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REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS

ESTÂNCIA – OUTROS TRAÇOS CULTURAIS


Os festejos populares42

43
Luiz Fernando Ribeiro Soutelo*

Numa sociedade perfeitamente caracterizada sob o aspecto


econômico, com um reduzido número de pessoas consideradas ricas,
entre as quais os proprietários das fábricas de tecidos, os grandes
comerciantes e os senhores de terra, com um grupo médio, e um
grande número de pobres, que formava a base da pirâmide, não é
de deixar de considerar os festejos populares que, sob certa forma,
envolviam todos os grupos sociais.
Por isso, causou estranheza, na cidade, quando em 1902
correu a notícia de que a polícia proibira os ensaios das funções,
nome que genericamente se dava na Estância aos grupos de reisado.

(...) Com a proibição dos ensaios das funções


vamos passar as festas bem tristes. A não serem os
presépios que amadores desta terra preparam para
entreter-nos durante as festas do natalício teríamos
de ficar em casa, por assim.
Nada mais injustificável do que o procedimento das
autoridades, em proibirem os reisados.
Sabemos que estes dão muitas vezes ensejo a sérios
conflitos, mas para que é a polícia senão para
fiscalizar estes e outros divertimentos.
O fato é que proíbe-se (sic) os ensaios das funções
e, no entanto, se dá ampla liberdade a celebração
de novenas nos subúrbios da cidade, onde sempre
se dão conflitos, como tem acontecido nas reuniões
de S. Cosme e Damião, no bairro além da ponte e da
Conceição de Maria no lugar denominado Cajueiro,
onde há poucos dias se deu uma morte!
Mais orientação e justiça, senhores da polícia44

Felizmente a notícia carecia de fundamento e, logo na edição


seguinte, o jornal esclarece a questão e a cidade respirou aliviada.

42 Este texto é um dos capítulos da obra “A Voz do Sul – A Estância e


suas raízes culturais” (em fase de pesquisa e elaboração)
43 *
Ocupante da cadeira no. 30 da Academia Sergipana de Letras
44 A Razão, 7 (51), de 21 de dezembro de 1902.
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(...) Estou informado que as autoridades atuais desta


cidade jamais proibiram os ensaios das funções,
como mal informado disse na crônica passada.
A suspensão de tais ensaios provém dos maltratos de
que foram vítimas os que neles tomando parte em um
dos dias do mês passado tiveram de abandoná-los
debaixo da pancadaria grossa de uma força policial
comandada pelo te. Eloy que, por tais façanhas, foi
daqui mudado.
A primeira autoridade da comarca garantiu-me haver
plena liberdade para todo e qualquer divertimento,
próprio do tempo, desde que sejam dirigidos pelo
caminho da ordem45.

O Natal ainda não fora contaminado pelo espírito do


consumismo, tão característicos dos dias de hoje. Sem as “funções”
não havia festas de Natal e Reis, pois elas não iriam a determinadas
casas, apresentando-se e contagiando a todos.

(...) naqueles tempos, principalmente nos dias 5 e 6


de janeiro, desde que anoitecia até que amanhecia,
a cidade inteira era tomada pela enorme afluência
do povo eu lhe enchia as ruas, constituído em sua
maioria de pessoas de fora, que aqui vinham passar
as ditas festas. Eram os proprietários e senhores
de engenho com suas famílias, trabalhadores das
fazendas e roças próximas, era gente de todas as
condições sociais, desde o cidadão de pé na botina
e camisa branca de peito engomado, até o humilde
tabaréu de pé na alparcata e roupa de tororó46.

Das chamadas manifestações populares, encontramos em


Estância registro de pastoris, de cheganças, de reisados, as taieiras
e dos lambe-sujos. Estes se apresentavam no período entre 7 de
setembro e 24 de outubro, datas consagradas à independência do
Brasil e à tradicional comemoração da emancipação política de
Sergipe, naquela época solenizada com muitas festas.
No século XIX, nesta época do ano (dezembro/janeiro), ocorriam
na igreja do Rosário a posse da mesa regedora da Irmandade e a
coroação dos Reis de Congo. Com o passar dos tempos, no entanto, a
irmandade foi se elitizando, com o afastamento os negros e a entrada
45 A Razão, 7 (52), de 28 de dezembro de 1902.
46 NASCIMENTO, Manoel Rodrigues do. Obra citada, p. 29.
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dos brancos. Remanesceu, contudo, aí a marujada, organizada por


Januário, um negro de estatura mediana, do qual diziam que comia
capim por ter batido em sua mãe.

(...) que saía às ruas nos dias de Reis, partindo da


Igreja em apreço. Ele, vestido de oficial da marinha, e
mais uns oito ou dez companheiros vestidos com uma
farda mais simples de marinheiros. Uma armação de
madeira, rodeada de algodãozinho, fazia as vezes de
murada de um navio, o qual era ao mesmo tempo
conduzido pelos marujos.
“oi da Marujada, gritava Januário, empunhando
uma espada. Quem são vocês?
Marujos do mar, respondiam.
Que viestes aqui fazer?
Acatar vossas ordens e a Jesus adorar”.
E seguia-se a cantoria, enquanto caminhavam
conduzindo a embarcação:
Entremos, por essa nobre casa, por essa nobre casa
Louvemos ao Mestre Piloto
Que foi nosso Salvador
Essa cerimônia ocorria sempre após a missa de Reis,
e era assistida pelo grande número de pessoas que
tinha ido àquele ofício matinal na Igreja do Rosário.
Os marujos davam uma volta por aquelas ruas e
depois se recolhiam ao local de onde haviam partido47.

Numa sociedade urbana, mas com fortes raízes no campo,


estas manifestações de cultura popular, no ciclo do Natal, eram uma
forma de reforçar laços e, sobretudo, entreter-se numa época em que
as comemorações natalinas não tinham perdido a sua ingenuidade,
trocadas pela árvore de natal, pelo papai Noel e pelos presentes.
As crônicas registram, pelo menos em um ano (1903),
a formação de um Rancho de Reis, composto por pessoas da
comunidade estanciana, sem que ele possa ser considerado uma
tradição da cultura local, mas uma forma de, agregando pessoas,
marcar o período natalino.

O sr. Carlos A. Gomes introduziu, em nosso meio


social, no domingo passado, uma bela diversão que

47 SOUZA, Raymundo Silveira. Obra citada, p. 206.


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a todos encantou. Nada mais que um belo rancho


de reis composto de elegantes senhoritas e distintos
cavalheiros de nossa melhor sociedade.
Formando a dois de fundo e empunhando cada
par lindas lanternas de cores, e saiu o rancho da
residência do senhor Filadelfo Costa para a do sr.
Salustiano, que o recebeu galhardamente.
Depois de fazer o rancho todo o intinerário (sic)
do seu programa, precedido de uma estrela de luz
cambiante e alguns músicos parou em frente do
palacete do sr. Salustiano, eu se acha de portas
fechadas conforme a pragmática.
Ali depois de expressivo canto de saudação
ao dono da casa e ao Menino Deus, abriu o sr.
Salustiano a porta de sua residência para receber
o lindo rancho, que após os cumprimentos entrou
no terreno das contradanças, que se prolongou até
1 hora da manhã.
O sr. Salustiano e sua ilustre família foram
incansáveis na dispensabilidade de bom trato a
todos os convivas48.
Este rancho apresentou-se mais uma vez, em 1904, e depois
desapareceu, o que é uma prova de que não se tratava de uma
tradição arraigada na cultura da comunidade, mas sim de um evento
criado de modo artificial.
A festa popular, por excelência, da Estância sempre foi e
o é o São João, atingindo toda a cidade, das casas mais simples,
aonde vivia o povo, até aqueles em que se concentrava a “elite” local.
Começava com o içamento da bandeira de São João, outrora no
Caminho do Rio, na rua da Chapada, no Botequim, no Bonfim, na
rua da Miranga e no Caminho do Porto. Prosseguia com a festa do
asilo Santo Antônio (13 de junho), criado por Mons. Vitorino Fontes
e Augusto Gomes, e chegava ao ponto alto entre os dias 23 e 29 de
junho quando os santos juninos – São João e São Pedro, aquele mais
do que este – eram lembrados festivamente,

(...) sem recordar o São João de outros tempos, o


São João das ruas enfeitadas de fogueiras de bonitos
“mastros” cada qual mais imponente e mais belo,
dos fogos de salão> a espiga japonesa, as chuvinhas
prateadas, os craveiros, os ovos do Faraó, e outros
que tais de efeitos lindíssimos; dos buscapés,
rojando convulsivamente, parecendo enormes
sucuris chamejantes, ora no chão a contorcer-se
desesperadas, uma de encontro às outras, ora no ar

48 A Razão, 8 (1), de 11 de janeiro de 1903.


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descrevendo linhas sinuosas, dorços (sic) eriçados


por miríades de escamas reluzentes etc49.

Era a época de uma culinária própria, feita de milho (canjica,


pamonha, manauê) e mandioca (bolos de aipim e puba, além dos pés-
de-moleque) e dos licores, em especial o de jenipapo, dos batuques e
das batalhas de buscapés e espadas, numa manifestação coletiva que
não pertence a este ou aquele bairro é da cidade inteira e estende-se
a quantos a visitam50.

Excederam à minha expectativa os festejos de S. João,


dando começo a eles a bonita salva que presenciou
na madrugada da segunda-feira, constante de
foguetes no ar, em grande quantidade, os afamados
busca-pés, pitus e repiques de sino, que tudo fez a
cidade em alvoroço, pelo que, com os meus botões,
disse temos a noite cousa grossa.
De fato, pelas 8 horas, saíram em passeiata (sic)
dois clubes, o dos “intrusos” levando à sua frente
um estandarte alegórico e a filarmônica “Lira
Carlos Gomes” e o dos “Devora” também com o seu
estandarte e a filarmônica “Vitória”.
Entrando em diversas casas já preparadas para
recebê-los, os “Intrusos” e os “Devora” comeram e
beberam a seu gosto.
Percorrendo diversas ruas desta cidade, a passeiata
(sic) realizou-se na melhor ordem e harmonia, sem
que, de ambas as partes os ânimos se exaltassem,
Não acompanhei nenhum dos dois clubes, no
entanto, saindo à rua bem contrariado por não
ter o Sinhozinho me mandado o queijo de que
falou-me (sic) o Brandura com muita canjica e
manauês que,fazendo-me grande revolução no
maquinismo abdominal, fui obrigado a recorrer
a Magnésia de Lefort 51.

Os preparativos da festa ocorriam bem antes, quando se


cortavam os galhos dos bambus para os buscapés e se produzia o
composto de pólvora para enchê-los.
49 NASCIMENTO, Manoel Rodrigues do. Obra citada, p. 133.
50 FREIRE, Ofenísia Soares. O São João na Estância. In: FONTES,
Aglaé d´Ávila. São João é coisa nossa, Aracaju: Gráfica Editora J. Andrade,
1990, p. 210.
51 A Razão, 7 (26), de 29 de junho de 1902.
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(...) na calada da noite, ouve-se o batuque cadenciado


do pisa-pólvora, acompanhado de cantos especiais,
na fabricação dos busca-pés, para as futuras
batalhas, em que os batalhões se defrontam dentro
da noite junina, mas pode causar queimaduras
e mutilações a que, infelizmente, estão expostos
aqueles que o proporcionam52.

As ruas da Estância, em qualquer dos seus bairros e mesmo


no centro, se pontuavam com fogueiras, algumas com mastros. Em
torno delas as pessoas, principalmente as crianças, as famílias e os
amigos se reuniam para comemorar o São João.

(...) A quantidade mínima de lenha numa fogueira,


que se prezasse, era a de uma carrada, de carro
puxado a 6 bois Não simples carrocinha de um boi
ou um burro.
As maiores eram armadas em frente ao sobrado do
meu pai, defronte da que era armada por Antônio
Vieira, do sobrado onde hoje é a Sulgipe.
Seguiam-se, no mesmo tamanho, as fogueiras
das casas de seu José Amado Sobrinho, pai de
Amandinho, João Floriano Amado, e as que eram
armadas em frente ao sobrado do sr. Eliziário
Silveira, do meu avô José Cristóvão, da casa de
Chico Martins, subindo assim quase todo o Rosário.
Essas fogueiras queimavam até pela manhã do dia 2453.

Nas fogueiras assavam-se milho e batata doce. Em torno delas


as crianças soltavam fogos e, quando somente havia o braseiro,
pulava-se o fogo para realizarem-se os batizados. Quantos comprades,
comadres e afilhados surgiram em volta das fogueiras de São João,
todos tão considerados como se tivessem ido à pia batismal.
Durante a noite de São João havia também os jogos de
adivinhações, como aquele de enfiar uma faca virgem no tronco
da bananeira para as moças, no dia seguinte, verificarem a letra
que se desenhara na lâmina, pois esta seria a do nome do futuro
pretendente, ou, ainda, a colocar-se uma aliança presa a um fio de
cabelo da moça dentro do copo, com água, a esperar o número de
vezes que o anel bateria na borda do copo. Estas seriam o número de
anos que demoraria o casamento da rapariga.
52 FREIRE, Ofenísia Soares. Artigo citado. In: FONTES, Aglaé d´Ávila.
Obra citada, p. 211.
53 SOUZA, Raimundo Silveira. Obra citada, p 297.
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Se isto não acontecesse, é que ela ficaria no barricão, no caritó.

(...) As que pretendiam casar-se, deitavam clara de ovo


em um copo d´água, Isto faziam à roda de uma mesa.
Se a clara se transformava em uma igreja era sinal
certo de casamento, e a que a sorte tirava, ficava daí
em diante tão risonha e catita, que nos dava gosto
vê-la, mas se a clara se transformava em cemitério,
a pobre menina empalidecia e soltava um suspiro
abafado, pois tinha de passar ao rol das titias.
(...) Algumas senhoras idosas, rezando ave-marias
ao pé das fogueiras, plantavam dentes de alho, bem
junto ao fogo, para no outro dia, antes do nascer
do sol, reparar se estavam grelados, sinal evidente,
de que alcançariam o S. João seguinte. Outras,
rodeando as fogueiras, com suas tigelas d´ água,
separavam de vez em quando, para ver as sombras
de seus rostos se apresentarem n´água. Se, por
acaso, devido à má posição, algumas não viam o que
desejava, chamava as circunstantes em aflições que
fazia pena. Aproximava-se mais da desconsolada
senhora, uma das filhas quase sempre a quarentona,
cuja experiência da clara de ovo, lhe foi favorável e
com voz sonora ou doce lhe dizia: Olhe o seu rosto
ali, mamãe!
— Eu não o vejo menina; vai buscar os meus óculos.
À chegada da cangalha, a velha, logo a enganchar lá
no nariz, gritava com maior prazer:
— Agora, sim! estou me vendo – E ficava tão alegre,
quanto a quarentona ter visto a igreja no copo
d´água54.

Era o momento propício para tirar a sorte, sorteando de dentro


de uma cumbuca um número que correspondia a um versinho,
sempre chistoso e premonitório, geralmente anotado num caderno,
ainda que A Razão, ao aproximar-se o período, anuncie a venda de
livros de sortes.
Não esqueçamos também os bailes e as danças.

Cada casa onde houvesse piano ou vitrola,


ou onde pudesse entrar um “cisco” da Lira,
era ponto certo para um baile, uma dança
animada. As vezes, a moçada entrava para
fugir dos pitus e dos busca-pés, que eles
mesmos acendiam nas fogueiras: pretexto para
improvisar os chamados “assustados”, isto é,

54 A Razão, 20 (25), de 29 de junho de 1913.


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danças que os donos da casa não previam.


Dançava em casa do Dr. Jessé, que gostava
muito de dançar, no Vitória Hotel, de José
Nunes, sempre alegre e cortês, no sobrado de
João Pereira e em outras residências55.

Não existia São João na cidade sem batalha de buscapé,


tradição antiga que vinha do século XIX. Quando existiam, pois
houve época em que foram proibidas, como se verá adiante, deixavam
muitas vezes um saldo doloroso para muitas famílias estancianas,
com filhos mortos ou mutilados.

Os festejos de S. João não ocorreram bem entre


nós este ano, pois houveram (sic) diversos
desastres com pólvora, na sua proximidade.

Entre estes o mais lamentável, e que muito


contribuiu para a frieza da festa, foi o havido
em casa de João Casimiro na rua do Coqueiro,
no qual faleceu instantaneamente o inditoso
artista pedreiro João Mamão, deixando viúva e
três filhos menores.

Dos quatro sobreviventes faleceu, a 3 do


corrente, o menor José Cesário, cujo corpo
fora bastante estragado pela explosão, sendo o
estado dos outros bastante lisonjeiro.

A ordem pública felizmente foi que não sofreu a


menor alteração, só tendo a polícia queixa dos
ferimentos que recebera Pedro de Souza, de
Otoniel Dantas, quando soltavam buscapés em
a rua cap. Salomão, obrigando o sr. delegado a
que, por conta desse, corresse o tratamento do
ferido que vai bem56.

Em 1908, registrava “A Razão” que com alguma animação


correram os festejos de S. João e S. Pedro nesta cidade e que não
houve felizmente desastres e a ordem não sofreu a menor alteração,
o que registramos para gáudio e honra de nosso povo57.
Noutras oportunidades, com certa antecedência, a imprensa
local – leia-se “A Razão” – previa que os festejos seriam animados
porque o comércio tem vendido quase todos os artigos adotados no
fabrico da pólvora, ao mesmo tempo em que informava que só a casa

55 FREIRE, Ofenísia Soares. In: FONTES, Aglaé d´ Ávila. Obra citada,


p. 215.
56 A Razão, 14 (26), de 7 de julho de 1907.
57 A Razão, 15 (25), de 5 de julho de 1908. (conferir)
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Nascimento & Irmão vendeu até agora 38 barris de enxofre58.


Mas, às vezes, incidentes interrompiam as batalhas.

(...) Durante a tarde do solene dia do Batista,


tocou a “Lira Carlos Gomes”, no bairro Rio
Branco, variadas peças do seu repertório,
seguindo-se ali depois das 6 até 10 da noite
completa batalha de buscapés na qual tomaram
parte dois partidos bastante arregimentados. A
bandeira colocada entre os mesmos para ser
retirada pela facção vitoriosa ficou imune, pois
uma imprevista traição trouxe o desânimo aos
contendores dando-se por finda a batalha.

Por mão traiçoeira recebeu o sr. Hugolino,


operário da fábrica de tecidos, uma cacetada
sobre a cabeça a qual felizmente não lhe trouxe
a suspensão do trabalho.

As dez horas foi queimado um barco de fogo


artificial e dispersou o povo, que enchia as
casas daquele bairro 59.

Certo arrefecimento nos espontâneos festejos juninos


ocorrerá no início dos anos 20 do século passado. É que o Governo
do Estado, na administração do Presidente Pereira Lobo, proibiu as
batalhas de buscapés. Esta situação perdurou até o governo do Dr.
Graccho Cardoso, quando as batalhas de buscapé voltaram com
vigor e ficaram60.

As festas de S. João, com suas múltiplas e


encantadoras diversões sempre foram uma
das nossas mais queridas tradições populares.
Eram, em tempos que não vão muito longe, da
maior alegria as noites aqui consagradas ao
santo precursor.
Nem outras a gente se divertia com tanto
prazer.
E de todas as maneiras de se divertir.
A sua principal nota consistia nos fogos, os
chamados buscapés.
Estes eram, se assim podemos dizer, a alma
da tradição.

58 A Razão, 17 (21), de 19 de junho de 1907.


59 A Razão, 17 (25), de 2 de julho de 1907.
60 Ver Sergipe Jornal de 26 de maio de 1923.
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Afinal foram proibidos.


Desde então, como é natural que se desse,
as festas de S. João amorteceram, vindo-se
a passar aquelas noites, outrora tão festivas,
debaixo da maior gelidez.
Dir-se-ia extinta a tradição, vivendo, apenas,
em lembrança de seus adeptos.
Coisa, porém, não é uma tradição que se possa
extinguir assim tão facilmente.
Enquanto existir quem a preze, no coração
deste, ela não morrerá nunca. Há de viver
sempre com ela, enquanto sobrevivam os que
a amam.
Permitissem a população da Estância expandir-
se nessas noites, e com a mesma animação e o
mesmo calor de há anos passados, voltariam a
fazer-se esses festejos entre nós.
Pois bem, essa permissão, que sinceramente
aplaudimos, é que vem de dar não somente
aqui como em todo o Estado, o atual governo
de Sergipe.
Antes de mais nada, vemos nela o amor que
do presidente Graccho Cardoso merecem as
tradições de sua terra, o que é natural em
quem como s. ex. possui um espírito culto.
Daí, a avaliar-se dos preparativos que já se
fazem, vai ser arrojado como os de há anos
passados, o próximo S. João.
Uma coisa há de mister, é que tais folguedos
se façam sem prejuízos para a ordem pública.
Nem outra coisa é de esperar da índole ordeira
do nosso povo61.

Somente muito mais tarde, a partir dos anos 70 do século


XX, os festejos juninos perderam muito da sua autenticidade e
espontaneidade, quando o poder público passou a interferir nos
festejos, numa intervenção nem sempre benéfica, o que se acentuou
com a inclusão de elementos da chamada indústria cultural,
característica que ainda perdura.
Em setembro e outubro aconteciam na Estância outras
brincadeiras e folguedos populares.
O primeiro deles ocorria em setembro. Era a festa das cabeçorras.

61 A Razão, 30 (220), de 10 de junho de 1923.


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Estas também saíam no período de Carnaval. Grupo formado por


homens com máscaras de grandes dimensões. Seus integrantes
vestiam-se de xales de cores atravessados ao tronco, um lote de
fitinhas pendendo-lhes dos ombros e traziam um mangual na mão,
para correr atrás da meninada que não se cansava de apupá-los
freneticamente62.
Em outubro, era a vez do lambe-sujo. Folguedo que relembra
a destruição dos antigos quilombos pelos capitães-do-mato, em
geral descendentes de índios. Os negros tinham os corpos cobertos
por mel cabaú e traziam nas mãos foices de madeira, enquanto
os caboclinhos com o corpo pintado de roxo-terra vestiam-se com
tanga de penas e cocar e portavam arcos e flexas. Cercados pelos
caboclinhos, os lambe-sujos são intimados a se entregarem. Como se
recusavam a fazê-lo, depois de um combate, são aprisionados até que
uma autoridade local – o prefeito, o juiz, o padre o delegado – ou uma
figura proeminente da cidade os libertava.
Eram festejos espontâneos, coordenados por pessoas da
comunidade, que reuniam os brincantes, com o que se estreitavam
laços de amizade e solidariedade, através da festa.

62 NASCIMENTO, Manoel Rodrigues do. Obra citada, p. 63.


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