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Arte e MST: Acúmulo, Desafios e Projeções1.

Juliana Bonassa Faria2

Bom dia companheiros e companheiras! Primeiro, mais do que um prazer é uma


tarefa importantíssima estar aqui nesse curso, porque faz parte do que estamos
pensando enquanto Coletivo, enquanto Movimento. Estamos acompanhando bem
de perto, apesar de não estarmos fisicamente sempre aqui, entendemos que o
desenvolvimento dessa parceria para nós é fundamental. Esse intercâmbio faz parte
da construção do processo de luta pela arte, pela cultura dentro da luta do
Movimento Sem Terra. Segundo, dizer que fazer seminários como este, nos ajuda
também a ir formulando questões. Aqui, partimos da ideia de que existe um
preconceito sobre os movimentos sociais, pois dizem que os mesmos não produzem
arte e cultura, ou que quando o fazem é de forma espontânea. Por um lado, é
verdade, existe um caráter espontaneísta da luta e evidentemente, ele vai se
verificar em outros espaços como na produção artística e cultural. Porém
precisamos aprofundar essa questão pois existe um processo produtivo ainda a se
conhecer e analisar.

Existe, então, essa ideia do espontâneo no conjunto dos movimentos sociais e é


este entendimento que vai para elaboração teórica sobre os mesmos. E surge outra
questão: movimento social elabora teoricamente? Esta pergunta vem quase como
uma resposta. Elabora sim e elabora a partir da práxis, ou seja, a teoria elaborada a
partir da experimentação cotidiana. Por isso, um primeiro elemento que é importante
para compreender a arte e a cultura no MST, é entender que este processo da
formação artística parte de um princípio importante que é a afirmação de que nós
não somos passivos. Não compartilhamos da construção do camponês puro que
está só observando, pelo contrário, estamos ativos diante dessa produção artística.
Porque a arte no MST, tal qual na ocupação da terra, está mediada pelo conflito. Ela
está mediada por uma disputa. Assim como no acampamento enfrentamos a disputa
territorial geográfica. E sabemos que, a disputa não é somente territorial, no sentido
físico da terra. Pois ali, nós estamos disputando uma série de outros elementos,
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Conferência proferida no Seminário Arte do Campo – UDESC, em 23/08/2014.
2
Coletivo Nacional de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.
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estamos disputando modo de vida, consciência, estamos disputando formas de criar
nossos filhos, como vamos pensar e o que vamos fazer em toda as esferas da
nossa vida. Então, o Movimento conforme foi fazendo, também foi elaborando o que
pensávamos sobre arte, sobre cultura.

Uma ideia interessante, não única, mas forte dentro do fazer cultural do Movimento é
que a cultura é reprodução e produção da existência humana. E a nossa produção e
reprodução da existência humana está mediada pela luta. Portanto, a arte no MST,
que não é um problema, é sim mediada pela luta e esta luta é sim uma luta
conflituosa, forte, de muita contradição. Portanto, a nossa arte também terá essas
características. Mas, se fecha só nisso? Não! Ela vai estar, permanentemente,
mediada pela luta e esse elemento faz ela, a arte, ser diferente. Uma vez, fomos
num debate em uma universidade e nos perguntaram assim: vocês estão afirmando
que existe uma estética Sem Terra? Não! Nós não estamos afirmando isso. Então,
me diz aí “o que é essa arte Sem Terra? ” Tudo que estou falando aqui, não tem
nada fechado, porém, o importante é que existe uma arte que é fomentada na luta,
que não nasce com o MST, porque o MST é fruto de legado da luta do povo
brasileiro. Então, ela vai ter elementos indígena, elementos negros, europeus mas,
não é aquele clichê de que “somos a mistura” não, é da vivência. E, ela vai ter uma
característica importante de variedade, dado que o Movimento é organizado em
nível nacional. Então, não podemos falar em uma arte do MST como uma coisa
única, na verdade é uma variedade imensa.

Outra coisa importante a falar é que não travamos nossa luta dentro de uma bolha
perfeita, nossa luta é construída por seres humanos que são frutos de realidades
distintas, então, nós não estamos isolados lá. Nos acampamentos e nos
assentamentos, queremos construir formas de viver diferentes dessa forma da
sociedade do sistema vigente, porém, não somos ilhas, não somos bolhas, estamos
permanentemente em contato. Por isso, também, quando existe um olhar
romantizado para o Movimento e quando tem o contato com a realidade dizem:
“mais não é tudo aquilo que estava no “ O MST e a Cultura” 3, não é o que está lá no
caderninho”. Porque as sistematizações tendem a projetar. Assim, nós partimos da
3
BOGO, Ademar: O MST e a Cultura, São Paulo, Incra/Pronera /Iterra – Caderno de Formação Nº.
34, 2000.

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luta, que é uma disputa territorial, uma disputa pelo pensar e pela forma de fazer.
Nós estamos disputando “cabeça”, é importante saber isso. Porque existe, inclusive,
o preconceito de que nem se pode falar de uma arte com esse perfil, aí pode dar o
nome que quiser, arte engajada, arte política. Não podemos ter medo de debater
sobre essa arte na luta e menos ainda de exercitá-la. O MST, entende o movimento
da arte como um fenômeno da cultura que vai se construindo no fazer,
evidentemente tomando cuidado com os processos engessadores do fazer artístico.

A nossa arte parte de uma experiência, ou de várias, mas ela tem um eixo. Aí,
muitas vezes se fala: “ah não, vocês não estão dando liberdade para os artistas.”
Por essa característica muitos dos desafios do Movimento vão aparecer nas nossas
artes e muitas coisas a serem questionadas também se plasmarão nas mesmas.
Outro elemento na questão da produção artística que necessitamos repensar é a
ideia que a arte é marcada pelo elemento da subjetividade. Entendemos que é
marcada pela subjetividade, porém, a arte é objetiva, o fazer, o processo é objetivo.
Com isso, estamos tentando trabalhar uma questão que é a seguinte: como é que
vamos desmontando uma série de sistemas fechados de certificação de arte? Não
estamos querendo entrar num debate de fechar “um pacotinho” do que é ou não arte
engajada, ou de negação do acúmulo artístico da humanidade. Por isso, dizemos
que não podemos desistir de lutar por um aprimoramento técnico do nosso fazer
artístico. Não podemos desistir de tudo que foi acumulado no campo das artes e que
nos foi negado e negligenciado enquanto classe. Não podemos negar, só porque
não foi a gente que fez, porque é da burguesia, pois queremos fazer parte sim.
Queremos conhecer, queremos ter acesso!

Combatemos também a ideia de que o que se produz artisticamente no MST é


necessariamente sem acúmulo artístico ou estético, porque se trata de uma
afirmação preconceituosa. Se formos partir do preconceito para fazer o debate,
tendo como preceito de se que foi feita no MST já não é válido ou não certificado
nem precisamos seguir conversando. Precisamos, então, junto com a nossa
produção artísticas, com esses debates e com a amostragem do que a gente faz, ir
construindo o registro do nosso fazer artístico e a partir do enfrentamento ir
rompendo este preconceito.

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Agora precisamos entender o funcionamento e essas divisões conceituais no campo
cultural e artístico para podermos nos recolocarmos o debate na luta Sem Terra.
Primeiro entender como se dão essas divisões, pois elas não são neutras, são
carregadas de conteúdo e direcionam nosso pensar. Estamos trabalhando numa
ideia de desmonte analítico, para isso precisamos aprender a desmontar os
conceitos. Porque, para “batermos no bichão” precisamos entendê-lo e desmontar
uma série de conceitos que perpetuam, para assim então, pôr o dedo na ferida e
abrir o debate com consciência, como fazemos em diversos outros campos da luta
no MST. Estou tentando fazer uma retomada do que foi discutido aqui, porque esse
curso para o movimento foi fundamental. Afinal o que debatemos e estudamos aqui
chegará às nossas escolas às nossas crianças, à nossa juventude. Estamos falando
de construção real e orgânica desse debate em nossos territórios.

Porém precisar estar cientes de que quase sempre o tema da cultura é tratado
superficialmente nos nossos espaços, passando por cima das complexidades.
Costumamos (pelo pouco tempo) usar um esquema e montamos um quadro de duas
colunas, partindo de perguntas como4: Quando a gente fala em cultura erudita o que
vem logo na nossa cabeça? Mozart, música clássica, orquestra sinfônica, ballet,
ópera... Quem aqui já foi numa ópera ou no ballet? E numa orquestra sinfônica? Foi
o curso que proporcionou? Ah sim! Quem foi antes de estar no curso? No geral, não
temos acesso, nos foi negado o acesso. Então, a cultura erudita é boa ou ruim? É
boa né? E nós não tivemos acesso né? Então nós somos o quê?

E o contrário da cultura erudita é o quê? Temos a cultura erudita, temos também a


cultura brega, popular, de massa. Vamos, então dividir. Onde colocamos a cultura
popular? Vamos colocar aqui na esquerda. Existe também um sinônimo para cultura
erudita. Já ouviram falar em alta cultura? Se existe alta cultura e estamos tratando
de oposto, existe então a baixa cultura? Então, temos a cultura erudita, a alta
cultura, a cultura popular e a baixa cultura. É isso mesmo? E a cultura de elite onde
está? E o contrário, a cultura de massa ou popular onde está? Se a cultura erudita,
alta cultura é da elite, é a cultura “dos que tem”. E a cultura popular, baixa cultura,
cultura de massa é de quem? “Dos que não tem”. Será então que toda essa cultura
é uma cultura boa?

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Nesse exercício as respostas que seguem as perguntas partiram da participação dos/as
educandos/as na plenária.
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Estamos fazendo esse exercício com essas perguntas para compreendermos o que
falamos inicialmente sobre a montagem dos conceitos, não é que pensemos isso,
estamos falando do geral. Se tem uma cultura boa, em uma sociedade dual, partida:
qual seria o contrário de cultura boa? Uma cultura ruim. Aí nós aqui, no geral, em
qual cultura nos encaixamos? Então, o que é feito pelo povo é ruim? Mas vejam
como esse conceito é complicado, pois temos o entendimento que a baixa cultura é
uma cultura ruim, de baixa qualidade, ou não tão sofisficada. Tudo bem mais não é
bem assim, porque agora há uma valorização da cultura popular, está todo mundo
querendo mesclar, porque está na moda. É importante, mais ninguém está falando
aqui de experiência artística não. Agora, a construção predominante é uma
construção que traz esse olhar de entendimento preconceituoso, em relação a nossa
produção. Por isso, que estamos falando em desmontar. E daqui sai um debate
grandão... Por que estamos falando tudo isso? Estamos falando das instituições, das
certificações artísticas, por que quem que diz o que é arte e o que não é arte? Não
somos nós que dizemos, existem instrumentos institucionalizados que certificam o
que é e o que não é, e quem deve ou não fazer. Por isso, que estamos falando que
a nossa luta é de disputa dentro de um sistema que já está montado. Portanto,
temos que estar atentos a esses parâmetros, instituições que qualificam o que é e o
que não é, o que é bom e o que é ruim. E ter o cuidado de não reproduzir o que
hegemonicamente foi estabelecido pelo sistema, inclusive no nosso meio.

No entanto, o desmonte conceitual não funciona se não houver um diálogo entre o


desmonte da prática também. Na verdade, ele é um desmonte da práxis, ou seja,
nós vamos desmontar o todo. No meu entendimento, o MST está iniciando o
desmonte da prática em algumas questões mas, ele é lento, difícil, tem uma
defasagem do acesso em relação as produções artísticas da humanidade. Nesse
momento, nossa luta nesse espaço de germinação do fazer artístico pode se focar
na luta pelo direito a conhecer, observar, apreciar, analisar e isso só acontecerá
quando tivermos o direito ao acesso. Na esquerda, existe ainda muito preconceito
em relação a essa ideia, porque se pensa que isto não importa, que isso não
queremos ver, porque é coisa de burgueses. Pelo contrário, temos o direito e temos
que lutar pelo direito ao acesso. Isso é produção artística da humanidade, tão
mediada quanto nossas produções.

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Por isso precisamos repensar o papel da escola, dessa sensibilização desde a
infância para apreciação crítica e, posteriormente, para a qualificação das
expressões artísticas. Por tudo isso e como já foi falado aqui antes, temos que
desmontar essa ideia do gênio, do talento, do dom. Pode-se ter uma afinidade
artística, uma sensibilidade maior que, às vezes, a pessoa tem. Mas, a produção
artística é igual plantar, ou você aprende a fazer isso e pratica, e faz disso seu
cotidiano, ou não. Por exemplo, não tem ninguém aqui que tocou um dia o violão e
que sabe tocar tudo no violão. Então, tem que estudar! Precisamos difundir a ideia
de que arte é estudo e trabalho. E a escola, então, entendemos que é um espaço
importante para isso. A escola tem que ajudar a questionar e já percebemos, com a
experiência do movimento, que as nossas crianças ao terem acesso, ao
observarem, ao participarem, ao fazerem, ajudam, incusive, a formar os pais e as
mães. Estou falando não somente do movimento, que é o chão que a gente pisa,
então, às vezes, ficamos tentando pegar mil coisas, mas essa é uma questão
importante para uma prática artística e cultural diferenciada.

Outra questão fundamental é que o processo de produção artística do movimento


não se resume a obra de arte. Existe obra de arte, porém, o processo de produção
dessa obra para nós é o mais importante. O MST também enfrenta o debate do “eu”
e do “nós” na produção artística. Inclusive, já tivemos grandes “arranca rabos” com
esta questão. É o “eu” que produz, ou é o “nós” que produz? A nossa decisão,
agora, é que vamos continuar conversando para que a construção seja coletiva e
verdadeira. Porque se ela for imposta, é isso que foi falado, se ela for mandada ela
não funciona.

A arte no MST passou por várias etapas dentro do processo de luta. Na atualidade
estamos passando por um processo de descenso da produção artística, também um
processo de descenso da luta de classes e da luta do MST, por isso, podemos
afirmar que existe uma conexão. Estamos vivenciando, atualmente, na produção
artística algumas dificuldades organizativas e estratégicas de fazer o próprio debate
e construir as propostas. Então, com certeza isso estará evidenciado em nossa
produção, que é mediada pela luta. Mesmo assim, precisamos valorizar o que está
sendo construído, até mesmo com esse descenso, estamos vivendo uma produção
interessantíssima nas oficinas. Como por exemplo no curso de Educação e

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Marxismo, no Rio de Janeiro onde eles fizeram painel, música, poesia com uma
turma. Então, é possível existir uma produção coletiva interessantíssima e de
registro. Reconhecendo, também, uma mudança de olhar, da sensibilidade,
reconhecendo que as artes transcendem os métodos convencionais de produção e
compartilhamento do conhecimento. Já comprovamos isso com o teatro, com a
própria música, é também uma forma de fazer a socialização do que conhecemos,
que é diferente da massificação. Na socialização, compartilhamos de forma igual
sem massificar. Na massificação se joga o conteúdo, no socializar se discute,
constrói e reconstrói, permanentemente, o conteúdo. Portanto, lutamos pela
socialização de nossa produção, que vai, evidentemente, gerar uma produção.

Outros elementos que marcam a arte do MST é a questão de nossa arte se propor a
ser combativa e transgressora, desde o momento que ousamos fazê-la. Porém, nem
sempre o resultado é este. No entanto, entendemos que a ousadia e a
combatividade se encontra no próprio fazer. Mas, vocês fizeram o curso de artes?
Não! Percebam que não estamos com uma visão derrotista por não poder fazer. No
entanto, vamos fazer os nossos próprios cursos e vamos trazer elementos novos
para dentro dos currículos e trocar o que não tem de bom nos outros currículos.
Então assim, são dois elementos, não são os “coitadinhos” que não tiveram acesso,
seguimos fazendo, mas também, precisamos dessa qualificação.

O desafio desse debate é também discutir outro tema polêmico: existe função para
arte, ou funções possíveis para a arte? Não apenas essa questão em nossa
formação, mas num sentido mais amplo e coletivo, no processo político e
organizativo da luta e da transformação. Conjuntamente com esse debate também
estamos fazendo outros, a questão do gosto como categoria, por exemplo. A música
que toca nas rádios, toca porque o povo gosta. E costumamos dizer que, o gosto
cada um tem o seu, não é assim? Não! Precisamos aprofundar essa questão, o
gosto é construído. Para isso precisamos aprofundar o entendimento da indústria
cultural e seu processo homogeneizador e hegemônico.

Em formas gerais, podemos afirmar que nesses 30 anos de lutas fomos construindo
uma arte que se é permeada por disputa, permeada pela contradição, obviamente, e
que ela não deve ser uma arte que acomoda. Pois a arte e a cultura no sistema
capitalista têm seus lugares bem definidos, eles entenderam a muito tempo, o que a
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esquerda está demorando para entender, o papel da cultura no todo, na formação
da consciência e da prática da vida. Isso foi o mais importante que os capitalistas
entenderam e aprenderam a fazer com uma “sutileza brutal”, pode parecer estranho,
mais vou encontrar a palavra certa, uma sutileza perversa, violenta. Sutil, porque
não se percebe mas faz um estrago por dentro e é isso que está nas nossas casas
todos os dias, no acampamento, no assentamento, na comunidade, em qualquer
lugar. Mas vejam, a cultura de massa, nesse caso, deve ser tratada com outro
conceito, o de indústria cultural. Porque o conceito cultura de massas pode dar a
entender que é o povo que está produzindo, o que não é verdade. No entanto,
falando de uma maneira mais geral, quando se fala cultura de massa dá a
impressão de que é produção das massas, porém, se desmontarmos, é da indústria
cultural com a carapuça das massas. É isso que seria o mais importante no
desmonte, porque não estamos produzindo. Portanto, não tem caráter combativo e
muito menos transgressor e sobretudo, nada de emancipador.

E dentro deste desmonte dos conceitos e da prática precisamos compreender quais


são os elementos que conformam a arte e a cultura no e do MST. De onde eles
vêm? Por quem foram trazidos? E para isso precisamos compreender que as
pessoas que formam o MST trouxeram e trazem para o acampamento a bagagem, o
colchão, as panelas, mas também, a viola, o pandeiro, a música e trouxeram, a
bagagem cultural e artística que já tinham onde viviam. E assim se constituiu um
processo interessante de migração também da bagagem artística e cultural dentro
dos territórios do MST. E essas experiências artísticas e culturais foram se
consolidando e se modificando na luta. E assim a nossa história foi se
transformando numa história coletiva e numa história coletiva da produção artística e
cultural.

A mística

Uma das expressões mais importante de história coletiva de produção artística e


cultural é a mística. Que com sua demarcada capacidade aglutinadora parece algo
muito fácil de fazer, mas talvez, seja uma das práticas mais complexas que existe no
MST. Mas, vejam a mística não é algo criado pelo MST. A mística tem muito a ver
com o legado da Igreja, tem muito a ver com a questão missionária. Primeiro que, o
MST não é um movimento único, de um lugar só. O movimento tem base da igreja,
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tem base do sindicato, dos posseiros, etc. Se esse movimento é tão misturado,
como é que pode sair uma arte única dele? Se ela sair é falsa. Toda essa junção é
contraditória, então, nossa arte também será contraditória, tanto para nós quanto
para fora.

A música e o debate organizado da Cultura no MST

Para compreender a mística e outros elementos artísticos e culturais no e do MST é


necessário lembrar que o Movimento Sem Terra MST se formará numa época,
importantíssima, de luta da esquerda na América Latina. E, uma das expressões
artísticas que vai ter força, nesse ínicio da produção, percebam como o processo da
história é interessante de analisar, vai ser a música. A música vai ter um papel
fundamental na organização cultural do MST. É a música que vai puxar a
necessidade de discutir o que estava acontecendo. Porque já se tocava muito
música, tinha também a poesia, mas a música era o forte, inclusive, os nossos
militantes tinham curso de formação para tocar violão. Existiam os Festivais
improvisados nas reuniões e encontros. Nesse início o estilo musical do MST está
fortemente influenciado pelas canções dos movimentos de liberação nacional de
vários países da América Latina, como as canções da luta sandinista e de Cuba por
exemplo. Vimos, com o tempo como a música era importante, e disso veio o
questionamento de que não queremos tocar só para animação, podemos fazer a
animação, mais não somente isso. Porque os Sem Terra são abusados, queremos ir
para frente e aí começamos a discutir como avançar em nossa produção musical. E
surge disso, uma música no movimento que vai fazer a propagação do que é o
movimento, surge então as músicas de luta. Nossa música falará sobre o que é essa
reforma agrária que estamos pensando. Vejam, a música vai trazendo também o
pensar estratégico, a tática do momento utilizada pelo movimento.

Desde sua fundação em 1984, no MST se fez bastante arte, porém de forma mais
espontânea e foi somente no ano de 1996, que realizamos primeira oficina de
músicos do MST, em Brasília. Essa oficina tinha o caráter técnico e os nossos
cantadores eram todos autodidatas. Então, o aprimoramento técnico já era uma
busca, não começou agora, porque achamos bonito ter, já era uma preocupação
desde o início. Se organiza o Coletivo Nacional de Músicos do MST, ainda em 1996.
E isso, vai fomentar uma série de debates do movimento. Pois já aparecia o
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questionamento de que o Movimento não faz só música, faz poesia, dança, teatro e
faz mais um monte de coisas. Portanto, era necessário organizar o Coletivo de
Artistas do MST. E assim em 1998, percebam como a teoria e prática entram juntas
aqui, se realiza o primeiro Seminário “ O MST e a Cultura”, que consistia em chamar
o pessoal que sabia sobre o assunto, para as pessoas dialogar com militantes do
movimento sobre temas como o que é arte, o que é cultura. E em 1999, acontece o
segundo seminário, aprofundando as questões em relação a cultura e sua relação
com a luta Sem Terra.

Militante artista, artista militante

Mas, o artista no MST ele é militante, ou não é militante? Vejam que agora, começou
a complicar o negócio. Ele é um artista militante ou militante artista? Tanto faz, mas
ele tem essa tarefa. Por quê? Porque o militante que tocava, que cantava, também
organizava acampamento, estava organizando o PDA do assentamento, estava no
setor de educação. Porém, tinham outros que não estavam, então tínhamos que
discutir isto. Não tem como fazer uma produção artística e cultural no e do
Movimento, sem fazer parte dessa esfera maior organizativa do movimento? Assim,
surge outra questão organizativa, não se tratava de organizar apenas os artistas.
Era necessário organizar o Coletivo de Cultura do MST, entendendo que arte está
dentro da cultura. Mas, que ela precisa permear outros espaços, que não somente o
da produção artística, porque senão o conjunto do movimento não vai se apropriar
dela. E, vejam que, até hoje, estamos nessa labuta.

O Coletivo de Cultura do MST

Foi a partir de 1998 e 1999 onde que firmamos base no processo organizativo da
cultura no MST. Com a realização dos Seminários em que nos reunimos, como aqui,
para socializar, debater e propor. Já existia essa preocupação com a cultura e já se
questionava se essa era uma questão para Coletivo de Cultura ou para o todo do
movimento. E assim, começamos a pensar sobre isto. O Coletivo deve ser um
provocador das questões para o conjunto? Ah! Mas aí, esse Coletivo determinará a
linha? E com isso, começaram a surgir várias questões, como: se estamos dizendo
que na nossa arte todos podem fazer, então, tem que ser do conjunto, porque senão
vamos repetir o mesmo modelo de que, só alguns podem se especializar para fazer

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aquilo. Por isso, romper com essa lógica, não negando o artista, mais entendendo
que ele faz parte de um contexto maior.

Para compreender a constituição organizativa do Coletiva precisamos lembrar que


estávamos passando por um período de grandes eventos no Movimento. Fizemos o
“Festival Canções que abraçam os sonhos”, em 1999, na cidade de São Miguel das
Missões (RS), que deu debate e temos elementos até hoje. Umas pessoas queriam
que fosse uma Mostra ao invés de Festival, houve resistência pelo caráter
competitivo, porque estamos falando de arte, não deve ter prêmio só para um. O que
no fundo acabou ocorrendo, porque era uma parceria e tal, porém, gerou uma série
de debates. E até hoje, travamos alguns debates teóricos em relação a questões
culturais que são frutos da experiência deste Festival.

A partir desse momento, entendemos que precisávamos de priorizar a formação e a


articulação da militância da cultura no MST. Fizemos a primeira Oficina de Artes e
Comunicação do MST, no ano de 2000, em Ibirité (MG). Onde começamos a fazer o
processo de formação com uma turma do Brasil inteiro. E a nossa tarefa depois, era
de refazer e não de reproduzir, com as nossas realidades locais, outras oficinas, que
depois resultaram nas Oficinas das Grandes Regiões no ano de 2001.Vale ressaltar
que esse é um período de grande contradição da luta com o governo FHC,
efervecência da luta dos Sem Terra, de uma abertura do Movimento para o diálogo
com as universidades e com a sociedade em geral.

Desse processo uma pessoa muito importante foi Augusto Boal, ele não foi o único,
porque as vezes acontece um processo de endeusamento. Mas, ele nos ajudou num
período em que nós não tínhamos muita articulação. E no ano de 2001,
organizamos a Brigada Nacional de Teatro do Movimento Sem Terra Patativa do
Assaré. Essa Brigada será composta por militantes de todo Brasil que tinham a
tarefa de retornar às suas comunidades e fazer a formação e trabalhar depois com
os grupos que formavam. E, essa linguagem artística deveria contribuir no nosso
processo de formação. Porque estávamos entendendo que os nossos processos
formativos estavam muito “quadrados” e se entendia que as linguagens artísticas
não servem somente para serem apreciadas, mais que fazem parte do nosso
processo formativo. E, o teatro teve uma função fundamental no Movimento, tinha o
pessoal da música, poetas, artistas plásticos e essa Brigada então, foi fazendo um
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processo de formação. Daí, fomos avançando num processo de combate, pois o
MST sofreu períodos de perseguição política, prisões, assassinatos, momentos
muito ferrenhos que proporcionam produções artísticas da luta. Pulei, aqui, muitos
momentos históricos do Movimento, como a Marcha de Brasília em 1997, tem,
também, a marcha de 1999 que talvez, proporcionou uma das músicas mais
marcantes do movimento que é a ordem e progresso: “esse é o nosso país, essa é a
nossa bandeira...” É uma música, também, desse período dos anos 90. E aí, se
formos lembrar, em 1995, tínhamos o lema “Reforma Agrária: uma luta de todos”,
porque já entendíamos que não era possível fazer a reforma agrária sem a luta de
toda a sociedade.

Tudo isso que estou falando foi se construindo não se deu de forma automática.
Porém, é no final dos anos 90 que a questão da escola e da universidade foram
fundamentais, porque essas parcerias se estabeleceram com quem tinha mais
sensibilidade. E, discutíamos que era preciso mostrar que o campo não estava
morto, a sociedade precisa saber disso e precisa saber que o campo está sendo
fuzilado, precisamos fazer essa denúncia para o conjunto da sociedade. E então,
fizemos uma denúncia bonita, artística e cultural no ano de 2002, na Primeira
Semana Nacional de Cultura Brasileira e de Reforma Agrária, na UERJ, no Rio de
Janeiro. Levamos setecentos Sem Terra para dentro da Universidade, acampamos
lá, fizemos feira da reforma agrária com comida, palestras, oficinas pela tarde e
fizemos intercâmbios com onze comunidades. Para nós, internamente, foi um
conhecimento do que estávamos produzindo. Depois dessa primeira Semana da
Cultura fizemos, em 2004 outra em Pernambuco e aí, já não era mais festival, não
era mais competitivo, era uma grande “amostragem”, espaço de socialização.

Estamos falando do período dos anos 2000, de um governo do PT, início do governo
Lula e de todas as espectativas que geraram. Hoje, com esse distanciamento do
tempo é mais fácil fazer algumas análises, mas naquela época, não. Então, toda a
perspectiva que existia do conjunto da sociedade, dos movimentos sociais, enfim, do
que seria, vai trazer para o MST novas circunstâncias políticas, sociais, para o
desenvolvimento da cultura no Movimento. Esse é ainda um processo que
precisamos aprofundar, a partir, das consequências desse momento histórico para o
conjunto do movimento no campo da cultura.

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No ano de 2005, nessa ideia de unir a teoria e a prática realizamos um Curso de
Formação muito interessante na Escola Nacional Florestan Fernandes, que
trabalhou, justamente, o papel da cultura e o que o Movimento estava produzindo. E
um momento de complexidade na realidade do país e da luta do MST. E os
momentos de caos, de dificuldades, também, podem ser momentos importantes da
produção e de estudo aprofundado da arte e da cultura. E, então esse processo de
meados dos anos 2000, que apesar de ser esse momento de efervescência,
também, apresentará uma serie de contradições. A militância se forma nesse
período, dentro do movimento, vai se formar numa perspectiva diferente da
militância daqueles primeiros tempos. Lembrem, os primeiros tocavam violão, mas
não eram da “cultura” e a outra geração entrava no combate direto do FHC, naquela
pauleira e tem que aprender a fazer daquele jeito. E aí, essa turma que está
chegando, vai entra nos pontos de cultura e nos convênios com o Minc, é bem
diferente... Não estou falando que é mais, ou é menos. Portanto, vai ser uma
militância que já vai estar fazendo o ensino médio no acampamento, ou no
assentamento, muitas vezes. Uma geração que já vem para militância escolarizada,
com possibilidade de fazer um curso superior, que é diferente da realidade de muitos
de nossos companheiros que, foram estudar e tiveram que pegar da quarta série no
EJA, o famoso Educação de Jovens e Adultos e assim seguir os estudos.

Essa nova turma vem diferente, já vem com o acúmulo do Movimento, vem com
uma ideia do lutar pela educação, porque isso é permanente. Já tem essa ideia de
que estudar é normal. E, portanto, o processo de formação vai se qualificando. Já
temos algumas experiências nesse período, que apresentam novas formas e o
pensar novas formas e o de como fazer esse debate, a partir, das linguagens
artísticas. Daí, surge a ideia da função das linguagens artíticas, que na marcha de
2005, não fomos como Coletivo de Cultura, nós formamos a Brigada Cultural com
250 integrantes e fizemos um grande teatro procissão, a partir das grandes regiões.
Cada grande região trabalhou um tema, dentre eles tinha o ballet do genocídio, que
foi da região Amazônia e que foi lindíssimo; a turma do Sudeste que fez a cena do
julgamento burguês, com bonecos gigantes. E assim, percebemos uma coisa: que
as pessoas foram entendendo a história da luta, não só do MST, mais a luta da
classe trabalhadora no Brasil, a partir de outra linguagem. E não foi a apresentação
que foi o fundamental e sim o processo de criação nas regiões. E lá, foi uma
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socialização mais rica do que a gente imaginava. Nesse momento, percebemos que
existem experiências importantes e esse olhar da cultura vai permear várias coisas
importantes. Portanto, não é mais o artista isolado, já é o militante que, está se
formando no Movimento e também, tocando a luta. Surge aí, o processo
intencionalizado da formação. E o ano de 2006, vai ser importante para o momento
dessa avaliação de dez anos, de tudo que fizemos desde 1996 e o que precisamos
avançar e ver o que está travado. Vejam, um momento complicado, não sei se mais
do que agora, mas que precisávamos avaliar e como trabalhar com a cultura nesses
aspectos. E assim, vão surgir novas premissas, porque cada vez aprendemos uma
coisa, quanto mais a gente trabalha, mais elementos e questionamentos vão
surgindo. Foi, também, o momento que percebemos que precisamos ter a intenção
de fazer isso e fazê-lo da melhor forma possível.

Esse breve percurso histórico, com alguns elementos, que não representam o todo
de nossa produção artística e cultural nos ajuda a apontar para algumas questões
que ainda são desafios. Como a necessidade de registro e sistematização de
nossas experiências; a urgência em socializar esse processo com o Conjunto do
MST, passando pelo acúmulo na formação, organicidade e tudo isso permeado por
um processo constante de provocação. Ou seja, um processo cultural de
provocação, não da acomodação; reafirmar o processo de criação, desde o território,
numa ideia de cultura inquietante, provocadora, transgressora. Porque somos
produtores do que pensamos da arte e produtores artísticos, porque produzimos
uma arte da luta. Porque queremos caminhar no sentido de uma Cultura
emancipadora construída pela Classe Trabalhadora para a Classe Trabalhadora.

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