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PINC, Tânia
CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558
Tânia Pinc
Doutora em Ciência Política – Universidade de São Paulo.
E-mail: taniapinc@uol.com.br
RESUMO
Este artigo discute a construção da fundada suspeita com ênfase no elemento situacional que
influencia a tomada de decisão do policial pela abordagem. Este estudo sustenta que a funda-
da suspeita pode ser explicada por três fatores situacionais: (i) atitude suspeita; (ii) taxas crimi-
nais; e (iii) características do ambiente. Embora o objetivo da pesquisa não tenha sido avaliar
a fundada suspeita pela perspectiva do desvio, o estudo também explora a questão do filtro
racial e social. A metodologia empregou dados coletados por meio de survey aplicado a poli-
ciais militares que trabalham no policiamento na cidade de São Paulo. A amostra reuniu 231
respondentes. Os resultados confirmam a relevância do elemento situacional, não trazem evi-
dências de filtro racial e social e apontam para uma tendência de banalização da abordagem.
Palavras-chave: Fundada suspeita. Abordagem policial. Elemento situacional.
ABSTRACT
This paper discusses the construction of the reasonable suspicion with emphasis on situa-
tional element that influences the police officer’s decision making to stop and search. This
study argues that the reasonable suspicion can be explained by three situational factors: (i)
suspect behavior; (ii) criminal rates; and (iii) environmental characteristics. Although the
purpose of the study was not to evaluate the reasonable suspicion by deviation, the study
also explores the racial and social profiling. The methodology used data collected through
a survey with police officers from São Paulo city. The sample gathered 231 respondents.
The results confirm the importance of situational element, do not show evidences of ra-
cial and social profiling, and point to the widespread use of this police practice.
Keywords: Reasonable suspicion. Police stop and search. Situational element.
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Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no SPG 17 “Práticas das Instituições do Sistema de Segurança Pública e de Justiça
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Criminal”,
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coordenado pelas Professoras Vivian Paes e Ludmila Ribeiro, no 38o Encontro Anual da ANPOCS, em outubro de 2014.
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dro 1 reunimos alguns dados sobre as Tribunal em 2013 para julgar a consti-
abordagens realizadas por essas três tucionalidade da política de abordagem
diferentes polícias. (stop-and-frisk policy) do NYPD, sob a
No ano de 2013, em São Paulo foi acusação de que os policiais abordavam
abordado o equivalente a um terço da desproporcionalmente mais negros e
população do estado. Enquanto que no latinos do que brancos. Neste mesmo
Chile foram quase três quartos. Embora ano de 2013, houve a eleição municipal
a proporção da população abordada no e a política de abordagem foi um dos
Chile seja quase três vezes superior a de principais temas do debate político.
São Paulo, os dois casos são muito despro- Um ponto interessante é que os da-
porcionais ao percentual (2,3%) de pesso- dos que subsidiaram a acusação e todo
as abordadas pelo NYPD, no mesmo ano. o debate foram produzidos e divulgados
Entendemos que esse resultado pode ser pelo próprio departamento de polícia.
efeito da transparência na divulgação dos No Brasil e no Chile é praticamente im-
dados sobre a abordagem – quanto menor possível medir a proporção de aborda-
a transparência, maior é a quantidade de gens a não brancos usando os registros
abordagens realizadas. A ausência de da- oficiais da polícia. Desta forma o debate
dos não permite que a sociedade conhe- sobre filtro racial na abordagem tende a
ça em detalhes o trabalho da polícia, que não alcançar uma conclusão. No Brasil,
deixa de ser pressionada a prestar contas grupos, especialmente os que defendem
sobre o seu desempenho e estratégias. os direitos humanos, continuam acu-
Mesmo com um percentual mui- sando a polícia por racismo institucio-
to baixo, New York City reduziu em nal e a polícia se defendendo com base
64% o número de abordagens de 2012 na ausência de provas, desse debate não
para 2013. Esta queda provavelmente tem resultado nenhum tipo de mudan-
é efeito do processo que tramitou no ça na política de abordagem.
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tão acima do nível de escolaridade esta- mento que mais emprega policiais no
belecido para ingresso – 2º Grau Com- estado de São Paulo. Pequeno percen-
pleto ou Ensino Médio. tual dos respondentes (3,2%) trabalha
A maioria dos respondentes tra- na administração, porém, no dia do
balha na atividade de radiopatrulha, estágio estavam desempenhando a
sendo este o programa de policia- atividade de policiamento.
Tabela 1 – Perfil dos Respondentes
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FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que
trabalham no policiamento, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.
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que havia pessoas fazendo uso do Este terceiro ficou estático e não olhou
caixa eletrônico; para o lado quando cruzou com a via-
• Homem cumprimentando morado- tura. Tratava-se de um sequestro relâm-
res para disfarçar que os conhecia, pago e a vítima era o homem branco.
no entanto, não obteve resposta; Motorista do veículo aparentava ser
• Dois homens com mochila defronte muito jovem. Quando abordado fugiu
de uma residência; da viatura porque o veículo era rouba-
• Seis homens caminhando juntos; do. Constataram que o motorista era
• Adolescentes fazendo arruaça em praça. menor de dezoito anos.
Chamamos a atenção para o fato de Existem ainda casos em que a
que a maior parte não representa com- suspeita não é fundada em um dado
portamentos isolados, em alguma me- comportamento, mas em evidência
dida estão associados a algum fator ou material, como:
característica do ambiente urbano ou Ausência de borracha no vidro late-
a informações de práticas criminosas. ral de veículo (sinal de arrombamento)
Muitos desses comportamentos exigem conduzido por um homem que não re-
elevado grau de atenção e elaboração do agiu à presença da polícia. Ao ser abor-
policial, pois acontecem no interior de dado, os policiais constataram que o ve-
estabelecimentos comerciais ou bancá- ículo havia sido furtado;
rios, ou envolvem pequenos detalhes ou Residência com porta aberta. Ao
sinais difíceis de identificar. se aproximarem, os policiais consta-
Raros são os casos em que o respon- taram sinais de arrombamento, a casa
dente aponta características individuais havia sido roubada.
como raça/cor, condição socioeconô- Ainda destacamos um caso nada
mica e idade, para descrever a funda- peculiar e que tem relação com um
da suspeita. Dentre todas as respostas dado apresentado na Tabela 3 – mulher
identificamos apenas três: empurrando carrinho de bebê, em que
Dois jovens pobres (em função das 72,8% dos respondentes afirmaram que
roupas) em um carro importado. Con- era pouco provável abordar alguém nes-
tudo, o policial associa essa condição ta condição e 23,0% nunca abordariam.
a outros fatores: local de incidência de Dois policiais descreveram a mesma
roubo de veículos, veículo sendo con- abordagem, provavelmente porque esta-
duzido em direção a favela à noite. vam trabalhando juntos na viatura. Trata-
Quando abordados, fugiram. va-se de uma mulher empurrando carri-
Três homens em veículo importado nho de bebê que acelerou o passo quando
– motorista e passageiro da frente eram viu a viatura e em seguida colocou uma
negros e o do banco traseiro era branco. camiseta sobre o vestido. Quando os po-
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liciais a abordaram descobriram que não índices criminais do entorno. Por fim, as
havia criança no carrinho e encontraram de baixa chance só levantam a suspeita
algumas peças de picanha que haviam quando associadas a outras atitudes.
sido furtadas do mercado. Contudo o que
chamou a atenção dos policiais não foi o Características do Ambiente
carrinho do bebê, mas o nervosismo da O survey também coleta a opinião
mulher e o fato de ela ter colocado outra dos policiais a respeito do efeito de ou-
roupa depois que avistou a viatura. tro fator situacional – as características
Com base nesta análise, sustentamos do ambiente, na construção da fundada
que o comportamento da pessoa abor- suspeita. Para efeito desta pesquisa, o
dada no encontro com a polícia é um ambiente é considerado como o con-
fator situacional determinante para a junto das características urbanas.
construção da fundada suspeita. Contu- As respostas da Q29a, apresentadas na
do as atitudes com alta chance de abor- Tabela 4, indicam que 93,1% dos respon-
dagem tendem a influenciar a tomada de dentes concordam18 que conhecer o am-
decisão do policial, independentemente biente em que faz o policiamento favorece a
dos outros dois fatores situacionais – ca- identificação de pessoa em atitude suspeita.
racterísticas do ambiente e dos índices Contudo, não observamos o mesmo grau
criminais do entorno. Enquanto que as de concordância quando definimos que a
que têm média chance de abordagem, atitude “só” pode ser considerada suspeita
a tendência é a de que o policial pon- quando analisada no ambiente (Q29b).
dere sua decisão associando à atitude Esses dados corroboram a análise da
suspeita os outros dois fatores situacio- seção anterior, ou seja, as características
nais– características do ambiente e dos do ambiente é um fator situacional que
Tabela 4 – Efeito do Ambiente na Decisão pela Abordagem
FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que trabalham no policiamen-
to, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.
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Somatória das respostas assinaladas em Concordo em
Parte e Concordo Totalmente.
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FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que trabalham no policiamento,
realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.
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Média da somatória das respostas assinaladas em Concordo
em Parte e Concordo Totalmente das perguntas Q29d, e, f.
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INFOCRIM é uma base de dados de crime da SSP/SP, que
é alimentada com os registros produzidos pela polícia civil.
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FONTE: Survey com policiais militares do Comando de Policiamento da Capital – PMESP, que trabalham no
policiamento, realizado nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2013.
Para deixar mais claro as circunstân- ta) e decidem abordar. Essa tomada de
cias em que ocorre o encontro entre a decisão pela abordagem é feita em questão
polícia e o suspeito e a tomada de deci- de segundos ou até menos que isso. Neste
são pela abordagem, sugerimos levar em caso, mesmo se quisessem levar em conta
conta a seguinte situação: imaginem uma a raça/cor dos suspeitos, os policiais não
viatura com dois policiais em patrulha- tiveram como identifica-la no momento
mento, que se depara com dois homens em que a decisão pela abordagem foi to-
de capacete, blusão e luvas em uma moto mada, pois as vestimentas não permitiam.
parada em frente a uma agência bancária Procuramos também conhecer a
sem nenhuma pessoa fazendo uso do cai- percepção dos policiais respondentes
xa eletrônico (atitude suspeita menciona- a respeito do envolvimento de negros e
da por um respondente na pergunta aber- pobres com o crime (Gráfico 3).
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