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“Clara nasceu no dia 1º de janeiro de 2000...” Com essa frase como ponto de
partida, seis autores aceitaram o desafio proposto pela “Revista”, suplemento
dominical da “Folha de São Paulo”, e escreveram um conto colectivo, numa espécie
de corrente.
A história mostra a aventura do nascimento de Clara, que chega ao mundo
durante um dos revéillons mais esperados, em um Brasil tomado por blackouts,
corrupção, desemprego, falta de verbas para a saúde pública, mas também muita
solidariedade entre estranhos.
Clara nasceu no dia primeiro de janeiro do ano 2000...
Por Marcelo Coelho
Temeu o pior. Aquele filho não os deixava em paz. Sempre cobrou com
firmeza as últimas moedas da família. Miguel viera da Bahia disposto a superar
as armadilhas do destino, desta vez representadas por Débora, que pretendia
guardar sozinha o dinheiro proveniente das glórias da maternidade. Mas,
graças à Maria, amiga de Débora, descobrira que a mulher havia vendido o
Bebê 2000, concebido pelos dois, para Agostinho, sócio da agência.
Por isso, ao chegar ao hospital, mesmo no escuro, abordara o homem de
peruca loira que, encostado perto do elevador, aguardava o desfecho do caso e
que reagira à sua proposta brandindo noções de justiça. Afinal, quem era ele?
Firmara o contrato com Débora e não tinha que lhe dar satisfações.
- Metade do “Bebê 2000” é minha. Sou o pai e sem minha licença não há
negócio. Apesar da escuridão, aprumou o porte atlético.
Agostinho hesitou. Além de Débora parir dentro de um elevador em
frontal desrespeito às regras do acordo, aquele malandro extorquia-lhe dinheiro
com rigorosa desfaçatez. Coçava aflito a peruca que se movia na careca como se
tivesse vontade própria.
Em defesa de seus interesses, ia Miguel aumentando o timbre da voz
quando a porta do elevador, ao retorno da luz, abriu-se como as cortinas de um
teatro, para oferecer ao público a visão de um presépio formado por miseráveis
descabelados, sujos, a exibirem uma arte precária, mas eterna.
Aquela estética comezinha, tão brasileira, decepcionara Agostinho. Era
como sentir-se um rei mago sem ouro, incenso, mirra, sem uma história ao
menos para contar. Indiferente a que Miguel, que não lhe perdia os gestos,
nutrisse até o último minuto a esperança de Agostinho promover quem sabe o
espetáculo da vida em estado natural. E cogitava assim da fortuna, quando o
assistente de produção arrancou o publicitário da letargia...
- Estamos salvos Agostinho. Já temos o “Bebê 2000”, que acaba de nascer.
Ainda com o bebê em seu poder, Almeidinha lutava por superar aquela
corrida de obstáculos. Confiava que a agência compensasse quem arrancara o
bebê do milênio das entranhas maternas. Embora estranhasse que os
enfermeiros, levando agora Débora na maca, se esquecessem da criança,
atordoados talvez pelos ruídos dos fogos que, persistindo pela cidade, pareciam
estourar em seu peito.
Ao lado do pai, Miguel não se deixava abater. Havia que ser convincente.
Como explicar-lhe que a criança, lambuzada de sangue, colada ao corpo de
Almeidinha como uma anêmona, era sua filha? E que levaria na alma a mesma
expressão de assombro de quando ele, montado na prancha, subjugava as
ondas, os vagalhões, o próprio mar.
- Está vendo esta cria, pai? Acercou-se para que lhe visse os olhos
marejados. - Foi por ela que voltei.
As fisgadas da úlcera de Almeidinha recrudesceram. Pressentiu que a
confissão de Miguel se traduziria em novos sacrifícios.
- O que quer dizer? Desembucha logo, rapaz. Acaso é sua filha?
Por Luis Fernando Veríssimo
- É.
- Você é o pai da Clara?
- Sou.
- Como foi isso?
- Em Porto Seguro. Uma noite. A gente transou e pimba.
“Pimba”, no caso, querendo dizer o mistério da concepção, outra vagina
regada com o rio salgado que saiu do Éden por outro portador distraído, na
língua do Miguel.
- Veja o que é a vida disse Almeidinha, com os olhos baixos, como se a
vida estivesse no chão. Você fez o filho e eu fiz o parto.
- Vai ser bom pra nós dois, velho.
- Bom?
- É o Bebê 2000. Nós vamos ser famosos.
- Parece que ela nasceu antes do tempo.
- Não interessa. Tem agência de publicidade na jogada, dinheiro grosso.
Dinheiro compra até tempo. Dinheiro faz andar o relógio.
Almeidinha tinha levantado os olhos. Estava olhando para o filho,
ponderando aquela coincidência. O que era, mesmo, a vida. Ele estava cansado,
precisava de um banho. Precisava entregar a criança à sua mãe e ir para casa
tomar um banho.
- Eu não disse que era pra você usar camisinha sempre?
- Pô, velho. Se eu tivesse usado camisinha, isto não estaria acontecendo.
“Isto” era o movimento que crescia em volta dos dois. As luzes e as
câmeras tinham perseguido a mãe. Agora estavam voltando. Todos tinham se
dado conta que o bebê ficara no colo do Almeidinha, e começavam a voltar. A
estrela da noite estava no colo do Almeidinha.
- Velho! Pensa só.
Miguel queria dizer que o pai tinha que se orgulhar dele. Aquela noite, em
Porto Seguro, quando entrara na Débora, estava entrando na História.
- Pensa só, velho. Eu não sou mais só um garotão bonito. Eu sou o
primeiro pai do milênio.
- Quem é o senhor? perguntou uma repórter ao Almeidinha.
- Eu sou do hospital. Eu guiei a ambulância. Eu fiz o parto. Eu não sou
ninguém.
- Ele é o avô! gritou Miguel.
Ninguém ouviu porque a criança começou a berrar. Todos os microfones
na boca do Bebê 2000. O pessoal da agência também voltara, para buscar a
criança esquecida no colo do Almeidinha. Miguel foi atrás deles.
- Minha filha!
Os fogos de artifício agora pareciam uma metralhadora, várias
metralhadoras, uma chacina. Era meia-noite, era meia-noite, as luzes e as
câmeras corriam atrás do pessoal da agência, que levava o Bebê 2000 para ser
filmado junto da mãe. Almeidinha ainda viu o Miguel pulando no meio da
multidão que se afastava, gritando para ele:
- Velho! Consegue um advogado. Não vamos assinar nada sem um
advogado! Isto vai dar um dinheirão! Você tem que se orgulhar de mim!
E depois, num último salto:
- Aí, vovô!
Almeidinha ficou parado no meio do hall subitamente vazio, apalpando a
barriga. Maldita úlcera. Viu chegar o dr. Roberto. Finalmente, o dr. Roberto.
- O que está havendo aqui? perguntou o dr. Roberto.
Almeidinha olhou em volta. Não estava havendo nada ali. Perguntou:
- Dr. Roberto, e as ambulâncias novas?
O dr. Roberto fez o seu gesto de sempre, como se estivesse se defendendo
de um enxame de abelhas em vez do Almeidinha, antes de entrar no elevador.
- Não há verba, não há verba!