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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER:

AS MARCAS DO RESSENTIMENTO*

Mari Nilza Ferrari de Barros**

RESUMO
Nesta apresentação, pretende-se discutir a relação violentador/violentado, empregando
como referencial teórico as discussões desenvolvidas por Arendt (1994, 1989), Gay
(1995), Nietzsche (1987) e Espinosa (1973) destacando dois princípios: o ressentimento
tal como é desenvolvido por Nietzsche, e as afecções do medo e esperança, defendidadas
por Espinosa. A transitoriedade de um contexto violento é uma construção feita pela
mulher e revela-se como estratégia para resistir às ações de violência praticadas contra si
e, ao mesmo tempo configura-se num instrumento empregado contra sua própria pessoa,
na medida em que prolonga seu sofrimento. As promessas de não-violência oferecidas
pelo parceiro asseguram o envolvimento necessário para perpetrar as práticas violentas.
Esse contexto contribui para a construção de uma subjetividade, onde a fragilidade psíquica
e a dependência emocional dão a sustentação necessária para uma transitoriedade que
se expressa de forma permanente. As relações desenvolvidas entre os parceiros oferecem
um devir marcado pela mesmice, construindo uma vida de má-infinidade. A violência
física intermitente e a violência psicológica contínua resultam em uma ambigüidade na
relação, especialmente pelo fato de que aquele que violenta é um “ outro” significativo,
por quem a mulher nutre um afeto, fazendo com que ora ela resista – enfrentamento, ora
se submeta – passividade. Essa ambigüidade, demarcando ações de conformismo e
resistência, aumenta a complexidade do fenômeno da violência, exigindo uma reflexão
que permita compreender a dimensão afetiva e os diversos sentidos colados às ações
violentas, de forma a reconfigurar as relações.

PALAVRAS-CHAVE
violência – gênero – ressentimento – conformismo – resistência

* Trabalho apresentado na Mesa Redonda “Violência, subjetividade e cidadania”, no I


Congresso Paranaense de Psicologia Social – “Práticas e perspectivas da Psicologia Social
no final do Século”, ocorrido na cidade de Londrina, no período de 4 a 6 de novembro de
1999, promovido pela ABRAPSO – Núcleo de Londrina.
** Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual
de Londrina-PR. End.: Caixa Postal 6001 – Londrina-PR – CEP 86051-990.

PSI – Rev. Psicol. Soc. Instit., Londrina, v. 2, n. 2, p. 129-148, dez. 2000 129
VIOLENCE AGAINST THE WOMAN:
THE MARKS OF THE RESENTMENT

ABSTRACT
This prestation intends to discuss the relationship raper/raped, using as theoretical
reference the discussions developed by Arendt (1994, 1989), Gay (1995), Nietzsche
(1987) and Espinosa (1973) highlighting two principles: the resentment just as it is
developed by Nietzsche, and the affections of the fear and hope, defended by Espinosa.
The transitoriness of a violent context is a construction done by the woman and it is
revealed as strategy to resist to the violence actions practiced against herself and, at the
same time it is configured in an used instrument against her own person, prolonging her
suffering. The no-violence promises offered by the partner assure the necessary
involvement to perpetrate the violent practices. This context contributes to the
construction of a subjectivity, where the psychic fragility and the emotional dependence
allow the necessary sustentation for a transitoriness that is expressed in a permanent
way. The relationship developed between the partners offers a duty marked by the
sameness, building a bad-intimacy life. The intermittent physical violence and the
continuous psychological violence result in an ambiguity in the relationship, especially
for the fact that the one that rapes has a “other” significant, for who the woman nurtures
an affection, one time resisting – confronting, another time submitting – passivity. That
ambiguity, determining conformism actions and resistance increases the complexity of
the phenomenon of violence, demanding a reflection that allows one to understand the
affectionate dimension and the several agglutinated senses to the violent actions, in a
way of redoing the relationships.

KEY WORDS
violence – genre – resentment – conformism – resistance

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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: AS MARCAS DO RESSENTIMENTO
Mari Nilza Ferrari de Barros

As reflexões que pretendo fazer hoje são resultado de experiências


que venho desenvolvendo com mulheres violentadas. Para melhor
compreender esse fenômeno, é importante conhecer o trajeto que percorri.
A primeira indagação que fiz foi: por que mulheres que sofrem violência
permanecem convivendo com os violentadores? Distanciada do problema,
uma vez que não vivia num ambiente violento, entendia, como cidadã, que
a resposta imediata e lógica de alguém que sofre violência seria retirar-se do
contexto que a produz. Mas, reconhecia também que este contexto não
poderia resumir-se ao ambiente doméstico. O processo de exclusão social
tem ampliado o contingente de pessoas que integram o grupo dos excluídos,
aprofundando as desigualdades sociais nas mais diferentes dimensões da vida
cotidiana. É claro que a dinâmica social produz impactos no ambiente familiar,
além de responder por uma certa configuração das relações neste meio.
As diferenciações sexuais, processo notadamente biológico, resultam
em desigualdades, assinalando experiências e representações distintas de
gênero, e aqui, a sustentação está na família, cultura, tradições, classes sociais,
entre outros.
Por outro lado, uma nova interrogação percorria o meu imaginário:
agora, acreditava que o problema da violência contra mulher e a permanência
desta num contexto violento era decorrente de condições econômicas, ou
melhor, da falta de condições econômicas para superar a violência sofrida.
Com estas indagações presentes iniciei um projeto de pesquisa que
hoje se transfigurou num projeto de extensão. Nesse período, algumas leituras
e autores foram fundamentais para dimensionar a natureza e complexidade
do problema. Passo então, de forma breve, a tratar de alguns aspectos que
me auxiliaram a refletir sobre a violência.
O fenômeno da violência suscita muitas inquietações. Diversos autores
fazem recortes que de alguma forma iluminam melhor essa temática. Ao

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percorrer o caminho trilhado por alguns deles, tenho a certeza de ser esta
questão complexa e multifacetada. O que busco é a possibilidade de ampliar
o conhecimento, de forma a construir instrumentos capazes de efetuar uma
intervenção. Sei que corro o risco de desfigurar ou descaracterizar princípios
ou conceitos abraçados por aqueles, mas ciente da necessidade de uma
interpretação que tenha consistência e coerência.
A fidelidade que busco está pautada pela necessidade de compreender
o fenômeno da violência, articulando as dimensões de afetividade e
subjetividade. Um dos autores que julgo importante para abordar a dimensão
da subjetividade da mulher violentada é Merleau-Ponty. É dele a expressão
de que o vivido, a experiência enquanto tal, é o fundo sobre o qual a ciência
se debruça. A ciência é sempre expressão segunda da experiência do mundo
vivido1 . Interessa pois, saber como se constitui a experiência de violência
vivida por essas mulheres. Tomo emprestado também alguns princípios
discutidos por Nietzsche (1987), em especial a questão do ressentimento.
Para este autor, há uma relação credor-devedor responsável pela produção
do sofrimento no outro. Dessa relação surge a má consciência, a qual expressa
a raiva originada pelo dano sofrido. Neste momento, cabe uma pergunta:
qual o dano que a mulher violentada provoca no violentador? O que o
violentador quer restaurar por meio da violência?
Ainda no contexto da equivalência pretendida, Nietzsche sugere que
essa busca por compensação, a necessidade de apropriação do outro, seja
pelo bem que possui ou pelo próprio corpo se sustenta pela memória – do
não esquecimento, ou as marcas do ressentimento.
Hanna Arendt (1994) entende violência a partir do seu caráter
instrumental e distinta da autoridade e poder. Enquanto ferramenta, a violência
é planejada e usada com o propósito de multiplicar o vigor natural até que
“... em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo”. (Arendt,
1994, p. 37). Assim, a violência expressa a ausência de vigor, força, energia
que, se estivessem presentes, não necessitaria da violência. Desse modo, a

1 Merleau-Ponty, M. (1994). Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes.

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violência se encontra no pólo da fragilidade/fraqueza e não no pólo da força.
Na verdade, quando um indivíduo sente-se incapaz de exercer o poder e
autoridade por meio do respeito e da coesão é que a violência ganha
expressão.
Sendo a violência de natureza instrumental, seu uso dependerá de
orientação e justificativa pelos fins desejados. Nesse sentido, Arendt entende
que a violência não pode ser a essência de nada. Embora possa ser justificável,
não há nenhuma legitimidade no exercício da violência e, ainda que possa
destruir o poder, nenhum poder emana dela. Sobre isso esta autora afirma:

Tem sido bastante afirmado que a impotência gera violência e, psicologicamente,


isto é verdadeiro, ao menos para pessoas que possuíam vigor natural, moral ou
físico (Arendt, 1994, p. 43). O ódio que produz a violência deve ser visto como
expressão de uma irracionalidade onde a inteligibilidade da situação assinala
mudanças, ou seja, “ (...) o ódio aparece onde há razão para supor que as condições
poderiam ser mudadas, mas não são. (p.47).

Há, portanto, um sentido contido nos atos violentos, há uma mensagem


a ser captada, uma dramatização de problemas que transitam da interioridade
(subjetividade) para o social-público.
Retomo aqui Merleau-Ponty (1994, p. 231) com essa expressão: “O
corpo é um nó de significações vivas. A materialidade se expressa pela forma
como o corpo interage com o mundo é uma forma de ... dizer que posso ser
visto como um objeto e que procuro ser visto como sujeito, que o outro pode
ser meu senhor ou meu escravo”. A sujeição ou autonomia pode ser
compreendida a partir das relações que cada um de nós estabelece com os
“outros significativos”. Se as condições objetivas oferecidas exigem apreensão
de expectativas sociais e a expressão destas em forma de comportamentos,
podemos dizer que a identidade social e singularidade se confundem, na
medida em que a primeira engloba a segunda e só reconhece esta última
como meio de expressão daquela.
Agora, cabe então outras perguntas: o que o violentador pretende dizer
quando pratica a violência? Qual o impacto da violência na constituição da
subjetividade da mulher violentada?

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À primeira pergunta pode-se responder, começando pela discussão
desenvolvida por Gay (1995, p. 12) “[...] o tipo de agressividade que uma
cultura recompensa ou deprecia, legaliza ou bane, obviamente depende dos
tempos e das circunstâncias, dos riscos e das vantagens percebidas, dos hábitos
sociais de rebeldia e conformidade”.
É preciso destacar os diferentes significados que podem ser extraídos
desta afirmação de Gay. Em primeiro lugar, há uma insinuação para a
conivência ou aceitação de atos violentos do indivíduo, grupo ou cultura. Há
ainda a necessidade de compreender historicamente como esses atos se
modificam ou se consolidam em razão de condições objetivas, o que remete
para a especificidade da cultura, raça, religião, comunidade num tempo
histórico-social. Por outro lado, o autor sinaliza para o fato de que em todo
ato há riscos e a expressão da violência deve considerar a relação custo-
benefício. Como último aspecto contido ainda na afirmação de Gay está a
intencionalidade expressa no ato, quando lembra que a violência pode revelar
conformismo ou rebeldia. Em síntese, tratar da violência exige uma análise
multidimensional que contemple a diversidade de aspectos estruturais
(economia, sociedade, cultura, moral), históricos (grupos sociais e sua
localização num tempo histórico-social) e conjunturais (contexto no qual a
violência se expressa). É uma resposta a que e a quem?
Se entendermos violência com uma resposta ou reação a algo ou alguma
coisa encontraremos em Skinner (1970, 1976, 1979) uma explicação. Para
esse autor, a frustração leva a agressão. Na impossibilidade de alcançar um
objetivo ou tentativas cujos resultados são o fracasso e insucesso (leia-se
frustração), o indivíduo pode sentir-se estimulado a dar respostas agressivas.
Na incapacidade para obter o desejado, ou alterar o existente, a violência se
manifesta. A expressão da frustração pode ser dirigida para pessoas que estão
próximas do sujeito (agredir a mulher quando a intenção era de agredir ao
patrão). Estas formas de interpretação estão associadas ao que Gay (1995)
denomina de álibis.
Para Gay a sociedade desenvolveu álibis para a agressão, entendendo
por eles “[...] crenças, princípios, platitudes retóricas que legitimam a militância

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verbal ou física em terrenos religiosos, políticos, ou melhor, que tudo,
científicos” (1995, p. 14). Os álibis legitimam atos violentos, podendo
estimular certas ações e, ao mesmo tempo, estipulam os limites dentro dos
quais essas ações devem ter expressão.
“Um ato de agressão é uma transação, e a maneira como é julgado
depende, obviamente, da perspectiva dos participantes” (Gay, 1995, p. 14)
o que compreende percepções e julgamentos diferentes. Aquele que agride,
na concepção de Gay, pode ser movido pelo prazer de produzir sofrimento
no outro. Esta também é a interpretação desenvolvida por Nietzsche.
Os álibis estão circunscritos à cultura, classe social e carregam uma
história. Segundo Gay, a maioria dos álibis é vestimenta nova para formas
antigas e consagradas de agressão, a saber: a concorrência, originária da teoria
biológica ou darwinismo social segundo a qual os mais fortes terão assegurado
maiores chances de sobrevivência. A competição entre os seres da mesma
espécie deve resultar na eliminação de uns, aumentando o poder de outros;
a construção do outro conveniente que dissemina a idéia de que a agressão
é simples reação a um outro que desencadeia uma ação violenta e, por último
o álibi do culto à masculinidade, que reconhece a virilidade do “macho”
desde que suas ações representem uma combinação de força e poder. Todas
essas formas antigas e consagradas de agressão ofereciam oportunidade de
identificações coletivas – realizando ao mesmo tempo um processo de
integração e exclusão, produzindo “[...] o mesmo efeito; cultivam o ódio em
ambos os sentidos do termo: ao mesmo tempo o estimulavam e o continham,
fornecendo argumentos respeitáveis para seu exercício e simultaneamente
obrigando-o a fluir dentro de canais de aprovação cuidadosamente
demarcados” (Gay,1995, p. 43).
Cabe observar nesta afirmação de Gay que a agressão tem sua expressão
estimulada em determinado contexto, circunscrevendo não só os limites dentro
dos quais deve ser exercida, mas, reconhecendo sua legitimidade, desde
que observadas as regras da cultura e moral, próprias da sociedade em questão.
Os diferentes álibis empregados pela sociedade, numa determinada
época e lugar, de uma forma direta ou indireta, consensual ou explícita,

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privilegiam o mais forte, justificando via de regra, o predomínio do masculino
sobre o feminino, de uma religião, ou ainda de uma raça sobre as demais. Ao
reconhecer o “outro” como estranho e portador de sérios e graves defeitos,
a sociedade autoriza os homens que a integram a pensar e praticar atos de
hostilidade contra os seus pares, ou melhor, contra aqueles representados
como desiguais.
A necessidade de diferenciação por meio de características, atributos
e valores que glorificam e enaltecem o “eu”, ao mesmo tempo em que denigre
o “outro”, não está confinado a grupos étnicos ou religiosos. O processo de
constituição da diferença está presente nos diversos grupos que caracterizam
uma sociedade e atravessa todos os períodos da humanidade. O que
permanece inalterado na temporalidade histórico-social é a intenção
subjacente a essas formas de diferenciação.
“A intenção é sempre a mesma: seja nação, província ou cidade, seja
religião, classe ou cultura – quanto maior o amor por si mesmo, maior o
direito de odiar o outro” (Gay, 1995, p. 76).
Quando a objetividade dos fatos ou realidade social não apresenta
justificativas para a violência, o homem coloca no outro a razão de uma
violência que carrega dentro de si mesmo. Nesse momento, a violência pode
ser caracterizada como difusa e o objeto externo é apenas condição para
exteriorizar sua subjetividade. Deslocar para o “outro” a violência contida
seria uma maneira confortável do homem proteger-se de seus próprios
defeitos, porque, segundo Gay (1995) não os reconhece em si mesmo.
“Quando alguma coisa está errada dentro de nós, procuramos a causa
do lado de fora e logo a encontramos” (Gay, 1995, p. 78). Uma reflexão
sobre essa afirmação comporta, pelo menos, duas interpretações: a primeira
refere-se à necessidade do homem em se desvencilhar de sentimentos e
ações considerados socialmente injustos, maus, ilegais. Para resolver o conflito
entre aquilo que sente e faz e a censura ou desaprovação social, re-significa
sua ação como re-ação, ou seja, interpreta sua ação como reação à ação
produzida por outros. A hostilidade, então, é do outro, vem do exterior em
direção a ele. Há ainda uma segunda interpretação: a afirmação de que algo

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de ruim ou destrutivo existe “dentro” do homem revela um temor para
reconhecer falhas e defeitos como próprios de todo e qualquer homem,
considerado em seu contexto, história e condições objetivas. A ruptura entre
homem e contexto é a ruptura entre ação e significação de tal modo que
poder-se-ia afirmar com uma certa dose de fatalismo sobre a inexorabilidade
do destino da espécie humana para a destruição. Segundo esse raciocínio
seria preciso também reconhecê-la como constitutiva da herança genética,
transformada em instintos, caráter e outras expressões correlatas como
predisposição, tendência, entre outras. Nesse caso, pouco ou quase nada há
a fazer, até porque, tomar consciência dessas características não alteraria o
curso do desenvolvimento do homem.
É preciso diferenciar os álibis construídos pelo indivíduo ou grupos sociais
como justificativas para as ações violentas, das interpretações habilidosas que
podem ser empregadas pela própria ciência, pois esta última pode transformar
os álibis em teorias, legitimando-os, o que na expressão de Gay eram
“[...]organizadas racionalizações de preconceito” (p. 83).
A extrema benevolência expressa no julgamento de si e o rigor na
avaliação da conduta do outro sustenta não só a arbritariedade das diferenças,
como também faz destas o critério para classificar os indivíduos e grupos
como “bons” e “ruins”, “inferiores” e “superiores”, “fracos” e “fortes”, e
assim sucessivamente. É assim que nascem os dogmas, preconceitos;
interpretações carregadas de julgamento moral, as quais auxiliam na
sustentação de legitimidade do processo de desigualdade social.
A construção das diferenças deve caminhar no sentido de privilegiar a
subjetividade singular e concreta como pluralidade e, ao mesmo tempo, como
unicidade.
Buscando uma inteligibilidade que amplie não só a compreensão do
fenômeno, mas a capacidade para alterá-lo, é preferível apostar na plasticidade
do ser humano e em sua capacidade para se apresentar, representar e significar
a si e ao mundo. A ênfase deve recair, portanto, nas relações que o homem
estabelece com o mundo social e em como articula as significações sociais
com os sentidos pessoais que constrói na vida cotidiana.

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Para circunscrever o problema da violência na cotidianidade, trato agora
da família.
As regras sociais desenvolvidas para assegurar um convívio social
ajustado, com preocupação de segurança social objetiva, são responsáveis
pela insegurança subjetiva do homem contemporâneo, produzindo um
sentimento de enfermidade, de violência e encarceramento de sua própria
liberdade. Essa é uma violência simbólica e surge como produção da violência
material. O sentimento de insegurança que atravessa diferentes períodos e
culturas permanece forte ainda hoje, mas sob expressões diferentes.
Para Chesnais (1981) a violência física é a única forma de violência
que pode ser mensurável pelo seu triplo caráter: é exterior, brutal e dolorosa.
Os historiadores e arqueólogos apresentam documentos que provam a
crueldade das civilizações que nos precederam. O homem luta por defender
seu espaço, seu status ou sua presença, muitas vezes, em razão da organização
e estrutura das sociedades, demarcadas por hierarquias, espaços e direitos. Em
que pese o fato de algumas hierarquias serem invariáveis ao longo da história,
como as de idade e sexo, estão implicadas nessas uma posição de dominação ou
submissão. Práticas violentas podem sofrer transformações mas, segundo Chesnais,
a intenção é sempre a mesma: reduzir a oposição; exorcizar o mal.

A família é o lugar do paradoxo. Centro da afeição, refúgio contra a adversidade,


é também o foco principal da violência, o único lugar onde cada um pode descobrir,
sem disfarce, sua verdadeira face... Mas a violência contra os membros de uma
mesma família é algo do qual não se costuma falar: ela é secreta e vergonhosa.
(Chesnais, 1981, p. 78)2

A violência familiar ocupa grande espaço no conjunto da violência. A


imagem oficial da família é de tranqüilidade. Este é o seu lado aparente que
oculta os atritos que ocorrem no seu interior. O crime familiar é muito mal
conhecido, subnotificado, embora bastante comum.

2 La famille est le lieu du paradoxe. Centre d’affection, refuge contre l’adversité, c’est aussi le
premier foyer de violence, l’unique endroit où chacun peut découvrir, sans fard, son vrai
visage... Mais la violence entre les membres d’une même famille est une chose dont on n’a
pas coutume de parler: elle est secrète e honteuse. (tradução livre realizada pela autora).

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As mudanças ocorridas na família mostram que o significado do
casamento está em transformação. A união agora está mais centrada na
afetividade do que no interesse, mais no casal do que na família.
As formas de violência familiar são numerosas e tendem a se diversificar,
acompanhando a complexidade das situações familiares. A essência da vida
familiar é contraditória: o quadro familiar oferece segurança e ao mesmo tempo
perigo. Mas, essa ambivalência é pouco percebida, pois se acredita menos na
violência entre pessoas que mantém vínculos estreitos do que contra estranhos.
“É no seio do círculo familiar ou, mais amplamente, do círculo que nos
são próximos que se recrutam a maior parte dos assassinos” (Chesnais, 1981,
p. 79)3 . Esta é uma realidade antiga e ao mesmo tempo, cada vez mais atual.
Um em cada seis casais entram em confronto físico pelo menos uma vez por
ano, usando objetos como faca ou armas de fogo. O risco de ser morto por
alguém do grupo familiar é maior do que por estranhos, exceção feita pela
polícia (Chesnais)4 .
No passado, a indignação era contra as crianças espancadas e maltratadas.
No inicio da década de 70, o foco passou a ser a violência sexual contra as
crianças; em meados da década de 70, a atenção voltou-se para as mulheres
vítimas de violência e hoje, os homens também aparecem como integrantes
do grupo de violentados. Acrescente-se ainda a violência contra irmãos, de
filhos contra os pais, dos mais novos sobre os mais velhos.
A família é o lugar onde se manifestam o amor e a violência. No
ambiente familiar tudo é permitido, com exceção do abuso sexual que sofre
grande censura social, embora na intimidade do lar possa haver conivência.
“A violência sexual é o único crime cujo autor se sente inocente e a vitima
envergonhada” (Chesnais, 1981, p. 145). Parece haver um espaço inviolável:
o domicilio pessoal. Esse mundo à parte vive segundo regras próprias e admite
apenas ingerências e correções recíprocas. Essa forma de representação do

3 “C’est au sein du cercle familial ou, plus largement, du cercle des proches que se recrutent
la plupart des assassins”. (tradução livre realizada pela autora).
4 Sobre a violência praticada em decorrência do convívio intenso com redes de parentesco

ver o livro de Sidney Chalhoub, Trabalho, lar e botequim, São Paulo: Brasiliense, 1986.

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ambiente doméstico está disseminada de tal modo que raramente a sociedade,
por meio de vizinhos por exemplo, intervêm nas desavenças familiares. No
seu interior admite-se o direito de bater em outros membros, os pais batem
nos filhos, os irmãos se agridem, o marido espanca a mulher. Essa violência
não só é considerada legítima, como saudável e educativa.
A diminuição da taxa de fecundidade, a coabitação de gerações torna
o grupo familiar mais íntimo e fechado sobre si mesmo; as emoções se
concentram, as paixões se cristalizam. Sua opacidade aumenta e, com isso, a
violência exercida no seu interior se esconde.
De um modo geral, o que se observa é que as leis foram feitas por e
para os homens. Para esses, os direitos e para as mulheres os deveres. A
igreja reconhece a mulher como acessório do homem. Por muito tempo a
mulher esteve sozinha na luta contra a violência. Por vezes tinha na Lei e no
Direito um adversário. Essa legislação sexista não fazia senão refletir o estado
das instituições e representações sociais dominantes. Apesar de grandes
mudanças ocorridas em relação as questões de gênero como a liberdade
sexual, ingresso da mulher nas atividades da esfera pública, há ainda uma
desigualdade acentuada no âmbito do privado. As relações sociais ainda
funcionam baseadas num modelo hierárquico, repressivo e autoritário, no
qual a mulher se define a partir da posição ocupada pelo marido/parceiro,
onde o casamento ou união aparece como apropriação. Isto é particularmente
verdadeiro para as famílias de baixa renda. Para melhor exemplificar a
intensidade da desigualdade e a expressão de uma relação marcada pelo
principio de propriedade, vou relatar o caso de Joana (nome fictício), uma
das mulheres que participa de um projeto de extensão que atende mulheres
que experienciam violência.5
Joana é uma mulher de 39 anos, de baixa estatura e formas bastante
arredondadas. Quando chegou para a primeira entrevista tinha a aparência
de mais idade. Sua história de violência teve inicio há aproximadamente 9

5 O projeto em questão “Emoção e subjetividade da mulher agredida: as marcas do


ressentimento” existe desde 1999 e trabalha em grupo com mulheres violentadas. Este
projeto está sob minha coordenação.

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anos atrás, quando se uniu com o parceiro atual. Antes desse, foi casada com
um agricultor e com ele teve 2 filhos: um casal. Viveu relativamente “bem”
(expressão dela) com o primeiro marido por 5 anos. O emprego do adjetivo
“bem” é porque, segundo Joana, o marido ficava em casa durante a semana,
trabalhando na terra. A vida dos dois era só trabalho, aliás, a vida para ela era
só trabalho. Nos fins de semana, o marido pegava o carro e ia para a cidade
sozinho, voltando só de madrugada ou no final de domingo. Um dia, quando
levava o filho ao médico, passou diante de um bar e encontrou o marido que
tinha uma mulher sentada em seu colo. Ao voltar para casa, decidiu abandoná-
lo e foi embora com os filhos. Obrigada a sobreviver, e não tendo profissão
para conquistar um emprego no mercado formal de trabalho na cidade, Joana
deixou os filhos com os avós maternos e foi procurar emprego de doméstica
em outra cidade. O ex-marido, logo que ela saiu de casa, colocou a amante
para morar com ele e estão juntos até hoje. Mas, como o ex-marido por
vezes a procurava buscando uma reconciliação, Joana mudou-se para
Londrina, pois assim estaria mais longe e dificultaria o contato com ele.
Após um período em que permaneceu morando na casa dos patrões,
onde trabalhava como doméstica, Joana conheceu o atual parceiro. De início,
as relações eram boas, até que nasceu a primeira filha. Para realizar o parto
foi preciso escolher uma médica obstetra, uma vez que o marido não deixava
que lhe tocassem. Aliás, fazer o pré-natal foi um grande desafio, posto que o
marido não queria de forma alguma que ela expusesse seu corpo para outra
pessoa. Mas, isso não era tudo, nem era o mais grave. Para atender às
exigências do marido, Joana não pode amamentar seus dois filhos, pois ele
não queria que ninguém, inclusive os filhos, tocasse nas partes que ele “usava”.
Daí para frente, as exigências não só aumentaram, como foram cobradas
com violência física e psicológica – resultando numa Joana diferente, muito
diferente de anos atrás. O filho do primeiro casamento, que estava com os
avós, rompeu relações com ela, porque não suportava presenciar as cenas de
violência quando a visitava, nem tampouco compartilhar do sofrimento
revelado pelas marcas físicas que a violência deixava. Já teve um braço e
mão quebrados; foi arrastada por uma rua de pedra e teve a pele exposta em

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“carne viva”. O rosto, já se esqueceu de quantas vezes ficou deformado pela
violência. A bebida aumenta a violência e às vezes, era o disparador. Seu
marido também tem uma história de violência na infância. Do pai apanhou
inúmeras vezes e com muita violência, deixando marcas físicas e psicológicas.
O pai (do marido) também era alcoolista e, para evitar uma tragédia maior,
sua mãe foi inúmeras vezes obrigada a dormir com os 8 filhos na rua.
Joana só respondia à violência quando o marido atingia os filhos. Os
dois filhos foram muitas vezes espancados, com traumas físicos e psicológicos.
Eles também estão sendo atendidos no projeto e em relação a menina há
suspeita de abuso sexual.
Faço agora algumas reflexões sobre a história de violência contra Joana
e a sua permanência neste contexto violento.
A violência física era empregada por seu marido em intervalos de
tempo, ou seja, sofria interrupções, era intermitente. Nos períodos em que o
marido permanecia sem agredir, Joana se fortalecia psicológica, física e
emocionalmente, alimentada pela “promessa” do outro de não violência.
Outro fator que contribuía para sua permanência no ambiente familiar era a
violência psicológica, esta sim, ininterrupta, diária.
As marcas da violência psicológica residem na subjetividade da mulher
e lidar com elas é sempre mais difícil do que tratar das feridas deixadas pela
violência física. O impacto deixado pela violência psicológica é múltiplo e
profundo, deita raízes fortes, algumas sem possibilidade de podar. Como a
violência é feita por um “outro significativo”6, que integra seu grupo de
pertença e reconhecimento social e por quem aprendeu a vincular-se
afetivamente, as mensagens contidas na violência psicológica têm valor de
verdade e, por isso, fragilizam psicologicamente a mulher. Aquele de quem
ela “gosta”, com quem compartilha os afetos, projetos e a vida familiar e social é
o mesmo que denigre sua imagem/representação naquilo que lhe é mais caro: a
sua dignidade e honra. Concorrem para isso, a interrupção da violência física e
as promessas de não violência e agressões verbais de toda ordem.

6 A expressão “outro significativo” foi desenvolvida por G. H. Mead.

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Para melhor entender essa ambivalência de sentimentos e ações, é
importante lembrar o que afirma Arendt (1989): o medo e a esperança são os
sentimentos mais perigosos no homem. O medo porque acua, impede que o
ser humano modifique suas ações, reduz a possibilidade de plasticidade;
acovarda, fragiliza-o e coloca-o na dependência/submissão ao outro. As
ameaças que acompanham as tentativas de ruptura têm essa função. As
promessas de não violência, por outro lado, anunciam um devir diferente,
marcado pela ausência de não agressão.
Ainda sobre o medo e a esperança, a contribuição de Espinosa é
inquestionável, pois permite compreender a dificuldade das mulheres em
superarem a violência. Sobre o medo, Espinosa (1973, p. 59) tem a seguinte
definição: “O medo é uma tristeza instável nascida da idéia de uma coisa
futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida”. Para
Espinosa há 3 afeições fundamentais no homem: desejo, alegria e tristeza, e
as demais emoções decorrem dessas três. Já a esperança é entendida como
“Uma alegria instável, nascida de uma idéia de uma coisa futura ou passada
de cujo desenlace duvidamos em certa medida” (p.59). Tanto o medo como
a esperança estão marcados pela dúvida, incerteza. No caso do primeiro,
desejamos que algo não aconteça (violência), mas duvidamos de sua realização.
Contrariamente, a esperança refere-se ao desejo de que algo aconteça (não-
violência), mas duvidamos do seu desfecho.
Surge, então, a conclusão de Espinosa, a saber: “... não há esperança
sem medo, nem medo sem esperança” (1973, p. 60). São essas emoções,
marcadas pela ambivalência, o contexto característico para a manutenção da
mulher num lar violento.
É de Arendt (1989, p. 248) a afirmação: “A única solução possível para
o problema da irreversibilidade – a impossibilidade de se desfazer o que se
fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a
faculdade de perdoar”. Assim, podem-se modificar as situações oriundas de
experiências passadas quando se perdoa, ao mesmo tempo em que se abrem
novas perspectivas. Contudo, é preciso lembrar que o perdão não se relaciona
às ações do outro, ao contrário, é perdoar a si mesmo por ter vivido uma vida
de má infinidade.

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Concomitante ao ato de perdoar a si mesmo, deve acontecer o
prometer. Agora a promessa não é feita pelo outro, mas pelo sujeito a si
mesmo. Essa é a maneira que o homem encontra para lidar com a aparente
imprevisibilidade e incerteza quanto ao futuro. É também de Arendt (1989,
p. 249) esta afirmação:

Se não nos obrigássemos a cumprir promessas, jamais seríamos capazes de


conservar nossa identidade; seríamos condenados a errar desamparados e
desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados em suas
contradições e equívocos – trevas que só a luz derramada na esfera publica pela
presença dos outros, que confirma a identidade entre o que promete e o que
cumpre, poderia dissipar.

É a dimensão pública da promessa, o compartilhar daquele que promete


e daquilo que é prometido que assegura a realização da promessa ou a
cobrança de cumprimento. Na intimidade do lar, o caráter privado que a
promessa adquire torna quase impossível a cobrança de realização.
Por outro lado, não basta o prometer, a promessa deve estar associada
ao conhecimento, para não fazer da paixão, uma paixão cega. Essa é a
proposição de Espinosa. Toda paixão contém certa dose de irracionalidade e
a transformação da paixão em afeto exige a força do entendimento. Orientar-
se pelas paixões dissociada do conhecimento seria entregar-se aos desejos
que nos tornam imprevisíveis, seria ainda renunciar a autonomia, autocontrole
e autodeterminação.
Uma nova indagação permitiria responder ao fenômeno da violência:
submeter-se inteiramente às vontades e desejos do outro, sujeitar-se às suas
determinações não seria uma forma de morrer?

A total apatia, a falta de sentimentos e re-sentimentos, a incapacidade de alegrar-


se ou entristecer-se, de estar “cheio” de amor e cólera, de desejo, a desaparição
mesma da passividade, entendida como espaço virtual e acolhedor para a
presentação do outro não equivaleria talvez à morte? (Bodei, 1995, p. 11).

Parece ser essa a meta daqueles que praticam a violência: alcançar o


completo aniquilamento do violentado, transformá-lo em sujeito assujeitado,

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despossuído de vontades e desejos. O violentador não reconhece na mulher
desejos, interesses, necessidades próprias. A vida dela deve expressar a vida
dele, seu corpo deve servir tão somente às necessidades daquele que a
“possui”. Esta forma de o homem representar a mulher é tão real que uma
das mulheres do grupo chegou a fazer a seguinte afirmação: “o meu marido
não pensa em mim como uma pessoa; eu não sou gente, ele pensa que eu
sou o fígado ou o rim dele; eu não tenho vida própria...” (Luzia, 41 anos).
Não é possível buscar respostas sem configurar as relações sociais e
afetivas no interior da sociedade onde estas relações se dão, nem tampouco
desconsiderar a questão de gênero, para melhor compreender o exercício
de poder e autoridade do homem sobre a mulher. Inúmeros autores têm
discutido sobre gênero 7 e, não pretendo fazer aqui abordagens mais
profundas. Uma primeira indignação é por todos compartilhada: a renúncia
de Joana em amamentar seus filhos, resultado da exigência imposta pelo
marido. O certificado de posse/proprietário que o casamento confere aos
homens, legitimado pelos grupos sociais e cultura parece fazer com que seja
“natural” e “inerente” à relação conjugal. Nesse sentido, não há maior
sujeição e servidão do que ter sua existência física-corporal assegurada pelo
uso que o “outro” faz do seu corpo. A falta de autonomia de um lado, e a
completa sujeição de outro, são processos construídos pelas práticas sociais,
as quais sustentam representações onde o direito de propriedade é herdado
pelas tradições e valores sociais, instituindo uma forma de viver em que a
mulher tem seu reconhecimento e sua identidade confirmada pelo parceiro.
É a existência dele (parceiro) que dá existência à mulher, ou melhor, sua
existência física e material é garantida pela existência do parceiro. Antes
disso, e antes dele, parece não haver história.
A ausência de um sentimento de culpa e a certeza do direito de usufruir o
corpo e dos sentimentos da mulher são ações ordinárias do homem, o que impede
o aparecimento de questionamentos dado a “naturalidade” da relação constituída.

7 Para uma melhor compreensão das questões presentes nos debates sobre gênero, ver os
trabalhos de Saffiotti, H., Bruschini, C. (1998). Uma Questão de Gênero; Muraro, R. (1997)
A mulher no terceiro milênio. (5ª ed.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, Oliveira, R. D.
(1995). Elogio da Diferença. São Paulo: Brasiliense, entre outros.

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Ainda buscando circunscrever o contexto da violência, outro aspecto
revela-se importante. Diferentemente do que eu imaginava, Joana, assim
como as demais mulheres que integram o projeto, não dependia
financeiramente do parceiro e, no caso em questão, esse era um dos motivos
para as práticas violentas de seu marido. Novamente estamos diante da questão
de gênero. Acostumados a uma independência econômica e, decorrente
dessa, uma dependência afetiva da mulher, o homem vive na atualidade um
novo dilema: a insubordinação financeira da mulher e, em muitos casos, sua
subordinação à independência feminina. Como sua autoridade e poder
estavam relacionados a sua capacidade para prover a família, re-sente-se disso.
Ajudam a compor esse quadro o culto a virilidade, cujas manifestações de
força atestam o pertencimento do homem a um determinado grupo social.
A existência desses dilemas e os sentimentos produzidos por essas
experiências resultam numa expressão de afetos que devem ser
compartilhados pela parceira, por meio de solidariedade, compreensão e
aceitação incondicional. Experienciar afetos parece ser um privilégio masculino,
na medida em que o homem só reconhece os afetos femininos se estes forem
simples reproduções, cópias fiéis do que está sentindo. Assim, por sofrer um
processo que julga injusto em razão do desequilíbrio na relação conjugal, com
desigualdades financeiras, sociais e conjugais, ou seja, como sente-se credor nesta
relação, pratica a “justiça” que lhe compete: emprega a violência contra a mulher
com o intuito de restaurar o dano que foi praticado contra ele.
Mas, isso não é tudo. Um dos grandes álibis para a justificação da violência
reside no uso de drogas, em especial o álcool. Alimentado por interpretações
cientificas que entendem ser o alcoolismo uma doença, e ciente do
descontrole de seus atos quando embriagado, o violentador se exime de
responsabilidade, pois não estava no uso perfeito de suas “faculdades
mentais”. Deste modo, a interpretação que faz dos atos violentos que pratica
é a de que não foi ele, mas um “outro” que nele habita.
Para finalizar, gostaria de lembrar que o constrangimento e humilhação
produzidos pelas práticas violentas tornam, como já assinalava Chesnais, a
violência doméstica oculta. A mulher sofre um duplo constrangimento: o de

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experienciar a violência cometida por alguém que ama e que supostamente
a amava e, constrangida pela censura social daqueles com quem convive,
pois ao invés de mostrarem-se indignados com a violência e censurarem o
violentador, transferem essa indignação à própria mulher violentada.
Como bem lembra Adorno (1992, p. 20) “É com o sofrimento dos
homens que se deve ser solidário: o menor passo no sentido de diverti-los é
um passo para enrijecer o sofrimento”.
A violência necessita da indignação de todos para ser mais bem
compreendida e combatida. A solidariedade é o contraponto por meio do
qual a superação pode ser alcançada na medida em que práticas violentas,
independentemente do objeto para o qual se dirige, deve espelhar a
desumanidade que o homem carrega.
Vale lembrar aqui a afirmação de Chauí (1987, p. 37) que serve de alerta
para todos: “Temos medo do ódio que devora e da cólera que corrói, mas também
temos medo da resignação sem esperança, da dor sem fim e da desonra”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Adorno, T. (1992). Mínina moralia. São Paulo: Ática.

Arendt, H. (1994). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

Arendt, H. (1989). A condição humana (4 ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Bodei, R. (1995). Geometria de las pasiones – Miedo, esperanza, felicidad: filosofia y uso
politico. México: Fondo de Cultura Econômica.

Chauí, M. (1987). Participando do debate sobre mulher e violência. In Perspectivas


antropológicas da mulher (pp. 23-62). Rio de Janeiro: Zahar.

Chesnais, J.C. (1981). Histoire de la violence. Paris: Editions Robert Lafont.

Espinosa, B. (1973) Afecções. In Ética (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural.

Gay, P. (1995). O cultivo do ódio: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São
Paulo: Companhia das Letras.

Merleau-Ponty, M. (1994). Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes.

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Nietzsche, F. (1987). Genealogia da moral: um estudo polêmico. São Paulo: Brasiliense.

Skinner, B.F. (1970). Ciência e comportamento humano (2ed.). Brasília: Editora


Universidade de Brasília/FUNBEC.

Skinner, B.F. (1976). About behaviorism. New York: Vintage Books.

Skinner, B.F. (1979). Contingenzias de reforzamento: un analisis teorico. México: Trillas.

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