção de Vanessa: um bezerro com duas cabeças (figura 30). Ao longo do filme somos
expostos a vários closes perturbantes como o nariz de Helena sagrando, o dente de Vanessa em
um pote e manchas de sangue. Além disso, o açougueiro que trabalha no mercado é também
alvo de vários closes, principalmente enquanto manipula as carnes com o seu facão. Trabalhar
cansa foi categorizado como um drama/terror. O fato de uma estranha carcaça (figuras 31 e 32)
80

ser encontrada emparedada no final da trama com certeza contribuiu para isso. Todavia, a
carcaça não causa estranhamento em Helena ou Otávio e nada se fala sobre o assunto, nem
antes ou depois do cadáver ser queimado.

30-31-32

Os “monstros” do filme não perseguem os personagens, pois estão empalhados ou


emparedados. Juliana Rojas e Marco Dutra parecem deixar subentendido o fato de que existem
monstros piores a serem combatidos no cotidiano e que estes monstros, assim como os
indicados, não estão em movimento e nem se manifestam como muitos monstros de filmes
clássicos de terror. Cada um tem em seu interior o seu próprio “monstro” emparedado ou
empalhado, e libertar-se deste empecilho é medida fundamental para que a vida flua. Somente
após o “monstro” ser retirado do mercado o negócio de Helena passou a prosperar. Podemos
também supor que o “monstro” encontrado emparedado representasse os próprios medos de
Helena, que de tão entranhados impediam-na de arriscar e de colocar mudanças em prática.
Otávio também lida com os “monstros” interiores de forma a levar a vida e as mudanças
com mais coragem. Como vimos, na última cena do filme ele está em uma palestra intitulada
“Como sobreviver ao mercado de trabalho” e o palestrante, circulando pela sala, encoraja os
homens modernos a entrar em contato com o lado primitivo para sobreviver na “selva” que é o
mercado de trabalho (figuras 33 e 34). A câmera percorre o rosto dos homens de meia idade
assustados com a falta de emprego enquanto escutamos ao palestrante:
81

Palestrante (01:34:02)
O mercado de trabalho está cada dia mais competitivo. Saiu uma pesquisa no
jornal de ontem, vocês leram o jornal de ontem? Não leram uma pesquisa que
dizia que, na capital, para cada vaga de emprego que surge tem, em média,
cerca de 100 candidatos, 100 candidatos ... é quase o que hoje a gente tem aqui
nessa sala, não é? Uma verdadeira selva. A questão é: como se destacar?
Como vencer na selva? Para responder a estas perguntas o homem moderno
tem que retomar contato com as suas raízes. Entrar em contato com o seu lado
primitivo. Canalizar essa energia animal para a sua profissão.

33-34

Em seguida, o palestrante sugere um exercício. Ele pede aos homens que tirem o paletó,
afrouxem a gravata e retirem a máscara de homem da cidade para entrar em contato com o lado
primitivo, o lado macaco. Ele começa a gritar e a bater no peito feito um macaco e logo os
ouvintes começam a fazer o mesmo, assim como Otávio (figuras 35 e 36).

35-36

Curioso notar, portanto, a forma como o filme termina. Os homens são instigados a
recuperar o contato com o lado primitivo como se estivessem em uma selva ao constatarem que
o mundo moderno abre, cada vez mais, oportunidades para as mulheres. O homem
“tradicional”, de tão obtuso, por não conseguir lidar com a nova realidade e com a efetiva
inserção da mulher no mercado de trabalho, o que gera mais competição por uma vaga de
emprego, vê como alternativa voltar a ser um selvagem, para lutar pelo espaço que há séculos
fora somente compartilhado entre o sexo masculino. Helena termina o filme cuidando do
mercado, que passara a prosperar. Paula, que pedira demissão, termina o filme em um novo
82

emprego, agora com carteira assinada, como auxiliar de limpeza em um shopping. Otávio, no
entanto, não se sai tão bem quanto Helena e Paula na luta para sobrevivência no mercado de
trabalho, já que termina o filme na “selva” com os outros homens, gritando e batendo no peito
feito macacos.
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CONCLUSÃO

Procuramos, ao longo desta pesquisa, estabelecer relações entre o cinema e a história


partindo das representações do feminino em três longas metragens brasileiros de ficção. Para
tanto, fizemos um breve panorama de algumas das lutas feministas no Brasil e mostramos como
os assuntos foram debatidos, intencionalmente ou não, nos filmes que fizeram parte do nosso
escopo de pesquisa: Mar de rosas (1977), de Ana Carolina, Um céu de estrelas (1996), de Tata
Amaral e Trabalhar cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra.

Não existe uma história do feminismo no Brasil e sim, várias histórias. Ademais, muito
daquilo que hoje conhecemos dessas nos foram contadas por aqueles que tiveram acesso aos
meios de comunicação e, certamente, outros pontos de vista das mesmas histórias ainda hão de
ser descobertos, assim como outras histórias por nós ainda não conhecidas. Fizemos, portanto,
um pequeno recorte histórico de algumas das conquistas do feminismo no Brasil desde o
surgimento efetivo dos movimentos, ainda no século XIX, até os dias de hoje. O recorte também
se justifica não somente pela pluralidade de caminhos possíveis, o que nos leva,
obrigatoriamente, a escolher um deles, mas, também, pelo fato desta pesquisa ser fruto de um
mestrado, o que exige que sejamos muito precisos no trato com o nosso objeto para alcançarmos
nossos objetivos sem ultrapassarmos o tempo regulamentar a ele destinado.

Das várias conquistas no âmbito do feminismo, demos destaque àquelas que se


relacionavam com os temas explorados pelos filmes por nós escolhidos. Tomamos,
primeiramente, o filme Mar de rosas (1977) como um documento histórico para tratar de
debates feministas que estavam em voga no contexto sócio-político em que foi lançado, ou seja,
durante a ditadura militar e o auge da segunda onda do movimento feminista no Brasil no final
da década de 1970 e começo da década de 1980. Dentre as temáticas em voga nesse período
destacamos, entre outras, o divórcio, a popularização dos métodos anticoncepcionais e a maior
liberação sexual feminina. Esta foi a época em que a máxima “o pessoal é político” ganhou
força entre as feministas, tendo sido um momento de debates acerca de assuntos antes tidos
como privados e que deveriam ser resolvidos entre quarto paredes, tais como a insatisfação com
o matrimônio e com a maternidade. Pudemos também pôr em prática um olhar para o filme
considerando-o como um agente da História, segundo os preceitos metodológicos propostos
pelo historiador Marc Ferro (2010).
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Pudemos observar que as temáticas mais em evidência durante a década de 1990 foram
a violência contra a mulher e a inserção desta no mercado de trabalho. Em Um céu de estrelas
(1996) encontramos uma série de referências bastante explícitas à questão da violência contra
a mulher, assim como pudemos, da mesma forma, verificar uma sintonia deste em relação ao
problema da inserção das mulheres no mercado de trabalho, algo bastante debatido à época
notadamente após a Constituição de 1988. Assim como Mar de rosas, Um céu de estrelas
também foi abordado por nós como documento histórico e como agente da História, tendo em
vista o fato de ambos retratarem, cada um à sua maneira, facetas do feminismo no período e,
também, em razão da influência que exerceram sobre a percepção de um grande contingente de
mulheres sobre seus direitos e sobre seu real papel no seio da sociedade brasileira.

No último capítulo fizemos um recorte das temáticas mais comprometidas com a causa
feminista de então, tais como dupla jornada de trabalho, trabalho informal e várias formas de
se constituir como mulher e como homem. Tais assuntos foram retratados no filme Trabalhar
cansa e pudemos, também, nos debruçarmos sobre ele considerando-o como documento
históricos e como um agente da História, da mesma forma como ocorreu com os outros dois
primeiros filmes.

Já no primeiro capítulo de nossa dissertação havíamos enfatizado que, em consonância


com Marc Ferro (2010), considerávamos todos os artefatos audiovisuais como documentos
históricos e agentes da História. Realizar a pesquisa histórica (contexto) e a análise dos filmes
(texto) foi, portanto, um excelente exercício para entender o filme não somente como um objeto
artístico, mas, também, como uma prática social. Acabamos por abarcar, ainda que
sucintamente, as décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000. Além do enfoque histórico sobre os
movimentos feministas do Brasil, procuramos também destacar as mulheres que trabalharam e
ainda trabalham na direção de filmes em nosso país.

Nesse sentido, apresentamos, ao longo da pesquisa, um breve histórico do papel


feminino na indústria cinematográfica em nosso país, desde a primeira mulher a dirigir um
longa-metragem de ficção até os dias atuais, na década de 2010. Apesar de termos optado por
lançar mais luz sobre filmes de longa-metragem de ficção, mencionamos também diretoras que
trabalharam com curtas-metragens, de ficção ou não, e com documentários. Concluímos que,
apesar de ainda serem pouco numerosas, as mulheres têm cada vez mais atuado na direção de
filmes. Já havíamos mencionado que não acreditávamos que o fato de uma mulher dirigir um
filme influa para uma representação mais ou menos estereotipada do feminino no cinema,
acreditamos, entretanto, haver uma urgência em inserir devidamente a mulher na história do
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cinema de nosso país para que todas recebam o reconhecimento que merecem e para que
influenciem outras mulheres a atuarem também nesse ramo, majoritariamente ocupado por
homens.

Concluímos que as lutas no campo da representação através das quais um povo procura
impor suas visões de mundo sobre outro, são tão graves quanto aquelas de cunho econômico
ou por domínios de territórios. Por meio de formas de representação de gênero, como o cinema,
percepções de toda sorte sobre o feminino são criadas e difundidas. Tais representações
influenciam o modo de agir, de se portar e de se sentir de mulheres em todo o mundo, por isso
é essencial estimular uma democratização das mídias de forma a fazer sair essas representações
do estereotipismo que as tem marcado ao longo de suas histórias. Somos constantemente
observados na sociedade em que vivemos, seja pelas pessoas ao nosso redor ou pelas câmeras
de segurança nas ruas, prédios e estabelecimentos comerciais, por exemplo. É essa vigilância
que nos leva a agir de acordo com a norma, reprimindo desejos e outras formas de agir senão
aquelas consideradas como corretas e veiculadas e sustentadas pelos meios de comunicação.
As representações do feminino criam padrões e modelos acerca do “ser mulher” e aquelas que
não se identificam com esses padrões costumam se sentir fora da norma.

As representações do feminino no cinema e em outras mídias não são contingentes. Elas


são muito bem pensadas e formuladas com a intenção de influenciar determinadas formas de
ser. Além disso, elas também são um reflexo da própria sociedade, dos modos de agir; porém,
havemos de sublinhar que, esses mesmos modos de agir foram, e ainda são, criados também
por outros sistemas de representação, tais como a pintura e a literatura, para citar apenas dois
dos mais relevantes. Quando não existiam os modernos meios de produzir narrativas visuais e
audiovisuais em imagens em movimento, a construção e a difusão das ideias acerca do “ser
homem” e do “ser mulher” se davam de outra maneira. O cinema e a televisão são meios
bastante eficientes de doutrinação. Assim, ficarmos atentos aos discursos produzidos por esses
meios e lutar para garantir maior pluralidade nos discursos que eles engendram concedendo,
por exemplo, espaço a grupos que até então tiveram pouca ou nenhuma oportunidade de falar
de si e de criar suas próprias representações, são formas de caminhar em direção a uma maior
democratização de nossa sociedade.

Os filmes por nós aqui analisados não são feministas. Vários traços, tanto físicos quanto
psicológicos, das personagens são estereotipados e, em certa medida, dialogam com ideais do
patriarcado. Além disso, não foi a intenção de Ana Carolina, de Tata Amaral e de Juliana Rojas
fazer filmes feministas, pelo menos nenhuma das diretoras deu tal declaração em público.
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Todavia, as personagens dos filmes aqui analisados possuem caraterísticas ausentes em muitas
outras personagens femininas dos períodos de lançamento de cada um dos filmes em questão.
São personagens que apresentaram novas formas de pensar o feminino e que, por isso,
ganharam destaque nesta pesquisa.

Chegamos ao fim do mestrado, mas não ao fim do percurso. Foram abertos tantos
horizontes que é inevitável não sentir vontade de continuar. Um dos livros mais utilizados por
nós foi As musas da matinê, de Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira. Esse foi o
único registro impresso em forma de livro que encontramos que falasse sobre as diretoras
mulheres do nosso cinema. Conforme já mencionamos, elas analisaram 16 dos 21 longas
metragens de ficção dirigidos por mulheres e lançados comercialmente no Brasil desde o
surgimento do cinema em nosso país até 1980. Gostaríamos de levar adiante a iniciativa das
pesquisadoras por nós tantas vezes mencionadas e, em um doutorado, levar a cabo uma história
do cinema brasileiro com foco nas diretoras mulheres que participaram e participam da nossa
cinematografia, tanto no domínio da ficção quanto no do documentário.

Além de desenhar uma nova história do cinema brasileiro, gostaríamos de relacionar


essa história com uma história do feminismo no Brasil. Sabe-se que esse foi um movimento que
aqui surgiu justamente na mesma época em que chegou o cinema, ou seja, já no final do século
XIX. Fazer uma relação entre as duas histórias é cabível e pode ser muito interessante verificar
como as conquistas do feminismo que se deram no âmbito social refletiram no fazer
cinematográfico.

Durante a pesquisa de mestrado, concluímos haver muito pouco material escrito,


sobretudo organizado, que apresentasse as mulheres que atuaram e atuam como diretoras de
cinema em nosso país. Por que isso é importante? É fundamental romper com o estereótipo de
que existem papéis adequados a homens e a mulheres no interior da nossa sociedade. É preciso
mostrar que também no campo do cinema as mulheres podem atuar e atuam como “chefes”,
afinal o diretor é o grande responsável pelo encaminhar e pelo resultado do investimento
(filme), primando pela ordem entre as várias funções de suas equipes.

Outro ponto a ser destacado quando falamos sobre a importância de se estudar as


mulheres na direção, é o fato de ainda persistir uma insegurança, até mesmo desconfiança, por
parte de diversas produtoras e por parte de empresas que apoiam o cinema brasileiro por meio
de editais, por exemplo, em entregar um projeto ou em financiar um filme dirigido por uma
mulher. O pouco que temos documentado sobre diretoras mulheres no cinema brasileiro
contribui para essa insegurança, pois gera a impressão de que as mulheres pouco realizam tal
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função, como se fossem inexperientes, e, ainda, dá abertura para afirmações sexistas, como se
mulheres fossem incapazes de dirigir um filme ou como se soubessem que existem outras
funções mais afinadas com suas reais capacidades.

Terminamos o mestrado ansiosos por novos desafios. São muitos os caminhos possíveis
de serem trilhados no campo dos estudos de cinema. Ademais, estabelecer relações entre o
social e a arte, assim como com outros campos do conhecimento, é algo extremamente
estimulante, o que diversifica ainda mais os caminhos possíveis para o estudo. Tendo tudo o
que foi considerado em vista, a grande conclusão a que chegamos é que, por ora, nada pode ser
dado como certo ou concluído. Afinal, pesquisar é um sintoma da curiosidade, e para sermos
curiosos temos de ter dúvidas.
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