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Artigo

PINC, Tânia
CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

PORQUE O POLICIAL ABORDA?: 1


UM ESTUDO EMPÍRICO SOBRE A FUNDADA SUSPEITA

Tânia Pinc
Doutora em Ciência Política – Universidade de São Paulo.
E-mail: taniapinc@uol.com.br

RESUMO
Este artigo discute a construção da fundada suspeita com ênfase no elemento situacional que
influencia a tomada de decisão do policial pela abordagem. Este estudo sustenta que a funda-
da suspeita pode ser explicada por três fatores situacionais: (i) atitude suspeita; (ii) taxas crimi-
nais; e (iii) características do ambiente. Embora o objetivo da pesquisa não tenha sido avaliar
a fundada suspeita pela perspectiva do desvio, o estudo também explora a questão do filtro
racial e social. A metodologia empregou dados coletados por meio de survey aplicado a poli-
ciais militares que trabalham no policiamento na cidade de São Paulo. A amostra reuniu 231
respondentes. Os resultados confirmam a relevância do elemento situacional, não trazem evi-
dências de filtro racial e social e apontam para uma tendência de banalização da abordagem.
Palavras-chave: Fundada suspeita. Abordagem policial. Elemento situacional.

ABSTRACT
This paper discusses the construction of the reasonable suspicion with emphasis on situa-
tional element that influences the police officer’s decision making to stop and search. This
study argues that the reasonable suspicion can be explained by three situational factors: (i)
suspect behavior; (ii) criminal rates; and (iii) environmental characteristics. Although the
purpose of the study was not to evaluate the reasonable suspicion by deviation, the study
also explores the racial and social profiling. The methodology used data collected through
a survey with police officers from São Paulo city. The sample gathered 231 respondents.
The results confirm the importance of situational element, do not show evidences of ra-
cial and social profiling, and point to the widespread use of this police practice.
Keywords: Reasonable suspicion. Police stop and search. Situational element.

1
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no SPG 17 “Práticas das Instituições do Sistema de Segurança Pública e de Justiça
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Criminal”,
| Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59
coordenado pelas Professoras Vivian Paes e Ludmila Ribeiro, no 38o Encontro Anual da ANPOCS, em outubro de 2014.
PORQUE O POLICIAL ABORDA?

INTRODUÇÃO policial é um ponto de tensão entre a


“Pare! É a Polícia!”. Assim começa polícia e o público.
uma abordagem policial. No ano de 2013, quase quinze mi-
O que acontece depois do anúncio lhões de abordagens foram realiza-
da abordagem – o modo como o poli- das no estado de São Paulo, montante
cial se comporta ou os procedimentos equivalente a um terço da população
que emprega, foi objeto de análise em paulista. Contudo, as prisões em fla-
profundidade em estudos anteriores grante delito foram equivalentes a ape-
(Pinc 2005; 2011). Neste trabalho vol- nas 1% das abordagens realizadas. Co-
tamos o foco para o que acontece antes locado de outro modo, a maioria das
do anúncio – a tomada de decisão do pessoas abordadas (99%) pela polícia
policial. Em outras palavras: porque o militar no estado de São Paulo não ti-
policial decide abordar? nha relação com o crime no momento
Como responsável pela aplicação do encontro com a polícia2.
das leis, o policial militar tem a capa- A fundada suspeita é um tema pouco
cidade intervir no direito de ir e vir, ou explorado nos estudos sobre polícia, no
seja, parar pessoas na rua e revista-las, Brasil. Alguns autores discutem a fun-
com o propósito de encontrar armas, dada suspeita pela perspectiva jurídica e
drogas e outros objetos relacionados ao nesse sentido tendem a enfatizar aspec-
crime, ou seja, realizar o que a lei define tos da legitimidade e legalidade da ação
como busca pessoal. A princípio, a bus- policial; além de buscar desenvolver
ca pessoal só poderia ser realizada com uma definição normativa do tema (Boni
autorização do juiz, exceção feita aos 2006; Silva Júnior 2005; Andrade 2011).
casos em que haja fundada suspeita1. Outros estudos tratam a fundada
A abordagem por fundada suspei- suspeita pela perspectiva sociológica,
ta é uma ação invasiva, pois o policial sugerindo que os fatores determinan-
geralmente apalpa o corpo e as roupas tes da abordagem estão diretamen-
da pessoa; e vistoria o veículo, quan- te relacionados às características das
do houver, retirando tapetes, reviran- pessoas abordadas. Dessa forma, ten-
do bancos, porta malas e porta luvas, dem a associar a tomada de decisão
tudo isso aos olhos de quem estiver do policial pela abordagem à discrimi-
na rua. O exercício desta prática po- nação social e racial e sustentar teses
licial pode causar constrangimentos como a do racismo institucional e do
às pessoas que não têm relação com filtro racial (Ramos; Musumeci 2005;
o crime. Nesse sentido, a abordagem Amar 2005; Barros 2006; Rebeque; Ja-
1 2
Artigo 244 do Código de Processo Penal. Dados disponíveis em <http://www.ssp.sp.gov.br/novaes-
tatistica/Trimestrais.aspx>.

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gel; Bicalho 2008). A premissa de que da tomada de decisão do policial pela


existem “alvos” em que a polícia foca abordagem. Essa tomada de decisão é
sua ação é amplamente disseminada respaldada legalmente por seu poder
na literatura nacional. Tais alvos nas discricionário e baseada na situação
palavras de Pinheiro (2000) seriam as em que se depara com o suspeito. O
“classes perigosas”3; enquanto Misse que quer dizer que nem sempre que
(2014) faz referência ao processo social um policial aborda uma pessoa negra
da “sujeição criminal”4. Embora sejam e ou pobre o faz por filtro racial e ou
definições distintas, ambas propõem social, mas pela situação em que se deu
tratar o tema das práticas policiais pela o encontro com a polícia.
perspectiva do desvio. Isso nos leva a concluir que, além
Estudos da fundada suspeita pauta- de incipiente, existe uma lacuna a ser
dos nas Ciências Jurídicas contribuem preenchida nos estudos sobre funda-
para a interpretação da regra e para a da suspeita. Sendo assim, este artigo
avaliação da legalidade do trabalho po- presta contribuição ao aprofundar
licial; enquanto que os trabalhos deri- a análise sobre a abordagem, com
vados das Ciências Sociais privilegiam ênfase no elemento situacional que
o aspecto negativo das ações policiais, influencia a tomada de decisão do
os erros intencionais e os excessos. Os policial. Este estudo sustenta que a
primeiros focam na formulação da po- fundada suspeita pode ser explicada
lítica, ou seja, no que o policial deve por três fatores situacionais: (i) ati-
fazer; e os outros, na implementação, tude da pessoa abordada no encontro
com especial ênfase ao que não deveria com o policial; (ii) taxas criminais do
fazer. Mas o que dizer daquilo que o po- entorno; e (iii) características do am-
licial faz, sem previsão na norma e que biente do local do encontro.
não representa desvio? Esta pesquisa empregou dados de
A fundada suspeita tem um ele- survey com policiais militares que tra-
mento situacional que é conhecido balham no policiamento na cidade de
no momento do encontro entre a po- São Paulo, realizado em 2013. A amos-
lícia e o público e que é o motivador tra reuniu 231 respondentes, e coletou
dados sobre a percepção dos policiais
3
A expressão “classes perigosas” foi cunhada por George So- a respeito de diferentes aspectos da
rel e é amplamente usada no meio acadêmico nacional, para
se referir aos grupos perseguidos pela polícia, mais especi-
abordagem e em especial da fundada
ficamente, pobres e não brancos. Ver em Izquierdo (2002). suspeita e da influência da raça/cor e
4
“A sujeição criminal refere-se a um processo social pelo qual se condição socioeconômica na tomada
dissemina uma expectativa negativa sobre indivíduos e grupos,
fazendo-os crer que essa expectativa não só é verdadeira como
de decisão do policial.
constitui parte integrante de sua subjetividade.” (Misse 2014: 204). Este artigo está distribuído em seis
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seções. A primeira apresenta uma dis- uma operação, durante o policiamen-


cussão sobre os registros oficiais de to, ou em atendimento de ocorrência
abordagem no estado de São Paulo por solicitação do público. O dado
e compara com Chile e New York. A também não revela as características
segunda seção ainda mantém a pers- individuais das pessoas abordadas.
pectiva comparada e explora a influ- Para compreender os registros ofi-
ência das regras do jogo nas práticas ciais e o que representa o volume de
policiais. A seção seguinte introduz o abordagens realizadas no estado de
tema principal deste estudo – a fun- São Paulo decidimos comparar com
dada suspeita, enquanto que a seção os registros da polícia de outro país da
quatro descreve a metodologia do América Latina – Chile, cuja democra-
survey realizado com os policiais mi- cia é tão jovem quanto a do Brasil; e
litares da cidade de São Paulo. Em se- com a de uma polícia americana – De-
guida, apresentamos e analisamos os partamento de Polícia de New York
resultados encontrados dando ênfase (NYPD, na sigla em inglês), que além
à construção da fundada suspeita, mas de fazer parte de um país com demo-
também explorando a influência de cracia madura, possui uma política de
características como raça/cor e condi- abordagem bem estruturada.
ção socioeconômica na tomada de de- No Chile, a situação não é muito
cisão do policial. A sexta seção discute diferente da de São Paulo. Os Carabi-
os resultados e por fim apresentamos neros divulgam a quantidade total e
algumas considerações. desagregada por abordagem a veículo,
pessoas e estabelecimentos comerciais
INDICADORES DE ABORDAGEM: e bancários; e a distribuição entre as di-
TRANSPARÊNCIA E EFICIÊNCIA ferentes regiões do país, nada mais do
No Brasil, ainda é pouco comum a que isso. Enquanto que em New York
divulgação de dados sobre a aborda- encontramos exemplo bem diferente.
gem policial. Os registros estatísticos O NYPD disponibiliza o banco de
do estado de São Paulo são divulgados dados com 112 variáveis sobre a abor-
pela Secretaria da Segurança Pública e dagem (stop, question and frisk). Por
o único dado oficial é a quantidade e a meio dessa base é possível identificar
distribuição espacial, em grandes regi- o motivo da revista, inclusive se o poli-
ões do estado, das pessoas revistadas. cial explicou esse motivo ao abordado;
Por esse registro não é possível saber uso de força física; apreensão de algum
se a revista ocorreu em função de uma objeto e ou prisão do suspeito; caracte-
fiscalização de trânsito ou por preven- rísticas individuais do abordado; local
ção e controle do crime; ou se foi em da abordagem; entre outros. No Qua-
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Quadro 1 – Abordagens em São Paulo, Chile e New York – 2013

FONTE: SSP/SP; Carabineros de Chile; e NYPD.


*Incluídos dados relativos ao ano de 2012 para demonstrar a inflexão das variáveis de um ano para outro.

dro 1 reunimos alguns dados sobre as Tribunal em 2013 para julgar a consti-
abordagens realizadas por essas três tucionalidade da política de abordagem
diferentes polícias. (stop-and-frisk policy) do NYPD, sob a
No ano de 2013, em São Paulo foi acusação de que os policiais abordavam
abordado o equivalente a um terço da desproporcionalmente mais negros e
população do estado. Enquanto que no latinos do que brancos. Neste mesmo
Chile foram quase três quartos. Embora ano de 2013, houve a eleição municipal
a proporção da população abordada no e a política de abordagem foi um dos
Chile seja quase três vezes superior a de principais temas do debate político.
São Paulo, os dois casos são muito despro- Um ponto interessante é que os da-
porcionais ao percentual (2,3%) de pesso- dos que subsidiaram a acusação e todo
as abordadas pelo NYPD, no mesmo ano. o debate foram produzidos e divulgados
Entendemos que esse resultado pode ser pelo próprio departamento de polícia.
efeito da transparência na divulgação dos No Brasil e no Chile é praticamente im-
dados sobre a abordagem – quanto menor possível medir a proporção de aborda-
a transparência, maior é a quantidade de gens a não brancos usando os registros
abordagens realizadas. A ausência de da- oficiais da polícia. Desta forma o debate
dos não permite que a sociedade conhe- sobre filtro racial na abordagem tende a
ça em detalhes o trabalho da polícia, que não alcançar uma conclusão. No Brasil,
deixa de ser pressionada a prestar contas grupos, especialmente os que defendem
sobre o seu desempenho e estratégias. os direitos humanos, continuam acu-
Mesmo com um percentual mui- sando a polícia por racismo institucio-
to baixo, New York City reduziu em nal e a polícia se defendendo com base
64% o número de abordagens de 2012 na ausência de provas, desse debate não
para 2013. Esta queda provavelmente tem resultado nenhum tipo de mudan-
é efeito do processo que tramitou no ça na política de abordagem.
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Os dados apresentados no Quadro 1 o principal propósito de orientar a to-


também apontam para a questão da efi- mada de decisão do juiz. A busca pessoal
ciência da polícia em localizar infratores é uma prática que deveria ser realizada
por meio da abordagem. Em New York, com autorização judicial, porém o CPP
a polícia aborda em torno de 12 pessoas abre exceção para que a polícia o faça em
para prender alguém, enquanto que em casos fundados. Os americanos seguem
São Paulo a polícia precisa abordar 100 outro modelo, a regra é estabelecida pela
para prender uma pessoa5. Os dados do Quarta Emenda à Constituição dos Es-
NYPD ainda mostram que é possível tados Unidos (1792), que protege o cida-
abordar menos e prender proporcional- dão proibindo buscas e apreensões sem
mente mais. Em 2013 a polícia diminuiu que haja motivo razoável.
o número de abordagens realizadas, em O modelo latino americano autoriza
comparação com 2012, porém aumen- a busca pessoal nos casos fundados; en-
tou a proporção de pessoas presas. quanto que o americano proíbe nos ca-
Para que a eficiência da polícia de São sos não fundados. Se analisássemos ape-
Paulo se equiparasse ao desempenho do nas pela forma semântica, poderíamos
NYPD seria necessário manter a quan- até afirmar que o significado é o mesmo.
tidade de prisões (168.883) e diminuir Contudo, no primeiro caso, a lei empo-
o número de abordagens de 15 milhões dera o policial; enquanto que no outro
para 2 milhões. Desta forma, a propor- restringe o poder. O resultado é que no
ção de pessoas abordadas cairia de 34,3% Brasil e Chile a polícia realiza muito mais
para 4,8%. Certamente, essa não é uma intervenções do que nos Estados Unidos,
questão matemática, nem tampouco está conforme evidenciado no Quadro 1.
meramente relacionada ao preparo profis- A intenção do legislador americano
sional. O principal fator que define o de- foi clara ao proibir abordagens e prisões
sempenho da polícia são as regras do jogo. arbitrárias, em pleno século XVIII, mas
não deixou claro qual seria o remédio
REGRAS DO JOGO no caso de violação da regra (Lynch
No Brasil (1940) e Chile (2012), a au- 2001). Ao longo do tempo a dinâmica
torização para o policial abordar alguém criminal foi se alterando e novas prá-
está regulada pelo Código de Processo ticas policiais surgiram em resposta ao
Penal (CPP)6, um instrumento que tem controle do crime. Em anos recentes e
5
Essa é uma análise puramente quantitativa, não estamos
em vários contextos, a Suprema Corte
considerando a diferença entre as leis que regulam a aplicação dos Estados Unidos tem direcionado
da pena de prisão entre os países.
6
sua preocupação para os direitos dos
Na Argentina também é o Código de Processo Penal (2001) que
regula as “requisas” policiais (abordagens). No entanto, não divul-
indivíduos quando confrontados com
gam qualquer tipo de dado estatístico sobre a abordagem policial. a autoridade legal (Broderick 1966).

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Dentre as inúmeras decisões do tribu- mente subjetivos, é necessária a existência


nal relacionadas à Quarta Emenda, uma de “elementos concretos” que indiquem a
delas surge como um importante freio necessidade da revista, em face do cons-
para as práticas policiais arbitrárias – trangimento que causa8. Entretanto, nem
exclusionary rule7. A regra de exclusão mesmo a literatura ou manuais policiais
determina que toda evidência obtida, definem o que sejam esses elementos
como resultado de uma revista ou apre- concretos da fundada suspeita.
ensão em violação à Constituição, não Em 1995, o Secretário da Segurança
será admitida como prova no tribunal Pública do Estado de São Paulo – José
estadual ou federal em processo contra Afonso da Silva perguntou formalmen-
alguém que teve seus direitos violados. te ao Comando da Polícia Militar quan-
Embora todos policiais queiram reali-do é que um policial tem alguém por
zar prisões, nenhum deles quer ver o crimi-
suspeito para abordagem na rua. Em
noso livre porque cometeu uma falha. Essaresposta, a PM sustenta que a suspeita
condição obriga o policial a agir em acordo
recai sobre o comportamento da pessoa
com as regras, especialmente porque a to-e não sobre as características individu-
mada de decisão do policial será avaliadaais. Deste ponto de vista, portanto, a
pelo juiz e a prisão pode ser relaxada, caso
fundada suspeita se configura quando
o juiz entenda que o policial extrapolou os
a atitude ou conduta da pessoa não se
parâmetros legais. Em suma, uma prisão ajusta, em alguma medida, ao ambiente
não pode ser feita a qualquer custo. (Grecco 1996). Dessa condição decorre
No Brasil, os parâmetros que definem a grande dificuldade de conceituar fun-
a atuação do policial na abordagem funcio-
dada suspeita. Neste sentido, a tendên-
nam mais no sentido de dar discricionarie-
cia da literatura policial e acadêmica
dade para decidir, do que fixar parâmetros
é a de ilustrar a fundada suspeita des-
para garantir que a decisão seja legal. Ra-
crevendo situações, e não a de definir
ras são as vezes que a tomada de decisão (Lynch 2001; PMESP 2002).
do policial pela abordagem é submetida Nesta pesquisa, não pergunta-
a algum tipo de escrutínio, o que tende amos aos respondentes do survey o
aumentar e não relativizar sua autonomia.que entendem por fundada suspeita,
contudo, em grupo focal realizado
FUNDADA SUSPEITA com dois grupos de policiais milita-
No Brasil, o Supremo Tribunal Fede- res da cidade de São Paulo foi lhes
ral reconhece que a fundada suspeita não perguntado “qual a conduta deseja-
pode se orientar por parâmetros unica- da do policial durante o momento
8
STF, 1ª Turma, HC 81305-GO, Rel. Min. Ilmar Galvão,
7
Mapp v. Ohio (1961). DJU 22.02.2002, p. 35.

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da decisão pela abordagem?” 9. O tas”, ou seja, realizar abordagens para


propósito desta pergunta era provo- cumprimento de metas impostas pelos
car uma discussão sobre a fundada escalões superiores.
suspeita. Ficou muito claro que to- No intuito de preencher uma lacuna
dos os policiais conhecem o mode- conceitual, este estudo define fundada
lo ideal de tomada de decisão para suspeita como “menos do que uma cer-
abordagem e que todos têm uma teza de que a pessoa tenha relação com
visão muito profissional sobre o as- o crime no momento do encontro com
sunto. Descrevemos a seguir algu- a polícia, no entanto, fatores situacionais
mas ideias que mais se destacaram levam o policial a acreditar que essa re-
na discussão entre os participantes: lação exista”. Exploraremos esta questão
A abordagem deve se basear em mais adiante ao apresentar os resultados
critérios claros: dados estatísticos; encontrados nesta pesquisa. No entanto,
conhecimento da área de atuação; e vale antecipar que há pouca subjetivida-
atitude suspeita10; de nos fatores situacionais, contudo não
A escolha do abordado não deve se é recomendável rotulá-los como elemen-
basear em preconceitos/discriminação; tos concretos, pois eles somente ganham
é importante saber diferenciar o suspei- sentido como motivadores da aborda-
to de uma “pessoa diferente”11; gem nas circunstâncias de cada encontro
O policial deve ter clareza sobre o entre o policial e o abordado.
motivo da escolha, se ao final da abor-
dagem não souber explicar, é porque METODOLOGIA
aquela abordagem não deveria ter sido Procuramos criar medidas de abor-
realizada. Nesse sentido, os responden- dagem policial para preencher lacunas
tes condenam o cumprimento de “co- deixadas pelos registros oficiais, além
9
Essa atividade fez parte do Projeto Abordagem Consciente, de coletar a percepção dos policiais so-
coordenado pela autora e apoiado pela Polícia Militar do Es- bre o elemento situacional motivador
tado de São Paulo. Foram realizados dois grupos focais com
vinte Cabos e Soldados PM em cada grupo, que trabalham da tomada de decisão pela abordagem.
no policiamento na cidade de São Paulo, em janeiro de 2012. As informações que buscamos para
10
Os fatores situacionais apresentados neste artigo foram for- fazer essa análise fazem parte do co-
temente inspirados nos dados coletados nesses grupos focais.
11
tidiano do trabalho dos profissionais
Neste caso, os policiais alertam para o risco de conside-
rarem suspeitos, pessoas com perfis diferentes daqueles
que realizam abordagem e são raros os
com os quais convivem. Apresentaram como exemplo o registros sistematizados. Sendo assim,
uso de tatuagem. Em passado recente, essa não era uma
prática comum. A tendência era de associar a tatuagem
entendemos que o método mais ade-
como símbolo de prisão, o que era considerado como quado para coletar os dados seria de-
critério de suspeição. No entanto, com o uso amplamen-
te disseminado de tatuagens entre diferentes perfis, in-
senvolver um survey com policiais que
clusive policiais, esse critério deixou de ser considerado. trabalham no policiamento.
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O instrumento de coleta de dados survey são policiais que trabalham na


foi construído em conjunto com outros atividade de policiamento, em Com-
pesquisadores12; com representantes da panhias de Policiamento (Cia PM)
sociedade civil organizada13e com Ofi- subordinadas ao Comando de Policia-
ciais14 e Alunos Oficiais da Academia mento da Capital (CPC). Os formulá-
de Polícia Militar do Barro Branco. A rios foram aplicados pelos cadetes do
versão final foi consolidada com vinte 4º ano nos dias 27, 28 e 29 de setembro
e nove perguntas fechadas e uma aber- de 2013, durante o estágio operacional.
ta e com o propósito de coletar dados a As Cias PM em que os cadetes fize-
respeito de: (1) características individu- ram o estágio foram selecionadas alea-
ais dos respondentes; (2) classificação toriamente pela APMBB. Apenas parte
da abordagem; (3) controle formal; (4) das 121 Cias PM subordinadas ao CPC
abordagem com vista a apreensão de atendiam ao critério de seleção, que era
drogas e prisão de traficantes; (5) libe- ter um Tenente PM para acompanhar
ração da pessoa abordada; (6) treina- o estágio dos cadetes nos dias 27, 28 e
mento; (7) percepção do policial sobre 29 de setembro de 2013. Dentre as Cias
envolvimento de negros e pobres com PM que atendiam o critério foram sor-
o crime; (8) características das pessoas teadas 60. Cada Cia PM recebeu um ca-
abordadas; (9) atitude das pessoas no dete que levou dez formulários.
momento da abordagem; (10) ambiente Os policiais foram convidados a
da abordagem; e (11) índices criminais responder o formulário voluntaria-
do local da abordagem. Neste artigo em- mente. Não precisaram se identificar
pregamos os dados diretamente relacio- e autorizaram o uso de suas respostas
nados à construção da fundada suspeita. na pesquisa. Não houve caso de re-
cusa por parte dos respondentes. En-
Desenho e Distribuição da Amostra tretanto, nem todos os cadetes conse-
A pesquisa foi apoiada pelo Núcleo guiram aplicar os formulários, e dos
de Estudos em Ciências Policiais e Or- que aplicaram, nem todos consegui-
dem Pública (NECPOP), da Acade- ram dez respondentes. O principal
mia de Polícia Militar do Barro Bran- motivo foi a falta de tempo disponí-
co (APMBB). Os informantes deste vel no início do serviço (período em
que os formulários foram aplicados),
12
Especial agradecimento a Tulio Kahn, André Zanetic e porque em algumas Companhias ha-
Gustavo Fernandes.
13
via muitas ocorrências pendentes e o
Instituto Sou da Paz, Instituto São Paulo Contra a Vio-
lência e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
atendimento ao público foi prioriza-
14
Cap PM Luiz Humberto Caparroz e Cap PM Rodrigo
do. Dos 600 formulários possíveis de
Garcia Vilardi. serem respondidos, retornaram 231.
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Quadro 2 – Distribuição da Amostra

A distribuição da amostra está equi- o encontro com a polícia; (ii) o am-


librada (Quadro 2). A menor concen- biente em que o encontro ocorre; e (iii)
tração de respondentes está na região os índices criminais do entorno.
central da cidade de São Paulo, que é No intuito de aumentar a com-
a menor da cidade e por consequência preensão do fenômeno, analisamos
possui menor número de Cias PM. A também as circunstâncias em que as
Zona Sul é a maior região da cidade, no abordagens ocorrem; e características
entanto, é a Zona Norte que apresenta individuais das pessoas abordadas,
o maior número de respondentes. Essa mais especificamente, raça/cor e con-
desproporção pode ter relação com o dição socioeconômica. Apresentamos
fato de que a APMBB está localizada na também o perfil dos respondentes.
Zona Norte e as Unidades da PM têm
uma relação mais estreita com a Aca- Perfil dos respondentes
demia e tendem a se esforçar mais para Os dados apresentados na Tabela 1
atender a demanda dos cadetes. mostram que a maior parte dos poli-
ciais respondentes são homens (87,3%)
RESULTADOS ENCONTRADOS e que ocupam a graduação de Soldado
Para discutir a tomada de decisão PM (74,7%). Mais da metade é branco
do policial pela abordagem, seleciona- (54,2%) e possuem cônjuge (65,6%),
mos dados do survey que nos permi- quer de união formal ou estável. Alguns
tem analisar a construção da fundada poucos (8,4%) ainda não completaram
suspeita. O foco central dessa análise o ensino médio15, porém quase 40% es-
está voltado para os três fatores situa- 15Este grupo provavelmente ingressou na PM antes da
cionais: (i) a atitude da pessoa durante exigência de ensino médio completo.
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tão acima do nível de escolaridade esta- mento que mais emprega policiais no
belecido para ingresso – 2º Grau Com- estado de São Paulo. Pequeno percen-
pleto ou Ensino Médio. tual dos respondentes (3,2%) trabalha
A maioria dos respondentes tra- na administração, porém, no dia do
balha na atividade de radiopatrulha, estágio estavam desempenhando a
sendo este o programa de policia- atividade de policiamento.
Tabela 1 – Perfil dos Respondentes

Classificação da Abordagem rências. No primeiro caso, o policial


Para efeito desta pesquisa, conside- se depara com alguém que desperta
ramos que a abordagem policial ocorre sua suspeita durante as atividades ro-
em três circunstâncias: (1) durante o tineiras do policiamento, sendo esta a
policiamento; (2) em operações poli- real situação em que ocorre a fundada
ciais; e (3) nos atendimentos de ocor- suspeita. As abordagens nas operações
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policiais ocorrem em cumprimento de em resposta à solicitação do público.


ordens e ou planejamento do coman- O survey procurou medir a proporção
do. Por fim, o policial também aborda desses três tipos de abordagem.

Tabela 2 – Distribuição de abordagens por circunstância


Q1. De cada 10 abordagens que você realizou no ÚLTIMO MÊS, quan-
tas ocorreram em razão de FUNDADA SUSPEITA; em OPERAÇÃO; e por
OCORRÊNCIA DE AVERIGUAÇÃO?

FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP,


que trabalham no policiamento, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.

Os dados da Tabela 2 mostram que em aumento do número de abordagens, no


mais da metade das abordagens existe in- intuito de também aumentar o número
terferência do comando (28%) e do públi- de prisões e de apreensões de armas e
co (26%) na tomada de decisão do policial. drogas, porque também são pressiona-
Não se sabe ao certo o efeito das ope- dos pelos escalões superiores16. Embora
rações policiais na redução do crime, alguns reconheçam que a produtividade
nem tampouco no aumento da sensação possa ser melhorada de maneira diversa,
de segurança. Tradicionalmente, a polí- mantêm seguindo as orientações supe-
cia militar adota a estratégia de saturação riores. Porém, reconhecem que não exis-
(reforço do policiamento a pé e motoriza- tem limites para a ação policial. Quando
do em determinados locais e horários) e a questão é o controle do crime, é legí-
bloqueios (blitz) em resposta ao aumento timo abordar quantas pessoas entende-
do crime ou quando é pressionada pela rem necessárias e, em hipótese alguma,
mídia ou por outros grupos. essa prática policial viola direitos civis.
Dados coletados por meio de grupo Neste ponto, é importante retomar o
focal realizado com Capitães PM – Co- balanço apresentado no Quadro 1, que
mandantes de Cia PM na cidade de São demonstra que as polícias de São Paulo e
Paulo, em junho de 2013, identificam 16
Essa atividade fez parte do Projeto Abordagem Cons-
uma tendência desses gestores em fa- ciente, coordenado pela autora e apoiado pela Polícia
zer pressão sobre o policial de rua pelo Militar do Estado de São Paulo.

CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59 45
PINC, Tânia

do Chile utilizam desproporcionalmente A Tabela 3 distribui o percentual17


mais o recurso da abordagem em compa- de respostas entre as quatro possibilida-
ração com a de New York, além de pren- des indicadas na questão 28: (i) sempre;
der desproporcionalmente menos. A ação (ii) muito provável; (iii) pouco prová-
policial mais coercitiva e menos eficiente vel; e (iv) nunca. Além disso, a Tabela 3
pode ser característica de países da Amé- agrupou as atitudes percebidas pelo po-
rica Latina, contudo os dados da Tabela 2 licial em cinco diferentes categorias: (i)
mostram que o público paulista também atitude no momento do encontro com
estimula a prática da abordagem. a polícia; (ii) reação à presença da polí-
cia; (iii) características individuais; (iv)
Fundada Suspeita: Elemento Situacional orientação sexual; e (v) perfil específico.
Como destacamos inicialmente, exis- A primeira categoria – atitude no mo-
te um elemento situacional que é motiva- mento do encontro com a polícia – reflete
dor da fundada suspeita e que está dire- o comportamento que chama a atenção
tamente relacionado ao comportamento do policial e desperta sua desconfiança.
da pessoa durante o encontro com o po- A segunda categoria – reação à presença
licial. Sustentamos ainda que as caracte- policial – representam as circunstâncias
rísticas do ambiente urbano e os índices em que a pessoa muda ou adota algum
criminais do local do encontro também tipo de comportamento especificamente
podem agregar significado para a cons- em razão da presença da polícia. Na ter-
trução da fundada suspeita. ceira categoria – características indivi-
Nesse sentido, foi inserido no survey duais – a intenção era conhecer a reação
três conjuntos de perguntas fechadas e do policial em relação ao sexo, raça/cor,
uma pergunta aberta, no intuito de medir idade e classe socioeconômica das pesso-
a influência dos três fatores situacionais as. A quarta categoria – orientação sexual
na construção da fundada suspeita. A – pretendia identificar a presença de in-
pergunta aberta teve como propósito ex- tolerância a manifestações homo afetiva.
plorar com mais profundidade a percep- Por fim, destacamos alguns perfis espe-
ção dos policiais sobre fundada suspeita. cíficos como mãe/babá, skatista, pessoa
religiosa, malabaristas em cruzamentos
Atitude Suspeita e pessoa buscando diversão sexual; com
Uma das questões do survey apre- o propósito de identificar algum tipo de
sentou um conjunto de vinte e seis com- discriminação a determinados grupos.
portamentos que os policiais podem fa- Para efeito de análise, consideramos
cilmente se deparar no espaço público e que a chance de abordagem pode ser
procurou conhecer a probabilidade de
abordagem para cada um deles. 17
Foram usados apenas os percentuais válidos.

46 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59
PORQUE O POLICIAL ABORDA?

classificada em alta, média e baixa. A quando a maior concentração está em


chance de abordagem é alta para as atitu- “muito provável” e “pouco provável”. Por
des que concentram o maior percentual fim, é baixa a chance de abordagem para
de resposta em “sempre” e “muito pro- atitudes cuja concentração de respostas
vável”. A chance de abordagem é média está em “pouco provável” e “nunca”.
Tabela 3 – Atitude Suspeita
Q28. Agora queremos conhecer um pouco sobre a atitude das pessoas que despertam sua suspei-
ta. Sabemos que não existe um padrão, portanto não estamos buscando uma resposta certa, mas sim
a sua opinião. Sendo assim, perguntamos se você abordaria alguém com as atitudes descritas abaixo?

FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que
trabalham no policiamento, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.

CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59 47
PINC, Tânia

Das vinte e seis atitudes descritas, momento do encontro” e “reação à pre-


sete (27%) têm alta chance de aborda- sença da polícia”, com exceção de homem
gem; 10 (38%), média chance; e 9 (35%), branco dirigindo carro popular rebaixa-
baixa chance. As categorias “atitude no do (características individuais); e pessoa
momento do encontro” e “reação à pre- transitando em área de prostituição (per-
sença da polícia” concentram todos os fil específico). Para casos como estes, en-
casos com alta chance de abordagem: tendemos que a construção da fundada
(i) pessoa com volume na cintura (pode suspeita é definida pela combinação dos
estar portando uma arma); (ii) dois ho- três fatores situacionais, ou seja, a atitu-
mens em uma moto (conduta caracterís- de suspeita, associada aos fatores do am-
tica de quem pratica roubou ou furto); biente e aos índices criminais do entorno.
(iii) pessoa vestida de forma inadequada Os casos com baixa chance de
para o ambiente e clima (usar casacos abordagem estão distribuídos entre as
em dias quentes, também pode sinalizar outras categorias: características indi-
porte de arma); (iv) veículo com quatro viduais; orientação sexual; e perfil espe-
homens em seu interior (conduta carac- cífico. Os dados sugerem que essas con-
terística de quem pratica roubo ou fur- dições interferem pouco ou quase nada
to); (v) pessoa ou veículo que desvia o na tomada de decisão do policial pela
caminho para não passar pela viatura ou abordagem. Em outras palavras, é mui-
pelo policial (pessoa demonstra querer to pouco provável que o policial decida
evitar ser vista pela polícia); (vi) pessoa abordar alguém em função da raça/cor,
que arremessa algo no chão quando vê a sexo, idade e condição sócio econômi-
viatura ou o policial (pode estar dispen- ca (características individuais); ou por
sando arma, droga ou outro produto de algum tipo de intolerância (orientação
crime); e (vii) pessoa que desvia o olhar sexual e perfil específico), contudo, não
do policial (demonstração de nervosis- é impossível de acontecer. Porém, quan-
mo ou de querer esconder algo). do um policial aborda, as condições
Para tais casos, é possível inferir que descritas não são determinantes para a
a atitude suspeita é fator situacional sufi- abordagem, elas obrigatoriamente vêm
ciente para construir a fundada suspeita. associadas a outro tipo de atitude.
Em outras palavras, não importa o am- Colocado de outra forma, uma mu-
biente ou os índices criminais do local do lher empurrando carrinho de bebê ou
encontro, pessoas que adotam essas con- um homem de terno carregando uma
dutas têm alta chance de serem abordadas. bíblia, por exemplo, até podem ser abor-
Os casos com média chance de abor- dados, contudo a suspeita do policial
dagem também estão quase todos con- provavelmente será fundada por outros
centrados nas categorias “atitude no fatores que não as atitudes descritas.
48 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59
PORQUE O POLICIAL ABORDA?

No intuito de coletar outros dados • Sair de perto do veículo e caminhar


sobre a construção da fundada sus- para outra direção;
peita, o instrumento incluiu uma per- • Pedir informação para o policial
gunta aberta, solicitando que o policial para dissimular a suspeita.
descrevesse a situação que encontrou Outros 40% dos respondentes des-
no momento em que decidiu por uma creveram as condições com que se de-
abordagem marcante: “Q30. Imagine pararam, antes dos suspeitos percebe-
uma abordagem marcante que você rem a presença da viatura. Em todas as
realizou por FUNDADA SUSPEITA. ocasiões foi encontrada alguma evidên-
Descreva abaixo o que você viu e o que cia de prática de crime durante a revis-
o fez decidir pela abordagem”. Metade ta. Dentre elas destacamos:
dos informantes (115) respondeu a essa • Três homens em um carro sain-
pergunta, sendo que 60% associam a do de favela;
tomada de decisão pela abordagem à • Um homem e um menor usando
atitude da pessoa em reação à presença o telefone público (pouco usual
da polícia. Dentre as atitudes descritas em função da facilidade do uso
durante o encontro com um policial ou do telefone celular);
viatura, destacamos: • Dois homens dentro de uma farmá-
• Sair correndo, fugir ou mudar cia, sendo que um estava próximo
de direção; ao caixa e o outro dentro do balcão
• Estacionar o veículo ou sair em mar- (prisão em flagrante por roubo);
cha a ré para mudar o destino; • Homem aparentemente nervoso
• Sair do ponto de ônibus ou calçada e dentro de agência bancária, sem
entrar em estabelecimento comercial; usar os serviços do banco;
• Caminhar na calçada, parar e come- • Várias pessoas discutindo dentro de
çar ler algum anúncio ou cartaz; estabelecimento comercial;
• Abaixar no banco e ou subir os vi- • Homem empurrando moto;
dros do veículo; • Homem dentro de veículo com alar-
• Dispersar, saindo cada pessoa para me disparado;
direção diferente; • Casal (bem vestido) em frente a
• Nervosismo aparente; agência bancária observando o inte-
• Arremessar algo no chão; rior do estabelecimento;
• Fingir não ver a polícia; • Dois homens no ponto fora do ho-
• Ajeitar a roupa para esconder volu- rário de circulação de ônibus;
me na cintura; • Veículo em alta velocidade;
• Sinalizar para anunciar a aproxima- • Dois homens em uma moto em
ção da viatura; frente a uma agência bancária em
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59 49
PINC, Tânia

que havia pessoas fazendo uso do Este terceiro ficou estático e não olhou
caixa eletrônico; para o lado quando cruzou com a via-
• Homem cumprimentando morado- tura. Tratava-se de um sequestro relâm-
res para disfarçar que os conhecia, pago e a vítima era o homem branco.
no entanto, não obteve resposta; Motorista do veículo aparentava ser
• Dois homens com mochila defronte muito jovem. Quando abordado fugiu
de uma residência; da viatura porque o veículo era rouba-
• Seis homens caminhando juntos; do. Constataram que o motorista era
• Adolescentes fazendo arruaça em praça. menor de dezoito anos.
Chamamos a atenção para o fato de Existem ainda casos em que a
que a maior parte não representa com- suspeita não é fundada em um dado
portamentos isolados, em alguma me- comportamento, mas em evidência
dida estão associados a algum fator ou material, como:
característica do ambiente urbano ou Ausência de borracha no vidro late-
a informações de práticas criminosas. ral de veículo (sinal de arrombamento)
Muitos desses comportamentos exigem conduzido por um homem que não re-
elevado grau de atenção e elaboração do agiu à presença da polícia. Ao ser abor-
policial, pois acontecem no interior de dado, os policiais constataram que o ve-
estabelecimentos comerciais ou bancá- ículo havia sido furtado;
rios, ou envolvem pequenos detalhes ou Residência com porta aberta. Ao
sinais difíceis de identificar. se aproximarem, os policiais consta-
Raros são os casos em que o respon- taram sinais de arrombamento, a casa
dente aponta características individuais havia sido roubada.
como raça/cor, condição socioeconô- Ainda destacamos um caso nada
mica e idade, para descrever a funda- peculiar e que tem relação com um
da suspeita. Dentre todas as respostas dado apresentado na Tabela 3 – mulher
identificamos apenas três: empurrando carrinho de bebê, em que
Dois jovens pobres (em função das 72,8% dos respondentes afirmaram que
roupas) em um carro importado. Con- era pouco provável abordar alguém nes-
tudo, o policial associa essa condição ta condição e 23,0% nunca abordariam.
a outros fatores: local de incidência de Dois policiais descreveram a mesma
roubo de veículos, veículo sendo con- abordagem, provavelmente porque esta-
duzido em direção a favela à noite. vam trabalhando juntos na viatura. Trata-
Quando abordados, fugiram. va-se de uma mulher empurrando carri-
Três homens em veículo importado nho de bebê que acelerou o passo quando
– motorista e passageiro da frente eram viu a viatura e em seguida colocou uma
negros e o do banco traseiro era branco. camiseta sobre o vestido. Quando os po-
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PORQUE O POLICIAL ABORDA?

liciais a abordaram descobriram que não índices criminais do entorno. Por fim, as
havia criança no carrinho e encontraram de baixa chance só levantam a suspeita
algumas peças de picanha que haviam quando associadas a outras atitudes.
sido furtadas do mercado. Contudo o que
chamou a atenção dos policiais não foi o Características do Ambiente
carrinho do bebê, mas o nervosismo da O survey também coleta a opinião
mulher e o fato de ela ter colocado outra dos policiais a respeito do efeito de ou-
roupa depois que avistou a viatura. tro fator situacional – as características
Com base nesta análise, sustentamos do ambiente, na construção da fundada
que o comportamento da pessoa abor- suspeita. Para efeito desta pesquisa, o
dada no encontro com a polícia é um ambiente é considerado como o con-
fator situacional determinante para a junto das características urbanas.
construção da fundada suspeita. Contu- As respostas da Q29a, apresentadas na
do as atitudes com alta chance de abor- Tabela 4, indicam que 93,1% dos respon-
dagem tendem a influenciar a tomada de dentes concordam18 que conhecer o am-
decisão do policial, independentemente biente em que faz o policiamento favorece a
dos outros dois fatores situacionais – ca- identificação de pessoa em atitude suspeita.
racterísticas do ambiente e dos índices Contudo, não observamos o mesmo grau
criminais do entorno. Enquanto que as de concordância quando definimos que a
que têm média chance de abordagem, atitude “só” pode ser considerada suspeita
a tendência é a de que o policial pon- quando analisada no ambiente (Q29b).
dere sua decisão associando à atitude Esses dados corroboram a análise da
suspeita os outros dois fatores situacio- seção anterior, ou seja, as características
nais– características do ambiente e dos do ambiente é um fator situacional que
Tabela 4 – Efeito do Ambiente na Decisão pela Abordagem

FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que trabalham no policiamen-
to, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.

18
Somatória das respostas assinaladas em Concordo em
Parte e Concordo Totalmente.

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PINC, Tânia

incide na construção da fundada suspei- bairros, é muito provável que ciclistas


ta, no entanto, existem circunstâncias que chamem a atenção da polícia e, conse-
apenas a atitude suspeita é suficiente para quentemente, sejam mais abordados do
a tomada de decisão, que é o caso das ati- que em outros locais da cidade.
tudes com alta chance de abordagem. Os dados da Tabela 5 mostram que,
em média, 87% dos respondentes con-
Índices Criminais cordam19 que os índices criminais é
Consideramos os índices criminais um fator que influencia na construção
como um fator situacional que também da fundada suspeita. Contudo, valo-
pode incidir na construção da fundada rizam mais sua experiência (Q29d. =
suspeita, em especial, porque existem 73,8% concordo totalmente), do que
determinados comportamentos que ga- a análise da base de dados de regis-
nham significado de suspeição apenas tro de crimes – INFOCRIM20 (Q29e.
em determinados locais. Alguns bair- = 53,2% concordo totalmente). Além
ros da cidade de São Paulo, por exem- disso, também concordam que áreas
plo, registram furtos e roubos pratica- que concentram crimes de rua, como
dos por grupos de dois ou três homens o furto e roubo, também favorecem a
jovens que fogem de bicicleta. Nesses identificação de pessoas suspeitas.

Tabela 5 – Efeito dos Índices Criminais na Decisão pela Abordagem

FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que trabalham no policiamento,
realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.

19
Média da somatória das respostas assinaladas em Concordo
em Parte e Concordo Totalmente das perguntas Q29d, e, f.
20
INFOCRIM é uma base de dados de crime da SSP/SP, que
é alimentada com os registros produzidos pela polícia civil.

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PORQUE O POLICIAL ABORDA?

CARACTERÍSTICAS INDIVIDUAIS: Acrescentamos um terceiro caso,


Raça/Cor e Condição Socioeconômica que é aquele em que o policial aborda
A proposta principal deste traba- pessoa negra, cuja decisão da aborda-
lho é desenvolver uma teoria sobre a gem é tomada em função dos fatores
construção da fundada suspeita, le- situacionais (atitude suspeita, caracte-
vando em conta os fatores situacio- rísticas do ambiente e índices crimi-
nais discutidos nas seções anteriores. nais). Neste caso, a raça/cor não tem
Ao contrário de outros estudos sobre qualquer tipo de influência na cons-
o tema, a intenção não é investigar a trução da fundada suspeita. Seguindo
fundada suspeita pela perspectiva do a lógica de Mac Donald, poderíamos
desvio. Todavia, em função da rele- classificar esse tipo de abordagem
vância do tema, decidimos explorar a como “no racial profiling”, ou seja, não
influência da raça/cor e condição so- existe qualquer tipo de filtro racial na
cioeconômica na tomada de decisão abordagem feita à pessoa negra.
do policial pela abordagem. No Brasil, o fato do tema da fun-
Para fins dessa análise, é importante dada suspeita ser explorado predo-
mencionar a contribuição de Mac Do- minantemente pela perspectiva do
nald (2003), que considera a existência desvio, influencia o debate a ponto de
de dois tipos de filtro racial: o primeiro promover a tendência de classificar
é o hard profiling, em que a raça/cor é o qualquer tipo de abordagem à pessoa
único fator de suspeição; e o segundo é negra como hard profiling.
o soft profiling, em que a raça/cor é ape- Para contribuir com esse deba-
nas um entre um conjunto de fatores. No te, esta pesquisa procurou abordar a
primeiro caso, o policial decide abordar questão da raça/cor e também da con-
pelo simples fato da pessoa ser negra, ou dição socioeconômica no survey, com
seja, é uma prática discriminatória. En- o objetivo de identificar evidências de
quanto que no outro, informações pré- algum tipo de preconceito que possa
vias derivadas do serviço de inteligência contribuir com a prática de hard pro-
ou de denúncias indicam um conjunto filing. Sendo assim, coletamos a per-
de elementos de suspeição e dentre eles cepção dos policiais sobre raça/cor e
a raça/cor. Neste último caso, podemos condição socioeconômica por dife-
assumir que a raça/cor tem a mesma rentes perspectivas: (i) pessoas que
relevância, por exemplo, das caracterís- transitam na área em que trabalha;
ticas do veículo ou das vestimentas do (ii) envolvimento com o crime; (iii)
suspeito. Sendo assim, não faz sentido influência na tomada de decisão pela
classificar esse tipo de abordagem como abordagem; e (iv) proporção nas pes-
uma prática policial desviante. soas abordadas no último mês.
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59 53
PINC, Tânia

O Gráfico 1 mostra a percepção dos dados indicam que aproximadamente


respondentes sobre a distribuição das dois terços dos respondentes afirmam
pessoas por raça/cor nas áreas da cida- ter abordado mais pessoas pardas. A
de de São Paulo em que trabalham21. A análise comparada entre os dois gráfi-
maior parte dos policiais (44%) indica cos sugere que as pessoas pardas são
que não há predominância de nenhu- desproporcionalmente mais abordadas
ma raça/cor, pois estão distribuídas na do que as de outra raça/cor. Em que
mesma proporção; aproximadamente pese seja importante, essa evidência
um terço (30%) dos respondentes per- não é suficiente para considerarmos a
cebe a maioria das pessoas como sendo existência de prática desviante ou hard
pardas; a opinião de quase um quarto profiling, mas aponta para a necessi-
(23%) é de que a maioria é branca; en- dade de aprofundar a investigação.

Gráfico 1 – Raça/Cor das Pessoas Gráfico 2 – Raça/Cor das


que Transitam na Área em que Trabalha Pessoas Mais Abordadas no Último Mês

quanto que apenas 3% assinala que a Quando perguntados diretamente


maior parte das pessoas que transitam sobre a influência da raça/cor e da con-
na área em que trabalham é negra. dição socioeconômica, a maioria dos
Enquanto que o Gráfico 2 apresenta respondentes nega que essas caracterís-
a distribuição, por raça/cor, das pesso- ticas possam ter efeito na tomada de de-
as mais abordadas no último mês22. Os cisão pela abordagem (Tabela 6).
21 pouco mais sobre as características individuais das pes-
Respostas da pergunta “Q21. Quanto à raça/cor das pes-
soas que você aborda. Pense no seu dia a dia de trabalho
soas que transitam na área em que trabalha, a maioria é:”
e assinale as características das pessoas que você MAIS
22
Respostas da pergunta “Q27c. Queremos conhecer um abordou NO ÚLTIMO MÊS:”

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PORQUE O POLICIAL ABORDA?

Tabela 6 – Influência da Raça/Cor e


Condição Socioeconômica na Decisão pela Abordagem

FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que trabalham no
policiamento, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.

Para deixar mais claro as circunstân- ta) e decidem abordar. Essa tomada de
cias em que ocorre o encontro entre a decisão pela abordagem é feita em questão
polícia e o suspeito e a tomada de deci- de segundos ou até menos que isso. Neste
são pela abordagem, sugerimos levar em caso, mesmo se quisessem levar em conta
conta a seguinte situação: imaginem uma a raça/cor dos suspeitos, os policiais não
viatura com dois policiais em patrulha- tiveram como identifica-la no momento
mento, que se depara com dois homens em que a decisão pela abordagem foi to-
de capacete, blusão e luvas em uma moto mada, pois as vestimentas não permitiam.
parada em frente a uma agência bancária Procuramos também conhecer a
sem nenhuma pessoa fazendo uso do cai- percepção dos policiais respondentes
xa eletrônico (atitude suspeita menciona- a respeito do envolvimento de negros e
da por um respondente na pergunta aber- pobres com o crime (Gráfico 3).

Gráfico 3 – Percepção sobre o Envolvimento de Negros e Pobres com o Crime

CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59 55
PINC, Tânia

Quando nos referimos ao envol- abordagem é alta, o primeiro fator –


vimento do negro, tanto em compa- atitude suspeita é suficiente para que
ração com o branco como com o po- o policial decida abordar, ou seja, essa
bre, a tendência é de que grande parte decisão independe do ambiente e dos
dos respondentes discorde totalmen- índices criminais.
te. Em contrapartida, os resultados As características do ambiente e
apontam para uma tendência dos po- os índices criminais passam a ter re-
liciais associarem os pobres ao crime, levância para os comportamentos em
mais do que ricos e negros. Contudo, que existe média chance de abordagem.
para os tipos de crimes com os quais Nestes casos, a atitude da pessoa tende
a polícia militar lida mais diretamen- a ganhar contornos de suspeição quan-
te, é razoável reconhecer que os po- do analisada no contexto do ambiente e
bres estão mais envolvidos. quando se considera as práticas crimi-
nosas cometidas no entorno.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Por fim, as atitudes e ou comporta-
Neste artigo, apresentamos uma mentos com baixa chance de aborda-
análise descritiva de dados coletados gem causam quase nenhum efeito na
por meio de survey aplicado a poli- tomada de decisão do policial. Sendo
ciais militares que trabalham no poli- assim, a associação dessa conduta aos
ciamento na cidade de São Paulo, com outros dois fatores – ambiente e crime,
o propósito de criar novos construc- tende a não alterar esse quadro.
tos da fundada suspeita, especialmen- Lembramos que essa pesqui-
te os relacionados aos fatores situacio- sa não tem por objetivo investigar
nais identificados no encontro entre o os desvios nas práticas de aborda-
policial e o abordado: (i) atitude da gem, todavia, consideramos o sur-
pessoa abordada no encontro com o vey uma oportunidade para explo-
policial; (ii) taxas criminais do entor- rar questões que causam polêmica,
no; e (iii) características do ambiente como o filtro racial e social. Nesse
do local do encontro. sentido, é muito provável que as
Assumimos que, quando inicia- evidências que apontam para a au-
mos este estudo, tínhamos a ideia de sência de influência da raça/cor e
que a construção da fundada suspei- condição socioeconômica na toma-
ta ocorresse por meio da combina- da de decisão pela abordagem, con-
ção dos três fatores situacionais, para trariem a crença de não policiais
todos os casos. No entanto, a análise sobre o desempenho da polícia.
dos resultados encontrados indica que Introduzimos diferentes perguntas
nas circunstâncias em que a chance de sobre o mesmo tema, com o intuito de
56 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59
PORQUE O POLICIAL ABORDA?

testar a confiabilidade das respostas. público no meio policial, mas preen-


Afinal de contas, entrevistados men- chendo, logicamente, algumas lacunas.
tem! No entanto, entendemos que existe Quanto ao volume de abordagens
coerência entre as respostas do survey realizadas no estado de São Paulo, a
e entre essas e as que foram coletadas ausência de discussão mais profunda
no grupo focal do Projeto Abordagem sobre a fundada suspeita continua
Consciente. Em que pese ser inusita- mantendo a relação entre abordagem
do para aqueles que se interessam pelo e direitos civis em zona cinzenta.
tema, não é um resultado conclusivo, Nesse sentido, é recomendável que
pois carece de novos estudos. o respeito aos direitos civis das pes-
Chamamos a atenção para o volu- soas abordadas pela polícia seja um
me de abordagens realizadas no estado tema colocado na agenda pelo gover-
de São Paulo e as prisões delas decor- no estadual, urgentemente.
rentes. A polícia militar paulista abor- Por último, também recomenda-
da muito e prende pouco. O que nos mos melhorar a qualidade e confia-
faz concluir que a abordagem é uma bilidade dos registros das abordagens
prática policial banalizada. Ela é am- policiais, dando transparência de for-
plamente estimulada pelos gestores e ma a permitir o acesso ao público.
largamente solicitada pela população. Essa é uma estratégia que pode au-
Isso nos leva a questionar: até que pon- mentar a eficiência da polícia no con-
to os fatores situacionais que constro- trole práticas desviantes.
em a fundada suspeita estão presentes
nas abordagens? Caso parcela dessas REFERÊNCIAS
abordagens seja feita apenas para aten- AMAR, Paul. 2005. “Táticas e ter-
der a demanda interna e do público, a mos da luta contra o racismo institucio-
polícia não estaria incorrendo em vio- nal nos setores de polícia e de seguran-
lação de direitos civis ao suspender o ça”. In.: RAMOS, Silvia.; MUSUMECI,
direito de ir e vir de alguém para reali-
Leonarda. Elemento Suspeito: aborda-
zar a busca pessoal sem um motivo que gem policial e discriminação na cidade
fundamente essa decisão? do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira. pp. 229-281.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ANDRADE, Daniel Nazareno.
No que diz respeito à construção 2011. A formação da fundada sus-
da fundada suspeita, entendemos que peita na atividade policial e os desa-
uma das grandes contribuições desse fios da segurança pública no Estado
artigo é traduzir para o meio acadêmi- Democrático de Direito. Jus Navi-
co conhecimentos que são de domínio gandi, Teresina, ano 16, n. 2826. Dis-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 34-59 57
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TÂNIA PINC
Doutora em Ciência Política – Uni-
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