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ANÁLISE TEXTUAL DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS

UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DA OBRA DE LUIZ GÊ


ANÁLISE TEXTUAL DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS
UMA ABORDAGAEM SEMIÓTICA DA OBRA DE LUIZ GÊ
Infothes Informação e Tesauro

P682 Pietroforte, Antonio Vicente Seraphim


Análise textual da história em quadrinhos: uma abordagem semiótica
da obra de Luiz Gê. / Antonio Vicente Seraphim Pietroforte. – São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2009.
154p.; 21 x 27 cm

ISBN 978-85-7419-902-3

1. Semiótica. 2. História em Quadrinhos. 3. Luiz Geraldo Ferrari Martins.


4. Luiz Gê. I. Título.

CDU 003
CDD 302.2

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

ANÁLISE TEXTUAL DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS:


UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DA OBRA DE LUIZ GÊ

Coordenação de produção
Ivan Antunes

Revisão
Ivan Antunes

Produção
Rai Lopes – Paginação

Capa
Carlos Clémen

Finalização
Catarina Consentino

CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Aléssio Ferrara

1ª edição: setembro de 2009

© Antonio Vicente Pietroforte | Luiz Gê

ANNABLUME editora . comunicação


Rua Martins, 300 . Butantã
05511-000 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-1754
www.annablume.com.br
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 7

1. A abordagem semiótica da história em quadrinhos ......................................... 9


Quem inventou a história em quadrinhos? ..................................................................... 9
A semiótica e seu objeto de estudos .......................................................................... 10
O percurso gerativo do sentido ................................................................................. 11
O semi-simbolimo e a análise semiótica da história em quadrinhos ................................. 19
Os avanços teóricos da semiótica tensiva .................................................................... 20
Conclusão .............................................................................................................. 21

2. O fluxo discursivo .................................................................................... 23


O fazer missivo ....................................................................................................... 23
O fazer missivo e a geração do sentido ....................................................................... 47
Os percursos temáticos e figurativos .......................................................................... 50
A coerência figurativa .............................................................................................. 52

3. O delírio figurativo .................................................................................. 55


A articulação do fazer missivo e a manipulação do ponto de vista ................................... 62
O delírio figurativo ................................................................................................. 64
A destruição do objeto de valor ................................................................................ 65

4. A articulação da realidade ......................................................................... 67


A construção de mitos e de realidades ........................................................................ 67
A articulação da realidade na história em quadrinhos .................................................... 69
O mito enquanto linguagem ..................................................................................... 82
O fazer missivo e a construção de mitologias ............................................................... 83

5. História em quadrinhos e música ............................................................... 87


O fazer missivo e a distribuição dos valores ................................................................. 95
O percurso figurativo e a articulação da realidade ......................................................... 96
Correlações semióticas entre o figurativo e o plástico ................................................... 97
A abordagem musical da história em quadrinhos .......................................................... 98
A interpretação do texto ......................................................................................... 101
Análise textual da história em quadrinhos

6. História em quadrinhos e ópera ............................................................... 103


A enunciação e a semântica discursiva ....................................................................... 125
O fazer missivo e a estratégia narrativa ...................................................................... 125
O mito de Édipo e o mito da criação artística ............................................................. 127
A inserção do texto da HQ no texto da ópera .............................................................. 130

7. História em quadrinhos e escultura .......................................................... 135


Os quadrinhos em três dimensões ............................................................................. 144
O fazer missivo e a relação entre temas e figuras ......................................................... 144
As duas dimensões dos quadrinhos nas três dimensões do manequim .............................. 147

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 149

SOBRE OS AUTORES ...................................................................................................... 151

6
APRESENTAÇÃO

A
nálise textual da história em quadrinhos foram selecionados seis trabalhos do quadrinista
– uma abordagem semiótica da obra de e artista plástico Luiz Gê, que, juntamente com
Luiz Gê é um livro escrito com três as análises, encaminham o leitor para os
objetivos principais. desenvolvimentos teóricos.
Antes de tudo, trata-se de um trabalho de A escolha de um único autor, além de dar
semiótica. A semiótica proposta por Algirdas uniformidade aos estudos, determina o terceiro
Julien Greimas, ao longo de seu desenvolvi- objetivo do livro: preservar e valorizar a arte de
mento, é re-elaborada constantemente. A teoria um dos quadrinistas mais representativos do
foi modificada pela semiótica das paixões, pelo Brasil.
semissimbolismo, encontra-se em fase de O livro está dividido em sete capítulos: no
transformação devido às propostas recentes da primeiro, A abordagem semiótica da história em
semiótica tensiva. Este livro vem ao encontro quadrinhos, há uma breve introdução à semiótica
destas últimas propostas, visto que cuida de geral e a suas aplicações; no segundo, O fluxo
descrever e aplicar o tópico do fazer missivo, discursivo, é introduzido o modelo teórico do
com a intenção de mostrar suas contribuições fazer missivo; no terceiro, O delírio figurativo,
na construção do percurso gerativo do sentido. analisa-se a formação da figuratividade na HQ;
Com a teoria aplicada a um objeto especí- no quarto, A articulação da realidade, estudam-
fico, o livro trata também da semiótica das se os modos de simular o real e representá-lo.
histórias em quadrinhos. As HQs constituem uma Nos capítulos quinto, sexto e sétimo, são
linguagem sociossemioticamente reconhecida, analisados os quadrinhos sincretizados,
com particularidades próprias, problematizadas respectivamente, com as semióticas da música,
e examinadas ao longo dos capítulos. Para tanto, da ópera e da escultura.
1. A ABORDAGEM SEMIÓTICA
DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Quem inventou a Apesar desses marcos, recorrentes em


história em quadrinhos? muitas histórias da história em quadrinhos, sabe-
se que uma das primeiras personagens de HQs,
Embora pareça pertinente, a questão da o Doutor Sintax, foi concebida por William
invenção das coisas é, no mínimo, polêmica. Há Hogarth (1697-1764) – o mesmo Hogarth
quem diga que a invenção do avião não é pintor do barroco inglês do século XVIII; e,
brasileira, pois o 14 Bis fez seu vôo na França; também na Inglaterra, Charles Henry Ross
há quem diga que a fotografia foi inventada no desenhava quadrinhos no semanário Judy (1867)
Brasil, uma vez que Hercule Florence residia na antes dos jornais norte-americanos. Há
então São Carlos, hoje Campinas, na época de informações, ainda, que confirmam quadrinhos
suas pesquisas. feitos no Brasil, por Ângelo Agostini (1843-
Inventar um artefato tecnológico, como o 1910), em 1876.
avião, ou um processo químico de fixação de Uma vez mencionados datas e autores,
imagens, como a fotografia, nos casos em que a parte-se para as questões da definição da
polêmica diz respeito a propagandas naciona- linguagem. Para haver HQ, imagens e linguagem
listas, depende do critério escolhido: caso se verbal devem ser articuladas entre si? Não neces-
considere a nacionalidade do inventor, caso se sariamente. Há muitos quadrinhos sem a presença
considere o país em que a invenção se deu. O de semióticas verbais, o próprio Yellow Kid foi
problema surge, com eloqüência, quando o feito muitas vezes assim. Articulada com
mesmo país reivindica, para si, ambos os semióticas verbais, como essa articulação se dá?
critérios. Por meio de balões, por legendas? Em Töpffer há
Entretanto, quando se trata da invenção de legendas; os balões só aparecem depois, em
linguagens, como a linguagem fotográfica ou a outros autores.
das histórias em quadrinhos, parece estranho Afirmar que os quadrinhos se manifestam
determinar seu inventor. Enquanto na Europa a em semiótica plástica, em duas dimensões do
suposta invenção dos quadrinhos é atribuída a espaço, parece evidente, mas a fotografia e a
Rudolph Töpffer (1799-1846) a partir de suas pintura se manifestam do mesmo modo. Seria,
Histórias em imagens, nos Estados Unidos da então, uma questão de número de quadros?
América ela se deve a Richard Outcault (1863- Quantos quadros são necessários para definir uma
1928) e seu Yellow Kid, publicado aos domingos HQ? Há histórias de um quadrinho só; há
no jornal World, de Nova Iorque. histórias que não acabam nunca...
Análise textual da história em quadrinhos

Com definições tão imprecisas, é possível que não pode ser considerado uma história em
afirmar que o teto da Capela Cistina é uma história quadrinhos.
em quadrinhos e que os hieróglifos do Egito e Trata-se, no caso, de mostrar como a semi-
os ideogramas japoneses também são. A definição ótica proposta por A. J. Greimas e desenvolvida
de uma linguagem, além de suas propriedades por seus colaboradores – com ênfase nas propostas
semióticas enquanto sistema de significação, de F. Rastier, J. M. Floch e C. Zilberberg –
depende das conotações sociais, de ordem encontra caminhos nos estudos da manifestação
sociossemiótica, investidas nela. Embora pareça, textual de um tipo de linguagem que, nas
o trabalho de Michelangelo não é uma HQ, sociedades contemporâneas, é chamada história
nenhum historiador da arte, de bom-senso, faria em quadrinhos e assim reconhecida.
tal consideração. Não basta a sequência de
imagens em quadros separados para caracterizar A semiótica e seu objeto de estudos
uma HQ – como no caso da Capela Cistina – o
meio social em que a linguagem surge deve O objeto de estudos da semiótica proposta
reconhecê-la como tal. por Greimas é a significação.
Enquanto sistemas de significação, as HQ Diferente de boa parte da filosofia, que
dependem, pelo menos, de sua reprodutibilidade concebe sentidos a priori na ordenação do mundo
pragmática, uma vez que podem ser reproduzidas a serem desvelados por ela, a semiótica parte do
sem perder o valor artístico – diferentes das princípio de que o sentido é antes construído,
pinturas, mas próximas das fotografias; e do que dado a ser descoberto; portanto, cabe ao
reconhecimento social capaz de sancioná-las semioticista investigar o processo que garante a
seja como uma determinada linguagem em sua geração e não o seu desvendamento. À
oposição a outras linguagens, seja como forma maneira de Greimas, pode-se afirmar que a
de arte. semiótica não estuda o sentido do ser, mas o ser
Em síntese, a história em quadrinhos é do sentido.
definida em polêmicas semióticas a respeito de Se essa postura afasta a semiótica da lógica
seus processos de significação e em polêmicas
e da filosofia, termina por aproximá-la da retórica
sociossemióticas a respeito de seu valor enquanto
e da sofística, cujos pressupostos confluem para
tipo de discurso. Definida em processos
a máxima “o que se faz com palavras se desfaz
intertextuais, entre a constituição de uma
com palavras”. Em semiótica, o que se faz por
linguagem específica e outras linguagens afins,
meio da significação também se desfaz por meio
como a pintura, a fotografia, a literatura, etc, a
dela.
história em quadrinhos não tem inventores, mas
Enquanto uma proposta com aspiração
elaboradores, que investem em suas transfor-
científica, como diz o próprio Greimas, a
mações até os dias atuais.
semiótica desenvolve um modelo de análise para
No trabalho que segue, não faz parte dos
descrever, em seu ponto de vista, a geração do
objetivos de análise nem abordagens históricas
sentido, ou seja, significação.
– para tanto o leitor encontrará vasta biblio-
Chamado percurso gerativo do sentido, esse
grafia, em especial, os quatro volumes da Historia
modelo parte de algumas hipóteses de trabalho.
de los comics, da editora espanhola Toutain –
Uma delas é a de que o sentido se manifesta nos
nem uma tipologia do gênero com vistas a
textos em diversos sistemas semióticos, que
esclarecer, em que contextos, o que pode e o

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

podem ser verbais, plásticos, musicais e até sistemático na formação do sentido no plano de
mesmo sincréticos, quando dois ou mais sistemas conteúdo.
semióticos aparecem articulados – como no caso
das canções, das HQs com balões e legendas, do O percurso gerativo do sentido
cinema falado, da ópera, etc.
O texto, por sua vez, manifesta-se na relação A semiótica concebe o sentido formado em
do plano de conteúdo com o plano de expressão: redes de relações, geradas em um percurso que
no plano de conteúdo, o sentido é gerado para parte de categorias gerais e abstratas, que se
se manifestar na expressão; no plano de realizam na enunciação de modo concreto e
expressão, o sistema semiótico se define, podendo específico.
ser de ordem fonológica, plástica, musical ou A metodologia da análise semiótica pode
sincrética. ser comparada a da análise sintática. A sintaxe
Não se trata da oposição conteúdo e forma, não estuda todas as frases das línguas, mas o
em que conteúdos fora do texto se tornam texto processo geral e abstrato que forma todas elas.
por meio da forma, e o conteúdo é “o que se As frases “o menino leu os quadrinhos” ou “o
diz” e a forma, o “como se diz”. Em semiótica, aluno aprende semiótica”, apesar de significados
uma vez que o sentido é gerado no texto, não há distintos, possuem a mesma forma sintática
“o que se diz” fora do “como se diz”, pois, em sujeito + verbo + objeto direto. Essa estrutura,
seus pressupostos, não há coisas fora da além de determinar os significados das frases –
linguagem determinando relações entre palavras uma vez que determina o sujeito da voz ativa do
e coisas, ou entre fatos e discursos. verbo – também serve de modelo para inúmeras
Para a semiótica, há uma forma no conteúdo outras, além das duas dos exemplos dados.
– ou seja, uma semântica – que realiza o sentido, A semiótica, porém, não se limita a ser uma
e uma forma na expressão, que o manifesta. Nessa sintaxe do discurso, pois incorpora, em seu
relação entre a forma do conteúdo e a forma da modelo, as relações semânticas que garantem
expressão, o sentido é construído nos textos. seus significados particulares. Desse modo, a
Partindo da hipótese de trabalho temporária semiótica é uma teoria do discurso, mas é
de que é possível manifestar conteúdos também uma teoria do estilo e, até mesmo, uma
semelhantes em planos de expressão distintos, teoria poética.
nada impede que se separe plano de expressão e
plano de conteúdo para, em um primeiro – O NÍVEL FUNDAMENTAL
momento, descrever o percurso gerativo do
sentido apenas no plano de conteúdo. Partindo da hipótese de que redes de
Essa hipótese de trabalho se justifica porque relações dão forma ao significado, a semiótica
o mesmo conteúdo pode ser manifestado em busca definir, no chamado nível fundamental
planos de expressão fonológicos, plásticos, do percurso gerativo do sentido, a rede
musicais ou sincréticos, sem danos significativos fundamental de relações semióticas. Dito de
à sua forma semântica. É evidente que a expressão outro modo, visto que o sentido se forma em
modifica o conteúdo, visto que uma HQ não é a redes de relações, não se trata de determinar a
mesma coisa que um poema, no entanto, em nome relação fundamental, mas a rede fundamental
da aspiração científica, deve-se isolar as de relações.
variações da expressão e procurar aquilo que é

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Análise textual da história em quadrinhos

O conhecido poema de Drummond No A diferença entre contrariar e contradizer –


meio do caminho (Drummond de Andrade, 1983: que parece não ser muito evidente, visto que não-
15) pode ser utilizado como exemplo das continuidade e descontinuidade podem ser
articulações do nível fundamental da geração tomados, erroneamente, como se fossem
do sentido. sinônimos – reside na dupla negação. Uma
categoria menos abstrata, como masculino vs.
No meio do caminho tinha uma pedra feminino, pode exemplificar melhor as diferenças
tinha uma pedra no meio do caminho entre contrariedade e contradição.
tinha uma pedra Afirmar o termo masculino e negá-lo na
no meio do caminho tinha uma pedra. contradição do não-masculino acarreta
determinar dois domínios semânticos: aquele
Nunca me esquecerei desse acontecimento que gera o sentido de masculinidade e aquele
na vida de minhas retinas tão fatigadas. que gera o sentido de tudo aquilo que não é
Nunca me esquecerei que no meio do masculino, seja o feminino, sejam as coisas que
caminho tinha uma pedra não têm sexo. Há, por isso, apenas uma negação.
tinha uma pedra no meio do caminho Entretanto, quando masculino está em relação
no meio do caminho tinha uma pedra. de contrariedade com o feminino, gera-se um
domínio semântico em que aquilo que não é
Em semiótica, o sentido é formado em masculino e nem feminino está colocado. Há,
categorias semânticas, que devem ser deter- portanto, duas negações: o não-masculino e o
minadas em função dos valores colocados em não-feminino.
discurso. A categoria semântica não é formada Além do mais, como está dito, os termos
por um único termo, mas pela relação entre dois contraditórios garantem as transformações dos
termos contrários. No caso do poema de valores semânticos dados pela categoria. No caso
Drummond, pode-se propor a categoria dos domínios semânticos da categoria vida vs.
semântica continuidade vs. descontinuidade na morte, por exemplo, em “adoecer” – que implica
geração do sentido construído no texto. a transformação vida → morte – realiza-se a
Além dos termos contrários, que negação da vida; e em “ressuscitar” – que implica
estabelecem os limites semânticos do plano de a transformação contrária morte → vida –
conteúdo, há os termos contraditórios, que dão realiza-se a negação da morte.
conta de descrever os percursos entre os termos A categoria, antes formada pela afirmação
contrários. Oscilando entre o caminho e a pedra, dos valores limites que a constituem, descreve
que realizam, respectivamente, os valores agora, em negações, as transformações narrativas
semânticos da categoria continuidade vs. entre eles. As relações de contrariedade e
descontinuidade, o sentido do poema oscila entre contradição, portanto, dão forma à rede de
a negação da continuidade e a negação da relações capazes de gerar sentido.
descontinuidade, quando uma se transforma na Na teoria semiótica, essa rede de relações
outra. Em outras palavras, para que a fundamental é sistematizada no modelo do
continuidade se transforme em descontinuidade, quadrado semiótico. No exemplo do poema de
deve-se negar a continuidade; e para que a Drummond, ela se articula de acordo com a
descontinuidade se transforme em continuidade, seguinte representação:
deve-se negar a descontinuidade.

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

continuidade descontinuidade s1 s2

não-descontinuidade não-continuidade não-s2 não-s1

Além das relações de contrariedade entre s1 ↔ s2: relação de contrariedade


continuidade e descontinuidade, e das relações s1 ↔ não s1: relação de contradição
de contradição entre continuidade e não- s2 ↔ não-s2: relação de contradição
continuidade e entre descontinuidade e não- s1 ↔ não-s2: relação de implicação
descontinuidade, o quadrado revela mais duas s2 ↔ não-s1: relação de implicação
relações na rede fundamental: as relações de s1 e s2: termo complexo
implicação entre continuidade e não- não-s1 e não-s2: termo neutro
descontinuidade e entre descontinuidade e não-
continuidade, visto que afirmar um valor implica Generalizada em s1 vs. s2, a categoria
negar o valor contrário; e as relações de comple- semântica varia de acordo com os valores
xificação e de neutralização dos termos da colocados em discurso, que podem ser os valores
categoria, uma vez que é possível afirmar ao continuidade vs. descontinuidade, masculino vs.
mesmo tempo os valores de continuidade e feminino, vida vs. morte, natureza vs. cultura,
descontinuidade, formando o termo complexo, totalidade vs. parcialidade , opressão vs.
ou negá-las ao mesmo tempo, formando o termo liberdade, etc.
neutro. Para explicar as transformações narrativas
Novamente com o exemplo da categoria entre os termos da categoria, a semiótica verifica
masculino vs. feminino, os hermafroditas afirmam que, além da dimensão inteligível do sentido,
o termo complexo, masculino e feminino há, correlacionada a ela, a dimensão sensível,
concomitantemente; e os objetos inanimados na qual os valores semânticos são ditos eufóricos
afirmam o termo neutro não-masculino e não- ou disfóricos.
feminino. Euforia e disforia são palavras de origens
O quadrado esquematizado acima siste- gregas; foria vem do verbo grego “phoréo”, que
matiza relações sintáticas entre os termos da significa “tolerar”, “suportar”. Com os prefixos
categoria, mas também sistematiza as relações “eu” e “dis”, euforia é “aquilo que se suporta
semânticas. As relações semióticas que dão forma bem” e “disforia”, “aquilo que se suporta mal”.
à rede fundamental são de ordem sintática, ao No poema de Drummond, a continuidade é
passo que os valores de continuidade vs. considerada eufórica e a descontinuidade,
descontinuidade, masculino vs. feminino ou vida disfórica; daí a geração de sensações de
vs. morte são valores semânticos. Os valores desconforto e tensão, visto que a euforia da
semânticos podem mudar, todavia, as relações continuidade, realizada no “caminho”, termina
sintáticas permanecem as mesmas. Isso permite sempre de encontro à disforia da descontinidade,
generalizar a categoria semântica em s1 vs. s2, realizada na “pedra no meio do caminho”.
possibilitando a representação formal do nível Uma vez euforizado, tal valor permanece
fundamental. definido como aquele em relação ao qual o sujeito

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Análise textual da história em quadrinhos

narrativo busca realizar ou manter a conjunção. formulado em termos das relações entre o sujeito
Contrariamente, o valor disfórico tende a ser e o objeto, e entre o sujeito e os demais sujeitos
evitado e, se em conjunção com ele, o sujeito narrativos: o destinador e o antissujeito. Para
narrativo busca a disjunção. Desse modo, a evitar confusões entre os termos sujeito, objeto,
categoria euforia vs. disforia , dita tímica, destinador e antissujeito, próprios do nível
projeta-se sobre os valores da categoria narrativo, e as personagens e demais pessoas do
semântica e orienta os percursos narrativos do discurso, a semiótica define os primeiros como
sujeito, que deriva para os valores euforizados. actantes narrativos e os segundos, como atores
do discurso.
– O NÍVEL NARRATIVO Do mesmo modo que na sintaxe há a oração
principal e orações subordinadas a ela, no
A introdução da narratividade nos percursos
esquema narrativo há o programa narrativo de
gerados no quadrado semiótico leva a considerar
base, em relação ao qual outros programas
o segundo nível de geração do sentido, chamado
narrativos são subordinados.
nível narrativo.
O programa narrativo se define na trans-
Em princípio, a narratividade pode ser
formação de estados juntivos por meio do fazer
definida como transformações de estado que
transformador que os modifica.
envolvem as junções do sujeito narrativo com o
Uma narrativa mais linear que o poema de
objeto de valor. Uma vez gerados no quadrado
Drummond pode facilitar a compreensão do
semiótico no nível fundamental, os valores
semânticos são convertidos em objetos de valor esquema narrativo. Em muitas versões da
no nível narrativo, em relação aos quais o sujeito Demanda do Santo Graal, para se tornar rei,
oscila entre estar em conjunção ou em disjunção. Arthur deve sacar a espada encantada da pedra
Quando em disjunção com o valor em que está presa há anos. Primeiro em disjunção
euforizado convertido em objeto, o sujeito tende com o objeto narrativo, Arthur termina em
a afirmar a conjunção. No poema de Drummond, conjunção com a espada e se torna apto para ser
o sujeito, embora retome repetidas vezes a rei e unificar o reino. A relação de Arthur com
conjunção com os valores euforizados da seu mestre Merlin se dá na relação narrativa entre
continuidade, termina sempre despojado deles sujeito e destinador, visto que a função do
pela afirmação da descontinuidade disfórica. destinador é encaminhar o sujeito em sua
Desse modo, entre a conjunção e a disjunção, o performance; e a relação de Arthur com os demais
poema está construído na complexificação dos cavaleiros que disputam a espada se dá na relação
valores semânticos e na própria instância da narrativa sujeito e antissujeito, uma vez que cabe
junção. ao antissujeito impedir a performance do sujeito.
Como está dito no início deste item, assim Depois de constituído o reino de Arthur, ele
como por meio da estrutura sintática das línguas adoece e sua cura só pode ser realizada na
é possível construir inúmeras realizações demanda do Santo Graal. Incapacitado, Arthur
diferentes da mesma sintaxe de uma frase, é espera que os cavaleiros da Távola Redonda o
possível formular um esquema narrativo que coloquem em conjunção com o novo objeto
descreva, enquanto estrutura formal, a construção sagrado.
de inúmeras narrativas diferentes. Os dois momentos da novela de cavalaria
Partindo desse encaminhamento teórico, a
ilustram duas propriedades do esquema narrativo.
semiótica propõe que o esquema narrativo seja

14
Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

A primeira delas diz respeito à estrutura do A realização do programa de base é


programa narrativo. chamada realização da performance. Para que isso
O programa narrativo, como está dito, é se dê, o sujeito narrativo deve ser competente
definido na transformação de estados juntivos ou deve adquirir competência.
por meio do fazer transformador do sujeito A articulação entre aquisição de com-
narrativo. Nessa transformação de estado, o petência e realização da performance define o
actante sujeito dos estados juntivos – chamado percurso narrativo da ação dentro do esquema
sujeito do ser – e o actante sujeito que opera a narrativo. As numerosas aventuras dos
transformação – chamado sujeito do fazer – cavaleiros da Távola Redonda são narrativas de
podem estar ou não sincretizados no mesmo ator aquisição de competência; em meio a elas, os
ou pessoa do discurso. cavaleiros são selecionados e, só aqueles que
Quando sujeitos do ser e do fazer são o se tornarem ou permanecerem competentes
mesmo, dá-se o programa de acionamento, em durante a demanda, merecem encontrar o cálice
que o sujeito parte para realizar a transformação, sagrado.
como no programa narrativo em que Arthur retira Esses programas narrativos são subordinados
a espada da pedra. Entretanto, quando sujeitos ao programa de base e são chamados programas
do ser e do fazer são diferentes, dá-se o contrato narrativos de uso. Enquanto programas narrativos,
fiduciário, em que o sujeito do ser espera que o os programas de uso também são definidos na
sujeito do fazer realize sua transformação, como transformação de estados juntivos, no entanto,
no programa narrativo em que Arthur espera que o objeto desses programas não é descritivo.
os cavaleiros encontrem o Santo Graal. Embora recobertos por inúmeras realizações
A segunda propriedade do esquema discursivas, os objetos dos programas de uso
narrativo, por sua vez, diz respeito ao estatuto podem ser generalizados em objetos que dizem
do fazer transformador. Seja em programas de respeito às dimensões pragmáticas do discurso
acionamento, seja em contratos fiduciários, o – os objetos de poder; e em objetos que dizem
programa narrativo principal que os define é respeito às suas dimensões cognitivas – os
chamado programa de base. No programa de base, objetos de saber.
o objeto de valor é chamado descritivo, que se Assim, poder e saber são ditos objetos
caracteriza por assumir os valores gerados pela modais. Nos contos de fada, por exemplo,
categoria semântica fundamental. adquirir armaduras e armas mágicas para salvar
Em ambos os exemplos dos programas as princesas são objetos modais do poder; e
narrativos da Demanda do Santo Graal, ora a encontrar mapas ou descobrir fórmulas mágicas
espada, ora o cálice sagrado figurativizam valores são objetos modais do saber.
descritivos. A espada e o cálice são figuras do O percurso da ação diz respeito às relações
discurso determinadas pela semântica funda- entre o sujeito narrativo e os objetos modais ou
mental gerada na categoria vida vs. morte, visto descritivos. As relações entre sujeito, destinador
que unir o reino e curar Arthur são afirmações de e antissujeito se dão no chamado percurso do
valores de vida. Uma vez gerados em nível contrato, em que o sujeito, seja em contrato de
fundamental, os valores vida vs. morte são confiança com o destinador, seja em polêmica
convertidos em objetos narrativos para, depois, com o antissujeito, é manipulado durante a ação.
serem revestidos por figuras do discurso como a Nessa manipulação, o sujeito narrativo adquire
espada e o cálice. mais dois objetos modais: ou ele age movido

15
Análise textual da história em quadrinhos

por querer, ou age movido por dever, ou até semiótica da narratividade em seus desdobra-
mesmo por ambos. mentos.
Em conjunção com os objetos modais Como as modalidades dizem respeito a
querer e/ou dever, no percurso narrativo do transformações em enunciados de ser e fazer, a
contrato, e em conjunção com os objetos modais semiótica as sistematiza na relação entre uma
poder e saber, na aquisição de competência, o modalidade e um desses enunciados. Desse
sujeito está pronto para realizar a performance modo, o querer pode ser articulado ao ser e gerar
da conjunção com o objeto descritivo, que define a seguinte rede de relações modais em quadrados
o programa de base. semióticos:
Por fim, há um último percurso narrativo,
chamado percurso da sanção, em que o sujeito é
avaliado por outros sujeitos ou por ele mesmo querer-ser querer-não ser
quanto ao valor da performance. Na sanção, o
ser é articulado ao parecer, gerando-se quatro
possibilidades de validação do programa
narrativo de base: não-querer-não ser não querer-ser

verdade
Nesse modelo, querer-ser implica querer a
ser parecer
conjunção e não querer-ser, não querer a
conjunção; querer-não ser implica querer a
segredo mentira disjunção e não querer-não ser, não querer a
não-parecer não-ser disjunção.
A aplicação do mesmo procedimento às
falsidade demais modalidades e aos enunciados do fazer
permite estabelecer a rede modal que dá forma
aos desdobramentos narrativos. O querer-ser, por
exemplo, pode ir de encontro ao não saber-fazer
Nessa rede de relações veridictórias, a
e levar o sujeito a buscar o saber-fazer necessário
performance pode ser sancionada como
para realizar seu desejo.
verdadeira, falsa, secreta ou mentirosa,
A partir do mesmo esquema narrativo,
dependendo da projeção do ser e do parecer feita
muitas estratégias narrativas podem ser
sobre ela.
realizadas. Nessas variações, estados de coisas,
Em síntese, o esquema narrativo é definido
traduzidos pelas relações juntivas com os objetos
na articulação dos percursos narrativos de
modais e descritivos, e estados de alma,
contrato, ação e sanção.
traduzidos pelas paixões sofridas pelos sujeitos,
Subordinadas ao esquema narrativo, as
são gerados na narrativa. Só para citar uma delas,
modalidades do querer, do dever, do saber e do
a quebra do contrato fiduciário, quando promove
poder constituem uma problemática à parte nos
estados de coisas em disjunção, pode gerar
estudos semióticos. Uma vez que o esquema
paixões no sujeito narrativo que variam da cólera
narrativo é formado em articulações modais, a
à tristeza.
sintaxe-semântica modal é a própria forma

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

– O NÍVEL DISCURSIVO – o verbo “tinha” usado ao invés do “havia”


como verbo impessoal – e no objeto direto
A articulação dos níveis fundamental e “pedra”; o tempo é o do “então”, marcado no
narrativo gera a semio-narratividade, que é pretérito imperfeito do indicativo no verbo
realizada no terceiro nível do percurso gerativo “tinha”; e o espaço é o do “lá”, marcado no
do sentido, chamado nível discursivo. adjunto adverbial de lugar “no meio do
Em nível discursivo, as estruturas e os caminho”:
processos semio-narrativos são especificados e
concretizados na enunciação. A enunciação, em No meio do caminho tinha uma pedra
semiótica, é definida como a instância de tinha uma pedra no meio do caminho
produção do enunciado, construída na relação tinha uma pedra
entre enunciador e enunciatário, que são os no meio do caminho tinha uma pedra.
chamados sujeitos da enunciação.
O discurso tem duas dimensões, a sintática Contudo, no início da segunda estrofe, a
e a semântica. Em sua sintaxe, o discurso é debreagem enunciativa é instaurada no poema:
construído pelas categorias discursivas de a relação pessoal “eu-tu” aparece marcada na
pessoa, tempo e espaço. Na relação enunciação- primeira pessoa do singular do verbo “esquecerei”
enunciado, o enunciador e o enunciatário podem e nos pronomes “me” e “minhas”; e o tempo
ser ou não explicitados no enunciado: aparece marcado no futuro do presente do
indicativo, que demarca uma posterioridade
1) quando são explicitados, gera-se a temporal em relação à concomitância do “agora”
chamada debreagem enunciativa, em que a da enunciação.
pessoa é marcada na relação “eu-tu”, o tempo é
marcado no “agora” e o espaço, no “aqui”; Nunca me esquecerei desse acontecimento
2) quando não são explicitados, gera-se a na vida de minhas retinas tão fatigadas.
chamada debreagem enunciva, em que a pessoa Nunca me esquecerei que no meio do
é marcada no “ele”, o tempo é marcado no caminho
“então” e o espaço, no “lá”. tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
debreagem enunciativa debreagem enunciva no meio do caminho tinha uma pedra.
pessoa eu-tu ele
tempo agora então Essa colocação da debreagem enunciativa
espaço aqui lá garante os efeitos de subjetividade do poema,
fazendo com que a debreagem enunciva da
primeira estrofe seja lida articulada com ela.
Entre esses dois regimes de enunciação, É próprio da debreagem enunciativa, devido
outros modos de enunciar são possíveis à colocação dos sujeitos da enunciação explícitos
combinando pessoas, tempos e espaços no enunciado, gerar efeitos de sentido de
enunciativos e enuncivos. No poema de subjetividade, uma vez que o dito parece
Drummond, a primeira estrofe é construída em assumido por quem o diz. Contrariamente, é
debreagem enunciva, pois é feita na pessoa próprio da debreagem enunciva, devido à
do “ele”, marcada na terceira pessoa do verbo colocação dos sujeitos da enunciação implícitos

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Análise textual da história em quadrinhos

no enunciado, gerar efeitos de sentido de objeti- determinando as chamadas isotopias temáticas


vidade, pois nela o dito surge, aparentemente, e figurativas. No exemplo do poema, a relação
isolado do enunciador. entre as palavras “pedra” e “caminho” dão forma
Sobre essa sintaxe, que gera as pessoas, o tempo à isotopia figurativa, que está determinada pela
e o espaço em que a semio-narratividade se realiza, isotopia temática da impotência. Em ambas as
articula-se a dimensão semântica do discurso. isotopias, há a repetição dos valores semânticos
No poema de Drummond, o enunciador, a continuidade vs. descontinuidade, que garantem
pedra, o meio do caminho são figuras que revestem a coerência semântica.
as categorias sintáticas. Essas figuras, articuladas Gerado através dos níveis fundamental,
em percursos figurativos, só fazem sentido porque narrativo e discursivo, o sentido está pronto para
estão correlacionadas a, pelo menos, um percurso se manifestar em sistemas semióticos específicos.
temático. No poema de Drummond, o sentido, gerado no
Na relação entre temas e figuras, portanto, plano de conteúdo, manifesta-se em articulações
constrói-se a semântica do nível discursivo. fonológicas, que dão forma ao plano de expressão
Uma vez formados, os percursos temáticos dos sistemas semióticos verbais.
e figurativos são garantidos pela repetição dos O percurso gerativo do sentido, em síntese,
mesmos valores semânticos ao longo do discurso, pode ser esquematizado deste modo:

texto
plano de expressão

plano de conteúdo nível discursivo – percurso figurativo


– percursos temáticos
– colocação das categorias
de pessoa, tempo e espaço

nível narrativo – esquema narrativo

nível fundamental – categoria semântica articulada


com a categoria tímica
– quadrado semióico

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

– O SEMISSIMBOLISMO Para os estudos do semissimbolismo em


outras semióticas, basta determinar aquelas
Se em princípio o plano de expressão é categorias que são pertinentes à forma do plano
colocado fora dos domínios do percurso gerativo, de expressão realizado e examinar os modos de
restritos ao plano de conteúdo, com a teoria dos semi-simbolização possíveis entre elas e as
sistemas semissimbólicos o plano de expressão categorias semânticas do plano de conteúdo.
passa ser considerado na formação do sentido. Em semióticas plásticas – como a fotografia,
De acordo com o semissimbolismo, catego- a pintura, a escultura ou a arquitetura – a
rias do conteúdo podem ser correlacionadas a semiótica prevê três tipos de categorias de
categorias da expressão na articulação textual. expressão: as cromáticas, que determinam a cor;
No poema de Drummond, a oposição fonológica as eidéticas, que determinam a forma; e as
oral vs. nasal garante a relação fonológica entre topológicas, que determinam a distribuição
as palavras “pedra” e “caminho”, que são as textual de cores e formas.
principais figuras semânticas que representam, Em fotografias ou pinturas, por exemplo, a
respectivamente, os valores fundamentais de categoria cromática claro vs. escuro pode ser
descontinuidade vs. continuidade, que geram o correlacionada à categoria semântica vida vs.
plano de conteúdo. morte; a categoria eidética pontiagudo vs.
No plano de expressão da palavra “pedra” arredondado, à categoria semântica opressão vs.
há apenas fonemas orais, enquanto na expressão liberdade; ou a categoria topológica central vs.
de “caminho” há os fonemas nasais /m/ e /K/. marginal, à categoria semântica natureza vs.
Destacadas no poema em anáforas, pois são cultura.
repetidas insistentemente, e pela antítese dos As correlações semi-simbólicas entre as três
valores que figurativizam, “pedra” e “caminho” categorias que dão forma à expressão plástica e
funcionam no texto em relação semi-simbólica: as categorias semânticas do plano de conteúdo
a oralidade corresponde à descontinuidade; e a podem ser realizadas em numerosas combinações,
nasalidade, à continuidade. nas quais é possível descrever os efeitos de
sentido gerados nesse tipo de texto.
Entretanto, embora essas correlações se
plano de expressão: oral vs nasal revelem eficazes na análise de pinturas, foto-
grafias, esculturas e obras de arquitetura, quando
plano de conteúdo: descontinuidade vs continuidade se pretende examinar HQs com o
semissimbolismo, os alcances da teoria se
mostram limitados.
O semissimbolismo e a análise Com o semissimbolismo, é possível
semiótica da história em quadrinhos determinar alguns componentes plásticos que
garantem a coesão plástica dos textos de algumas
Quando se trata de relações semi-simbólicas HQs. Nada impede que a categoria semântica
em semióticas verbais, as categorias do plano vida vs. morte seja correlacionada à categoria
de expressão correlacionadas às categorias pontiagudo vs. arredondado e que todas as
semânticas devem ser categorias fonológicas, formas pontiagudas de uma HQ se relacionem a
referentes à sistematização de vogais e conteúdos de vida e as arredondadas, a
consoantes. conteúdos de morte. Contudo, há nas HQs, com

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Análise textual da história em quadrinhos

mais evidência que em outras semióticas afirma a conjunção com o objeto, ou quando o
plásticas, o componente cronológico, que sujeito realiza os programas de aquisição de
determina a distribuição dos quadros da HQ em competência rumo à realização da performance.
seqüência; e o componente cinético, que Esse regime missivo é chamado emissivo, pois
determina o fluxo discursivo. nele o discurso se desenvolve na continuidade
Deve-se, portanto, considerar os limites do narrativa e prossegue adiante.
semissimbolismo na análise das semióticas Entretanto, esse fluxo emissivo pode ser
plásticas e procurar resolver a questão teórica interrompido quando é afirmada a desconti-
da análise semiótica da história em quadrinhos nuidade sobre a continuidade emissiva. Em termos
de outro ponto de vista. narrativos, ocorre a parada da conjunção com o
objeto de valor ou dos programas de aquisição
Os avanços teóricos da semiótica tensiva de competência determinados por ele. Se no fazer
emissivo cabe ao destinador encaminhar o sujeito
Sem desprezar o modelo do percurso em sua performance, na afirmação da desconti-
gerativo do sentido, a semiótica tensiva, nuidade cabe ao antissujeito desencaminhá-lo.
proposta por Fontanille e Zilberberg (Fontanille Em orientação contrária à do fazer emissivo, a
e Zilberberg, 2001), resolve a geração do sentido afirmação da descontinuidade se dá no fazer
em outra perspectiva. remissivo.
Em linhas gerais, Zilberberg (Zilberberg, A tensão entre os fazeres remissivo e
2006) concebe a geração do sentido não mais a emissivo dá forma ao fazer missivo, articulado
partir de redes fundamentais de relações na relação remissivo vs. emissivo. Ancorada na
semânticas, mas a partir do processo de enunciação na pessoa do “eu”, a relação remissivo
colocação das categorias de pessoa, tempo e vs. emissivo determina as formas do tempo e do
espaço em função do desenvolvimento espaço discursivos.
discursivo. No regime emissivo, devido à afirmação da
Para tanto, define-se o fazer dito missivo continuidade narrativa, o tempo é acelerado e o
(Zilberberg, 2006: 129-147), ancorado não na espaço se abre em outros espaços. Contraria-
enunciação-enunciada – que diz respeito às mente, no regime remissivo, devido às paradas,
marcas da enunciação no enunciado produzido, ou seja, às afirmações da descontinuidade, o
seja em regime enunciativo, seja em regime tempo é desacelerado e o espaço se fecha.
enuncivo – mas na própria instância da Nesse novo nível fundamental da geração
enunciação. Nela, são definidos o “eu”, o “agora” do sentido articula-se o nível narrativo, e o
e o “aqui”, próprios da enunciação, orientados esquema narrativo é redimensionado de acordo
pelo fazer missivo de colocação em discurso com as propriedades de cada regime missivo para,
dessas três categorias. por fim, ser realizado no discurso enunciado na
O fazer missivo, por sua vez, está articulado relação entre temas e figuras discursivas.
de acordo com a categoria formal Comparando as propostas de Greimas e
descontinuidade vs. continuidade aplicada sobre Zilberberg, verificam-se, pelos menos, duas
o fluxo discursivo produzido na enunciação. A mudanças importantes do ponto de vista da
continuidade do fluxo depende da continuidade geração semiótica do sentido.
da relação juntiva entre o sujeito narrativo e o Antes de tudo, categorias que no modelo
objeto de valor: há continuidade quando se de Greimas só aparecem no último patamar do

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

percurso gerativo – como é o caso das categorias são correlatos aos mesmos movimentos no plano
de pessoa, tempo e espaço – no modelo de de conteúdo.
Zilberberg são colocadas no primeiro patamar; e De certo modo, separar expressão e
categorias que no modelo de Greimas aparecem conteúdo perde a pertinência no modelo de
no nível fundamental – como é o caso da Zilberberg, visto que tratar o tempo como
categoria semântica s1 vs. s2 – organizam a duração e o espaço como movimento dá conta
figuratividade no último patamar do modelo de de sistematizar a expressão da figuratividade no
Zilberberg. mesmo nível de manifestação.
No modelo de Zilberberg, tornam-se
fundamentais a colocação discursiva e a deter-
minação de seu fluxo, que se complexifica até a Conclusão
distribuição figurativa na superfície da geração
do sentido. Em meio às instâncias do percurso Em semiótica, como em quaisquer ciências,
gerativo, a missividade determina as relações diferentes propostas de sistematização dos
entre os sujeitos e os objetos narrativos, que se modelos teóricos convivem, sejam em relações
manifestam nas relações entre temas e figuras. harmônicas, sejam em relações polêmicas.
Nessas relações temático-figurativas, os valores Sem menosprezar as contribuições de
semânticos do discurso, uma vez formados,
Greimas, ou de supervalorizar as de Zilberberg,
podem ser sistematizados nas relações do
está entre os objetivos do trabalho que segue,
quadrado semiótico.
além da análise da obra em quadrinhos de Luiz
A outra mudança do ponto de vista diz
Gê, aplicar as propostas da semiótica tensiva e,
respeito ao estatuto do plano de expressão na
em particular, a da geração do sentido por meio
manifestação do sentido. Se antes o plano de
do fazer missivo.
expressão só poderia ser correlacionado ao plano
É evidente que o modelo de Zilberberg não
de conteúdo em relações semi-simbólicas entre
está descrito em seus pormenores, principalmente
categorias semânticas e categorias da expressão,
no que diz respeito às alterações do esquema
no modelo de Zilberberg o fluxo discursivo,
narrativo e da geração de estados de coisa e de
sistematizado em regimes remissivo vs. emissivo,
alma próprios de cada regime missivo. Tais
responsáveis pelas colocações de tempo e de
questões, assim como aquelas que não foram
espaço, termina por dar conta de descrever o
devidamente tratadas ao longo da exposição das
fluxo do conteúdo correlacionado ao da
propostas de Greimas e seus colaboradores, são
expressão.
desenvolvidas ou retomadas sempre que se
Em outras palavras, os movimentos de
aceleração e desaceleração do tempo, e de fizerem necessárias aos objetivos das análises das
abertura e fechamento do espaço na expressão HQs.

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2. O FLUXO DISCURSIVO

O fazer missivo mas também significa o que está por vir – “o


que se arremessa”. Missivo é ainda formado pelo
E m suas propostas teóricas, Zilberberg mesmo radical met-, de “meter”, o que relaciona
reelabora o percurso gerativo do sentido a partir a missividade aos significados de colocar, por,
da definição da categoria missiva, articulada em dispor. Em outras palavras, trata-se de articular,
remissivo vs. emissivo (Zilberberg, 2006: 129-147). na categoria missiva, o fluxo discursivo.
A palavra missivo, em português, significa A história em quadrinhos “Eu quero ser uma
“o que se remete” e “o que se arremessa”. Pode locomotiva”, de Luiz Gê, é um exemplo de
significar o que já veio – “o que se remete” – engenhosidade na articulação desse fazer.
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Em termos de colocação em discurso, as maquinista e o objeto de valor figurativizado


seqüências de “Eu quero ser uma locomotiva” pela mulher. Em estado de não-disjunção – pois
estão dispostas na seguinte estratégia: há a certeza do encontro marcado – o sujeito
narrativo tende a diminuir a tensão da disjunção,
1 – locomotiva seguindo seu caminho; em direção ao relaxamento da conjunção com o
maquinista expõe seus objetivos: ficar com objeto de valor euforizado.
mulher Ao determinar semio-narrativamente o
2 – comando apache dá início ao assalto plano de conteúdo, o emissivo e sua tensividade
à locomotiva aparecem ao longo do discurso, garantindo a
3 – comando nazista dá início ao blo- coerência semântica ao estabelecer o programa
queio dos trilhos com tanque de guerra de base em nível narrativo.
4 – índios mortos pelos tiros dos nazistas Além da seqüência 1 (locomotiva seguindo
5 – locomotiva atropela o tanque de seu caminho; maquinista expõe seus objetivos:
guerra ficar com mulher), são emissivas as seqüências:
6 – locomotiva segue seu caminho sobre
uma ponte 5 – locomotiva atropela o tanque de
7 – comando árabe está pronto para guerra
dinamitar a ponte 6 – locomotiva segue seu caminho sobre
8 – assaltante negro interrompe o coman- uma ponte
do árabe 9 – o trem passa durante as negociações
9 – o trem passa durante as negociações entre o assaltante e os árabes
entre o assaltante e os árabes 13 – um disco voador surge e reativa a
10 – comando aéreo ataca o assaltante e locomotiva
os árabes 14 – locomotiva atropela o disco voador
11 – assaltante derruba os aviões
12 – avião abatido cai sobre a locomotiva No mesmo discurso, tudo aquilo que inter-
e interrompe seu caminho rompe o fazer narrativo do sujeito maquinista é
13 – um disco voador surge e reativa a da ordem do remissivo. Dispostos a parar a
locomotiva locomotiva, os diversos atores figurativizados na
14 – locomotiva atropela o disco voador HQ são os antissujeitos, cuja função é evitar a
15 – locomotiva termina indo de encontro conjunção determinada pelo fazer emissivo.
a ou ao encontro da mulher amarrada nos trilhos São remissivas as seqüências:
do trem
2 – comando apache dá início ao assalto
Não há conteúdos remissivos e emissivos à locomotiva
absolutos, o que é remissivo ou emissivo depende 3 – comando nazista dá início ao
da estabilização de determinados valores bloqueio dos trilhos com tanque de guerra
articulados pelo discurso. 4 – índios mortos pelos tiros dos nazistas
Em “Eu quero ser uma locomotiva”, tudo o 7 – comando árabe está pronto para dina-
que aponta para o porvir é da ordem do emissivo. mitar a ponte
Na seqüência 1, o emissivo é definido na tensão 8 – assaltante negro interrompe o coman-
entre o sujeito narrativo figurativizado pelo do árabe

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Análise textual da história em quadrinhos

10 – comando aéreo ataca o assaltante e mulher) estão articulados. Esse fazer remissivo
os árabes complexo, por sua vez, está articulado com outro
11 – assaltante derruba os aviões fazer emissivo, em que o objeto de valor é
12 – avião abatido cai sobre a locomotiva suplantado pela carga passional excessiva do
e interrompe seu caminho desejo fora de controle.

Em linhas gerais, há duas frases no texto remissivo vs. emissivo


que resumem os fazeres emissivo e remissivo: remissivo vs. emissivo (quere-ser excessivo)
“meu negócio é mulher” diz respeito ao emissivo; (mil caras te atrapalhando) (meu negócio é mulher)
“uma mulher te esperando e mil caras te
atrapalhando”, ao remissivo.
Entretanto, a última seqüência – Voltando às seqüências de 1 a 14, resta
locomotiva termina indo de encontro a ou ao descrever a semiotização do tempo e do espaço
encontro da mulher amarrada nos trilhos do trem de acordo com a missividade.
– é ambígua quanto a missividade. Ao terminar O tempo no regime emissivo é acelerado.
a história no limiar da conjunção, não é colocado Como na emissividade a tensão tende a se
em discurso, sem sombra de dúvida, se o resolver no relaxamento, portanto na conjunção
maquinista pára e fica com a mulher, indo a seu com o objeto de valor euforizado, o tempo tende
encontro, ou se a atropela – como atropelou “os à aceleração ao apontar para tal limiar. Em regime
mil caras atrapalhando” – indo de encontro a emissivo, a locomotiva entra em aceleração e o
ela. Na primeira possibilidade – ao encontro de tempo, porque passa, passa mais depressa. Em
– a seqüência 15 é emissiva; na segunda aceleração temporal, o espaço se abre e a
possibilidade - de encontro a – a seqüência 15 é locomotiva muda de lugar constantemente.
remissiva. Contrariamente, o regime remissivo desace-
Na possibilidade emissiva, a narrativa lera a locomotiva. Nesse regime, o tempo, porque
assume aspecto terminativo, o sujeito realiza a parece parar em função da remissão, parece passar
conjunção com o objeto de valor. Na possi- mais devagar. Desacelerada, a locomotiva
bilidade remissiva, coloca-se em crise a compe- permanece mais tempo no mesmo lugar e o
tência do sujeito narrativo em termos passionais: espaço se fecha. O melhor exemplo de desacele-
seu desejo, modalizado pelo querer-ser, é tão ração do tempo e fechamento do espaço está
excessivo que não encontra relaxamento na nas seqüências 7 (comando árabe está pronto
conjunção com o objeto de valor. Não há mulher para dinamitar a ponte) e 8 (assaltante negro
capaz de satisfazê-lo, a conjunção está sempre interrompe o comando árabe). Enquanto árabes
no limiar, nunca no limite. Isso faz com que, de e assaltante negociam no mesmo lugar, o tempo
terminativo, o aspecto da narrativa passe a ser acelerado da locomotiva em ação é substituído
iterativo: tudo que é discursivizado não termina pela morosidade das conversações.
nunca; o maquinista está fadado a se repetir, de As seqüências 12 (avião abatido cai sobre
atropelamento em atropelamento, atropelando a locomotiva e interrompe seu caminho), 13 (um
a própria mulher. disco voador surge e reativa a locomotiva) e 14
Desse modo, toda a HQ é um fazer remissivo (locomotiva atropela o disco voador) confirmam
complexo, em que remissivo (mil caras te a relação espaço-tempo entre o remissivo e o
atrapalhando) vs. emissivo (meu negócio é emissivo. Na seqüência 12 há fazer remissivo, o

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tempo desacelera a ponto da locomotiva parar e derivação na categoria missiva, em que pessoa,
o maquinista jazer no mesmo espaço fechado; e tempo e espaço fundamentais determinam
nas seqüências 13 e 14 há fazer emissivo, o tempo regimes de colocação em discurso.
volta a acelerar na velocidade crescente da Em termos tensivos, do relaxamento à
locomotiva e o espaço se abre em seu caminho. tensão, o remissivo promove a retenção; e, da
Por fim, na seqüência 15, se o homem e tensão ao relaxamento, o emissivo promove a
sua locomotiva vão ao encontro da moça distensão:
amarrada, a locomotiva tende a parar, desacele-
pessoa: fazer remissivo
rando o tempo e fechando o espaço; mas, ao
tempo: desaceleração
contrário, se vão de encontro a ela, o tempo espaço: fechamento
continua acelerado no atropelamento e o espaço retenção
tende a se abrir ao longo dos trilhos.
relaxamento tensão

distenção
O fazer missivo e a geração do sentido
pessoa: fazer emissivo
tempo: aceleração
Uma vez explicado o funcionamento do
espaço: abertura
fazer missivo e sua forma de determinar a
colocação em discurso, é necessário mostrar
como o percurso gerativo do sentido está Uma vez gerados os regimes remissivo e
redimensionado em relação à missividade. emissivo, geram-se modalidades próprias em cada
Em algumas de suas propostas teóricas, um deles. Zilberberg (Zilberberg, 2006: 138-140)
Zilberberg (Zilberberg, 2006: 129-147) sugere a sistematiza a modalização em modalidades
categoria tensiva como fundamental na geração factivas, da ordem do fazer, e páticas, da ordem
do sentido. Articulada em tensão vs. relaxa- do ser. Para cada tipo, há de se considerar
mento, a categoria tensiva determina a projeção dimensões pragmáticas, da ordem do poder, e
das forias e os valores colocados em discurso. A cognitivas, da ordem do saber.
continuação da conjunção com o objeto de valor Nessa proposta, o esquema narrativo
euforizado se dá no relaxamento e, quando essa permanece articulado em termos de enunciados
conjunção é interrompida na não-conjunção e de estado – os enunciados de ser – e enunciados
na disjunção, dá-se a tensão, que tende a de fazer. Na medida em que estados e
reorientar a narrativa ao estado anterior. transformações são semiotizados em função do
Do tensivo ao missivo (Zilberberg, 2006: sujeito narrativo, Zilberberg concebe um sujeito
133-138), a orientação para o relaxamento se que age de acordo com estados de alma e
dá no fazer emissivo e a interrupção dessa manifesta estados de alma em decorrência de suas
orientação, no fazer remissivo. Tanto a categoria ações. Desse modo integra, em seu modelo
tensiva quanto a missiva estão em função do teórico, percursos factivos – próprios de estado
sujeito da enunciação. Nele se articulam a de coisas – e páticos – próprios de estado de
tensividade na relação tensão vs. relaxamento e alma – em duas dimensões modais – o fazer e o
a missividade na relação remissivo vs. emissivo ser – em função do sujeito narrativo.
com seus respectivos regimes espaço-temporais. Ao agir apaixonado, o sujeito sabe e pode
Portanto, em nível fundamental da geração em função da dimensão factiva ou pática. Há
do sentido, operam a categoria tensiva e sua um saber e um poder que modalizam como age,

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Análise textual da história em quadrinhos

e um poder e um saber que modalizam como se De acordo com a missividade, o fazer do


apaixona, determinando dimensões pragmáticas sujeito oscila em função de seu saber, que se
e cognitivas nas dimensões factiva e pática. resolve entre ignorar o surgimento das paradas
Nessa etapa da descrição teórica, o fazer de ordem remissiva e prever a realização da
missivo determina modalidades próprias para performance, enquanto seus estados passionais
cada dimensão pragmática e cognitiva, seja em oscilam entre crer na realização da performance
dimensão factiva, seja em dimensão pática. Cada e espantar-se com as paradas do projeto. Dito
um dos fazeres missivos, portanto, admite quatro de outro modo, ele prevê fazer porque crê ser
tipos de modalização, em um total de oito tipos competente e se espanta com as paradas da
(Zilberberg, 2006: 139). continuação do programa de base porque, ao
Para o fazer remissivo, o modelo é esse: ignorar quando veem a surgir na narrativa, é
tomado de assalto por elas.
modalidade factiva cognitiva: ignorar Seu poder, por sua vez, faz com que seu
pragmática: dever fazer oscile entre querer a conjunção com o
objeto de valor e, porque quer, dever neutralizar
modalidade pática cognitiva: espantar-se os antissujeitos e desfazer as paradas, enquanto,
pragmática: interromper-se
paticamente, oscila entre a espera da realização
E para o fazer emissivo, este: da performance e as interrupções das paradas da
continuação. Em outras palavras, ele quer fazer
modalidade factiva cognitiva: prever porque espera ser e deve fazer porque foi
pragmática: querer interrompido.
Uma vez que o sujeito narrativo segue
modalidade pática cognitiva:crer
modalizado em função dos regimes missivos, que
pragmática: esperar
organizam os demais actantes da narrativa em
função da missividade, os efeitos de sentido
O que parece acréscimo de modalidades modais determinam a estratégia narrativa, assim
novas em relação ao modelo greimasiano, como as ações e as paixões em desdobramento;
articulado basicamente em quatro modalidades mas determinam, ainda, esses mesmos efeitos na
- querer, dever, saber e poder – revela-se a enunciação, manipulando a relação enunciador-
articulação engenhosa entre ser e fazer, saber e enunciatário de acordo com eles. Tudo o que se
poder, remissivo vs. emissivo. passa na narrativa, em termos modais, também
Apresentado em outro esquema de relações, se passa na enunciação, manipulando o
nota-se, claramente, que a categoria missiva enunciatário a agir e a se apaixonar como os
dispõe as modalidades de acordo com o mesmo actantes na fruição do discurso.
eixo modal, ora cognitivo, ora pragmático:

factivo (fazer) pático (ser)


missividade remissivo emissivo remissivo emissivo
cognitivo (saber) ignorar ↔ prever espantar-se ↔ crer
pragmático (poder) dever ↔ querer interromper-se ↔ esperar

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

Desse modo, em “Eu quero ser uma locomo- actantes próprias de cada regime. Na geração do
tiva”, os arranjos modais de cada regime missivo, sentido, portanto, há de se determinar como se
uma vez determinados pela missividade, determinam dão as relações sujeito-sujeito e sujeito-objeto
o ser e o fazer dos actantes envolvidos na narra- narrativos modalizados em cada regime missivo
tiva, determinando, também, as expectativas do (Zilberberg, 2006: 140-145).
enunciatário leitor. Isso precisa ser explicado melhor. No fazer emissivo, a relação sujeito-sujeito
Nas seqüências regidas pelo fazer emissivo, se realiza na relação destinador-destinatário. O
o ser do maquinista é modalizado pelo crer, maquinista, ao mesmo tempo em que se dirige a
cognitivamente, e pelo esperar, pragmati- um passageiro oculto – ora chamado Alfredão,
camente. Enquanto crê em que uma mulher o ora Fredão ou Froidão, por pouco seria Fodão –
aguarda, ele segue adiante, a esperar pela fala consigo mesmo. Acionado pelo querer-ser em
confirmação da expectativa. O fazer, por sua vez, função do objeto euforizado mulher e dando-se
é modalizado cognitivamente pelo prever, pois ao julgamento do parceiro escondido, o
o maquinista age em função da confirmação do maquinista vai adiante nas relações destinador-
projeto; e é modalizado pragmaticamente pelo destinatário articuladas na cabine da locomotiva.
querer, pois não basta a mulher estar a sua espera, No fazer remissivo, a relação sujeito-sujeito
ele segue adiante porque também investe no se realiza na relação sujeito-anti sujeito. Aqueles
encontro. que buscam deter a locomotiva, “os mil caras
Nas seqüências regidas pelo fazer remissivo, atrapalhando”, são antissujeitos do maquinista,
o ser do maquinista é modalizado cognitiva- pois são eles os actantes principais da remissão.
mente pelo espantar-se, uma vez que a cada curva A relação sujeito-objeto, por sua vez, realiza-se
dos trilhos surge um novo oponente; e é na relação sujeito-abjeto. O abjeto é um anti-
modalizado pragmaticamente pelo interromper- objeto; contrariamente ao desejável, próprio do
se, pois, para cada surpresa, há uma tentativa de objeto euforizado, o abjeto é indesejável. Para o
detê-lo em sua trajetória. Seu fazer, na dimensão maquinista, a disjunção com a mulher e a con-
cognitiva, é modalizado pelo ignorar, as paradas junção com tudo aquilo que não seja ela são abjetas.
são sempre surpreendentes; e na dimensão No que diz respeito a uma semiótica do
pragmática, o maquinista é modalizado pelo objeto, Zilberberg examina como o sujeito
dever, que incide na obrigação de ultrapassar os narrativo, tanto em dimensões pragmáticas
“mil caras” em função de sua performance. quanto cognitivas, valoriza-o ao agir sobre ele e ao
Em nível discursivo, a enunciação de “Eu buscar compreendê-lo (Zilberberg, 2006: 142-143).
quero ser uma locomotiva” realiza, no percurso No fazer emissivo, o objeto é valorizado
figurativo, o fazer missivo e seus regimes modais, pragmaticamente na relação sujeito-objeto, de
que determinam a colocação em discurso da modo que, ao agir sobre o objeto, o sujeito
história. A missividade e suas modalizações, identifica-se com ele. Como a existência
dispostas como estão na narratividade da HQ e semiótica do sujeito narrativo se dá nas relações
em sua manifestação figurativa, sendo o percurso juntivas que ele contrai com os objetos de valor,
da leitura ancorado no percurso da locomotiva, realizar junções é realizar modos de existência
manipulam o enunciatário leitor a agir e se semiótica. De certo modo, a conjunção com o
apaixonar no ritmo do maquinista. objeto de valor euforizado define o sujeito
Geradas pelos regimes missivos, as narrativo, por isso age em função dele.
modalizações garantem a narratividade dos Cognitivamente, a compreensão do objeto

49
Análise textual da história em quadrinhos

determina a compreensão geral, pois o sujeito Os muitos níveis de leitura de determinado


compreende em função da compreensão do objeto percurso figurativo, quando há mais de um tema
que, assim, medeia a cognição. Em “Eu quero ser recoberto por ele, dependem da articulação entre
uma locomotiva”, no regime emissivo o temas e figuras, mas também da articulação entre
maquinista age em função do objeto e os temas. Em seu estudo “A sistemática das
compreende o mundo por meio dele; sua máxima isotopias” (Greimas, 1976: 96-125), F. Rastier,
“meu negócio é mulher”, repetida sem cessar, na leitura que faz do soneto Salut, de Mallarmé,
confirma tal modo de agir e conhecer. determina três isotopias temáticas para as
No fazer remissivo, o objeto é valorizado leituras do poema enquanto banquete, enquanto
pragmaticamente na relação sujeito-abjeto. navegação e enquanto fazer poético.
Diferenciando-se do abjeto, o sujeito age de Eis o poema, na tradução de Augusto de
encontro a ele na tentativa de afirmar a disjunção, Campos (Campos, Pignatari e Campos, 1991: 33):
e seu conhecimento do mundo é mediado pelo
que já sabe da abjeção do abjeto. Novamente, Nada, esta espuma, virgem verso
outra máxima do maquinista vem confirmar o A não designar mais que a copa;
agir e o conhecer remissivos a propósito do objeto Ao longe se afoga uma tropa
de valor: “uma mulher te esperando e mil caras De sereias vária ao inverso.
te atrapalhando”.
Navegamos, ó meus fraternos
Do tensivo ao missivo, do missivo ao
Amigos, eu já sobre a popa
modal, do modal ao actancial, assim está gerado
Vós a proa em pompa que topa
o sentido na proposta de Zilberberg. Resta
A onda de raios e de invernos;
verificar como o revestimento temático e
figurativo na realização do discurso funciona
Uma embriaguez me faz arauto,
de acordo com a semio-discursividade do
Sem medo ao jogo do mar alto,
modelo proposto.
Para erguer, de pé, este brinde

Os percursos temáticos e figurativos


Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Em nível discursivo, há a determinação de
Um branco afã de nossa vela.
percursos temáticos e figurativos na formação
da semântica discursiva. Na superfície do
Rastier considera a leitura do banquete
discurso, o sentido das figuras surge determinado como a mais evidente, pois está ancorada na
pelos percursos temáticos e pelo fazer missivo. cena enunciativa em que o brinde ganha
Embora a semiótica estabeleça um patamar sentido. A leitura da navegação é considerada
teórico no percurso gerativo do sentido em que uma leitura mítica, construída entrelaçada com
temas e figuras são determinados, não há em suas a leitura do banquete por meio de metáforas e
propostas, pelo menos explicitamente, uma polissemias das próprias figuras. A leitura
sistematização da tematização discursiva de modo metalingüística, por sua vez, deriva da
geral. Em outras palavras, não basta dizer que há interdiscursividade na obra de Mallarmé entre
este ou aquele tema em determinado discurso, Salut e outros poemas em que ora a leitura
deve-se procurar estabelecer uma sistematização metalingüística está correlacionada a
das possibilidades de ocorrências temáticas. banquetes, ora a navegações.

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

Respectivamente, podem ser chamadas Nessa leitura, porque estão ancoradas no percurso
isotopias prática, mítica e metalingüística. ferroviário encenado no discurso, as figuras
Pelas reflexões de Rastier, é possível parecem assumir significados denotativos –
estabelecer, como hipótese de trabalho, que há locomotiva significa locomotiva, maquinista
três tipos básicos de tematização. Há a significa maquinista, etc. Há, entrelaçada com
tematização prática, em que o percurso figurativo a tematização prática do percurso ferroviário, a
ganha sentido mais evidente por estar ancorado tematização mítica de ordem erótica, em que as
na cena enunciativa formada na enunciação e figuras do discurso significam, enquanto
realizada no enunciado. O enunciador marcado metáforas, a virilidade masculina e suas inter-
nos primeiros versos do soneto cumpre o papel rupções. É possível, ainda, propor a tematização
temático de quem realiza o brinde no banquete metalingüística, em que os percursos e os
enunciado, por isso a leitura convocada por ele percalços da locomotiva significam também o
é mais evidente; e, por estar ancorada na fazer do quadrinista.
enunciação, ela parece menos fictícia que a A análise anterior do fazer missivo está
leitura da navegação. baseada na leitura da tematização prática, uma
Há a tematização mítica, em que o percurso vez que a história em quadrinhos teve suas
figurativo ganha outros sentidos baseados nas seqüências determinadas a partir da ancoragem
leituras desencadeadas na e conectadas com a na cena enunciativa formada no percurso
leitura prática. Por estar ancorada na leitura que ferroviário. Em nenhuma passagem da análise
está ancorada na enunciação, a tematização houve a preocupação de estabelecer o que o
mítica parece mais abstrata, fruto antes de leituras texto tematiza além das aventuras da locomotiva
conotativas que denotativas. Em Salut, na leitura e seu maquinista ansioso.
mítica o papel temático de quem brinda converte- Somente essa leitura, entretanto, não basta
se no papel temático do capitão do navio, de para a análise semiótica. Na tematização mítica
modo que o segundo é lido como metáfora do – assim como no poema de Mallarmé o tema do
primeiro. banquete é associado ao tema da navegação –
Por fim, há a tematização metalingüística em “Eu quero ser uma locomotiva” o tema da
quando o percurso figurativo está em função de ferrovia e associado ao tema do erotismo. Na
significar a propósito de si mesmo, o que quer leitura erótica, além do missivo incidir sobre a
dizer que o significado das figuras é a própria colocação em discurso, incidi, literalmente,
semiótica. sobre “meter”, se “meter” significar manter
Os tipos de tematizações propostas, inspi- relações sexuais.
radas nas análises de Rastier, não aparecem Tudo o que está determinado em termos de
necessariamente em todos os discursos, nem emissividade e remissividade na leitura prática é
delimitam o número de isotopias ao máximo de válido para a leitura mítica, pois ambas estão
três. A hipótese de trabalho diz respeito a tipos entrelaçadas. Na leitura erótica, o fazer emissivo
de tematizações, por isso, nada impede que haja está em função da realização da masculinidade
duas ou mais isotopias míticas, por exemplo, e por meio do coito heterossexual, figurativizada
nenhuma isotopia metalingüística. em metáforas pelo maquinista e sua locomotiva
Em “Eu quero ser uma locomotiva” ocorrem desenfreada em direção ao objeto de valor
os três tipos. Há a leitura prática, ancorada na mulher. O fazer remissivo, por sua vez, aparece
cena enunciativa discursivizada no enunciado. no confronto com outros homens, pois são os

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Análise textual da história em quadrinhos

“mil caras atrapalhando” não o percurso da Convocado a se deparar de frente com a


locomotiva, mas o percurso do coito. figura em torno da qual o fazer missivo está
Do mesmo modo que na tematização construído, o leitor é convocado a se explicitar
prática, na tematização mítica a categoria no enunciado, pois a locomotiva, porque
remissivo vs. emissivo é redimensionada em determina o percurso da leitura, pode significar
[remissivo (remissivo vs. emissivo)] vs. o fazer missivo do quadrinista, admirado pelo
emissivo. Não é possível determinar se a leitor. Na tematização metalingüística, portanto,
virilidade encontra sua realização na conjunção conforme a locomotiva caminha, caminha a
com o objeto de valor e termina em estado de construção da história em quadrinhos.
relaxamento, ou se atropela o objeto, transfor- Também entrelaçado com os temas prático
mando-o em outro obstáculo. Na primeira e mítico, o tema metalingüístico articula o fazer
possibilidade, o emissivo se refere ao objeto de missivo do mesmo modo. São valores emissivos
valor mulher; na segunda, o objeto de valor é aqueles que apontam para a realização do texto,
desvalorizado porque se torna um valor remissivo em que o enunciador quadrinista pilota sua
e o excesso de virilidade ganha estatuto de história como o maquinista pilota a locomotiva;
emissividade além do objeto de valor. e são remissivas as interrupções e passagens que
As tematizações prática e mítica determinadas desviam o enredo da performance principal. No
em “Eu quero ser uma locomotiva” não são último quadrinho, se a história termina e pára,
herméticas, há o entrelaçamento entre os papéis do mesmo modo que no quadrinho em que a
temáticos do maquinista e do “fodedor” locomotiva quebra, a emissividade se resolve na
explicitados ao longo de toda a história. A máxima conclusão da enunciação. Contudo, se a história
“uma mulher te esperando e mil caras te segue desenfreada como a locomotiva e a
atrapalhando”, por exemplo, dá conta de evidenciar virilidade, o leitor enunciatário é atropelado por
a identificação entre os dois papéis. A leitura do ela e pelo enunciador quadrinista – seu piloto –
tema metalingüístico, porém, é menos evidente. tal como a mulher, pelo maquinista.
Em todos os quadrinhos da história, em
apenas dois a locomotiva aparece desenhada de A coerência figurativa
frente para o leitor: quando um dos aviões cai
atrás da cabine de comando da locomotiva e a A recorrência de traços semânticos comuns
desmonta; e quando o maquinista vai ao encontro garante a coerência figurativa do discurso, por
de ou de encontro à mulher amarrada nos trilhos. mais incoerente que ele pareça. Das falhas dos
São dois momentos determinantes, pois índios com relógio de pulso em filmes de western
neles a locomotiva parece parar, irremediavel- mal montados aos delírios figurativos de poetas
mente quebrada; e quando não se sabe se vai como Roberto Piva, trata-se, respectivamente, de
parar ou continuar, ininterruptamente desen- defeitos ou engenhosidades no revestimento
freada, passando por cima do objeto. Nesses dois figurativo.
momentos – que demarcam a remissividade plena No caso do índio de relógio em filmes
na continuação da parada e a emissividade plena feitos com incompetência, há incoerência na
na continuação da continuação dos percursos da aplicação da categoria semântica natureza vs.
locomotiva e da virilidade – o enunciatário leitor cultura, pois o valor de cultura investido no
é colocado frente a frente com a figura central relógio não é pertinente com os valores de
da missividade nos dois percursos temáticos. natureza investidos no índio. Em delírios

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

figurativos, há complexificações de categorias os soldados, os terroristas, o assaltante e os


semânticas, fazendo com que figuras, antes aviões – ou porque estão na frente dos trilhos –
díspares, sejam assimiladas no mesmo percurso. como o disco voador e, na possibilidade de
Em discursos assim, um índio de relógio é a figura conclusão em que a locomotiva segue desen-
menos estranha que pode aparecer. freada, a mulher amarrada.
Em “Eu quero ser uma locomotiva” as A mulher dos trilhos, enquanto figurati-
personagens são delirantes. Em princípio, o vização do objeto de valor do programa narrativo
assalto de índios nativos norte-americanos a um de base do maquinista, assume valores emissivos,
trem em movimento é tópico recorrente em até que essa valorização seja colocada sob
vários filmes e histórias em quadrinhos de suspeita na surpresa do último quadrinho da
western. Todavia, a presença de soldados alemães, história.
provavelmente nazistas, complexifica a isotopia Articuladas em torno da locomotiva e seu
figurativa; as diferenças históricas e geográficas condutor, os antissujeitos e o objeto de valor
entre índios e soldados alemães são neutralizadas estão distribuídos de acordo com, pelo menos,
na construção de um espaço e um tempo comuns, duas categorias semânticas: masculino vs.
que complexificam ambos os grupos. Esse meca- feminino e liberdade vs. opressão, que garantem
nismo figurativo garante que as próximas per- a coerência figurativa do delírio. Todos os
sonagens possam participar dos mesmos critérios antissujeitos, que buscam tomar de assalto a
de colocação em discurso, de modo que os locomotiva, são homens livres e o objeto de valor
terroristas árabes, o assaltante brasileiro, os é uma mulher amarrada nos trilhos.
aviões de combate e até mesmo um disco voador O disco voador, que não é um antissujeito
estejam de acordo com o delírio figurativo como os demais – não é masculino, nem feminino
realizado. – figurativiza o termo neutro da categoria masculino
O delírio figurativo, entretanto, por mais vs. feminino, mas figurativiza apenas o termo
transtornado que pareça, está em correlação com simples liberdade, da categoria liberdade vs.
o fazer missivo que determina sua colocação em opressão. O disco voador só é antissujeito quando
discurso. Incluindo a mulher nos trilhos entre permanece parado nos trilhos; antes, vem dele a
as personagens descritas anteriormente, em “Eu energia que renova as forças do sujeito maqui-
quero ser uma locomotiva” é possível distribuí- nista e conserta a locomotiva.
las de acordo com os valores remissivos ou Complexa, essa figura, que assume tanto
emissivos investidos em cada uma delas. valores remissivos quanto emissivos, anuncia o
O maquinista e seu amigo, enquanto figuras investimento missivo também complexo na
em torno das quais está construída a missividade figura da mulher. Entre os antissujeitos, o disco-
– pois encabeçam a locomotiva que ora segue, voador funciona como a figura neutra, em termos
ora é interrompida – podem ser excluídas das de sexualidade, que separa os somente
distinções entre figuras exclusivamente remis- antissujeitos homens da figura da mulher – tanto
sivas ou emissivas, próprias das demais pessoas objeto de valor quanto outro antissujeito parado
que figurativizam o antissujeito ou o objeto de valor. nos trilhos. Se o disco voador é livre para se
São remissivas as figuras que remetem ao locomover, assim como todos os que tomam o
papel actancial do antissujeito. Na HQ, são todas trem de assalto, a mulher diferencia-se dele por
aquelas personagens que buscam parar o trem assumir valores de opressão, atada aos trilhos
ou porque vão de encontro a ele – como os índios, como se encontra.

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Análise textual da história em quadrinhos

A figuratividade, delirante na tematização modo, pronta para ser atropelada ou tomada de


prática, torna-se menos difusa na tematização assalto também.
mítica. Tomados como metáforas, a superes- Por fim, na tematização metalingüística,
timação da virilidade está para a aceleração da ao se revelar como linguagem, a realização do
locomotiva, assim como sua subestimação está sentido enquanto construção se encarrega de
explicitar o enunciador responsável pela articu-
para as desacelerações promovidas pelos que
lação entre temas e figuras presente no texto.
buscam detê-la. Os antissujeitos são homens –
Ao maquinar o sentido, é ele quem articula a
outras virilidades – e o objeto de valor é mulher,
semiótica que dá forma à história em quadrinhos
atropelada ou não pela masculinidade do
e garante sua engenhosidade, ainda que passando
maquinista. Amarrada, essa mulher tem menos por cima do leitor que permanece parado na
poder que os homens e se encontra, de certo fruição do texto.

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3. O DELÍRIO FIGURATIVO

A figuratividade, em semióticas visuais, plano de expressão, porém, são formadas por


pode facilmente ser confundida com a mani- categorias plásticas, responsáveis pela cor, pela
festação plástica. Por ser própria do revestimento forma e pela distribuição topológica de cores e
mais específico e concreto do último patamar formas. O conceito de árvore, por exemplo, é
do percurso gerativo do sentido, a figuratividade formado pelos semas /com raiz/ + /com tronco/
ainda pertence ao plano de conteúdo. Em + /com copa/, enquanto sua expressão visual
semióticas verbais, como a imagem conceitual depende da disposição de categorias plásticas,
do conteúdo se manifesta no nível fonológico responsáveis pela manifestação de formas e cores
de análise lingüística, as figuras não se com distribuições topológicas específicas.
confundem com os fonemas do plano de Quando em histórias em quadrinhos são
expressão. No entanto, porque em semióticas articuladas semiótica verbal e semiótica plástica,
plásticas a expressão é da ordem do visível, é boa parte da figuratividade formada no conteúdo
fácil confundir a imagem vista com a figura é manifestada por meio de desenhos. O delírio
concebida no conteúdo. figurativo surge, portanto, como delírio visual.
O revestimento figurativo é de ordem Dentre os trabalhos de Luiz Gê, uma das
semântica, as figuras de conteúdo são formadas histórias em quadrinhos mais delirante é “Errare
por categorias semânticas. As imagens vistas no marcianum est”.
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A articulação do fazer missivo e a dar conta da emissividade, no entanto, aqueles


manipulação do ponto de vista que funcionariam como destinadores do sujeito
de estado revelam-se antissujeitos pois, além
A estrutura narrativa de “Errare marcianum de negarem créditos, cedem a concessão dos
est” está construída na quebra do contrato canais para outro antissujeito, no caso, Sílvio
fiduciário e seus desdobramentos passionais Santos. Desse modo, quando aqueles que
(Greimas, 1983: 225-246). deveriam funcionar como destinadores do sujeito
Na história em quadrinhos, o Gerente Geral narrativo se transformam em antissujeitos, há
e sua comitiva esperam que a administração regência do regime remissivo na interrupção da
central da companhia, para a qual trabalham, emissividade.
forneça-lhes crédito e concessão de canais; mas Em termos modais, no fazer emissivo do
não se sabe ao certo se são canais hidroviários, Gerente Geral e sua comitiva, as modalidades
canais de esgoto ou canais de telecomuni- factivas, modalizadoras do fazer, determinam o
cações. Trata-se de um programa narrativo em querer-fazer pragmaticamente e o prever-fazer
que o sujeito de estado espera que o sujeito do cognitivamente. A comitiva é regida pelo desejo
fazer o coloque em conjunção como o objeto da conjunção com o objeto de valor ao mesmo
de valor. Diferente dos programas narrativos de tempo em que antecipa a conjunção, resultante
acionamento, em que o sujeito de estado e o do cumprimento do contrato fiduciário. Já as
sujeito do fazer estão sincretizados na mesma modalidades páticas, modalizadoras do ser,
pessoa do discurso, em “Errare marcianum est” determinam o esperar-ser pragmaticamente e o
há o estabelecimento do contrato fiduciário crer-ser cognitivamente, pois a comitiva, em
entre o gerente, sua comitiva e a administração estado de espera, acredita nos termos do contrato
central da companhia, que se revelará e em sua realização.
descumprido ao longo da história. No fazer remissivo, a modalização muda.
Em decorrência do descumprimento, os Uma vez que a mensagem transforma os
sujeitos de estado Gerente Geral e comitiva destinadores em antissujeitos, revelando o
perdem a confiança no sujeito do fazer; formam- rompimento do contrato, a comitiva passa a ser
se condições semióticas para o aparecimento da modalizada factivamente pelo dever-fazer na
cólera e para que o sujeito de estado parta para dimensão pragmática da narrativa e pelo ignorar-
a reparação da falta: o Gerente, indignado, depois fazer em sua dimensão cognitiva. Ao perceber a
de rasgar, atirar em e urinar sobre a mensagem continuação da disjunção com o objeto de valor
escrita, depõe o emblema da companhia e declara e a transformação actancial da administração
independência em Marte. central da companhia, a comitiva, em princípio
Independência duvidosa, pois é colocada confusa, termina por assumir o dever da
em questão pelos comentários finais do rabo de declaração do Gerente “Independência em Marte”.
uma das montarias: “eu tenho ânus e ânus de Nas modalidades páticas, na dimensão
experiência e lhe digo uma coisa: esse negócio pragmática há a modalização do interromper-se,
não está me cheirando bem” visto que o percurso para a conjunção é detido
Em termos missivos, os efeitos narrativos pela quebra do contrato; e, na dimensão
descritos são gerados pela interrupção remissiva cognitiva, há a modalização do espantar-se,
de uma emissividade em andamento. Em “Errare realizado no susto do Gerente Geral ao ler a
marcianum est”, o contrato fiduciário deveria mensagem e ser tomado pela cólera.

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No fazer emissivo, ocorre a aceleração do outra emissividade. Em “Errare marcianum est”,


tempo e a abertura do espaço. No primeiro os comentários finais do rabo de uma das
quadrinho de “Errare marcianum est”, os estafetas montarias faz a mesma rearticulação. Ao afirmar
galopam em suas montarias no plano geral do que “eu tenho ânus e ânus de experiência e lhe
cenário de Marte. Em princípio emissivos, os digo uma coisa: esse negócio não está me
mensageiros galopam em função da conjunção cheirando bem”, colocando em dúvida a
como o objeto de valor, pois, até então, não há competência do Gerente Geral e da comitiva na
indícios de que o contrato está para ser quebrado. realização da performance de independência, o
A comitiva, em estado de espera, também está rabo revela que a articulação remissivo vs.
de acordo com a emissividade, pois espera em emissivo, até então discursivizada, é toda ela
função do contrato e da certeza da conjunção remissiva.
com o objeto de valor. Durante a entrega e a Do mesmo modo que o excesso de querer-
leitura da mensagem, quando os valores ser faz com que o anseio do maquinista
remissivos passam a reger o fluxo discursivo, o comprometa a conjunção com o objeto de valor,
tempo é desacelerado e o espaço se fecha na há um excesso de querer-ser na intempestividade
parada da comitiva. Não há galopes nem planos da declaração. Vista em disjunção, a comitiva
gerais, todos conspiram no mesmo lugar. encolerizada se precipita em declarar um estado
No último quadrinho, a emissividade
de coisas que ela não tem certeza de poder
retorna na retomada do programa narrativo de
manter; longe do contra ataque bem elaborado,
base, pois o Gerente Geral e seus colaboradores
fruto de planejamentos, a investida do Gerente
assumem o fazer que antes fora delegado à
é o resultado da precipitação e da insensatez. O
administração geral da companhia. Acelera-se o
Gerente Geral, ao que tudo indica, não passa de
tempo inicial da demanda instaurada e o espaço
mais um paspalhão a liderar um exército de
tende a se abrir novamente.
Brancaleone, tão incompetente quanto seu líder.
A articulação da missividade é diferente
Além de manifestar plasticamente o
daquela de “Eu quero ser uma locomotiva”. Se
revestimento figurativo do plano de conteúdo,
na HQ anterior emissivo e remissivo estão
o plano de expressão cuida de manipular o ponto
intercalados um ao outro, em “Errare marcianum
de vista do enunciatário por meio do
est” o remissivo é intercalado e o emissivo,
enquadramento e de seu movimento, de
intercalante. Em princípio em regime emissivo,
quadrinho em quadrinho, no decorrer do texto.
o discurso passa para o regime remissivo durante
Primeiro em plano geral, a comitiva é enquadrada
a leitura da mensagem e as confabulações da
em planos específicos, que circulam ao redor do
comitiva, e retorna ao emissivo na declaração
de independência. Contudo, a complexificação mesmo lugar para, no final da HQ, retornar ao
do fazer missivo é a mesma da primeira HQ. plano geral na cena de independência.
Em “Eu quero ser uma locomotiva” o Tal movimento da expressão está
quadrinho final – em que não se sabe ao certo se correlacionado às regências do tempo e do espaço
o maquinista atropela ou não a moça amarrada dos fazeres remissivo e emissivo, que regem a
nos trilhos – sugere que a articulação remissivo discursivização do conteúdo. Quando há regência
vs. emissivo, regente do discurso até então, é do fazer emissivo, no início e no final da HQ, as
rearticulada, de modo que a relação remissivo cenas são mostradas em plano geral, em que o
vs. emissivo é toda ela remissiva em função de espaço se abre e o tempo de leitura é acelerado,

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Análise textual da história em quadrinhos

seja na cavalgada, seja na proclamação; mítica; a locomotiva é uma locomotiva na


contrariamente, quando há regência do fazer tematização prática e é uma metáfora do falo na
remissivo, as cenas são mostradas em planos tematização mítica.
específicos, no mesmo espaço fechado, promo- Na segunda HQ, a tematização prática
vendo a desaceleração do tempo de leitura, detido determina a leitura em que uma comitiva, tendo
em meio às crises e conspirações da comitiva. seus projetos frustrados, prepara uma revolução.
Todavia, na cena final, quando o comentário No entanto, que comitiva é essa? Fosse como
do rabo da montaria rearticula a missividade, há nas fábulas, cada animal escolhido carregaria suas
fechamento do espaço, restrito à ênfase de uma conotações sociais, entretanto, que figuras são
imagem pequena entre imagens maiores, e aquelas? Delirantes, há entre elas homens de um
desaceleração do tempo de leitura devido ao olho só, com três olhos, um relógio no lugar
detalhamento do espaço. Essa remissividade da dos olhos, antenas... As montarias são tão
expressão, em meio à emissividade da cena da delirantes como os humanos; o próprio planeta
proclamação, faz com que, do mesmo modo que Marte aparece com doze luas no lugar das duas
o conteúdo do comentário coloque em dúvida a determinadas pela astronomia.
emissividade do discurso da proclamação, sejam Afirmar que a comitiva do Gerente Geral é
colocadas em dúvida a grandiloquência de sua uma metonímia de qualquer investida política e
manifestação plástica e seu fazer emissivo. até de qualquer agrupamento humano parece
Correlacionadas, tanto a expressão plástica muito pouco. Se fosse apenas isso, por que
quanto o conteúdo semântico são determinados construir figuras tão desvairadas? Ao neutralizar
pelos mesmos processos de missividade. traços semânticos que definem o animal humano,
suas montarias e o planeta Marte, Luiz Gê faz
O delírio figurativo com que figuras míticas encenem a dramatização
prática com mais intensidade. Com tantas
Se em “Eu quero ser uma locomotiva” foi neutralizações semânticas no percurso figurativo,
possível determinar pelo menos três isotopias a tematização prática da revolta da comitiva fica
temáticas, isolando a leitura prática da mítica articulada de tal modo com a tematização mítica,
com precisão, em “Errare marcianum est” o recurso que se torna impossível separar uma da outra
figurativo utilizado complexifica a distinção com a mesma precisão que em “Eu quero ser uma
entre as isotopias prática e a mítica. locomotiva”.
Embora com figuratividade delirante, o No poema Salut , de Mallarmé, o que
delírio em “Eu quero ser uma locomotiva” é preserva as distinções entre as leituras prática
menos transtornado que em “Errare marcianum do brinde e a mítica da navegação é a presença
est”. Na primeira HQ, as neutralizações que de figuras pertinentes a só uma das duas
constroem a figuratividade incidem sobre as isotopias. Mesmo quando uma figura pode ser
determinações históricas e geográficas das lida com outros sentidos, ou há polissemia, ou
pessoas do discurso, mas são preservados os há conotação. Em “Errare marcianum est” toda a
conceitos de índio, soldado, locomotiva, etc. figuratividade se torna um desvario, toda ela é
Isso permite que metáforas e metonímias sejam uma alegoria da demência discursivizada.
realizadas: os índios, soldados, etc. são índios, Tudo se passa como se o delírio da revolta
soldados, etc. na tematização prática e são da comitiva fosse tamanho, que só figuras
metonímias dos outros homens na tematização delirantes poderiam encenar tal desvario tão

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adequadamente. Hiperbólicos, os monstrengos comerciais. Ironicamente, seu trabalho não vinga


de Marte desarticulam a racionalidade com suas porque é muito bom.
formas do mesmo modo que a revolta da comitiva A seu modo, Luiz Gê diz, como os poetas
encena sua proclamação com insanidade. Em concretistas, “salve-se quem souber”.
outras palavras, a loucura do fazer é a mesma
loucura do ser. A destruição do objeto de valor
Há, ainda, a possibilidade da tematização
metalingüística. O objeto de valor, como está O objeto de valor – em relação ao qual o
dito anteriormente, diz respeito a crédito e fazer emissivo está definido, e que o antissujeito
concessão de canais, que podem ser, pelos menos, coloca em disjunção com o Gerente Geral e a
canais hidroviários, canais de esgoto ou canais comitiva – não se sabe bem o que é. No percurso
de telecomunicações. figurativo, os canais podem ser hidroviários, de
Quando se trata de canais de esgoto ou de comunicação de massa, de modo
telecomunicações, o tema da HQ recai sobre si que a dúvida desencadeia três percursos temáticos,
mesma. As histórias em quadrinhos não são meios em que as tematizações prática e mítica se
de telecomunicação como a televisão ou o rádio, encontram complexificadas no delírio figurativo.
mas são meios de comunicação de massa como Todavia, os três percursos podem ser sobre-
os jornais, as revistas e muitos meios de determinados por um tema mais geral, no caso,
telecomunicações. Do mesmo modo que há uma o tema da comunicação, seja a das águas, dos
corporação, indigna de confiança, que administra dejetos ou da informação. Em uma abstração
e domina todos os canais de comunicação de semântica ainda mais genérica, devido ao objeto
Marte, há corporações que administram a circulação de valor estar vinculado ao tema da “indepen-
e a produção de HQs. Na leitura metalingüística, dência em Marte”, há o investimento de valores
portanto, o discurso de “Errare marcianum est” de liberdade no objeto, seja ele qual for, contrá-
se torna também uma proclamação da liberdade rios aos valores da opressão, figurativizados pela
de expressão. administração geral da companhia. Ainda com
Contudo, o comentário final do rabo da base na proclamação de independência, a
montaria ironiza os alcances desse fazer. Seriam referência explícita ao grito do Ipiranga
os quadrinistas tão transtornados quando a “Independência ou morte”, atribuído a Dom
comitiva do Gerente Geral, ou é o próprio Pedro I, reveste com valores de vida o mesmo
delírio gráfico que impede a realização da objeto, contrários aos valores de morte, também
performance? figurativizados pela administração geral.
Talvez as duas coisas. Além da citação da A construção do objeto de valor, portanto,
Proclamação da independência, pintada por Pedro se dá na realização da dúvida em torno dos três
Américo, e da menção ao empresário Silvio Santos, percursos temáticos, determinados pelo tema geral
dono do Sistema Brasileiro de Televisão, Luiz Gê da comunicação – por sua vez, determinado pelas
faz outras referências ao Brasil. Envolvido com a categorias semânticas liberdade vs. opressão e
produção de revistas em quadrinhos na década vida vs. morte, assim homologadas: a liberdade
de 80, o autor conheceu muito bem a desorga- recebe valores de vida, e a opressão, de morte.
nização política dos artistas brasileiros e a A dúvida, além de nivelar a comunicação
dificuldade de veicular trabalhos de qualidade, da informação à mesma dos dejetos, contribui
fora de padrões repetitivos, portanto, menos para o transtorno da comitiva. Lutar pela

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Análise textual da história em quadrinhos

liberdade de comunicação tem sua nobreza, mas No último quadrinho, surge um palhaço
qual o heroísmo em lutar por fezes, urina, partes maluco, que se revela o narrador da demanda e
do lixo? A dúvida desfaz os limites da certeza, exclama: “É isso aí, amigos! E não esqueçam de
colocando em questão os valores de liberdade e perguntar ao seu freguês do lado qual foi o
vida que orientam a comitiva. Não se trata de resultado do FUTBOIL!”. O palhaço, como o rabo
metáfora, em que a comunicação de massa é tão da montaria, além de rearticular os valores
ruim como se fosse lixo, mas de confusão: a missivos – o que é uma forma de colocar em
Rotorotter, outra referência explícita no texto, é questão a valorização do objeto – promove sua
uma companhia que cuida da limpeza de privadas destruição ao menosprezar o fenômeno, já que
entupidas, que cede concessões e créditos a Sílvio FUTBOIL significa “fenomenozinho urbano
Santos, famoso por veicular programas de tipicamente brasileiro observado in loco”.
auditório da pior qualidade possível. Do mesmo modo que os meninos em
Estrategicamente, na medida em que “FUTBOIL”, o Gerente Geral e sua comitiva lutam,
constrói o objeto de valor pela articulação entre ironicamente, pelo fracasso.
valores semânticos, percursos temáticos e Apesar disso, na tematização metalingüís-
figurativos, Luiz Gê o destrói no delírio e na tica, em que a figuratividade e a textualização
confusão arquitetadas no texto da HQ. dizem respeito à construção da própria HQ
Como em “Eu quero ser uma locomotiva”, enquanto veículo de comunicação e de sua
em que o maquinista está no limiar de atropelar circulação social, se a engenhosidade do autor
a mulher amarrada nos trilhos, faz parte do estilo dificulta sua compreensão – indo ao encontro
do autor destruir o objeto de valor. Em do fracasso do mesmo modo que os meninos e a
“FUTBOIL”, Luiz Gê conta a demanda de um comitiva – vai de encontro à banalidade de
grupo de meninos em busca de um balão caindo informações, como as propagadas por Silvio
do céu; no limiar de conseguir a conjunção com Santos e outros camelôs.
o balão, a disputa é tamanha, que o bando Nesse último movimento, a proclamação de
termina por rasgá-lo em pedaços. “Errarem marcianum est” é vitoriosa.

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4. A ARTICULAÇÃO DA REALIDADE

Herdeira do pensamento de Saussure, a do, gerando o efeito de sentido de adequação e


semiótica concebe o sentido como construção e objetividade entre o significante e o significado.
não como referência a “coisas” ou “fatos” do A presença de duas ou mais isotopias,
mundo suposto real. A realidade, desse ponto contrariamente, faz com que outros significados
de vista, é o resultado de visões de mundo, que sejam relacionados aos mesmos signos, gerando
determinam modos de se referir. A objetividade, efeitos de sentido conotativos, como metáforas
portanto, é um efeito de sentido e não a maneira e metonímias.
concreta e impessoal de significar as “coisas do Desse modo, a linguagem funciona nos
mundo”. limites entre efeitos de denotação e conotação,
Tradicionalmente, distingue-se o sentido gerando dois tipos básicos de articulação da
dos signos em denotativos e conotativos. Os realidade: há discursos referenciais, predominan-
primeiros são ditos objetivos e adequados, temente denotativos; e discursos que podem ser
reservando-se para os segundos as características chamados míticos, com predomínio da
de subjetividade e de desvios de uso. Denotação conotação.
e conotação, contudo, não são questões lexicais,
mas discursivas, visto que é no discurso, em A construção de mitos e de realidades
arranjos entre temas e figuras, que se determina
o sentido assumido pelas palavras. Nos discursos referenciais, a linguagem é
A palavra “proa”, em tratados de navega- enfatizada em sua função representativa, em que
ção, significa somente a parte anterior do navio, cabe a ela o papel de construir efeitos de sentido
não significa também a cabeceira da mesa, como de realidade. Nessa função, a linguagem parece
no soneto de Mallarmé. São as articulações entre refletir o suposto “mundo das coisas reais”.
as isotopias do banquete e da navegação que Contrariamente, nos discursos míticos, a lingua-
garantem a metáfora da palavra “proa” no poema gem é enfatizada em sua função construtiva, em
e é apenas a presença da isotopia da navegação que cabe a ela o papel de construir visões de
que garante a monossemia de proa em tratados mundo. Nessa função, a linguagem se denuncia
a respeito do tema. Assim, a conotação do como formadora de realidades e deixa de parecer
significado de “proa” como cabeceira da mesa e apenas um reflexo do “mundo”.
sua denotação são efeitos de sentido. Aplicando essas duas funções contrárias da
Quando há apenas uma isotopia temática, linguagem à construção de romances, é possível
os signos tendem a assumir apenas um significa- sugerir uma tipologia de como a prosa trata as
Análise textual da história em quadrinhos

relações entre a ficção e a realidade construídas Contudo, a qualquer momento, pode negar a
por meio dela. adequação construída entre a linguagem e a
Quando o autor se torna personagem de si representação do mundo e introduzir incoerências
mesmo, fazendo com que haja interdiscur- nessa relação que orientam o discurso rumo ao
sividade entre suas obras e os discursos a respeito absurdo. Dentre os prosadores da literatura
de sua vida, criam-se efeitos de realidade em que brasileira contemporânea, Lourenço Mutarelli
tudo se passa como se a personagem e o autor utiliza esse processo nos três romances escritos
fossem as mesmas pessoas. Na literatura brasileira por ele até então. Tanto em O cheiro do ralo,
contemporânea, o melhor exemplo é o escritor quanto em O natimorto e Jesus Kid , as
Luiz Alberto Mendes. Ex-presidiário, condenado personagens iniciam suas peripécias em meio à
por roubo e assassinato, Luiz Alberto narra a suposta realidade tomada como verdadeira,
história de sua vida de crimes e de detento. Além todavia, em poucos capítulos, já foram
do predomínio da denotação, ele narra no que introduzidas passagens capazes de negar esse
se convenciona chamar sequência linear dos ponto de vista. Em O natimorto, a partir dos
acontecimentos, em que se contam os fatos em avisos e fotografias de que fumar faz mal à saúde,
ordem cronológica. O resultado desses recursos impressos em maços de cigarro, o narrador
semióticos faz com que, mesmo sendo produtos elabora um novo tarô, com o qual passa a nortear
do discurso e da linguagem, seus textos se sua vida.
confundam com sua vida “real”. Na negação da função construtiva da
Joca Reiners Terron, ao contrário, não faz linguagem, contrariamente, o autor parte do
em seus escritos essa relação entre vida e obra. universo dito fictício para introduzir nele
Em Não há nada lá, seu primeiro romance, são elementos capazes de negar seu estatuto de
contadas as peripécias dos escritores William invenção e mito. São os recursos literários que,
Burroughs, Raymond Russel, Torquato Neto, basicamente, Marcelo Mirisola e Glauco Mattoso
Isidore Ducasse, Arthur Rimbaud, Alister Crowley utilizam: Marcelo Mirisola, em muitas passagens
e Fernando Pessoa em torno de um cubo de d’O Azul do filho morto, parte da desconstrução
quatro dimensões e da profecia não revelada da de mitos da televisão brasileira da década de 70;
Virgem de Fátima. A seu modo, Joca Terron faz e Glauco Mattoso, em A planta da donzela, parte
seu delírio figurativo enfatizando a função do romance A pata da gazela, de José de Alencar,
construtiva da linguagem, criando um mundo e rearticula suas personagens em clubes
mítico dado a existir exclusivamente nas páginas sadomasoquistas, cruzando passagens de Alencar
de seu romance. com as de antropólogos e historiadores.
Há, no entanto, mais dois processos de uso Ao estudar o discurso publicitário, J. M.
da linguagem. Se luiz Alberto Mendes afirma a Floch (Floch, 1995: 183-226) parte da
função representativa e Joca Reiners Terron, a articulação entre as afirmações das funções
função construtiva, é possível, ainda, negar as representativa e construtiva e de suas respectivas
duas funções, totalizando quatro regimes de negações para determinar quatro tipos de regimes
articulação da realidade. de publicidade. Quando há afirmação da função
Um romancista pode iniciar suas histórias representativa, Floch chama publicidade referen-
de modo semelhante ao regime adotado por Luiz cial; quando há afirmação da função construtiva,
Alberto Mendes e articular a realidade de acordo chama publicidade mítica. A negação da função
com a função representativa da linguagem. representativa é chamada publicidade oblíqua;

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

a negação da função construtiva é chamada com a engenhosidade retórica. Essa engenho-


publicidade substancial. sidade, por sua vez, pode se realizar na comple-
A articulação da realidade, seja no discurso xificação do uso dos regimes na construção do
da literatura seja no discurso publicitário, é texto.
problematizada nos mesmos princípios semióti-
cos. Portanto, nada impede que a terminologia A articulação da realidade na história
de Floch seja empregada nos demais tipos de em quadrinhos
discurso, além do estudado por ele.
Os delírios figurativos analisados em “Eu
função representativa função construtiva quero ser uma locomotiva” e “Errare marcianum
discurso referencial discurso mítico
est” sugerem, na obra em quadrinhos de Luis Gê,
que o autor investe na função construtiva da
linguagem, realizando, portanto, discursos
míticos.
negação da função construtiva negação da função representativa
discurso substancial discurso oblíquo
Entretanto, embora haja investimento no
regime mítico de articulação da realidade, Luis
Gê complexifica tal procedimento ao transitar
Os quatro tipos discursivos de articulação pelos demais regimes. A HQ “Quem matou Papai
da realidade são regimes de realização do Noel?” é um dos melhores exemplos de sua
discurso disponíveis no aparato formal da engenhosidade retórica na utilização desse
enunciação, que podem ser utilizados de acordo recurso semiótico.

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O percurso figurativo, enquanto patamar Em outras palavras, os modos de representar


mais concreto e específico do percurso gerativo as faces das madonas de Rafael, das majas de
do sentido, é o mais sensível à articulação da Goya ou das senhoritas de Avignon, de Picasso,
realidade nos quatro regimes discursivos propostos. é antes uma questão de processo semiótico de
Uma figuratividade baseada no consenso a organização de elementos plásticos, que de
respeito do “mundo” suposto real se torna mais desenhar “conforme a realidade das coisas”. Isso
propícia para o regime referencial do discurso. significa que cada estilo de época e cada estilo
Os efeitos de realidade, porém, são resultado de individual estabelece os critérios do que é visto
consensos sociossemióticos, pois cada cultura ou imaginado como adequado ao real.
determina para si o que é realidade ou não. Desse Embora caricaturas, todas as personagens
modo, cada sistema semiótico cria dispositivos de “Quem matou Papai Noel?”, enquanto figuras
figurativos para simular a relação direta com a do discurso, podem ser vistas como “adequadas
realidade construída, em busca de apagar o papel ao real”; menos uma, o Cara de Bola.
construtivo da linguagem e a favor de efeitos de Recapitulando o que está dito no capítulo
sentido representativos. anterior, o percurso figurativo, em semióticas
O que há de comum entre o som do violino plásticas, não deve ser confundido com as
e o canto dos pássaros? N’As quatro estações, de imagens que o significam manifestadas no texto.
Vivaldi, no sistema semiótico da música, há um Vale lembrar, as figuras são, teoricamente, o
discurso musical que se encarrega de estabelecer último patamar do percurso gerativo do sentido,
relações entre pássaros e violinos, que permanece cujos domínios de aplicação dizem respeito ao
no texto do concerto e determina sua signifi- plano de conteúdo. As figuras são os significados
cação. Do mesmo modo, em sua VI Sinfonia, dos signos, que se manifestam nos significantes
pastoral , Beethoven relaciona tímpanos e próprios do sistema semiótico utilizado na
tambores ao som dos trovões. Sem dúvida, nas significação do texto. Se o sistema semiótico é
duas peças, há interferências dos respectivos verbal, os significantes são de ordem fonológica;
programas e títulos das obras na construção da se é plástico, os significantes são imagens
figuratividade, visto que, em muitas peças visuais. Se nos sistemas verbais o percurso
musicais, faz parte da geração do sentido a figurativo é textualizado em palavras, na maioria
relação entre a semiótica musical e a semiótica das histórias em quadrinhos há articulação de
verbal que a ancora. palavras e imagens para expressar a figuratividade
Cada sistema semiótico, portanto, do conteúdo.
estabelece, no discurso, modos de dizer o real. Em “Quem matou Papai Noel?”, as pessoas
Nas semióticas plásticas, a cultura do ocidente do discurso são desenhadas para criar a
se encarrega de dar forma a modos de se referir expectativa de função representativa da
ao que é visto por meio de regras como a linguagem devido à estabilização de um modo
perspectiva, as relações entre planos de específico de desenhá-las; as personagens são
construção da imagem, os limites dos traços na pessoas comuns, não são os monstrengos de
representação das “coisas do mundo”, etc. Assim, Marte, de “Errare marcianum est”, nem há
as vanguardas modernas, antes de reformularem neutralizações de coordenadas históricas e
a “representação da realidade”, reformulam os geográficas, como em “Eu quero ser uma
princípios semióticos de construção e realização locomotiva”. O Cara de Bola, no entanto, vai de
das artes plásticas. encontro a essa estabilização, visto que é a única

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Análise textual da história em quadrinhos

pessoa cuja cabeça é desenhada diferentemente, mítica, mas seu temperamento sórdido e os caças
próxima dos delírios das demais HQs. garantem a negação substancial.
Enquanto a imagem do Cara de Bola coloca Em síntese, os movimentos de articulação
em questão a função representativa da lingua- da realidade em “Quem matou Papai Noel?” estão
gem, os desenhos das pessoas “comuns”, inclusive discursivizados da seguinte maneira:
do Papai Noel, colocam em questão a função
construtiva. O primeiro quadrinho, em que o Papai Noel na festa de carnaval – mítico ↔ substancial
regime
Papai Noel surge embriagado, no meio da orgia, Sonho do Seu Arlindo – referencial
A história do Cara de Bola – referencial ↔ oblíquo mítico
parece investido do regime mítico de articulação
Papai Noel e os aviões voando no céu – mítico ↔ substancial
do real; mas, como se trata de um baile de
Carnaval, a definição do Papai Noel oscila entre
a da personagem mitológica das festas de Natal Essa articulação da realidade gera, pelo
e a de um homem comum, bêbado e fantasiado. menos, três efeitos de sentido: dois deles dizem
Nesse processo, o investimento mítico é negado respeito à escolha dos valores que são utilizados
no regime substancial de articulação da para negar ora a função representativa, ora a
realidade. função mítica da linguagem; e o último diz
No desenvolvimento da narrativa, tanto as respeito à totalidade da HQ.
farras do Papai Noel quanto a decepção das Recapitulando, a realidade, tanto no regime
crianças se revelam pesadelos, e o regime referencial quanto no regime mítico, é formada
referencial da articulação da realidade volta a em arranjos entre percursos temáticos e
reger o cotidiano do pai das crianças. Esse regime figurativos. O regime referencial é realizado com
determina o discurso até o primeiro aparecimento valores próprios da denotação, investidos na
do Cara de Bola, quando, no regime oblíquo, é figurativização da cidade e das personagens; e o
negado o regime referencial. regime mítico, com valores conotativos,
Do aparecimento do Cara de Bola até sua investidos nas figuras do Papai Noel e do Cara de
morte, o discurso segue em regime oblíquo, Bola. Para negar ambos os regimes, é necessário
sustentado entre a representatividade referencial, que valores oblíquos neguem os valores
figurativizada pela ação cotidiana e as demais representativos do regime referencial e que
personagens, e a construção mítica da figura do valores substanciais neguem os valores
homem com cabeça estranha. construtivos do regime mítico.
Por fim, as últimas cenas são reservadas para Dentre os romancistas da literatura
o retorno do “verdadeiro” Papai Noel, que corta brasileira contemporânea, embora Glauco
os céus em seu trenó de renas. Nesse momento Mattoso e Marcelo Mirisola invistam no regime
da narrativa, o regime oblíquo parece trocado substancial, os valores substanciais escolhidos
pelo regime mítico e a linguagem se realiza como para negar os valores míticos são diferentes.
construção. Contudo, não se trata do Papai Noel Enquanto Glauco Mattoso, n’A planta da donzela,
gentil e bondoso das festas de Natal, trata-se de expõe a sexualidade perversa das personagens
um velho furioso, que chicoteia impiedosamente românticas de José de Alencar, Marcelo Mirisola
suas renas, além de viajar na companhia de aviões desmonta os mitos da televisão brasileira das
de guerra. Embora pareça mítico, o regime décadas de 70 e 80 ora perguntando por onde
discursivizado se dá na transformação do regime andará esta ou aquela pessoa famosa, há muito
mítico no substancial: a figura do Papai Noel é tempo desaparecida dos meios de comunicação

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

– como o mito sexual Kátia D’Angelo – ora ao invés de instaurar uma realidade das “coisas”
insinuando o quanto a imagem pública destoa na humanização da lenda, faz com que o Papai
da suposta “pessoa” real, quando afirma que o Noel funcione em outra mitologia, aquela
playboy Pedrinho Agnaga teve um filho tão construída em torno dos valores do capital. Não
debilóide como o próprio Mirisola. se trata, por isso, de apontar uma realidade
Luiz Gê, por sua vez, não se vale com tanta objetiva, mas ideológica.
ênfase da sexualidade perversa nem de contrates Na colocação em discurso, as cenas em que
entre as imagens públicas e privadas de suas o regime substancial determina a articulação da
personagens. Em “Quem matou Papai Noel?”, o realidade estão dispostas no início e no final do
investimento no regime substancial de texto, intercalando a história do Cara de Bola.
articulação da realidade se dá nas cenas em que Tudo se passa como se a lenda encontrasse um
aparece o “verdadeiro” Papai Noel, primeiro no paralelo humano na vida de seu Nicolau – vulgo
baile de Carnaval, depois voando em seu trenó Cara de Bola – que, a seu modo, também é um
de renas acompanhado dos caças. Uma vez Papai Noel. Intercalantes, as cenas míticas
figurativizado o mito, Luiz Gê o nega por meio substancializadas seriam o equivalente mítico da
do antagonismo moral: se o lendário Papai Noel realidade prática realizada na história do Cara
é bom e justo, seu Papai Noel é um velho de Bola.
bandalho e irresponsável, que troca a distribuição Essa realidade prática, que parece ser
dos presentes na noite de Natal pelo Carnaval. afirmada no regime referencial, é na verdade
Além do mais, não é o caso de presentear com negada por investimentos discursivos no regime
justiça, mas de movimentar o mercado oblíquo.
consumidor; ao viajar pelos céus, na companhia Retomando exemplos da literatura
de aviões de guerra – que descem todo ano rumo brasileira, está dito que Lourenço Mutarelli
ao Sul para “impiedosamente encher o saco” – o também investe no regime oblíquo na construção
Papai Noel se torna mais um agente do de seus romances. Em princípio, os três romances
imperialismo econômico e militar das potências de Mutarelli O cheiro do ralo, O natimorto e Jesus
do Hemisfério Norte contra os países subde- Kid começam em função referencial, a realidade
senvolvidos do terceiro mundo. é construída neles em denotações e ações
Em termos retóricos, Luiz Gê se vale de uma cotidianas. Todavia, paulatinamente, essa
diáfora; ele utiliza um mesmo significante articulação é negada na medida que o autor
correlacionado com o significado contrário do introduz o inusitado capaz de colocar em questão
habitual. Repetir o mesmo signo dá forma a a realidade e denunciá-la como construção. Em
anáforas, contudo, pode-se repetir o mesmo O cheiro do ralo, o dono da loja de penhores vê
significante, mas com outros significados, ao seus problemas com o ralo do banheiro e o esgoto
longo da argumentação. O significante do Papai tornarem-se cada vez mais estranhos e o que é
Noel é como o do “verdadeiro”, seu significado, tomado como fato comum, torna-se cada vez
porém, está contrariado pelas ações e paixões mais absurdo.
da personagem. Em Mutarelli, os valores capazes de negar a
Em sua diáfora, Luiz Gê humaniza o Papai representação referencial da realidade são de
Noel, entretanto, humanizá-lo é torná-lo ordem psicótica, suas personagens são tomadas
desumano, semeador de guerras, injustiças e por distúrbios emocionais. Nessas crises, a
pesadelos. Ainda por meio da diáfora, Luiz Gê, realidade é redimensionada na loucura que,

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Análise textual da história em quadrinhos

enquanto sistema organizado de valores, é a figura capaz de negar o regime de articulação


desarticula a realidade em outras visões de mundo. da realidade em que atua: o Papai Noel deturpado
Assim, em O natimorto , a lógica do tarô nega o regime mítico; o “Cara de Bola” nega o
escondido nos avisos dos maços de cigarro enca- regime referencial. Ainda em paralelo, enquanto
minha a desconstrução da realidade com outra o “Cara de Bola” insere a comédia da tragédia, o
construção. O regime oblíquo, portanto, está Papai Noel deturpado faz o contrário, insere a
articulado não para inserir mitos na “realidade”, tragédia na comédia.
mas para mostrar que a “realidade” é uma forma Analisados os efeitos de sentido que dizem
de mitologia. respeito à escolha dos valores que são utilizados
Luiz Gê, contrariamente, investe na comédia para negar as funções representativa e mítica da
para transformar sua realidade em mito. Com linguagem, resta analisar o efeito que diz
metáforas – pois uma cara como bola serve para respeito à totalidade da HQ.
ser chutada – Luiz Gê insere o absurdo no
cotidiano por meio do riso e da ironia. O “Cara
de Bola”, ora confundido com o verdadeiro Papai O mito enquanto linguagem
Noel por falsos Papais Noéis, ora apresentado
como rígido defensor da lei, a ponto de impedir Colocando em contraste a realidade mítica
a fuga de um ladrão de rua, não passa de mais e a realidade prática, Luiz Gê constrói outro mito.
um falso Noel, não passa de um empregado menor Ao propor o mito como linguagem, Lévi-
em lojas de departamentos. Strauss (Lévi-Strauss, 1985: 237-265) determina
O “Cara de Bola”, entre a covardia e a a estrutura capaz de explicar como essa semiótica
indignação, é um homem comum, contudo, sua funciona. Seu exemplo é o mito de Édipo. Para o
cara estranha o torna singular. Mas que singula- antropólogo, não se trata do Édipo de Sófocles
ridade é essa? Metaforizado com a bola no delírio nem de um suposto mito original do herói
figurativo, uma cara para ser chutada é uma cara tebano. Trata-se, para ele, de uma estrutura
comum. Em sua engenhosidade retórica, Luiz Gê mítica fundamental, que determina o mito de
cria uma figura que é tão estranha quanto comum, Édipo, seja ele manifestado na tragédia grega
por isso é tão estranha. ou em suas variantes – inclusive a variante do
Por que o “Cara de Bola” merece tanto Édipo de Freud.
destaque? Enquanto uma realização no mundo Para Lévi-Strauss, não apenas Édipo está
construído como real, ele manifesta a lenda subordinado a essa estrutura fundamental, mas
enviesada do Papai Noel verdadeiro e mal toda a genealogia da qual ele faz parte. Desse
intencionado, que paira miticamente sobre a modo, é possível estabelecer regularidades no
humanidade. Se no mundo mítico o Papai Noel é mito: os heróis ou subestimam, ou superestimam
substancializado por ações e paixões contrárias os laços familiares; enfrentam monstros ctônicos;
às do lendário Papai Noel, quando esse novo mito têm dificuldades em andar corretamente.
se manifesta no mundo cotidiano em que o “Cara Quando Cadmo – que gerou Polidoro, que
de Bola” se passa por Papai Noel, sua realidade é gerou Lábdaco, que gerou Laio, que gerou Édipo
tornada oblíqua no mito do homem comum, – sai em busca de sua irmã Europa; quando Édipo
inserido na suposta realidade que o tornaria assim. – que gerou Antígona, Polinice e Etéocles – casa-
Colocados em paralelo, cada Papai Noel, se com sua mãe Jocasta; e quando Antígona
seja o da lenda deturpada, seja o “Cara de Bola”, enterra o irmão Polinice, há superestimação dos

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

laços familiares. Contrariamente, quando os realidade mítica na realidade prática e as


Spartoi, irmãos entre si, matam-se uns aos outros; histórias da família, ao contrário, inserem a
quando Édipo mata seu pai Laio; e quando realidade prática na realidade mítica.
Etéocles mata o irmão Polinice, há subestimação Em “Quem matou Papai Noel?”, Luiz Gê
dos laços familiares. constrói uma correlação semelhante àquela que
No que diz respeito aos monstros ctônicos, dá forma aos mitos. Enquanto a vida cotidiana e
Cadmo mata um dragão e Édipo imola a Esfinge; a história do “Cara de Bola” seguem seu percurso
e quanto às dificuldades em andar, Lábdaco figurativo, revestindo a isotopia prática do
significa “coxo”, Laio significa “torto”, e Édipo discurso, a lenda do Papai Noel corrompido
significa “pés inchados”. Para o antropólogo, reveste a isotopia mítica. Complexificadas na HQ,
vencer os monstros ctônicos está relacionado à uma isotopia determina a outra por meio da
negação do princípio de que os homens são figura do Papai Noel, seja o corrompido, seja o
autóctones, pois matar os monstros quer dizer “Cara de Bola”.
que os homens não nascem da Terra, contraindo
com ela uma relação de alteridade. O fazer missivo e a construção de
Contrariamente, em mitologia, os homens mitologias
nascidos da Terra têm dificuldades em andar,
significando, com isso, uma relação de identidade No fazer missivo articulado por Luiz Gê é
em que Terra e homens são os mesmos. Assim, possível confirmar outra relação entre seu
enquanto se manifesta no mito a possibilidade discurso e aquele dos mitos.
de vencer a autoctonia, manifesta-se também a Em “Quem matou Papai Noel?”, o fazer
impossibilidade, visto que os matadores de emissivo que movimenta os sujeitos em busca
monstros são coxos. do objeto de valor gira em torno de valores de
Em sua análise, Lévi-Strauss conclui que, vida, especificados na tematização do Natal e
no mito de Édipo, a superestimação dos laços realizados nos presentes da festa. Contudo, do
familiares está para a subestimação deles, na mesmo modo que em “Errare marcianum est”, a
mesma medida em que o esforço para vencer a performance é frustrada no rompimento
autoctonia está para a impossibilidade de sistemático de contratos fiduciários. O patrão
consegui-lo. de Arlindo não lhe dá o aumento esperado e
Semiotizando Lévi-Strauss, trata-se de Arlindo tem pouco dinheiro para presentear os
correlacionar uma isotopia prática e uma mítica filhos, que podem ficar sem presentes na noite
em busca da complexificação de uma contradição de Natal, conforme os pesadelos do pai. Arlindo
baseada na relação semântica identidade vs. não garante o aumento do “Cara de Bola”, que
alteridade. A genealogia da qual Édipo faz parte nega presentes tanto a outro Papai Noel de rua,
reveste a isotopia prática em função da realidade quanto às crianças que é obrigado a atender na
social e política das personagens do mito, loja. Os resultados são acessos de cólera em
enquanto as questões da autoctonia revestem a cascata, cada um se vinga como pode na pessoa
isotopia mítica que busca solucionar a origem errada.
do homem. Complexificadas no discurso do mito, Visto que o patrão de Arlindo vai de
uma isotopia determina a outra em função da encontro a ele, que vai de encontro ao “Cara de
correlação estabelecida – uma vez que os Bola”, que vai de encontro às crianças, o fazer
monstros e as dificuldades em andar inserem a remissivo está realizado por uma seqüência de

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Análise textual da história em quadrinhos

antissujeitos, impedidos de cumprir o contrato O mito, portanto, tem caráter remissivo.


fiduciário pelos mesmos motivos: não há dinheiro Toda mitologia, a seu modo, funciona como o
suficiente para tanto devido a uma crise fazer remissivo, visto que o mito está em função
econômica. da presença constante de sua estrutura, determi-
O antissujeito abstrato crise econômica está nando a narrativa sempre da mesma maneira. Em
figurativizado na diáfora do Papai Noel Édipo, é devido à estrutura do mito que a dinastia
“verdadeiro” que, no não cumprimento de seu tebana está sempre subestimando e superesti-
papel lendário, fere também o contrato fiduciário mando laços familiares em suas gerações.
a respeito das crenças nas ações e paixões Em “Quem matou Papai Noel?”, o “Cara de
esperadas. Em sua dimensão mítica, a personagem Bola” faz parte de um elo de rompimentos de
corrompida reafirma o mito da circulação de renda contratos fiduciários em que há subestimação
baseado no imperialismo econômico, que parece dos laços trabalhistas, do mesmo modo que faz
articulado em torno da livre economia do parte de outro em que há superestimação desses
mercado capitalista, mas na verdade depende de laços na busca do objeto de valor, figurativizado
força militar para se impor. nos presentes da festa de Natal. Essa relação está
Ao mesmo tempo, mostra-se a inversão do articulada com a lenda do Papai Noel diafórico,
sentido original do rito dos presentes da festa em que, justamente por meio da diáfora, ao
de Natal. Presentear na noite de Natal teria a
mesmo tempo em que há a possibilidade de
função de relembrar o nascimento de Cristo e
afirmação da figura do Papai Noel bom e
simular o ouro, o incenso e a mirra dados pelos
verdadeiro, é impossível fazê-lo sem mostrar, no
três reis magos. O próprio narrador da história
imperialismo econômico do mercado moderno,
denuncia essa inversão em sua fala, logo antes
o lado corrupto que sustenta o mito do Natal e
da apresentação do título: “A data máxima da
seus presentes.
cristandade comemora o nascimento do nosso
Em sua vida prática, o “Cara de Bola” vive
Pai, o Pai de todos, Papai Noel!”. Papai Noel está
esse mito moderno sem conseguir, remissiva-
no lugar de Papai do Céu e trata-se do Papai Noel
mente, escapar dele. Enquanto parte do elo de
corrompido.
contratos frustrados e da supervalorização dos
Essa dimensão mítica, complexificada na
presentes, o “Cara de Bola” vive também uma
diáfora, faz do mito político-econômico-reli-
crise de identidade vs. alteridade, mas diferente
gioso o núcleo do fazer remissivo que determina
da crise edipiana a respeito da autoctonia.
a dimensão pragmática do discurso, figura-
Embora pareça diferente de todos, pois ele
tivizada na vida do “Cara de Bola”.
figurativiza a cara de bola para ser chutada,
Como se dá a articulação da missividade
no mito de Édipo, especificamente no que diz todos sofrem o mesmo que ele nas tramas dos
respeito à articulação entre suas isotopias mítica contratos, inclusive as crianças. Na totalidade
e prática? Embora na dimensão prática a história da HQ, todos são como se tivessem a cara de
da dinastia tebana se desenvolva emissivamente bola, todos são chutados como seu Nicolau.
– cada um gera seus filhos e netos – a dimensão Novamente, a estrutura emissivo vs.
mítica cuida, a todo momento, de remeter a remissivo, figurativizada respectivamente na vida
emissividade prática à articulação mítica entre prática e na vida mítica das personagens da HQ,
os laços familiares e a autoctonia do homem. funciona como um fazer remissivo complexo,
como nas demais obras de Luiz Gê. Quais são,

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

nesse caso, os valores emissivos que se articulam de Luiz Gê, como em “Quem matou Papai Noel?”
com essa remissividade complexa? e “Errare marcianum est”. Em sua Ópera do
A temática dos rompimentos de contratos malandro, Chico Buarque de Hollanda, na canção
fiduciários em cascata enquanto explicação da de abertura O malandro, utiliza o mesmo tema
economia brasileira não aparece apenas nos textos em outros percursos figurativos:

O malandro O usineiro O usineiro


Na dureza Nessa luta Faz barulho
Senta à mesa Grita “puta que pariu” Com orgulho
Do café Não é idiota De produtor
Bebe um gole Trunca a nota Mas a sua
De cachaça Lesa o Banco Raiva cega
Acha graça Do Brasil Descarrega
E dá no pé No carregador
Nosso banco
O garçom Tá cotado Este chega
No prejuízo No mercado Pro galego
Sem sorriso Exterior Nega arrego
Sem freguês Então taxa Cobra mais
De passagem A cachaça A cachaça
Pela caixa A um preço Tá de graça
Dá uma baixa Assustador Mas o frete
No português Como é que faz?
Mas os ianques
O galego Com seus tanques O galego
Acha estranho Têm bem mais Tá apertado
Que o seu ganho O que fazer Pro seu lado
Tá um horror E proíbem Não tá bom
Pega o lápis Os soldados Então deixa
Soma os canos Aliados Congelada
Passa os danos De beber A mesada
Pro distribuidor Do garçom
A cachaça
Mas o frete Tá parada O garçom vê
Vê que ao todo Rejeitada Um malandro
Há engodo No barril Sai gritando
Nos papéis O alambique Pega ladrão
E pra cima Tem chilique E o malandro
Do alambique Contra o Banco Autuado
Dá um trambique Do Brasil E julgado e condenado culpado
De cem mil réis Pela situação

85
Análise textual da história em quadrinhos

A circulação econômica de bens de consu- mito que orienta o discurso da HQ? De acordo
mo no Brasil, metonimizada pela economia da com a narrativa de “Quem matou Papai Noel?”,
cachaça, é baseada na quebra de contratos só aquele que não participa das quebras dos
fiduciários e de soluções que se realizam na forma contratos poderia romper o mito que os determina.
de roubos e trambiques. No círculo vicioso da Em sua versão dos mitos sociais, o “Cara de
falcatrua, o único culpado é o malandro, que Bola” figurativiza o otário, que tem um papel
também é o único que não participa dele, uma temático bem definido no imaginário brasileiro.
vez que não trabalha para seu funcionamento. Para ilustrar tal papel e sua contraposição ao do
Em “Quem matou Papai Noel?”, dá-se o malandro, basta lembrar a canção de Caetano
mesmo: o grande culpado, o imperialismo econô- Veloso Festa imodesta – que cita a canção O
mico, movimenta o infortúnio das personagens;
cinema falado, de Noel Rosa – quando diz que
o único culpado é um ladrão de rua, denunciado
tudo aquilo que o malandro pronuncia, o otário
às autoridades pelo “Cara de Bola”, que, como o
silencia. De modo mais contundente, na HQ de
garçom, denuncia o malandro da canção.
Luiz Gê o malandro, em seu fazer homicida,
O malandro de Luiz Gê, além de escapar da
silencia o otário Nicolau e vai de encontro a tudo
polícia, no final da HQ mata o “Cara de Bola”.
aquilo que ele representa.
Seria esse o valor emissivo capaz de romper o

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5. HISTÓRIA EM QUADRINHOS E MÚSICA

Em semiótica, costuma-se distinguir os semiótica verbal explica a semiótica plástica,


sistemas de significação em verbais e não-verbais. reduzindo sua polissemia; ou a semiótica verbal
Os sistemas verbais são as línguas naturais; os complementa a semiótica plástica em função de
não-verbais podem ser sistemas semióticos um sintagma mais geral, que as organiza.
plásticos, musicais, gustativos, olfativos, tácteis, A imagem visual, para Barthes, tem
etc. Além deles, há ainda os sistemas sincréticos, significação polissêmica, de modo que a
quando dois ou mais dos sistemas anteriores são semiótica verbal, ao explicá-la a título de
articulados no mesmo plano de expressão. legenda, reduz sua polissemia. Em termos
A história em quadrinhos, na medida em semióticos, a figuratividade da semiótica plástica
que se manifesta na semiótica verbal e na é identificada à figuratividade da semiótica
semiótica plástica, é um sistema de significação verbal, o que faz com que esta explique o
sincrético, que constitui, por si só, uma lingua- significado daquela. A essa função do verbal em
gem específica, capaz de definir um sistema relação ao plástico, Barthes chama ancoragem.
semiótico próprio.
Em fotografias de jornais e títulos de fotos
Desenvolvida em uma tradição com mais
artísticas ou esculturas, a semiótica verbal ancora
de um século de existência, a HQ se tornou uma
a semiótica plástica, determinando seu processo
linguagem com semiótica particular e desenvolve
de significação.
sua história enquanto objeto de arte. Desse modo,
Contudo, a semiótica verbal pode, ao invés
a semiótica da HQ pode ser articulada com outras
de explicar a semiótica plástica por meio da
semióticas.
redundância figurativa, partilhar com ela a
Em 1984, Arrigo Barnabé compôs Tubarões
expressão do mesmo percurso figurativo. Nas HQs,
voadores a partir de uma das primeiras HQs de
uma vez formada a figuratividade no plano de
Luiz Gê. No texto da composição, Luiz Gê, ao
conteúdo, seus elementos podem se manifestar
invés de aparecer como letrista, o que daria forma
à semiótica da canção, apresenta uma história em combinações de imagens plásticas e textos
em quadrinhos, para sincretizar HQ e música no verbais. Nessas combinações, as figuras do plano
mesmo plano de expressão. de conteúdo se manifestam ora em imagens, ora
De acordo com a “Retórica da imagem” em palavras, em função do sintagma mais geral,
(Barthes, 1984: 31-34), de Roland Barthes, há formado pelo sincretismo das duas semióticas.
duas possibilidades básicas do sincretismo entre Barthes chama função de etapa a esse tipo de
semiótica verbal e semiótica plástica: ou a relação entre o verbal e o visual.
Análise textual da história em quadrinhos

As duas funções da semiótica verbal verbal em função de etapa, uma vez que o
propostas por Barthes podem ser aplicadas sincretismo entre as três semióticas gera o
também às relações entre a semiótica verbal e a sintagma geral que as organiza em forma de texto.
musical. Quando o texto verbal explica Entretanto, para viabilizar a análise, convém
composições instrumentais com títulos ou estudá-las separadamente.
programas, há função de ancoragem; quando essa Como a HQ “Tubarões voadores” é anterior
semiótica compõe com a música correlações à musica e aparece publicada sem o texto musical
entre melodia e letra, como nas canções, há em coletâneas das obras de Luiz Gê, é possível
função de etapa. analisá-la primeiro e, depois, verificar os efeitos
Em “Tubarões voadores”, as semióticas de sentido que a música de Arrigo Barnabé
plástica e musical estão sincretizadas com a promove no texto sincrético.

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Análise textual da história em quadrinhos

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Análise textual da história em quadrinhos

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

O fazer missivo e a do fazer remissivo. Uma vez agentes da


distribuição dos valores remissividade, seria próprio dos animais os
regimes de espaço e tempo desse fazer,
Em “Tubarões voadores”, há o sujeito entretanto, na HQ, dá-se o contrário: quando os
coletivo, figurativizado pelos habitantes de uma tubarões atacam, o espaço se abre e o tempo
cidade grande, vítima do antissujeito, também acelera.
coletivo, figurativizado pelos tubarões voadores. Antes de procurar desajustes teóricos na
A emissividade está articulada a valores de semiótica tensiva, deve-se pensar na geração de
vida, visto que o sujeito coletivo busca manter um efeito de sentido.
a conjunção com esse objeto de valor. A qualquer Em semiótica – vale lembrar – o fazer
instante, porém, o antissujeito está pronto para missivo, articulado em emissivo vs. remissivo,
romper a conjunção, pois os tubarões voadores pode ser fundamentado pela categoria formal
são predadores da população. Desse modo, a continuidade vs. descontinuidade . O fazer
remissividade está articulada a valores de morte, emissivo investe na continuidade da conjunção
desde que os moradores da cidade sejam tomados com o objeto de valor, seja indo ao encontro
como referência para a distribuição narrativa da dele, seja na sua manutenção. O fazer remissivo,
categoria semântica determinada. ao contrário, investe na descontinuidade. No
Em seu fazer emissivo, os habitantes são fazer remissivo, o antissujeito ou impede a
espreitados constantemente pelos tubarões, conjunção do sujeito com o objeto de valor, ou
fazendo com que a emissividade fique o tempo o espolia dele, indo de encontro ao estado de
todo retida pelo fazer remissivo dos predadores. relaxamento, próprio da conjunção. Em outras
Não há busca pela vida, não há sujeitos em palavras, o fazer remissivo coloca paradas na
disjunção à espera da conjunção com o objeto continuação do fazer emissivo.
ou em acionamento para consegui-lo; em Em “Tubarões voadores”, são os predadores
“Tubarões voadores”, os moradores buscam que promovem as paradas na continuação da vida
manter a conjunção com o objeto de valor, que dos habitantes, mas, para fazerem isso, devem
já lhes pertence, mas que pode ser tomado com estabelecer sua própria continuidade. A abertura
facilidade. do espaço e a aceleração do tempo determinadas,
Dominado pela remissividade, o discurso da portanto, não dizem respeito ao fazer emissivo
HQ é determinado pela semiótica própria desse dos habitantes, dominados que estão pela
regime de colocação discursiva. Isolados e remissividade, mas ao fazer emissivo dos
trancados em suas casas, os habitantes da cidade tubarões.
sofrem o espaço fechado do fazer remissivo e o Quando atacam, o espaço da cidade se abre
tempo desacelerado, uma vez que devem nos percursos da caça e o tempo acelera durante
permanecer parados, pois qualquer movimento o bote do predador. Indo de encontro à presa,
atrai os tubarões. os tubarões realizam o fazer emissivo deles
Todavia, embora dominada por espaços mesmos, de acordo com as regências de espaço
fechados e com tempo desacelerado, há na e tempo da emissividade. Remissivo em relação
colocação em discurso de “Tubarões voadores” aos habitantes, o fazer emissivo dos tubarões os
aberturas de espaço e acelerações de tempo. Essas faz sujeitos de um programa narrativo próprio,
mudanças, paradoxalmente, coincidem com as cujo objeto de valor consiste na afirmação da
investidas dos predadores, o antissujeito coletivo morte dos habitantes.

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Análise textual da história em quadrinhos

Frágeis e indefesos como estão, esses um programa narrativo cujos heróis são os vilões
habitantes sequer assumem o estatuto de do outro programa, complexificando os papéis
antissujeitos em relação ao fazer emissivo dos temáticos de cada um. Assim, o paradoxo
tubarões. Reduzidos a quase objetos, os consiste na confusão deliberada dos papéis, o
habitantes carecem de poder e saber para manter pior inimigo está para se tornar o herói da
a conjunção com a vida; o único modo de história.
preservá-la é em esconderijos, nem sempre
eficazes. O percurso figurativo e a
A falta de competência para resistir dos articulação da realidade
habitantes e sua redução a quase objetos faz com
que a remissividade articulada com o fazer Fiel a seu estilo, a figuratividade construída
emissivo dos tubarões seja enfraquecida. Tão fraca por Luiz Gê em “Tubarões voadores” é delirante.
quanto os habitantes, a remissividade Há no texto, pelo menos, a neutralização das
praticamente não existe, os predadores agem sem diferenças semânticas entre o espaço próprio dos
parar. homens – figurativizado pela cidade grande – e
Se para os habitantes há predomínio do o espaço próprio dos tubarões – que seria o mar;
regime remissivo, para os tubarões, há a neutralização das diferenças entre o modo
contrariamente, há predomínio do regime de locomoção usual do tubarões e o das aves,
emissivo, de modo que espaço e tempo estão visto que os tubarões voadores nadam no ar.
articulados de acordo com os fazeres missivos Contudo, há detalhes mais sutis no delírio
dos habitantes e dos tubarões, complexificados figurativo de “Tubarões voadores”.
no discurso de “Tubarões voadores”. Entre o figurativo e o plástico, confusões
Na HQ, Luiz Gê articula dois programas devem ser evitadas a respeito dos domínios
narrativos, ao invés de enfatizar apenas o semióticos da cada um. Recapitulando
programa narrativo dos habitantes e de reduzir novamente, o figurativo é de ordem semântica;
o fazer dos tubarões somente ao fazer de a figuratividade é o patamar mais concreto e
antissujeitos desse programa. Há o programa específico do percurso gerativo do sentido; seus
narrativo dos habitantes, cujo objeto de valor é domínios estão restritos ao plano de conteúdo.
a vida, mas há também o programa narrativo dos O plástico, por sua vez, diz respeito à
tubarões, cujo objeto de valor é a morte. Nessa manifestação da figuratividade no plano de
polêmica, os últimos são antissujeitos dos expressão das semióticas plásticas. Nas HQs, com
primeiros, no entanto, a ênfase no fazer emissivo o plástico sincretizado com a manifestação verbal
dos tubarões, vitoriosos sobre a cidade, faz com em função de etapa, a articulação da semiótica
que seus papéis actanciais de sujeitos se verbal com a semiótica plástica cuida de
manifestem com intensidade, no limiar de isolar manifestar a figuratividade formada no conteúdo.
seu programa do programa narrativo das presas. Se Luiz Gê houvesse escrito um conto, os
O paradoxo, portanto, não está na traços figurativos das personagens seriam
aceleração do tempo e na abertura do espaço descritos com palavras e frases; como no plano
durante o fazer dos antissujeitos em um discurso de expressão das HQs a figuratividade se
dominado pela remissividade. Articulando a manifesta distribuída entre o verbal e o visual,
emissividade dos tubarões no seio do fazer em “Tubarões voadores” há imagens e palavras
remissivo que rege os habitantes, Luiz Gê destaca na textualização. Ver ou ler, nos domínios da

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

figuratividade, faz pouca diferença, pois se trata Fica evidente, também, a relação entre a
de analisar um domínio teoricamente isolado do gradação das figuras e a do fazer emissivo dos
plano de expressão. Por enquanto, trata-se de tubarões sobre o fazer emissivo dos habitantes.
analisar o plano de conteúdo; as correlações entre Gerada na polêmica entre dois fazeres missivos,
a figuratividade e as categorias plásticas da o dos predadores e o das presas, há em “Tubarões
expressão são estudadas depois. voadores” a imposição do primeiro sobre o
Em “Tubarões voadores”, além das segundo, do mesmo modo que o traço “realista”
neutralizações apontadas no início, há a se impõe sobre a caricatura.
presença, no mesmo universo gráfico, de figuras A vitória da figuratividade “realista”,
que se poderiam chamar mais “realistas” e de entretanto, constrói outro paradoxo. Uma vez
caricaturas. O Joãozinho e a menina que pula relacionada à tematização mítica, é paradoxal
corda são caricaturas; o pai da menina, nem ver o mítico realizado com figuras mais próximas
tanto; as personagens vítimas dos tubarões, ou do real, enquanto os habitantes da tematização
de atos de violência inseridos no discurso são prática estão próximos da caricatura. O que
bem menos caricatas – como na fuga da cerca de parece incongruente, porém, gera um efeito de
arames farpados, ou o corte dos pulsos com sentido próprio: a vitória dos tubarões míticos é
gilete; e os tubarões, de tão precisos, poderiam carregada de “realidade” em suas figuras,
enquanto a realidade da cidade é esvaziada nas
ilustrar livros de biologia marinha.
caricaturas; tornado “real” na realização figu-
Há, por isso, uma gradação entre constru-
rativa, o mítico domina a “realidade” prática se
ções representativas da realidade, com a
sobrepondo a ela, fazendo crer que aquilo que
linguagem em função referencial, e construções
existe, de fato, são os tubarões.
míticas, com a linguagem em função construtiva.
Nos percursos temáticos, há, pelo menos,
Correlações semióticas
uma tematização prática, que sustenta a vida
entre o figurativo e o plástico
cotidiana dos habitantes da cidade, e outra
mítica, responsável pelo sentido dos tubarões
Recapitulando, quando manifestado, o
voadores. Complexificadas no mesmo percurso
percurso figurativo aparece no plano da expres-
figurativo, não deixam de ser diferenciadas pela
são, ora na semiótica verbal, ora na plástica. A
gradação da articulação da realidade determinada.
semiótica plástica, por sua vez, é formada por
Quando o cotidiano da cidade se realiza no
categorias próprias, que dão forma à expressão
olhar através da janela e nas brincadeiras de rua,
das imagens desenhadas.
o Joãozinho e a menina são caricaturas; quando Ainda recapitulando, as categorias plásticas
o mito invade a cidade na forma de tubarões são de três tipos: as categorias cromáticas, que
voadores, os animais são figuras construídas para determinam a cor; as categorias eidéticas, que
parecerem “reais”. Além do mais, como há gradação determinam a forma; e as categorias topológicas,
entre o caricato e o “real” na representação das que determinam a distribuição de cores e formas.
personagens, a invasão e a vitória dos tubarões se Construído nessas categorias, o plano de expres-
manifestam tão gradativamente como a são, potencialmente, pode ser correlacionado ao
figuratividade, pois tudo se passa como se o plano de conteúdo, bastando, para isso, que uma
domínio da figuratividade realista sobre a caricata categoria semântica seja homologada a uma
se desenvolvesse do mesmo modo que o domínio categoria plástica na formação de relações semi-
dos predadores sobre as presas. simbólicas.

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Análise textual da história em quadrinhos

Em “Tubarões voadores”, nota-se que há animais: nos dentes pontudos, há valores de


tendência aos traços arredondados nas caricaturas morte; nas curvas do movimento, há valores de
– basta observar os rostos do Joãozinho e da vida.
menina pulando corda – e tendência aos traços Com sutileza, Luiz Gê reveste as mesmas
pontiagudos, quando se trata dos ataques dos personagens tanto com valores de vida quanto
tubarões ou das cenas de morte intercaladas – com valores de morte, fazendo com que, no topo
basta observar os dentes, os pregos, a gilete, o da cadeia alimentar, matar a presa seja afirmar a
arame farpado, os cacos de vidro. Desse modo, vida do predador. Assim, se a emissividade dos
determina-se a categoria eidética arredondado predadores está fundamentada pela continuidade,
vs. pontiagudo para dar forma aos traços do plano como é próprio do fazer emissivo, os tubarões
de expressão. voadores afirmam sua continuidade nas formas
Devido à determinação dos habitantes em da expressão plástica e do conteúdo semântico.
função de valores de vida e à dos tubarões, em
função de valores de morte, e pela presença de A abordagem musical da
traços arredondados nas caricaturas e história em quadrinhos
pontiagudos nos tubarões, verifica-se uma
correlação entre a categoria semântica vida vs. Como tratar a abordagem musical de
morte e a categoria eidética arredondado vs. “Tubarões voadores”?
pontiagudo na textualização da HQ. A semiótica não é uma ciência a propósito
da gênese da obra; não é pertinente para a
semiótica determinar quem fez o quê nos
plano de conteúdo: vida vs morte
momentos em que o texto é produzido. Ao
texto

plano de expressão: arredondado vs pontiagudo


descrever a geração do sentido enquanto
arquitetura semiótica, definida na articulação
entre os planos de conteúdo e expressão na
Entretanto, a categoria eidética pode ser formação do texto, interessa para a semiótica
determinada por meio de uma categoria formal estudar o sentido como totalidade, organizada
mais abstrata, capaz de mostrar que o pelo enunciador responsável por sua enunciação.
semissimbolismo articulado por Luiz Gê é mais Sabe-se que a HQ foi feita por Luiz Gê e
engenhoso do que parece. As formas arredondado que Arrigo Barnabé fez a música, no entanto, no
vs. pontiagudo podem ser determinadas pela momento da enunciação, o texto gerado
categoria contínuo vs. descontínuo, uma vez que sincretiza os componentes plásticos, musicais e
as formas redondas são contínuas e as pontudas, verbais na totalidade de sentido, que garante a
descontínuas. unidade semiótica do texto. Quem fez o quê,
Se o contínuo está correlacionado a valores desse ponto de vista, perde a pertinência; torna-
de vida e o descontínuo, aos de morte, verifica- se pertinente determinar como os valores se-
se a projeção de valores de vida nos movimentos mióticos estão articulados na geração do sentido.
curvos, portanto contínuos, do nado-vôo dos Na análise semiótica de “Tubarões voado-
tubarões enquanto espreitam e quando atacam. res”, antes de tratar do componente musical, foi
O semissimbolismo permanece, visto que isolado o texto da HQ, justificando a separação
não há inversão das formas, mas complexificação no fato dela circular publicada sem a abordagem
delas nas imagens que manifestam as figuras dos musical, o que garantiria sua autonomia semiótica.

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

Em seguida, foi estudada a figuratividade Essa correlação de sentido entre letra e


formada no plano de conteúdo e as correlações música faz com que, no sincretismo entre o verbal
semi-simbólicas entre os valores semânticos vida e o musical, haja predominância de insistência
vs. morte e os valores plásticos continuidade vs. rítmica na articulação das consoantes nas
descontinuidade na formação do texto. canções com ênfase em estados de coisas, e que
Para prosseguir e analisar sua abordagem haja predominância de insistência melódica na
musical, pode-se tratar o componente verbal articulação das vogais nas canções com ênfase
como letra de canção e o componente plástico em estados de alma.
como uma espécie de partitura, e estabelecer Nas canções, as modulações musicais de
correlações entre a semiótica musical e a semió- ritmo e melodia são dadas pela semiótica
tica plástica. musical; sem a música, a letra de canção é apenas
Em sua semiótica da canção, Luiz Tatit semiótica verbal, sem ênfases em ritmos e
(Tatit,1996) descreve elos semióticos entre melodias além do que é próprio da prosódia.
melodia e letra na formação do sentido desse Contudo, basta que se enfatize ora as consoantes
tipo de sincretismo entre o musical e o verbal. – com ritmo – ora as vogais – com melodia –
Basicamente, o autor estabelece dois tipos para que se derive a fala para um dos tipos de
fundamentais de canções: há as canções com canção determinados ou das muitas possibi-
ênfase em estados de coisas; há as canções com
lidades de complexificação entre eles.
ênfase em estados de alma.
Na música de “Tubarões voadores”, ao lado
Quando na letra há ênfase em estados de
de gritos e ruídos, há duas vozes predominantes:
coisas, a melodia tende a ser acelerada, o que
a voz masculina, responsável pela narração dos
garante a predominância de valores rítmicos sobre
eventos; a voz feminina, que sentencia “afinal,
valores melódicos, em intervalos musicais
esta é a harmonia da vida”.
próximos uns dos outros. Contrariamente, quando
Enquanto semiótica verbal, as legendas e
na letra há ênfase em estados de alma, a melodia
os balões estão em função de etapa em relação à
tende a ser desacelerada, o que garante a predo-
semiótica plástica dos desenhos. Embora algumas
minância de valores melódicos sobre valores
vezes o narrador explique redundantemente a
rítmicos, em intervalos musicais distantes uns
figuratividade expressa nas imagens, como se
dos outros.
passa com o verbal em função de ancoragem, na
Não se trata necessariamente do andamento
totalidade do texto a figuratividade está
da canção, mas de como melodia e ritmo estão
distribuída entre as expressões verbais e plásticas,
articulados. Na canção “Garota de Ipanema”, de
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, os dois modos como se dá com o verbal em função de etapa.
fundamentais de canção determinados estão Quando são descritos os tubarões, a
presentes em sua forma semiótica. Quando na ancoragem é evidente, no entanto, quando os
primeira parte da canção a garota anda por comentários descritivos são substituídos por
Ipanema, enfatizando estados de coisas, o ritmo ditos populares, aparentemente sem conexão
é acelerado e os intervalos musicais, próximos. com as imagens desenhadas, a função de etapa
Na segunda parte, quando são enfatizados se encarrega de estabelecer as relações capazes
estados de alma em expressões como “por que de determinar o sentido das frases e dos desenhos
estou tão sozinho? ou “por que tudo é tão em função da mesma figuratividade. A ancoragem
triste?”, a melodia desacelera o ritmo e os inter- ratifica a construção “realista” dos tubarões em
valos entre uma nota e outra são distantes. oposição às caricaturas das vítimas, enquanto

99
Análise textual da história em quadrinhos

os ditos populares funcionam como julgamentos A ironia, entretanto, sugere outras relações
de valor a respeito da relação presa-predador semióticas entre a HQ e a abordagem musical. A
estabelecida no plano de conteúdo. Julgamento oposição ênfase rítmica e consonantal vs. ênfase
curioso, na medida em que justifica a matança, melódica e vocálica está construída com base na
dando razão aos predadores. categoria formal descontinuidade vs. continui-
Quando cantadas, as falas da HQ assumem dade. O ritmo e as consoantes são descontínuos,
propriedades musicais e podem ser determinadas eles promovem subdivisões na curva entoativa,
de acordo com a semiótica da canção. A voz ao passo que a melodia e as vogais permitem a
masculina, que descreve e justifica os tubarões, formação de continuidades sonoras.
é colocada de modo a enfatizar as consoantes; Em “Tubarões voadores”, há a relação semi-
apesar de quase falado, o texto é carregado de simbólica entre os valores semânticos vida vs.
ritmo, como nas locuções de eventos esportivos morte e os valores plásticos continuidade vs.
e documentários sensacionalistas. A voz descontinuidade. Nessa relação, é possível
feminina, que também justifica o fazer dos verificar que os tubarões são expressos tanto por
tubarões, contrariamente, é melodiosa, insiste valores descontínuos, nas imagens dos dentes
nas vogais e é a única parte da música com pontudos, quanto por valores contínuos, nas
melodia definida e construída em compasso ¾, imagens do vôo-nado dos predadores. Por isso,
tratando-se de uma valsa. são complexos no que diz respeito à articulação
Embora o conteúdo seja o mesmo, a expressão semântica vida vs. morte e não apenas
das vozes, além da distinção por meio do timbre, é figurativizações dos valores de morte, como
construída de modo a opor ênfase rítmico e parece sugerido na oposição que fazem às vidas
consonantal vs. ênfase melódico e vocálico. das vítimas.
Enquanto canção, a voz masculina está de acordo Musicalmente, a abordagem semiótica é a
com a ênfase em estados de coisas, visto que mesma. Tanto nos trechos cantados quanto nos
descreve a ação dos predadores. A voz feminina, somente musicais, há o investimento na
por sua vez, apesar da descrição que faz da harmonia descontinuidade, a música é formada por ataques
da vida – portanto, de um estado de coisas – está descontínuos dos instrumentos musicais ou por
de acordo com a ênfase em estados de alma, pois, ataques consonantais da voz masculina.
na descrição que faz, conota tal harmonia com Contrariamente, na voz feminina, há investimento
paixões próprias da satisfação e da confiança. na continuidade melódica da música e
A voz feminina não se refere com indignação insistência na duração das vogais.
ao julgamento que faz da harmonia da vida, Do mesmo modo que as formas visuais, as
baseada que está no medo e na violência. Sua formas musicais, construídas pela mesma
fala aparece em ritmo de valsa, harmoniosa, sem categoria formal descontinuidade vs. continui-
as invenções sonoras características do restante dade, estão em função de complexificar o fazer
da música. Tudo se passa como se a música dos tubarões: quando se trata do fazer remissivo
refletisse, em sua expressão harmoniosa, a dos tubarões em relação ao fazer emissivo das
harmonia da vida estabelecida no plano de vítimas, a música é descontínua, são enfatizados
conteúdo. Sem dúvida, há a construção de uma os valores de morte; mas quando se trata do fazer
ironia, pois o conteúdo tenso e disfórico da emissivo próprio dos tubarões, a música é
matança dos tubarões é justificado por conteúdos contínua, são enfatizados os valores de vida dos
contrários, expressos melodiosamente. predadores em meio à harmonia da vida.

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Assim, na relação semi-simbólica entre a assimiladas. Recapitulando, no soneto do poeta


forma de conteúdo vida vs. morte e a forma de francês, a relação da enunciação do brinde com
expressão continuidade vs. descontinuidade, a tematização prática permite que se leia a
expressão plástica e expressão musical estão tematização mítica da navegação como metáfora
sincretizadas pela mesma categoria formal, na da primeira leitura, o que faz com que, quando
mesma totalidade de sentido. se trata do brinde, o percurso figurativo se refere
ao brinde, e quando se trata da navegação, o
A interpretação do texto percurso figurativo se refere à navegação.
Nos quadrinhos de Luiz Gê, o recurso
A semiótica, como está afirmado anterior- semiótico do delírio figurativo combina o prático
mente, não cuida da gênese do texto, estudando e o mítico no mesmo percurso figurativo. Em
seu processo de elaboração, mas também não é “Tubarões voadores”, não há uma cidade em que
uma ciência da interpretação do texto. Diferen- homens oprimem seus semelhantes como os
ciando-se de análises psicanalíticas ou tubarões são predadores em relação aos demais
marxistas, que buscam explicar o significado animais do mar; no discurso da HQ, são os
latente que daria origem ao sentido, a semiótica próprios tubarões a oprimir os habitantes da
se detém no texto e nas relações que garantem cidade.
a construção de efeitos de sentido e não a sua Evidentemente, tanto no soneto quanto na
interpretação. HQ, há complexificação entre as tematizações
Para a semiótica, não há uma psique mítica e prática realizadas no discurso em sua
humana ou relações econômicas a partir das quais distribuição figurativa, no entanto, como está
emana o sentido enquanto reflexos do complexo descrito nos dois parágrafos anteriores, são
de Édipo ou da luta de classes. Em sua hipótese processos de complexificação diferentes.
de trabalho, para a semiótica o sentido emana Em “Tubarões voadores”, o delírio figurativo
da linguagem e de seus mecanismos de não exclui a leitura metafórica do que se passa
produção, sistematizados no modelo do percurso na cidade e seus habitantes. Articulada pela cate-
gerativo do sentido. goria semântica vida vs. morte, a figuratividade
Desse modo, quando se analisa a semântica da HQ permite que outros valores sejam correla-
discursiva, não se busca uma interpretação do cionados a essa categoria e passem a funcionar
texto, mas os modos de articulação entre temas como modos distintos de interpretação do texto.
e figuras e seus efeitos semióticos. Seriam os tubarões uma metáfora da
Nas análises de “Eu quero ser uma locomo- violência urbana, dos porcos capitalistas, da
tiva”, “Errare marcianum est” e “Quem matou esquerda corrupta e dogmática, do Id, do
Papai Noel?”, o processo de figurativização inconsciente coletivo, do Samsara? Depende do
desenvolvido por Luiz Gê é definido como delírio cunho teórico que se pretende adotar; depende
figurativo, caracterizado pela neutralização de da crença ou da ingenuidade do analista.
oposições semânticas entre o espaço, o tempo e Tubarões voadores é uma história a respeito
as pessoas figurativizadas no discurso. da morte e da dominação, mas não é uma leitura
Nesse processo de figurativização, as simplista e unilateral dos valores de vida vs.
tematizações prática e mítica, que podem ser morte e liberdade vs. opressão. Complexificados
separadas em arranjos semânticos como no no fazer missivo, na figurativização e nas relações
soneto Salut, de Mallarmé, encontram-se mais semi-simbólicas entre categorias semânticas,

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Análise textual da história em quadrinhos

plásticas e musicais, tais valores levam a rever o ram a música Sabor de veneno, e o LP foi
papel disfórico atribuído aos predadores. literalmente jogado em um latão de lixo pelo
Em todas as histórias em quadrinhos apresentador de programas de auditório Flávio
analisadas, Luiz Gê escolhe articular a relação Cavalcanti, em rede nacional, quando dirigia seu
remissivo vs. emissivo de modo que ela se torne Boa Noite Brasil.
a remissividade de uma nova relação remissivo Todavia, quando a Abril Educação lançou
vs. emissivo . Em “Tubarões voadores”, a em 1982 a coleção Literatura Comentada, Iumna
emissividade dos predadores se torna o fazer Maria Simon e Vinicius Dantas (Iumna e Dantas,
emissivo que domina a relação remissivo vs. 1982: 107), organizadores do volume relativo à
emissivo própria dos habitantes da cidade. poesia Concreta, não deixam de mencionar o
Seriam os tubarões os heróis da narrativa e lançamento do LP entre as obras que cercaram
não seus vilões? cronologicamente o concretismo. Além disso,
Além das tematizações prática e mítica houve o apoio dado a Arrigo Barnabé por
realizadas, Luiz Gê costuma investir na maestros da TV e da Rádio Cultura.
tematização metalingüística. Enquanto artista, Nessa polêmica interdiscursiva, a
nunca foi um militante solitário. No universo tematização metalingüística ganha um sentido
dos quadrinhos, dirigiu a revista Circo, ao lado particular. Os tubarões podem ser os próprios
de outros desenhistas, e atuou com músicos nas quadrinhos, invadindo a cidade, mas também
parcerias que fez com Arrigo Barnabé nos seus podem ser os artistas plásticos e músicos com
primeiros LPs Clara crocodilo e Tubarões os quais Luiz Gê estava articulado nas décadas
voadores. de 80 e 90.
Quando o LP Clara crocodilo, de Arrigo Como predadores, esses artistas invadiram
Barnabé e a banda Sabor de Veneno – cuja capa a cidade de São Paulo prontos para devorar os
é da autoria de Luiz Gê – foi lançado em 1980, apresentadores e os públicos de programas como
não foi aceito com tranqüilidade. Arrigo Barnabé Boa Noite Brasil, formados por pessoas mal
e Itamar Assumpção foram vaiados no festival educadas e sem preparo algum para julgar a arte
de música da antiga TV Tupi quando apresenta- brasileira em um de seus melhores momentos.

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6. HISTÓRIA EM QUADRINHOS E ÓPERA

O diálogo entre a semiótica da história com o sistema plástico da encenação teatral.


em quadrinhos e outros sistemas de significação Entre as muitas possibilidades de articulação
além do musical permanece nos trabalhos de Luiz entre a semiótica da ópera e a dos quadrinhos,
Gê ao lado da composição de “Tubarões os autores d’ O homem dos crocodilos
voadores”. Ainda em parceria com Arrigo Barnabé, escolheram distribuir para a platéia o texto da
Luiz Gê compôs parte da estrutura da ópera O HQ O caçador de crocodilos, da autoria de Luiz
homem dos crocodilos, ao lado de Alberto Muñoz, Gê, que é lida nos últimos momentos da peça,
o compositor do libreto. com as luzes acesas.
Na linguagem da ópera, diferente Mesmo vinculado à estrutura de um texto
daquela da história em quadrinhos, há outros maior, o texto da HQ forma uma unidade distinta.
sistemas semióticos sincretizados. Nas HQs, o Com título próprio, a HQ permanece depois da
verbal está sincretizado com o plástico e não encenação e pode ser lida separadamente,
há sistemas musicais envolvidos, fora enquanto manifestação semiótica particular,
trabalhos como “Tubarões voadores”; na ópera, isolada do texto original. Portanto, do mesmo
o sistema verbal está diretamente sincretizado modo que em “Tubarões voadores”, é possível
com o musical – visto que a ópera pode ser analisar O caçador de crocodilos primeiro para,
ouvida sem ser vista – e, quando encenada, o depois, verificar sua articulação com o texto
sincretismo verbo-musical entra em articulação original sincretizado com a ópera.
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A enunciação e a ção, o caçador, Antonio e sua mãe realizam a


semântica discursiva tematização prática do tema da caça e a
tematização mítica da sexualidade.
Com base no modelo semiótico proposto A tematização metalinguística dessa
por Zilberberg a respeito da geração do sentido, segunda enunciação se realiza quando, depois
pode-se pensar em, pelo menos, dois níveis de de a mãe ser raptada pelo homem-crocodilo e
articulação semiótica: há o nível semio-narrativo Antonio reencontrar o caçador ao buscar ajuda,
fundamentado pelo fazer missivo, seus regimes novamente o menino recebe uma história em
de colocação em discurso de pessoa, tempo e quadrinhos.
espaço, seus desdobramentos modal e actancial; Nessa terceira enunciação dentro da
há o nível discursivo, em que se dá o revesti- segunda enunciação – ou seja, na HQ dentro da
mento temático e figurativo. HQ dentro da HQ – o menino se confunde com o
O nível discursivo, por sua vez, pode ser caçador ao penetrar na terceira história, mas
descrito nas relações entre temas e figuras e, a ainda permanece ele mesmo ao observar a morte
partir das propostas de Rastier a respeito da do homem-crocodilo e o assassinato da mãe-
sistemática das isotopias, considerar a possibili- música. A tematização prática permanece no
dade de descrever a semântica discursiva na tema de caça, a mítica permanece no tema da
articulação entre três modos de tematização: a sexualidade e a metalingüística se manifesta no
prática, a mítica e a metalingüística. último quadrinho da HQ, em que Antonio aparece
Em “O caçador de crocodilos”, a estratégia assustado na colocação em abismo dentro do
de enunciação do discurso está baseada na quadrinho dentro do quadrinho dentro do
combinação engenhosa dos três tipos de quadrinho etc.
tematização determinados. No início do texto, Uma vez determinada a estratégia da
o pré-adolescente Antonio recebe do pai o enunciação de “O caçador de crocodilos” – a seu
capítulo final da HQ “O caçador de crocodilos”. modo delirante, uma vez que complexifica três
No primeiro quadrinho da história, o mundo enunciações uma dentro da outra, em torno dos
prático de Antonio e seu cotidiano é tematizado mesmos temas e figuras – é possível examinar os
e aparece articulado com o mundo mítico dos valores semio-narrativos articulados na
quadrinhos dados pelo pai. Como se trata de uma missividade e verificar como está determinada a
história em quadrinhos que tematiza os próprios semântica discursiva que os realiza.
quadrinhos em meio às relações entre as
tematizações práticas e míticas estabelecidas, O fazer missivo e a
há também a colocação em discurso da estratégia narrativa
tematização metalinguística.
Em seguida, tão logo o mocinho comece a Na medida em que cada uma das três
ler a história e inicie sua jornada pelo universo enunciações preserva sua autonomia, visto que
mítico dos quadrinhos, dentro da tematização podem ser isoladas, pode-se supor que em cada
mítica outra articulação entre tematizações uma delas haja a articulação de uma missividade
prática, mítica e metalingüística é estabelecida. própria.
O caçador de crocodilos se confunde com o pai Na primeira enunciação, a HQ 1, o mocinho
do menino e o menino, com a personagem do leitor é a pessoa em relação à qual está determinado
texto da HQ dentro da HQ. Nessa nova enuncia- o fazer missivo. Em seu quarto, cercado por

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brinquedos e pelo pai-caçador de crocodilos, o Na terceira enunciação, Antonio se confun-


menino recebe o último episódio de seus de com o caçador, sincretizando na mesma pessoa
quadrinhos prediletos. do discurso os sujeitos do ser e do fazer, próprios
Na relação que contrai com o pai, da emissividade de HQ 2. O fazer missivo de HQ 3,
manifesta-se a relação destinador-destinatário portanto, está articulado em função da
em função do objeto de valor e, na relação com personagem caçador-Antonio: a emissividade
os quadrinhos, manifesta-se a relação sujeito- rege sua relação com a mãe na relação sujeito-
objeto, ambas próprias do regime emissivo. A objeto; e a remissividade, sua relação com o
HQ 1 não coloca em discurso, aparentemente, as crocodilo, na relação sujeito-antissujeito.
relações entre sujeito e antissujeito e sujeito- Em HQ 3, de acordo com o esperado do
abjeto, próprias do fazer remissivo, que define a herói da história, o caçador-Antonio mata o
missividade dessa enunciação. crocodilo – que, durante o estupro, revela-se
Regido pela emissividade e em conjunção meio humano, meio fera – mas, surpreendente-
com o objeto de valor, o menino dá inicio à mente, assassina a mãe, violando o contrato
leitura da história e à colocação em discurso da fiduciário. Nesse momento, o sincretismo entre
segunda enunciação, a HQ 2. Antonio e o caçador se desfaz e ambos surgem
Na segunda enunciação, o menino se como personagens distintas, como em HQ 2.
confunde com a personagem Antonio e aparece Ainda em HQ 3, há uma curiosa mudança do valor
cercado pelo caçador de crocodilos, semelhante ao do objeto de Antonio: antes apenas a mãe, agora
pai, e por sua mãe. Enquanto o caçador se embrenha ela se confunde com a música, morta pelo
na floresta, Antonio vai nadar com a mãe. Em idílio caçador.
amoroso, no qual os carinhos maternos vão ao Antonio permanece em HQ 2 sem a mãe e
encontro da sexualidade do menino, Antonio oscila em HQ 3, sem a música, e consciente de que o
entre ser como lambari, no julgamento da mãe, ou caçador, antes destinador em função do fazer
como tubarão, em seu julgamento. emissivo, revela-se tão antissujeito quanto o
Como tubarão, Antonio segue o fazer emis- crocodilo em função do fazer remissivo, que rege
sivo que rege a relação sujeito-objeto realizado o final da segunda e da terceira enunciações.
entre ele e a mãe. Em conjunção com ela, Antonio No último quadrinho, quando retorna a
permanece em estado de relaxamento até que primeira enunciação, o menino aparece surpreso
surge o crocodilo – o antissujeito – que rapta a com o final, na colocação em abismo em que
mãe, colocando-o em disjunção com o objeto e aparecem HQs dentro de HQs ao infinito. O
em estado de retenção. Nesse momento, Antonio mocinho leitor, antes regido pela emissividade,
é como lambari, pois foge assustado ao invés de em conjunção com o objeto de valor, surge em
investir contra o crocodilo, como faria se fosse disjunção e tão traído pela HQ em HQ 1, como
tubarão. sua personagem das HQ 2 e HQ 3 é traída pelo
Em sua fuga, Antonio busca pelo caçador – caçador.
o destinador – na espera de que ele refaça a Tudo se passa como se a história em qua-
conjunção, instaurando o contrato fiduciário em drinhos fosse, além de objeto de valor, sujeito
que Antonio é o sujeito do ser e o caçador, do do fazer comprometido fiduciariamente com o
fazer. Nessa altura da narrativa, o menino recebe menino – o sujeito do ser – e, nessa função,
novamente uma HQ e é colocada em discurso a responsável pela colocação do mocinho em
terceira enunciação – a HQ 3. conjunção com o objeto de valor, figurativizado

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

por HQ 2 e HQ 3. Traído pelos quadrinhos, que familiares – conforme a análise do mito feita por
deveriam contar o final da história do caçador Lévi-Strauss (Lévi-Strauss, 1985: 237-265) e
de crocodilos de acordo com suas expectativas, apresentada ao longo do estudo de “Quem matou
Antonio termina regido pelo fazer remissivo, em Papai Noel?”.
que os próprios quadrinhos são o antissujeito. Ao procurar a mãe na lagoa como tubarão,
Antonio superestima os laços familiares; ao matá-
O mito de Édipo e o la, confundido com o caçador, ele os subestima.
mito da criação artística Além do mais, há a presença do monstro ctônico
na figura do homem-crocodilo, morto pelo
Determinada a estratégia da enunciação e caçador-Antonio, que nega a autoctonia humana
as relações entre temas e figuras, assim como a – como o dragão é morto por Cadmo e a esfinge,
estratégia missiva que orienta as distribuições imolada por Édipo.
dos valores e das relações entre os sujeitos Antonio, por sua vez, não aparece manco,
narrativos, é possível descrever, mais detalhada- contudo, incapaz de vencer o monstro sozinho,
mente, a articulação entre as tematizações mítica necessita do caçador. Em termos míticos, embora
e metalingüística. se pense tubarão durante a excitação sexual na
De acordo com a orientação missiva e sua lagoa, Antonio é ainda lambari ao fugir assusta-
realização discursiva, O caçador de crocodilos do, em busca de ajuda. Embora mate o monstro
pode ser segmentado em, pelo menos, duas partes. ctônico como caçador-Antonio, ele é incapaz de
Há a primeira parte, formada pela enunciação HQ 1, vencê-lo sem essa complexificação de papéis. À
em que a tematização predominante é a meta- revelia dos simulacros que Antonio faz a respeito
lingüística; há a segunda parte, formada pelas de si mesmo, o ser como lambari surge de modo
enunciações de HQ 2 e HQ 3, em que a semelhante à incapacidade de negar a autoctonia.
tematização metalingüística aparece relacionada No mito de Édipo, os mancos matam os monstros
à tematização mítica, com predominância da e, apesar de mancos, vencem os monstros
última. ctônicos; no entanto, por permanecerem mancos,
No que diz respeito à segunda parte – o não vencem a autoctonia. Em O caçador de
centro narrativo da HQ dentro de HQ 1 – a crocodilos, o caçador-tubarão-Antonio mata o
interdiscursividade com o mito de Édipo é crocodilo, mas por ser também a presa-lambari-
evidente; entretanto, na relação que contrai com Antonio, não mata.
a tematização metalingüística da primeira parte, Desse modo, a tematização mítica tem a
está longe de ser óbvia. mesma estrutura do mito de Édipo: a superestima-
Não se trata de reproduzir, simplesmente, ção dos laços familiares está para a sua subestima-
a morte do pai e as núpcias com a mãe. Em ção assim como o esforço de negar a autoctonia
O caçador de crocodilos, Antonio não mata o do homem está para a impossibilidade de conse-
pai-caçador e, quando se confunde com ele, mata gui-lo.
sua mãe-música ao mesmo tempo em que, Essa relação entre a tematização mítica
separado do caçador, sente sua perda. Trata-se, d’O caçador de crocodilos e o mito de Édipo,
na HQ, da reprodução do mito de Édipo e de sua predominante nas enunciações HQ 2 e HQ 3,
genealogia, uma vez que matar o pai e se casar aparece articulada com a tematização
com a mãe é mais uma variação do tema geral metalingüística, colocada em discurso desde a
subestimação vs. superestimação dos laços enunciação de HQ 1. Essa metalinguagem, uma

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Análise textual da história em quadrinhos

vez construída em torno das semióticas da nos caminhos da narrativa entre buscas e resgates.
história em quadrinhos e da música, pode ser Em termos patêmicos, está cognitivamente
relacionada à criação artística de modo geral. surpreso e pragmaticamente interrompido, que
Desse ponto de vista, O caçador de é como surge na colocação em abismo.
crocodilos dá forma a um mito a propósito da Dominado pelo regime remissivo, Antonio
criação artística e estabelece relações entre esse é incapaz de terminar a história. Nesse regime,
mito e o mito de Édipo. há a negação da possibilidade de realização da
Para o menino, aprofundar-se na HQ está performance narrativa e o menino não pode entrar
em função do fazer emissivo de HQ 1, cujo objeto em conjunção com o objeto de valor do regime
de valor é figurativizado pelo final da história emissivo.
da saga do caçador. No regime emissivo, Antonio Articulada ao mito de Édipo, a tematização
é modalizado em seu fazer pelo prever, metalingüística funciona como a relação dos
cognitivamente, e pelo querer, pragmaticamente, heróis do mito com o monstro ctônico: a possibi-
pois, ao ler os quadrinhos, está acionado para lidade de realizar a obra está para impossibilidade
chegar ao final da história. Em termos patêmicos, de realizá-la, assim como o esforço de negar a
é modalizado pelo crer, cognitivamente, e pelo autoctonia está para a impossibilidade de
esperar, pragmaticamente, pois estabelece o consegui-lo.
contrato fiduciário com os quadrinhos, na
No universo mítico analisado por Lévi-
esperança de ser colocado em conjunção com o
Staruss, monstros ctônicos estão relacionados às
final da saga. No regime emissivo de HQ 1,
mitologias telúricas e vencê-los significa negar
portanto, há a afirmação da possibilidade de
que os homens são filhos da terra, ou seja, negar
realizar a performance narrativa, e Antonio pode
que são autóctones. Ser filho da terra quer dizer,
entrar em conjunção com o objeto de valor
literalmente, nascer da própria terra como os
próprio desse regime.
Spartoi, no mito de Cadmo, em uma das variações
Nessa perspectiva semiótica, a criação
do mito que rege a genealogia de Édipo. O
artística tem aspecto perfectivo, já que a obra
paradoxo do mito está justamente nas
encontra sua realização em seu fim. Todavia, uma
performances dos heróis, visto que, sendo coxos,
vez mergulhado na HQ, Antonio se perde nos
revelam-se nascidos da terra, ao mesmo tempo
caminhos que levam até o final e a obra se mostra
em que negam essas origens ao vencer ora o
com aspecto imperfectivo, uma vez que não
dragão, ora a esfinge.
termina nunca, colocada em abismo no último
O que há de comum entre a tematização
quadrinho.
mítica e o mito da criação artística tematizado
Em regime remissivo, a HQ, antes emissiva,
torna-se o antissujeito de Antonio e também, por Luiz Gê, além da relação entre a possibilidade
seu abjeto. Contrariamente ao início de HQ 1, e a impossibilidade de realizar a performance?
em sua conclusão, Antonio termina modalizado Há, pelo menos, mais duas semelhanças.
de acordo com o regime remissivo. Quanto ao A criação, tanto a antropogenética quanto
fazer, Antonio é modalizado cognitivamente a artística, envolve dar a luz, respectivamente, a
pelo ignorar – porque não sabe como fazer para outros seres humanos ou às obras de arte. Frutos
chegar ao fim – e pragmaticamente pelo dever – da criação, os trabalhos artísticos podem ser
Antonio, assustado, vê o querer do regime tomados como filhos dos homens, ainda que
emissivo ser substituído pelo dever, pois se perde metaforicamente. Essa relação de maternidade

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

leva a considerar a possibilidade ou não de Ainda na mesma determinação semântica,


terminar a obra em outro ponto de vista: a obra resta examinar a possibilidade de atribuir a
é fruto do artista e ele a termina; ou a obra é Antonio, além do papel de leitor, o papel de
regida por certa autonomia própria, que garante autor. Não se trata apenas do Antonio que
sua independência e, assim, o artista não termina interage com as enunciações HQ 1, 2 e 3, parti-
a obra. cipando da autoria em sua interação semiótica,
Como os heróis dos mitos, o leitor-autor mas de relacionar Antonio ao próprio Luiz Gê.
dos quadrinhos, metonimizado por Antonio e Parecido com a personagem dos quadrinhos
seus desdobramentos, vence o monstro sendo franco-belgas, o conhecido Tintim, de Hergé,
coxo e termina a história sem terminá-la. Antonio faz alusão ao universo dos quadrinhos
Antes de justificar o papel metalingüístico com os quais Luiz Gê dialoga e torna Antonio ora
de Antonio como autor, ao lado do papel de criação, fruto da imaginação do autor, ora criatura
leitor figurativizado por ele, resta apontar a autônoma, fruto da interdiscursividade realizada.
segunda semelhança entre os mitos de Édipo e o Além disso, os brinquedos que o cercam no
da criação artística. primeiro quadrinho, inclusive o pai, são
Tanto na tematização da genealogia de Édipo, personagens de outros quadrinhos de Luiz Gê.
em que a superestimação dos laços familiares está O mais evidente é a locomotiva, que aparece
para a subestimação deles, quanto na relação com em “Eu quero ser uma locomotiva”, mas as
a superação ou não da autoctonia, a articulação miniaturas humanas aparecem em “Uma história
entre temas e figuras está determinada pela categoria de amor”; os automóveis, em “Dr Frankenstein
semântica identidade vs. alteridade. Para que se teve problema parecido”; as orelhas de Mickey,
superestime ou subestime laços familiares deve-se na escultura-quadrinhos da “Borba Gata”; e o
colocar em crise a relação de identidade vs. pai, vestido de caçador, lembra o Borba Gato de
alteridade que os constitui; superar a autoctonia “Entradas e Bandeiras”. Ao longo da história, as
equivale a afirmar a alteridade em relação à terra – figuras do tubarão e do crocodilo são alusões a
em que terra e homem são distintos – e não superar outros trabalhos realizados em parceria com
corresponde a afirmar a identidade – em que a terra Arrigo Barnabé: o tubarão alude a “Tubarões
e o homem são o mesmo. voadores”; e o crocodilo, a “Clara Crocodilo”.
Na tematização metalingüística, a determi- Em seu atelier, cercado de miniaturas de
nação semântica também se dá em função da navios, automóveis, locomotivas, soldados,
categoria identidade vs. alteridade. No mito da tubarões e crocodilos, entre outras peças, Luiz
criação artística, na relação criador-criação, em Gê se parece com Antonio, cercado por seus
que o autor domina perfectivamente a obra de brinquedos. Nessa perspectiva, Antonio é uma
arte, afirma-se a identidade entre ambos; metonímia do próprio Luiz e se confunde com
contudo, na relação criador-criatura, em que o ele enquanto autor da história, fazendo com
autor perde o controle da criação e não acaba a que Luiz-Antonio enfrentem a perfectividade ou
obra, agora imperfectiva, afirma-se a alteridade. não da obra de arte, em sua relação de
Dessa maneira, há um mínimo denominador identidade vs. alteridade com a construção do
semântico, capaz de articular os temas familiar sentido.
e ctônico do mito de Édipo com o mito de Do mesmo modo que na afirmação de
Antonio, e articular este último com a formação Flaubert “Madame Bovary sou eu”, Luiz Gê
de um mito a propósito da criação artística. constrói seu discurso ao mesmo tempo em que é

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Análise textual da história em quadrinhos

construído por ele e, a seu modo, também afirma do instrumento são dentes afiados de crocodilo,
o mesmo de si e de suas personagens. prontos para lhe devorar os dedos. Em busca de
tratamento, Antonio se submete à psicanálise e
A inserção do texto da HQ a ópera se passa durante as sessões, entre as
no texto da ópera confissões, lembranças e sonhos do protagonista.
No que diz respeito à missividade, no
O modo de inserção d’ O caçador de consultório da psicanalista se estabelece o
crocodilos n’O homem dos crocodilos deve ser contrato fiduciário entre médico e paciente, por
analisado em, pelos menos, quatro níveis de isso, a relação emissiva entre destinador e sujeito
interação semiótica: a inserção semio-narrativa narrativo. No discurso psicanalítico, grosso
e discursiva, em que a HQ ganha pertinência no modo, devem ser proporcionadas ao paciente as
plano de conteúdo da ópera; a inserção textual, condições para que sejam lembrados os
em que a relação entre a expressão e o conteúdo conteúdos reprimidos, considerados as causas de
da HQ é sincretizada com a relação entre a suas neuroses. As lembranças reprimidas tornam-
expressão e o conteúdo da ópera; a inserção se sintomas, cujas curas dependem tanto da
pragmática, em que o objeto de valor HQ ganha recordação consciente quanto do trabalho
dimensões de uso entre os co-enunciadores na durante a psicoterapia.
encenação do espetáculo; a inserção mitológica, Nesse processo, as lembranças assumem
em que a mitologia da criação artística dupla função narrativa: figurativizam o objeto
tematizada na HQ encontra correspondências nos de valor, uma vez que estar em conjunção com
percursos temáticos da ópera. elas leva à cura dos sintomas neuróticos; mas
também figurativizam o valor abjeto, pois vem
– A INSERÇÃO SEMIO-NARRATIVA E DISCURSIVA delas as origens dos distúrbios emocionais. Assim,
nos dramas psicanalíticos, como é o caso d’O
De acordo com a semiótica, vale lembrar, Homem dos crocodilos, o sujeito narrativo oscila
discurso e texto são domínios teóricos diferentes. entre a emissividade da cura e a remissividade
O discurso é formado no plano de conteúdo em do trauma; para se curar, ele deve ir, ao mesmo
operações semio-narrativas e suas colocações em tempo, ao encontro das e de encontro às mesmas
percursos temáticos e figurativos; o texto se recordações.
forma na articulação do plano de conteúdo com Na história de Antonio, há a sensação de
o plano de expressão, manifestando-se em culpa do assassinato da mãe. Através do buraco
sistemas semióticos verbais, não-verbais ou da fechadura, o menino flagra a mãe e o amante,
sincréticos. para depois ver que ambos são assassinados pelo
A inserção semio-narrativa e discursiva, pai. Antonio não se lembra de nada disso; as
portanto, pode ser separada da inserção textual, recordações aparecem confusas, disfarçadas em
para que se verifique como o discurso da HQ condensações e deslocamentos em seus sonhos e
dialoga com o da ópera e passa a fazer parte delírios. Não se lembra, principalmente, de que
constitutiva dele. fora ele a buscar pelo pai, foi ele quem lhe avisou
O Homem dos crocodilos conta a história do adultério. De forma indireta, enquanto delator,
de Antonio, um pianista que não consegue mais Antonio divide com o pai a culpa do crime.
sentir as mãos e desenvolve fobia em relação ao Em sua neurose, há duas relações que devem
piano. Para ele, em suas alucinações, as teclas ser consideradas: sua mãe era violoncelista,

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Antonio Vicente Pietroforte „ Luiz Gê

dividia com o filho o gosto pela música, influen- com sistemas verbais, que cuidam de articular
ciando-o a ponto de determinar sua profissão de falas, gestos, cenário, figurino, iluminação e as
pianista e compositor; enquanto o pai dividia marcações de palco, como na encenação teatral.
com ele as leituras de histórias em quadrinhos, Na ópera, entretanto, a fala aparece sincretizada
em especial, as aventuras do Caçador de com a semiótica da canção e a semiótica musical
Crocodilos. Em delírios, Antonio presencia uma assume aspecto durativo, contrário à
discussão entre os pais, em que a mãe defende a aspectualização pontual, como é mais comum
música e o pai, os quadrinhos. na encenação do teatro.
Desse modo, música e HQ são figurativi- O sincretismo da semiótica plástica na
zações do núcleo da neurose: são figuras que semiótica da ópera, portanto, é diferente de
representam o conflito entre os pais, de como ele funciona sincretizado com o verbal na
resultados trágicos; são figurativizações do semiótica da história em quadrinhos. Estranha à
objeto de valor, uma vez que dão forma às linguagem da ópera, a inserção do texto da HQ
lembranças reprimidas que se pretende alcançar mantém sua especificidade em meio à
durante a terapia; são figurativizações do valor plasticidade da ópera; contudo, por meio da
abjeto, pois vem delas os sintomas que afetam manipulação textual, a HQ, antes figura do plano
Antonio. de conteúdo, torna-se texto nas mãos dos co-
Nesse drama psicanalítico, a HQ d’O caçador enunciadores do espetáculo.
de crocodilos é tomada como mais um Em suas declarações, Antonio relata um
deslocamento dos conteúdos reprimidos e revela sonho em que as notas de uma partitura borrada
para o paciente o trauma que gera suas se transformam em pássaros e levantam vôo.
alucinações e fobias. Nessa perspectiva, a música ganha dimensões
Inserida na narrativa da ópera, a HQ partilha espirituais ao permitir que, por meio dela, haja
com ela a mesma distribuição temática e transcendência. Ao espionar a mãe pelo buraco
figurativa, pois suas personagens são tomadas da fechadura, o menino a vê nua, a cantar
como deslocamentos das personagens da enquanto toca violoncelo, extasiado com a beleza
encenação teatral e, conseqüentemente, da cantora e do canto. Novamente, a música se
participam da mesma crise remissivo vs. emissivo revela da ordem do místico e do transcendente.
geradora do trauma emocional discursivizado. Os quadrinhos, por sua vez, afirmam valores
contrários aos da música. No cenário, atrás do
– A INSERÇÃO TEXTUAL divã, há uma tela branca em que são projetadas
molduras de quadros vazias. Quando o sonho dos
Além de figurativizações da mãe e do pai, pássaros é contado, as molduras se transformam
a música e a HQ são também as principais em asas e voam, fazendo com que a semiótica
linguagens tematizadas em O homem dos plástica afirme o mesmo que é contado na
crocodilos e manifestadas em seu plano de encenação teatral e no canto. Nesse primeiro
expressão. momento, a semiótica plástica está de acordo
No sistema semiótico da ópera, há com os valores transcendentes relacionados à
confluência de sistemas semióticos verbais, semiótica musical.
musicais e plásticos. Em linhas gerais, a Ao falar dos quadrinhos que o pai lhe dava,
figuratividade do plano de conteúdo se manifesta porém, a HQ nos conta a relação de Antonio com
distribuída em sistemas plásticos sincretizados a mãe em termos mais profanos. As mesmas

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Análise textual da história em quadrinhos

molduras, antes vazias, ao invés de se tornarem enunciadores, a dimensão de uso semiótico, que
pássaros, são preenchidas com os quadrinhos da pode ser chamada pragmática.
revista e os quadros se transformam na projeção Na textualização da ópera, faz parte da
da HQ sendo folheada. Trata-se de revelar os fruição do texto todo o aparato que coloca sua
conteúdos libidinosos do menino e de mostrar encenação em movimento. Estudar os textos das
as lembranças reprimidas a propósito da delação óperas em libretos, partituras, ou gravações é
e do assassinato. Em orientação contrária à da sempre uma mutilação de sua forma de
música, a HQ materializa os desejos sexuais e a manifestação integral, em que os co-
culpa do protagonista. enunciadores devem participar da apresentação
Desse modo, a inserção textual da HQ segue do espetáculo, seja como observadores, seja nas
este percurso ao longo do texto da ópera: muitas formas de interação entre palco e platéia,
1) a partir da semiótica plástica que dá propostas pelas escolas de teatro.
forma aos quadros projetados no cenário, o texto Em sua dimensão pragmática, uma ópera não
da HQ se materializa no texto da ópera, mas ainda é portátil, como a música em suas reproduções
são projeções de quadrinhos no cenário da peça. mecânicas e eletrônicas, ou as histórias em
2) antes da lembrança de Antonio se revelar quadrinhos, em suas reproduções gráficas.
completamente, as luzes se apagam e Arrigo Quando Antonio, durante a terapia, mostra
Barnabé – um dos narradores cantores – entra para a analista uma reprodução do gibi O caçador
no palco com uma lanterna acesa e a revista em de crocodilos, comenta que ele é real, que existe
quadrinhos nas mãos. Pede que se acendam de fato, que o gibi se pode folhear, pode-se tocar.
também as luzes da plateia e todos leem juntos Quando Arrigo lê com a platéia o mesmo texto e
O caçador de crocodilos, que aparece sincretizada ele se reproduz materialmente entre os co-
com a semiótica musical, na mesma técnica de enunciadores, o apresentador diz as mesmas
composição utilizada em Tubarões voadores. palavras do protagonista da ópera: que a HQ
3) por fim, o texto da HQ se materializa existe, que pode ser tocada.
das projeções do cenário para as mãos e os olhos Essa inserção pragmática entra em relação
dos co-enunciadores do espetáculo. Nesse com o texto da ópera em, pelo menos, duas
momento, a inserção textual desencadeia a instâncias semióticas: ela está de acordo com a
inserção pragmática e as dimensões de uso do relação espiritualização da música vs.
objeto HQ ganham pertinência nos efeitos de materialização dos quadrinhos no que diz
sentido d’O homem dos crocodilos. respeito a sua inserção narrativa e discursiva; ela
prepara a etapa final da inserção textual da HQ.
– A INSERÇÃO PRAGMÁTICA Lida por Arrigo, o texto dos quadrinhos ainda
aparece sincretizado com o texto musical que a
Ao ser definido entre os planos de conteúdo acompanha, entretanto, uma vez que o gibi
e expressão, o texto não se limita a ser uma rede permanece pragmaticamente com os co-
de correlações de categorias entre ambos. A forma enunciadores depois do espetáculo, a leitura
da expressão, além de configurar uma rede de conjunta prepara a singularização do texto da
relações entre categorias próprias e de manifestar HQ e a semiótica específica de seu tipo de texto
relações entre elas e as categorias semânticas do surge isolada do texto integral da ópera.
conteúdo, garante, na construção do texto A seu modo, os quadrinhos de Luiz Gê
enquanto objeto de circulação entre os co- colocam em crise os limites da encenação teatral

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e os limites da própria ópera. Ao singularizar a Antonio – Não sinto minhas mãos, tenho
semiótica dos quadrinhos no final e depois do medo que ele me corte os dedos.
espetáculo, a HQ termina a encenação da ópera Psicanalista – Quem é ele?
ao mesmo tempo em que dá continuidade a ela. Antonio – Não sei... às vezes as palavras
Singularizada, sua semiótica põe fim à semiótica vão aonde querem e a gente se perde nelas...
da ópera, substituindo um tipo de texto por
outro, mas mantém sua continuidade na medida Dono da fala, Antonio se perde nela como
em que faz parte do texto integral da ópera se o menino se perde na HQ. Criador de seu discurso,
desenvolver assim. o paciente não deixa de perceber o quanto suas
Encaminhada pela inserção narrativa e palavras se tornam criatura, a ponto de gerar o
discursiva, a materialização do texto da HQ próprio Antonio e seus sentidos e manipulá-lo
cumpre seu papel textual e pragmático na de acordo com elas.
semiótica geral d’O homem dos crocodilos, que O outro processo de inserção mitológica
determina o sincretismo entre a linguagem da está relacionado com as inserções textual e
ópera e a da história em quadrinhos. pragmática. Uma vez materializado entre os co-
enunciadores do espetáculo, o texto da HQ ganha
– A INSERÇÃO MITOLÓGICA sua autonomia e afirma sua singularização,
mostrando que HQ e opera não têm o mesmo
Do mesmo modo que a HQ oscila entre estatuto semiótico.
ser criação, obra do autor, e criatura, obra à Ao permanecer enquanto objeto que “se
revelia dele, há na ópera, no mínimo, dois pode folhear, que se pode tocar” à revelia do
processos que se encarregam de gerar o mesmo final do espetáculo, a HQ, antes parte da ópera
efeito de sentido e de promover a inserção da e sob seus domínios textuais, adquire seus
mitologia da criação artística tematizada n’O próprios domínios semióticos e passa a gerar a
caçador de crocodilos na mitologia geral do ópera a partir de si mesma.
espetáculo. Dispersa entre os co-enunciadores, a HQ,
Um dos processos diz respeito aos percursos antes objeto das personagens, torna-se objeto
temáticos e figurativos d’O homem dos croco- de todos. Enquanto objetos semióticos criados
dilos. No decorrer da ópera, Antonio busca ajuda pelo texto da ópera desde as projeções no palco
com dois psicanalistas: uma mulher, sua analista até a leitura coletiva e sua multiplicação e
ao longo do texto; um homem, na última cena, dispersão finais, os textos da HQ – como as
depois da leitura da HQ. Em ambas as cenas, o palavras de Antonio – tornam-se criaturas, vão
diálogo entre médico e paciente é o mesmo: aonde querem e a ópera se perde neles.

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7. HISTÓRIA EM QUADRINHOS E ESCULTURA

Em 20 de janeiro de 2007, no espaço Para dar uma ideia aproximada desse seu
Calligraphia, na cidade de São Paulo, Claudio Rocha trabalho, está reproduzida, nas páginas seguin-
organizou a exposição Manequim arte, na qual, tes, uma versão dele, publicada na revista O
conforme sua proposta, manequins femininos ser- mundo de Playboy (edição 398-B, Abril, 2007:
viriam de base para a intervenção de vários artistas. pp. 31-37), com fotos de Gustavo Lacerda.
Entre eles, Luiz Gê desenhou, sobre o corpo de uma
delas, a história em quadrinhos da “Borba Gata”.
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Os quadrinhos em três dimensões Uma vez desenhados sobre superfícies


tridimensionais, como o corpo dos manequins,
Enquanto sistemas semióticos plásticos, a leitura usual dos quadrinhos é reformulada em
cujos planos de expressão podem ser descritos função da dimensão adicional, própria de outros
por categorias cromáticas, eidéticas e topoló- sistemas semióticos, e novos efeitos de sentido
gicas, a pintura, a fotografia, a escultura e a tendem a ser realizados pelo sincretismo entre a
arquitetura podem ser diferenciadas umas das semiótica sincrética dos quadrinhos e a semiótica
outras por modos particulares de organizar, na plástica da escultura.
manifestação textual, essas três categorias Entretanto, a narratividade descrita em
fundamentais. termos do fazer missivo e a relação entre temas
A fotografia e a pintura se manifestam em e figuras da semântica discursiva da “Borba Gata”
duas dimensões, enquanto a escultura e a são realizadas no plano de conteúdo do texto,
arquitetura, em três, o que faz com que os percursos que pode ser isolado do plano de expressão –
do olhar entre ambos os grupos sejam diferentes. em que a HQ se manifesta sincretizada com a
As semióticas bidimensionais determinam percursos escultura – e analisada separadamente. Determi-
perante o espaço plano; e as tridimensionais, nada a geração do sentido no plano de conteúdo,
percursos ao redor – no caso da escultura – ou é possível, em seguida, analisar o plano de expres-
percursos através – no caso da arquitetura. são e a formação do texto com mais segurança.
A história em quadrinhos, nesse ponto de
vista, aproxima-se da fotografia e da pintura, O fazer missivo e a
exceto pelos limites do texto determinados pela relação entre temas e figuras
semiótica de cada um dos três sistemas de
significação. A fotografia e a pintura tendem à A aventura da “Borba Gata” está baseada
manifestação em apenas um quadro, enquanto na típica disputa entre gato e rato, que serve de
os quadrinhos, em mais de um. Evidentemente, inspiração para as aventuras de muitos outros
tratando-se de uma tendência, nada impede que heróis dos desenhos animados e dos quadrinhos,
trípticos ou outros tipos de montagens sejam como Tom e Jerry; Plic, Ploc e Chuvisco; Comichão
formados por pinturas ou fotografias, e que haja e Coçadinha; Squeak the mouse, de Mattioli;
histórias em quadrinhos de um quadro só. Ignatz Mouse e Krazy Kat, de George Herriman;
Contudo, a bidimensionalidade permanece. etc.
Tais propriedades dos quadrinhos – ser A Borba Gata é o sujeito da narrativa e o
bidimensional e apresentar-se em seqüência de rato, seu inimigo, o antissujeito. Definidos assim,
quadros – favorecem sua leitura em seqüência e eles constituem o par antagônico que sustenta
promovem uma orientação na fruição do texto, as perseguições de gato e rato, que determinam
que costuma seguir a orientação da leitura da o discurso da HQ. O rato, obsceno, busca entrar
semiótica verbal em suas ocorrências na escrita. dentro do corpo da Borba Gata – seja pelo canal
No ocidente, a leitura se dá da esquerda para vaginal, seja pelo ânus – enquanto ela consegue
direita, de cima para baixo, com a ordenação se defender das investidas do inimigo.
das páginas da primeira em direção a última, No fazer emissivo, a Borba Gata busca
diferentemente dos mangás, cuja leitura das manter a integridade do corpo, em vias de ser
imagens segue a orientação da leitura dos violado pelo ratinho perverso. Trata-se, portanto,
ideogramas japoneses. de manter a conjunção com os valores da

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integridade, ameaçada pelo fazer do rato especificamente com a inimiga mais famosa do
inimigo. Já o fazer remissivo, realizado na relação Batman, a Mulher Gato, e com todo o imaginário
sujeito-antissujeito, aparece nos percursos do erótico de dominadora sadomasoquista que, nas
rato sobre o corpo da heroína e na afirmação dos últimas versões cinematográficas da personagem, por
valores da transgressão. meio de chicotes, garras e roupas de couro, enfatizou
Na HQ da “Borba Gata” o emissivo resiste traços já presentes em suas versões mais antigas.
ao remissivo, visto que ela termina por expulsar Essas duas interdiscursividades – com as
o ratinho invasor, pelo menos, na leitura pelejas entre gato e rato e com os super-heróis –
bidimensional dos quadrinhos, que, a seu modo, garantem a tematização metalingüística
orienta a leitura de cima para baixo, da esquerda articulada com a tematização prática do assédio
para a direita, de frente para trás, de acordo com sexual, pois se trata de dar forma a uma figurati-
a posição ereta do corpo do manequim. vidade em que os quadrinhos tematizam os
Regidos pela emissividade e na tensão em próprios quadrinhos.
que se realiza a categoria semântica integridade Aludindo a outros quadrinhos, de outras
vs. transgressão, o tempo surge na HQ acelerado personagens e de outros autores enquanto
nas defesas que Borba Gata faz do corpo e nas mulher-gata, que persegue um ratinho, a Borba
investidas do rato; e o espaço se abre ao longo Gata também se refere a outros quadrinhos e a
dos braços, das pernas, do colo, do ventre, das outras personagens do próprio Luiz Gê.
costas da heroína. Seduzido pelos monumentos históricos da
Sobre o fazer missivo, articulam-se as cidade de São Paulo, Luiz Gê costuma, ao lado
relações entre temas e figuras, formadas na de iconizá-los na espacialização de numerosas
semântica discursiva. histórias em quadrinhos, como “Gino Amleto
No que diz respeito à tematização prática, Meneghetti”, “Vôo Cego” e, em especial, na
há a colocação em discurso da peleja entre a “História da Avenida Paulista”, também costuma
gata e o rato. Geralmente determinada pela transformá-los em pessoas do discurso, como em
categoria semântica vida vs. morte – como nos “Entradas e Bandeiras”, em que as estátuas do
casos citados de Tom e Jerry, Plic, Ploc e Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret,
Chuvisco, em que o gato é predador do rato; ou do Parque do Ibirapuera, e o Borba Gato, da
nos casos de Comichão e Coçadinha, Squeak the Avenida Santo Amaro, ganham vida e atravessam
mouse, Ignatz Mouse e Krazy Kat, em que o a Avenida Brasil em seu cruzamento com a
sadismo do rato vai de encontro à tontice do Avenida Brigadeiro Luís Antonio. A Borba Gata,
gato – esse tipo de peleja ganha, em Luiz Gê, estátua no corpo do manequim e personagem da
além de uma determinação semântica diferente, HQ desenhada sobre ela, dialoga com a estátua
formada pela categoria semântica integridade vs. do Borba Gato, evidentemente, mas também com
transgressão, uma determinação erótica, em que o Borba Gato de Luiz Gê, que como a Borba Gata,
o rato assedia sexualmente a gata. é uma estátua que ganha vida e movimento
Outra diferença reside no delírio figurativo, em quando se torna personagem dos quadrinhos.
que o gato é uma mulher vestida de gata e o rato é A interdiscursividade com personagens e
um animal personificado. Desse modo, ao lado da quadrinhos estrangeiros, portanto, dialoga com
interdiscursividade com as perseguições clássicas os quadrinhos e a cultura brasileira, mais
entre os animais, há interdiscursividade com as especificamente, com a cultura paulistana e a
histórias em quadrinhos de super-heróis, obra do autor.

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Análise textual da história em quadrinhos

A articulação da tematização prática da internacionalização que a nacionalização do


perseguição-assédio com a metalingüística leva Brasil.
à dedução de uma tematização mítica a Essa polêmica entre o pensamento
propósito da cultura brasileira e de seu processo internacionalista e o nacionalismo ingênuo, além
de construção. Na perseguição-assédio, a Borba de determinar as diferenças entre Sousândrade e
Gata e o ratinho inimigo estão investidos de Gonçalves Dias, no romantismo, Oswald de
conotações metalingüísticas, que se referem às Andrade e Mario de Andrade, no modernismo
relações entre o quadrinho nacional e o brasileiro, Haroldo de Campos e Antonio Cândido,
estrangeiro. A Borba Gata tem sua parte na crítica literária, determina boa parte dos
brasileira, aquela do Borba Gato – o da estátua resultados do que é considerado belo, bom e
e o dos quadrinhos do autor – e sua parte verdadeiro nas artes do Brasil.
estrangeira, aquela da Mulher Gato e a dos demais No mesmo festival da TV Tupi em que Arrigo
gatos das perseguições entre eles e os ratos – Barnabé foi vaiado com a música “Sabor de
Tom, Chuvisco, Krazy Kat, etc. O ratinho inimigo, veneno”, na qual dialoga com outras tradições
por sua vez, é uma caricatura brasileira do Mickey musicais além da brasileira, foi premiada a toada
Mouse original norte-americano, de Walt Disney. conservadora de Dominguinhos “Quem me levará
A perseguição-assédio, por isso, pode ser sou eu”, interpretada por Raimundo Fagner. Ou
correlacionada à construção do imaginário seja, uma canção de vanguarda, de estrutura
nacional no que diz respeito aos diálogos que musical complexa, perdeu para uma toada,
estabelece com o material estrangeiro em sua provavelmente, devido aos valores nacionalistas
produção. Se na tematização prática a categoria que orientaram o público, a platéia, os jurados
semântica integridade vs. transgressão determina e a crítica que sancionaram positivamente uma
as defesas do e o assédio ao corpo da Borba Gata, canção e vaiaram a outra.
na tematização mítica ela determina a Próximos ideologicamente quanto às
integridade da produção nacional perante os relações entre o nacional e o estrangeiro na
elementos estrangeiros capazes de transgredi-la produção artística no Brasil, Luiz Gê e Arrigo
e modificá-la, integrados a ela. Barnabé agem como Oswald em sua
No assédio do Mickey brasileiro e nas defesas antropofagia: o músico complexificando Weber
da Borba Gata é possível ler, desse ponto de vista, e Paulinho da Viola; o artista plástico
a perseguição de uma identidade nacional que complexificando o Mickey e o Borba-Gato.
se constrói na medida em que incorpora – no Da mesma maneira que na antropofagia o
caso do manequim, a incorporação é literal – o brasileiro devora o estrangeiro – como os índios
material de outros países. antropófagos devoraram o Bispo Sardinha – em
Longe do pensamento nacionalista “Borba Gata”, a mulher-gata-bandeirante
ingênuo, que procura se construir na busca da desbrava o território nacional na medida em que
ilusão de supostas fontes genuinamente o constrói e, na iminência de ser sodomizada
brasileiras, afundando-se no passado e no pelo ratinho perverso parecido com o Mickey,
território nacionais, Luiz Gê se aproxima de ameaça devorá-lo, pois as nádegas da heroína
autores como Oswald de Andrade que, de acordo têm a forma de cara de gato, pronto para comer
com Décio Pignatari, buscam antes a o ratinho ansioso.

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As duas dimensões dos quadrinhos A HQ, embora literalmente mantenha pé e


nas três dimensões do manequim cabeça, realiza-se dispersa e, do que se espera a
perfectividade dada pela estrutura discursiva
Analisados os quadrinhos em sua semiótica formada por começo-meio-fim, revela-se a
particular, os efeitos de sentido gerados pela imperfectividade na duração de um processo sem
distribuição da HQ ao longo do corpo do limites definidos.
manequim podem ser examinados. Além desses efeitos, gerados pela
Há dois deles, pelo menos, que se apresen- metalinguagem e pela estratégia discursiva de
tam imediatamente ao leitor atento: as relações distribuição tridimensional dos quadrinhos, há
entre as partes do corpo percorridas e a colocação mais dois efeitos semióticos que merecem
dos quadrinhos; a indeterminação do final da atenção.
história sugerida pela distribuição tridimensional Leitor apenas dos quadrinhos, o
dos mesmos. enunciatário do texto é convidado a admirar o
Em várias passagens da “Borba Gata”, as corpo da Borba Gata, como admiraria o corpo de
personagens se referem às partes do corpo da quaisquer outras heroínas fantasiadas. Entretanto,
manequim, que também funciona como colocado de pé, perante o manequim, assim como
personagem, ora na totalidade do corpo – pois o ratinho, ele também termina por assediar o
o manequim é a própria Borba Gata – ora nas corpo humano, textualizado no corpo do
partes dele convocadas nos diálogos entre ela e manequim. Seguindo os quadrinhos, ele passa
o ratinho. pelos seios, os braços, penetra o túnel do
Esse efeito, que desaparece na leitura da umbigo, desce à altura das coxas, alcança as
HQ fora do corpo do manequim e se deve à nádegas e encontra o gato, pronto para comê-
disposição tridimensional dos quadros, também lo, antes de escapar pelos pés.
indetermina qual deles é o último ou qual é o Por fim, manipulado em seu percurso de leitura
primeiro da narrativa. Abordada de frente para e de assédio, o leitor encontra a HQ e sua
trás e de cima para baixo, a leitura se aproxima personagem principal sincretizadas no mesmo
da leitura convencional dos quadrinhos corpo. A Borba Gata, portanto, não é apenas uma
ocidentais, todavia, nada indica que essa é a personagem, mas é a história em sua totalidade,
única maneira de ler a “Borba Gata”. sendo não apenas parte da trama, mas a trama toda.
Longe de fechar o ciclo, em que o final se Esse efeito semiótico, também gerado pela
aproxima do início, como é o caso da “História disposição tridimensional da HQ, ratifica a
da Avenida Paulista”, em “Borba Gata” o sentido concepção de arte nacional determinada na
de leitura se abre no corpo do manequim a outras tematização mítica. Além de poder comer o
possibilidades, sem excluir as leituras linear e ratinho invasor, a Borba Gata incorpora,
cíclica. Disposto desse modo no espaço, o tempo literalmente, a tensão entre o nacional e o
de leitura tende à concomitância das cenas, antes estrangeiro. Em outras palavras, ela se torna
ordenadas em anteriores e posteriores, fazendo imagem da antropofagia que ela tematiza por
com que começo, meio e fim encontrem a ser, ao mesmo tempo, a Borba Gata e sua história
simultaneidade. escritas no mesmo corpo.

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BIBLIOGRAFIA

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SOBRE OS AUTORES

ANTONIO VICENTE SERAPHIM PIETROFORTE LUIZ GERALDO FERRARI MARTINS

• Formado em Português e Lingüística na •Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1977.
da Universidade de São Paulo. • Chargista editorial do jornal Folha de São Paulo,
• Fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência de 1976 a 1984.
em Semiótica na mesma Faculdade, onde leciona • Prêmio casa de las americas na segunda Bienal
desde 2002 no Departamento de Lingüística. Internacional de Humor, Cuba, 1981.
• Atua nos cursos de graduação em Letras e no • Fundador e editor da revista Balão, de humor
curso de pós-graduação em Semiótica e e quadrinhos, USP, de 1972 a 1975.
Lingüística Geral • Livro de charges políticas, “Macambúzios e
• Na área acadêmica, é autor de: Sorumbáticos”, Editora T. A. Queiroz, 1981.
Semiótica visual - os percursos do olhar (1ª ed, • Livro de quadrinhos, “Quadrinhos em Fúria”,
Contexto, 2004; 2ª ed, Contexto, 2007); Circo Editorial, 1984.
Análise do texto visual - a construção da imagem • Livro de “tiras”, “O mal dos séculos”, Editora
(1ª ed, Contexto, 2007; 2ª ed, Contexto, 2008); Melhoramentos, 1987.
Tópicos de semiótica - modelos teóricos e • Editor de arte da revista Status nos anos de
aplicações (Annablume, 2008). 1985 a 1986.
• Na área literária, é autor de: • Editor da revista Circo de quadrinhos, de 1986
Amsterdã SM (romance, DIX, 2007); a 1987.
O retrato do artista enquanto foge (poesias, DIX,
• Master of arts pelo Royal College of Art,
2007);
Londres, Curso de Pós Graduação, de 1987 a
Papéis convulsos (contos, DIX, 2008);
1989.
Palavra quase muro (poesias, Demônio Negro,
• Número especial da revista Goodyear, com a
2008);
história de 66 páginas, Fragmentos Completos,
Concretos e delirantes (poesias, Demônio Negro,
sobre a história da Avenida Paulista, 1991.
2008);
• Prêmio melhor desenhista e produção gráfica
M(ai)S - antologia SadoMasoquista da Literatura
de 1991, HQMIX, 1992.
Brasileira (DIX, 2008), organizada com o escritor
• Livro de quadrinhos, “ Território de Bravos”,
Glauco Mattoso;
Editora 34, 1993.
Fomes de formas (poesias, Demônio Negro, 2008),
• Prêmio melhor projeto gráfico de 1993, prêmio
composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo
HQMIX, 1994.
Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea,
• Redator-autor para a Rede Globo de Televisão,
Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco
Pontes. de 1993 até 1998.
A musa chapada (poesias, Demônio Negro, 2008), • Professor adjunto da Faculdade de Comunicações
composta com o poeta Ademir Assunção e o e Artes da Universidade Mackenzie, de 1994 em
artista plástico Carlos Carah. diante.
Análise textual da história em quadrinhos

• Chefe do departamento de ciências gráficas da • Exposição de trabalhos duas vezes no Salon


Faculdade de Comunicações e Artes da Internacional de la Bande Dessinée de
Universidade Mackenzie, de 1996 a 2000. Angoulême, França, em 1975 e 1986. Coletiva
• Concepção visual (cenário, iluminação, no Royal College of Art, Inglaterra, 1988.
figurino, animações, história em quadrinhos, Amostra de quadrinhos de Nuremberg, Alemanha,
peças gráficas) para a ópera de Arrigo Barnabé O 1988. Exposição sobre o trabalho Fragmentos
Homem dos Crocodilos, São Paulo, Rio, Buenos Completos nas quatro estações de metrô do ramal
Aires, 2001. Paulista, 1992. Exposição de Quadrinhos de
• Doutor em ciência da comunicação pela Escola Prato, Itália, 1986.
de Comunicações e artes da Universidade de São • Transpôs a linguagem dos quadrinhos para
Paulo, 2004. outras linguagens, tais como a música nos LPs
• Prêmio Ângelo Agostini ‘Mestre do Quadrinho Clara Crocodilo e Tubarões Voadores com Arrigo
Nacional’, SENAC, 2005. Barnabé, o cinema, como roteirista para o longa
¨ Prêmio HQ MIX Grande Mestre do Quadrinho metragem Cidade Oculta, de Chico Botelho, o
Nacional, SESC, 2005. outdoor, para o evento Arte na Rua, o rádio, como
• Autor e diretor visual da ópera Até que se roteirista de novela humorística para a Rádio
apaguem os avisos luminosos, em co-autoria com Bandeirantes. O áudio visual, com curta didático
Arrigo Barnabé e Bruno Bayen, SESC, 2006. para o curso Indac, a televisão criando roteiros,
• Colaborou com as principais publicações do personagens, cenários e quadros para o programa
país, nas áreas de ilustração, charge, cartum, TV Colosso, assim como, com animações do
história em quadrinhos, direção de arte e/ou próprio trabalho, via computador. A computação,
edição: Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, com animação programada, quadrinhos e outros
Jornal do Brasil, Diário do Comércio e Indústria, trabalhos, o ensino, como autor, professor e
Shopping City News, Jornal da República, Visão, palestrista, com livros, seqüências audiovisuais
Veja, Isto É, Placar, Status, Careta, Movimento, e métodos próprios àquela linguagem e
Versus, Pasquim, Folhetim, Ex., Ovelha Negra, finalmente, na Inglaterra, fez ainda outras
Extra, Leia Livros e outros. experiências com a animação e a escultura.
• Publicou quadrinhos no Brasil nos jornais e • Viagens de estudo e observação para o Peru,
revistas Balão, Bicho, Inter Quadrinhos, em 1973, Inglaterra e Europa, em 1975 com
Almanaque Gibi Atualidade, Chiclete com Banana, curso de língua na Inglaterra, França, em 1975,
Folha de São Paulo, Folhetim, Pasquim, Extra, como artista convidado do Salão Internacional
Jornal da República, Placar, Status, Movimento, de Angoulême, Cuba, em 1981, como convidado
Versus, Ovelha Negra, Medicina e Cultura, Diário para a Reunião de Intelectuais Latino
do Paraná, Pipoca Moderna, Revista Goodyear, Mil Americanos, Pará, em 1984, como enviado
Perigos e Revista Circo. especial da revista Extra, Argentina, em 1985,
• Publicou quadrinhos no exterior em Schwernn como enviado especial da revista Status, França
Mettal e U-Comix na Alemanha, El Vibora e Zona e Inglaterra, em 1986, como participante da
84 na Espanha, Comics na Itália, Cozmic Comics delegação brasileira de quadrinistas, para o Salão
Crisis na Inglaterra, Visão em Portugal e teve o de Angoulême, Inglaterra, de 1987 até 1990,
trabalho citado e analisado em World Press Review para o curso de mestrado no Royal College of
nos EUA, Linus na Itália, Fierro a Fierro na Art, Portugal como expositor e palestrante no
Argentina, Histoire Mondiale de la Bande Dessinée IV Salão Intenacional de Banda Desenhada,
na Suíça, Historia Mundial del Comics na Espanha. Lisboa, 1997.

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