Numa sociedade perfeitamente caracterizada sob o aspecto
econômico, com um reduzido número de pessoas consideradas ricas, entre as quais os proprietários das fábricas de tecidos, os grandes comerciantes e os senhores de terra, com um grupo médio, e um grande número de pobres, que formava a base da pirâmide, não é de deixar de considerar os festejos populares que, sob certa forma, envolviam todos os grupos sociais. Por isso, causou estranheza, na cidade, quando em 1902 correu a notícia de que a polícia proibira os ensaios das funções, nome que genericamente se dava na Estância aos grupos de reisado.
(...) Com a proibição dos ensaios das funções
vamos passar as festas bem tristes. A não serem os presépios que amadores desta terra preparam para entreter-nos durante as festas do natalício teríamos de ficar em casa, por assim. Nada mais injustificável do que o procedimento das autoridades, em proibirem os reisados. Sabemos que estes dão muitas vezes ensejo a sérios conflitos, mas para que é a polícia senão para fiscalizar estes e outros divertimentos. O fato é que proíbe-se (sic) os ensaios das funções e, no entanto, se dá ampla liberdade a celebração de novenas nos subúrbios da cidade, onde sempre se dão conflitos, como tem acontecido nas reuniões de S. Cosme e Damião, no bairro além da ponte e da Conceição de Maria no lugar denominado Cajueiro, onde há poucos dias se deu uma morte! Mais orientação e justiça, senhores da polícia44
Felizmente a notícia carecia de fundamento e, logo na edição
seguinte, o jornal esclarece a questão e a cidade respirou aliviada.
42 Este texto é um dos capítulos da obra “A Voz do Sul – A Estância e
suas raízes culturais” (em fase de pesquisa e elaboração) 43 * Ocupante da cadeira no. 30 da Academia Sergipana de Letras 44 A Razão, 7 (51), de 21 de dezembro de 1902. 101 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
(...) Estou informado que as autoridades atuais desta
cidade jamais proibiram os ensaios das funções, como mal informado disse na crônica passada. A suspensão de tais ensaios provém dos maltratos de que foram vítimas os que neles tomando parte em um dos dias do mês passado tiveram de abandoná-los debaixo da pancadaria grossa de uma força policial comandada pelo te. Eloy que, por tais façanhas, foi daqui mudado. A primeira autoridade da comarca garantiu-me haver plena liberdade para todo e qualquer divertimento, próprio do tempo, desde que sejam dirigidos pelo caminho da ordem45.
O Natal ainda não fora contaminado pelo espírito do
consumismo, tão característicos dos dias de hoje. Sem as “funções” não havia festas de Natal e Reis, pois elas não iriam a determinadas casas, apresentando-se e contagiando a todos.
(...) naqueles tempos, principalmente nos dias 5 e 6
de janeiro, desde que anoitecia até que amanhecia, a cidade inteira era tomada pela enorme afluência do povo eu lhe enchia as ruas, constituído em sua maioria de pessoas de fora, que aqui vinham passar as ditas festas. Eram os proprietários e senhores de engenho com suas famílias, trabalhadores das fazendas e roças próximas, era gente de todas as condições sociais, desde o cidadão de pé na botina e camisa branca de peito engomado, até o humilde tabaréu de pé na alparcata e roupa de tororó46.
Das chamadas manifestações populares, encontramos em
Estância registro de pastoris, de cheganças, de reisados, as taieiras e dos lambe-sujos. Estes se apresentavam no período entre 7 de setembro e 24 de outubro, datas consagradas à independência do Brasil e à tradicional comemoração da emancipação política de Sergipe, naquela época solenizada com muitas festas. No século XIX, nesta época do ano (dezembro/janeiro), ocorriam na igreja do Rosário a posse da mesa regedora da Irmandade e a coroação dos Reis de Congo. Com o passar dos tempos, no entanto, a irmandade foi se elitizando, com o afastamento os negros e a entrada 45 A Razão, 7 (52), de 28 de dezembro de 1902. 46 NASCIMENTO, Manoel Rodrigues do. Obra citada, p. 29. 102 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
dos brancos. Remanesceu, contudo, aí a marujada, organizada por
Januário, um negro de estatura mediana, do qual diziam que comia capim por ter batido em sua mãe.
(...) que saía às ruas nos dias de Reis, partindo da
Igreja em apreço. Ele, vestido de oficial da marinha, e mais uns oito ou dez companheiros vestidos com uma farda mais simples de marinheiros. Uma armação de madeira, rodeada de algodãozinho, fazia as vezes de murada de um navio, o qual era ao mesmo tempo conduzido pelos marujos. “oi da Marujada, gritava Januário, empunhando uma espada. Quem são vocês? Marujos do mar, respondiam. Que viestes aqui fazer? Acatar vossas ordens e a Jesus adorar”. E seguia-se a cantoria, enquanto caminhavam conduzindo a embarcação: Entremos, por essa nobre casa, por essa nobre casa Louvemos ao Mestre Piloto Que foi nosso Salvador Essa cerimônia ocorria sempre após a missa de Reis, e era assistida pelo grande número de pessoas que tinha ido àquele ofício matinal na Igreja do Rosário. Os marujos davam uma volta por aquelas ruas e depois se recolhiam ao local de onde haviam partido47.
Numa sociedade urbana, mas com fortes raízes no campo,
estas manifestações de cultura popular, no ciclo do Natal, eram uma forma de reforçar laços e, sobretudo, entreter-se numa época em que as comemorações natalinas não tinham perdido a sua ingenuidade, trocadas pela árvore de natal, pelo papai Noel e pelos presentes. As crônicas registram, pelo menos em um ano (1903), a formação de um Rancho de Reis, composto por pessoas da comunidade estanciana, sem que ele possa ser considerado uma tradição da cultura local, mas uma forma de, agregando pessoas, marcar o período natalino.
O sr. Carlos A. Gomes introduziu, em nosso meio
social, no domingo passado, uma bela diversão que
47 SOUZA, Raymundo Silveira. Obra citada, p. 206.
103 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
a todos encantou. Nada mais que um belo rancho
de reis composto de elegantes senhoritas e distintos cavalheiros de nossa melhor sociedade. Formando a dois de fundo e empunhando cada par lindas lanternas de cores, e saiu o rancho da residência do senhor Filadelfo Costa para a do sr. Salustiano, que o recebeu galhardamente. Depois de fazer o rancho todo o intinerário (sic) do seu programa, precedido de uma estrela de luz cambiante e alguns músicos parou em frente do palacete do sr. Salustiano, eu se acha de portas fechadas conforme a pragmática. Ali depois de expressivo canto de saudação ao dono da casa e ao Menino Deus, abriu o sr. Salustiano a porta de sua residência para receber o lindo rancho, que após os cumprimentos entrou no terreno das contradanças, que se prolongou até 1 hora da manhã. O sr. Salustiano e sua ilustre família foram incansáveis na dispensabilidade de bom trato a todos os convivas48. Este rancho apresentou-se mais uma vez, em 1904, e depois desapareceu, o que é uma prova de que não se tratava de uma tradição arraigada na cultura da comunidade, mas sim de um evento criado de modo artificial. A festa popular, por excelência, da Estância sempre foi e o é o São João, atingindo toda a cidade, das casas mais simples, aonde vivia o povo, até aqueles em que se concentrava a “elite” local. Começava com o içamento da bandeira de São João, outrora no Caminho do Rio, na rua da Chapada, no Botequim, no Bonfim, na rua da Miranga e no Caminho do Porto. Prosseguia com a festa do asilo Santo Antônio (13 de junho), criado por Mons. Vitorino Fontes e Augusto Gomes, e chegava ao ponto alto entre os dias 23 e 29 de junho quando os santos juninos – São João e São Pedro, aquele mais do que este – eram lembrados festivamente,
(...) sem recordar o São João de outros tempos, o
São João das ruas enfeitadas de fogueiras de bonitos “mastros” cada qual mais imponente e mais belo, dos fogos de salão> a espiga japonesa, as chuvinhas prateadas, os craveiros, os ovos do Faraó, e outros que tais de efeitos lindíssimos; dos buscapés, rojando convulsivamente, parecendo enormes sucuris chamejantes, ora no chão a contorcer-se desesperadas, uma de encontro às outras, ora no ar
Era a época de uma culinária própria, feita de milho (canjica,
pamonha, manauê) e mandioca (bolos de aipim e puba, além dos pés- de-moleque) e dos licores, em especial o de jenipapo, dos batuques e das batalhas de buscapés e espadas, numa manifestação coletiva que não pertence a este ou aquele bairro é da cidade inteira e estende-se a quantos a visitam50.
Excederam à minha expectativa os festejos de S. João,
dando começo a eles a bonita salva que presenciou na madrugada da segunda-feira, constante de foguetes no ar, em grande quantidade, os afamados busca-pés, pitus e repiques de sino, que tudo fez a cidade em alvoroço, pelo que, com os meus botões, disse temos a noite cousa grossa. De fato, pelas 8 horas, saíram em passeiata (sic) dois clubes, o dos “intrusos” levando à sua frente um estandarte alegórico e a filarmônica “Lira Carlos Gomes” e o dos “Devora” também com o seu estandarte e a filarmônica “Vitória”. Entrando em diversas casas já preparadas para recebê-los, os “Intrusos” e os “Devora” comeram e beberam a seu gosto. Percorrendo diversas ruas desta cidade, a passeiata (sic) realizou-se na melhor ordem e harmonia, sem que, de ambas as partes os ânimos se exaltassem, Não acompanhei nenhum dos dois clubes, no entanto, saindo à rua bem contrariado por não ter o Sinhozinho me mandado o queijo de que falou-me (sic) o Brandura com muita canjica e manauês que,fazendo-me grande revolução no maquinismo abdominal, fui obrigado a recorrer a Magnésia de Lefort 51.
Os preparativos da festa ocorriam bem antes, quando se
cortavam os galhos dos bambus para os buscapés e se produzia o composto de pólvora para enchê-los. 49 NASCIMENTO, Manoel Rodrigues do. Obra citada, p. 133. 50 FREIRE, Ofenísia Soares. O São João na Estância. In: FONTES, Aglaé d´Ávila. São João é coisa nossa, Aracaju: Gráfica Editora J. Andrade, 1990, p. 210. 51 A Razão, 7 (26), de 29 de junho de 1902. 105 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
(...) na calada da noite, ouve-se o batuque cadenciado
do pisa-pólvora, acompanhado de cantos especiais, na fabricação dos busca-pés, para as futuras batalhas, em que os batalhões se defrontam dentro da noite junina, mas pode causar queimaduras e mutilações a que, infelizmente, estão expostos aqueles que o proporcionam52.
As ruas da Estância, em qualquer dos seus bairros e mesmo
no centro, se pontuavam com fogueiras, algumas com mastros. Em torno delas as pessoas, principalmente as crianças, as famílias e os amigos se reuniam para comemorar o São João.
(...) A quantidade mínima de lenha numa fogueira,
que se prezasse, era a de uma carrada, de carro puxado a 6 bois Não simples carrocinha de um boi ou um burro. As maiores eram armadas em frente ao sobrado do meu pai, defronte da que era armada por Antônio Vieira, do sobrado onde hoje é a Sulgipe. Seguiam-se, no mesmo tamanho, as fogueiras das casas de seu José Amado Sobrinho, pai de Amandinho, João Floriano Amado, e as que eram armadas em frente ao sobrado do sr. Eliziário Silveira, do meu avô José Cristóvão, da casa de Chico Martins, subindo assim quase todo o Rosário. Essas fogueiras queimavam até pela manhã do dia 2453.
Nas fogueiras assavam-se milho e batata doce. Em torno delas
as crianças soltavam fogos e, quando somente havia o braseiro, pulava-se o fogo para realizarem-se os batizados. Quantos comprades, comadres e afilhados surgiram em volta das fogueiras de São João, todos tão considerados como se tivessem ido à pia batismal. Durante a noite de São João havia também os jogos de adivinhações, como aquele de enfiar uma faca virgem no tronco da bananeira para as moças, no dia seguinte, verificarem a letra que se desenhara na lâmina, pois esta seria a do nome do futuro pretendente, ou, ainda, a colocar-se uma aliança presa a um fio de cabelo da moça dentro do copo, com água, a esperar o número de vezes que o anel bateria na borda do copo. Estas seriam o número de anos que demoraria o casamento da rapariga. 52 FREIRE, Ofenísia Soares. Artigo citado. In: FONTES, Aglaé d´Ávila. Obra citada, p. 211. 53 SOUZA, Raimundo Silveira. Obra citada, p 297. 106 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
Se isto não acontecesse, é que ela ficaria no barricão, no caritó.
(...) As que pretendiam casar-se, deitavam clara de ovo
em um copo d´água, Isto faziam à roda de uma mesa. Se a clara se transformava em uma igreja era sinal certo de casamento, e a que a sorte tirava, ficava daí em diante tão risonha e catita, que nos dava gosto vê-la, mas se a clara se transformava em cemitério, a pobre menina empalidecia e soltava um suspiro abafado, pois tinha de passar ao rol das titias. (...) Algumas senhoras idosas, rezando ave-marias ao pé das fogueiras, plantavam dentes de alho, bem junto ao fogo, para no outro dia, antes do nascer do sol, reparar se estavam grelados, sinal evidente, de que alcançariam o S. João seguinte. Outras, rodeando as fogueiras, com suas tigelas d´ água, separavam de vez em quando, para ver as sombras de seus rostos se apresentarem n´água. Se, por acaso, devido à má posição, algumas não viam o que desejava, chamava as circunstantes em aflições que fazia pena. Aproximava-se mais da desconsolada senhora, uma das filhas quase sempre a quarentona, cuja experiência da clara de ovo, lhe foi favorável e com voz sonora ou doce lhe dizia: Olhe o seu rosto ali, mamãe! — Eu não o vejo menina; vai buscar os meus óculos. À chegada da cangalha, a velha, logo a enganchar lá no nariz, gritava com maior prazer: — Agora, sim! estou me vendo – E ficava tão alegre, quanto a quarentona ter visto a igreja no copo d´água54.
Era o momento propício para tirar a sorte, sorteando de dentro
de uma cumbuca um número que correspondia a um versinho, sempre chistoso e premonitório, geralmente anotado num caderno, ainda que A Razão, ao aproximar-se o período, anuncie a venda de livros de sortes. Não esqueçamos também os bailes e as danças.
Cada casa onde houvesse piano ou vitrola,
ou onde pudesse entrar um “cisco” da Lira, era ponto certo para um baile, uma dança animada. As vezes, a moçada entrava para fugir dos pitus e dos busca-pés, que eles mesmos acendiam nas fogueiras: pretexto para improvisar os chamados “assustados”, isto é,
54 A Razão, 20 (25), de 29 de junho de 1913.
107 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
danças que os donos da casa não previam.
Dançava em casa do Dr. Jessé, que gostava muito de dançar, no Vitória Hotel, de José Nunes, sempre alegre e cortês, no sobrado de João Pereira e em outras residências55.
Não existia São João na cidade sem batalha de buscapé,
tradição antiga que vinha do século XIX. Quando existiam, pois houve época em que foram proibidas, como se verá adiante, deixavam muitas vezes um saldo doloroso para muitas famílias estancianas, com filhos mortos ou mutilados.
Os festejos de S. João não ocorreram bem entre
nós este ano, pois houveram (sic) diversos desastres com pólvora, na sua proximidade.
Entre estes o mais lamentável, e que muito
contribuiu para a frieza da festa, foi o havido em casa de João Casimiro na rua do Coqueiro, no qual faleceu instantaneamente o inditoso artista pedreiro João Mamão, deixando viúva e três filhos menores.
Dos quatro sobreviventes faleceu, a 3 do
corrente, o menor José Cesário, cujo corpo fora bastante estragado pela explosão, sendo o estado dos outros bastante lisonjeiro.
A ordem pública felizmente foi que não sofreu a
menor alteração, só tendo a polícia queixa dos ferimentos que recebera Pedro de Souza, de Otoniel Dantas, quando soltavam buscapés em a rua cap. Salomão, obrigando o sr. delegado a que, por conta desse, corresse o tratamento do ferido que vai bem56.
Em 1908, registrava “A Razão” que com alguma animação
correram os festejos de S. João e S. Pedro nesta cidade e que não houve felizmente desastres e a ordem não sofreu a menor alteração, o que registramos para gáudio e honra de nosso povo57. Noutras oportunidades, com certa antecedência, a imprensa local – leia-se “A Razão” – previa que os festejos seriam animados porque o comércio tem vendido quase todos os artigos adotados no fabrico da pólvora, ao mesmo tempo em que informava que só a casa
p. 215. 56 A Razão, 14 (26), de 7 de julho de 1907. 57 A Razão, 15 (25), de 5 de julho de 1908. (conferir) 108 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
Nascimento & Irmão vendeu até agora 38 barris de enxofre58.
Mas, às vezes, incidentes interrompiam as batalhas.
(...) Durante a tarde do solene dia do Batista,
tocou a “Lira Carlos Gomes”, no bairro Rio Branco, variadas peças do seu repertório, seguindo-se ali depois das 6 até 10 da noite completa batalha de buscapés na qual tomaram parte dois partidos bastante arregimentados. A bandeira colocada entre os mesmos para ser retirada pela facção vitoriosa ficou imune, pois uma imprevista traição trouxe o desânimo aos contendores dando-se por finda a batalha.
Por mão traiçoeira recebeu o sr. Hugolino,
operário da fábrica de tecidos, uma cacetada sobre a cabeça a qual felizmente não lhe trouxe a suspensão do trabalho.
As dez horas foi queimado um barco de fogo
artificial e dispersou o povo, que enchia as casas daquele bairro 59.
Certo arrefecimento nos espontâneos festejos juninos
ocorrerá no início dos anos 20 do século passado. É que o Governo do Estado, na administração do Presidente Pereira Lobo, proibiu as batalhas de buscapés. Esta situação perdurou até o governo do Dr. Graccho Cardoso, quando as batalhas de buscapé voltaram com vigor e ficaram60.
As festas de S. João, com suas múltiplas e
encantadoras diversões sempre foram uma das nossas mais queridas tradições populares. Eram, em tempos que não vão muito longe, da maior alegria as noites aqui consagradas ao santo precursor. Nem outras a gente se divertia com tanto prazer. E de todas as maneiras de se divertir. A sua principal nota consistia nos fogos, os chamados buscapés. Estes eram, se assim podemos dizer, a alma da tradição.
58 A Razão, 17 (21), de 19 de junho de 1907.
59 A Razão, 17 (25), de 2 de julho de 1907. 60 Ver Sergipe Jornal de 26 de maio de 1923. 109 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
Afinal foram proibidos.
Desde então, como é natural que se desse, as festas de S. João amorteceram, vindo-se a passar aquelas noites, outrora tão festivas, debaixo da maior gelidez. Dir-se-ia extinta a tradição, vivendo, apenas, em lembrança de seus adeptos. Coisa, porém, não é uma tradição que se possa extinguir assim tão facilmente. Enquanto existir quem a preze, no coração deste, ela não morrerá nunca. Há de viver sempre com ela, enquanto sobrevivam os que a amam. Permitissem a população da Estância expandir- se nessas noites, e com a mesma animação e o mesmo calor de há anos passados, voltariam a fazer-se esses festejos entre nós. Pois bem, essa permissão, que sinceramente aplaudimos, é que vem de dar não somente aqui como em todo o Estado, o atual governo de Sergipe. Antes de mais nada, vemos nela o amor que do presidente Graccho Cardoso merecem as tradições de sua terra, o que é natural em quem como s. ex. possui um espírito culto. Daí, a avaliar-se dos preparativos que já se fazem, vai ser arrojado como os de há anos passados, o próximo S. João. Uma coisa há de mister, é que tais folguedos se façam sem prejuízos para a ordem pública. Nem outra coisa é de esperar da índole ordeira do nosso povo61.
Somente muito mais tarde, a partir dos anos 70 do século
XX, os festejos juninos perderam muito da sua autenticidade e espontaneidade, quando o poder público passou a interferir nos festejos, numa intervenção nem sempre benéfica, o que se acentuou com a inclusão de elementos da chamada indústria cultural, característica que ainda perdura. Em setembro e outubro aconteciam na Estância outras brincadeiras e folguedos populares. O primeiro deles ocorria em setembro. Era a festa das cabeçorras.
61 A Razão, 30 (220), de 10 de junho de 1923.
110 REVISTA DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS
Estas também saíam no período de Carnaval. Grupo formado por
homens com máscaras de grandes dimensões. Seus integrantes vestiam-se de xales de cores atravessados ao tronco, um lote de fitinhas pendendo-lhes dos ombros e traziam um mangual na mão, para correr atrás da meninada que não se cansava de apupá-los freneticamente62. Em outubro, era a vez do lambe-sujo. Folguedo que relembra a destruição dos antigos quilombos pelos capitães-do-mato, em geral descendentes de índios. Os negros tinham os corpos cobertos por mel cabaú e traziam nas mãos foices de madeira, enquanto os caboclinhos com o corpo pintado de roxo-terra vestiam-se com tanga de penas e cocar e portavam arcos e flexas. Cercados pelos caboclinhos, os lambe-sujos são intimados a se entregarem. Como se recusavam a fazê-lo, depois de um combate, são aprisionados até que uma autoridade local – o prefeito, o juiz, o padre o delegado – ou uma figura proeminente da cidade os libertava. Eram festejos espontâneos, coordenados por pessoas da comunidade, que reuniam os brincantes, com o que se estreitavam laços de amizade e solidariedade, através da festa.
62 NASCIMENTO, Manoel Rodrigues do. Obra citada, p. 63.