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Análise Textual Da História em Quadrinhos - Pietroforte PDF
Análise Textual Da História em Quadrinhos - Pietroforte PDF
ISBN 978-85-7419-902-3
CDU 003
CDD 302.2
Coordenação de produção
Ivan Antunes
Revisão
Ivan Antunes
Produção
Rai Lopes – Paginação
Capa
Carlos Clémen
Finalização
Catarina Consentino
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Aléssio Ferrara
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 7
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APRESENTAÇÃO
A
nálise textual da história em quadrinhos foram selecionados seis trabalhos do quadrinista
– uma abordagem semiótica da obra de e artista plástico Luiz Gê, que, juntamente com
Luiz Gê é um livro escrito com três as análises, encaminham o leitor para os
objetivos principais. desenvolvimentos teóricos.
Antes de tudo, trata-se de um trabalho de A escolha de um único autor, além de dar
semiótica. A semiótica proposta por Algirdas uniformidade aos estudos, determina o terceiro
Julien Greimas, ao longo de seu desenvolvi- objetivo do livro: preservar e valorizar a arte de
mento, é re-elaborada constantemente. A teoria um dos quadrinistas mais representativos do
foi modificada pela semiótica das paixões, pelo Brasil.
semissimbolismo, encontra-se em fase de O livro está dividido em sete capítulos: no
transformação devido às propostas recentes da primeiro, A abordagem semiótica da história em
semiótica tensiva. Este livro vem ao encontro quadrinhos, há uma breve introdução à semiótica
destas últimas propostas, visto que cuida de geral e a suas aplicações; no segundo, O fluxo
descrever e aplicar o tópico do fazer missivo, discursivo, é introduzido o modelo teórico do
com a intenção de mostrar suas contribuições fazer missivo; no terceiro, O delírio figurativo,
na construção do percurso gerativo do sentido. analisa-se a formação da figuratividade na HQ;
Com a teoria aplicada a um objeto especí- no quarto, A articulação da realidade, estudam-
fico, o livro trata também da semiótica das se os modos de simular o real e representá-lo.
histórias em quadrinhos. As HQs constituem uma Nos capítulos quinto, sexto e sétimo, são
linguagem sociossemioticamente reconhecida, analisados os quadrinhos sincretizados,
com particularidades próprias, problematizadas respectivamente, com as semióticas da música,
e examinadas ao longo dos capítulos. Para tanto, da ópera e da escultura.
1. A ABORDAGEM SEMIÓTICA
DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS
Com definições tão imprecisas, é possível que não pode ser considerado uma história em
afirmar que o teto da Capela Cistina é uma história quadrinhos.
em quadrinhos e que os hieróglifos do Egito e Trata-se, no caso, de mostrar como a semi-
os ideogramas japoneses também são. A definição ótica proposta por A. J. Greimas e desenvolvida
de uma linguagem, além de suas propriedades por seus colaboradores – com ênfase nas propostas
semióticas enquanto sistema de significação, de F. Rastier, J. M. Floch e C. Zilberberg –
depende das conotações sociais, de ordem encontra caminhos nos estudos da manifestação
sociossemiótica, investidas nela. Embora pareça, textual de um tipo de linguagem que, nas
o trabalho de Michelangelo não é uma HQ, sociedades contemporâneas, é chamada história
nenhum historiador da arte, de bom-senso, faria em quadrinhos e assim reconhecida.
tal consideração. Não basta a sequência de
imagens em quadros separados para caracterizar A semiótica e seu objeto de estudos
uma HQ – como no caso da Capela Cistina – o
meio social em que a linguagem surge deve O objeto de estudos da semiótica proposta
reconhecê-la como tal. por Greimas é a significação.
Enquanto sistemas de significação, as HQ Diferente de boa parte da filosofia, que
dependem, pelo menos, de sua reprodutibilidade concebe sentidos a priori na ordenação do mundo
pragmática, uma vez que podem ser reproduzidas a serem desvelados por ela, a semiótica parte do
sem perder o valor artístico – diferentes das princípio de que o sentido é antes construído,
pinturas, mas próximas das fotografias; e do que dado a ser descoberto; portanto, cabe ao
reconhecimento social capaz de sancioná-las semioticista investigar o processo que garante a
seja como uma determinada linguagem em sua geração e não o seu desvendamento. À
oposição a outras linguagens, seja como forma maneira de Greimas, pode-se afirmar que a
de arte. semiótica não estuda o sentido do ser, mas o ser
Em síntese, a história em quadrinhos é do sentido.
definida em polêmicas semióticas a respeito de Se essa postura afasta a semiótica da lógica
seus processos de significação e em polêmicas
e da filosofia, termina por aproximá-la da retórica
sociossemióticas a respeito de seu valor enquanto
e da sofística, cujos pressupostos confluem para
tipo de discurso. Definida em processos
a máxima “o que se faz com palavras se desfaz
intertextuais, entre a constituição de uma
com palavras”. Em semiótica, o que se faz por
linguagem específica e outras linguagens afins,
meio da significação também se desfaz por meio
como a pintura, a fotografia, a literatura, etc, a
dela.
história em quadrinhos não tem inventores, mas
Enquanto uma proposta com aspiração
elaboradores, que investem em suas transfor-
científica, como diz o próprio Greimas, a
mações até os dias atuais.
semiótica desenvolve um modelo de análise para
No trabalho que segue, não faz parte dos
descrever, em seu ponto de vista, a geração do
objetivos de análise nem abordagens históricas
sentido, ou seja, significação.
– para tanto o leitor encontrará vasta biblio-
Chamado percurso gerativo do sentido, esse
grafia, em especial, os quatro volumes da Historia
modelo parte de algumas hipóteses de trabalho.
de los comics, da editora espanhola Toutain –
Uma delas é a de que o sentido se manifesta nos
nem uma tipologia do gênero com vistas a
textos em diversos sistemas semióticos, que
esclarecer, em que contextos, o que pode e o
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podem ser verbais, plásticos, musicais e até sistemático na formação do sentido no plano de
mesmo sincréticos, quando dois ou mais sistemas conteúdo.
semióticos aparecem articulados – como no caso
das canções, das HQs com balões e legendas, do O percurso gerativo do sentido
cinema falado, da ópera, etc.
O texto, por sua vez, manifesta-se na relação A semiótica concebe o sentido formado em
do plano de conteúdo com o plano de expressão: redes de relações, geradas em um percurso que
no plano de conteúdo, o sentido é gerado para parte de categorias gerais e abstratas, que se
se manifestar na expressão; no plano de realizam na enunciação de modo concreto e
expressão, o sistema semiótico se define, podendo específico.
ser de ordem fonológica, plástica, musical ou A metodologia da análise semiótica pode
sincrética. ser comparada a da análise sintática. A sintaxe
Não se trata da oposição conteúdo e forma, não estuda todas as frases das línguas, mas o
em que conteúdos fora do texto se tornam texto processo geral e abstrato que forma todas elas.
por meio da forma, e o conteúdo é “o que se As frases “o menino leu os quadrinhos” ou “o
diz” e a forma, o “como se diz”. Em semiótica, aluno aprende semiótica”, apesar de significados
uma vez que o sentido é gerado no texto, não há distintos, possuem a mesma forma sintática
“o que se diz” fora do “como se diz”, pois, em sujeito + verbo + objeto direto. Essa estrutura,
seus pressupostos, não há coisas fora da além de determinar os significados das frases –
linguagem determinando relações entre palavras uma vez que determina o sujeito da voz ativa do
e coisas, ou entre fatos e discursos. verbo – também serve de modelo para inúmeras
Para a semiótica, há uma forma no conteúdo outras, além das duas dos exemplos dados.
– ou seja, uma semântica – que realiza o sentido, A semiótica, porém, não se limita a ser uma
e uma forma na expressão, que o manifesta. Nessa sintaxe do discurso, pois incorpora, em seu
relação entre a forma do conteúdo e a forma da modelo, as relações semânticas que garantem
expressão, o sentido é construído nos textos. seus significados particulares. Desse modo, a
Partindo da hipótese de trabalho temporária semiótica é uma teoria do discurso, mas é
de que é possível manifestar conteúdos também uma teoria do estilo e, até mesmo, uma
semelhantes em planos de expressão distintos, teoria poética.
nada impede que se separe plano de expressão e
plano de conteúdo para, em um primeiro – O NÍVEL FUNDAMENTAL
momento, descrever o percurso gerativo do
sentido apenas no plano de conteúdo. Partindo da hipótese de que redes de
Essa hipótese de trabalho se justifica porque relações dão forma ao significado, a semiótica
o mesmo conteúdo pode ser manifestado em busca definir, no chamado nível fundamental
planos de expressão fonológicos, plásticos, do percurso gerativo do sentido, a rede
musicais ou sincréticos, sem danos significativos fundamental de relações semióticas. Dito de
à sua forma semântica. É evidente que a expressão outro modo, visto que o sentido se forma em
modifica o conteúdo, visto que uma HQ não é a redes de relações, não se trata de determinar a
mesma coisa que um poema, no entanto, em nome relação fundamental, mas a rede fundamental
da aspiração científica, deve-se isolar as de relações.
variações da expressão e procurar aquilo que é
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continuidade descontinuidade s1 s2
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narrativo busca realizar ou manter a conjunção. formulado em termos das relações entre o sujeito
Contrariamente, o valor disfórico tende a ser e o objeto, e entre o sujeito e os demais sujeitos
evitado e, se em conjunção com ele, o sujeito narrativos: o destinador e o antissujeito. Para
narrativo busca a disjunção. Desse modo, a evitar confusões entre os termos sujeito, objeto,
categoria euforia vs. disforia , dita tímica, destinador e antissujeito, próprios do nível
projeta-se sobre os valores da categoria narrativo, e as personagens e demais pessoas do
semântica e orienta os percursos narrativos do discurso, a semiótica define os primeiros como
sujeito, que deriva para os valores euforizados. actantes narrativos e os segundos, como atores
do discurso.
– O NÍVEL NARRATIVO Do mesmo modo que na sintaxe há a oração
principal e orações subordinadas a ela, no
A introdução da narratividade nos percursos
esquema narrativo há o programa narrativo de
gerados no quadrado semiótico leva a considerar
base, em relação ao qual outros programas
o segundo nível de geração do sentido, chamado
narrativos são subordinados.
nível narrativo.
O programa narrativo se define na trans-
Em princípio, a narratividade pode ser
formação de estados juntivos por meio do fazer
definida como transformações de estado que
transformador que os modifica.
envolvem as junções do sujeito narrativo com o
Uma narrativa mais linear que o poema de
objeto de valor. Uma vez gerados no quadrado
Drummond pode facilitar a compreensão do
semiótico no nível fundamental, os valores
semânticos são convertidos em objetos de valor esquema narrativo. Em muitas versões da
no nível narrativo, em relação aos quais o sujeito Demanda do Santo Graal, para se tornar rei,
oscila entre estar em conjunção ou em disjunção. Arthur deve sacar a espada encantada da pedra
Quando em disjunção com o valor em que está presa há anos. Primeiro em disjunção
euforizado convertido em objeto, o sujeito tende com o objeto narrativo, Arthur termina em
a afirmar a conjunção. No poema de Drummond, conjunção com a espada e se torna apto para ser
o sujeito, embora retome repetidas vezes a rei e unificar o reino. A relação de Arthur com
conjunção com os valores euforizados da seu mestre Merlin se dá na relação narrativa entre
continuidade, termina sempre despojado deles sujeito e destinador, visto que a função do
pela afirmação da descontinuidade disfórica. destinador é encaminhar o sujeito em sua
Desse modo, entre a conjunção e a disjunção, o performance; e a relação de Arthur com os demais
poema está construído na complexificação dos cavaleiros que disputam a espada se dá na relação
valores semânticos e na própria instância da narrativa sujeito e antissujeito, uma vez que cabe
junção. ao antissujeito impedir a performance do sujeito.
Como está dito no início deste item, assim Depois de constituído o reino de Arthur, ele
como por meio da estrutura sintática das línguas adoece e sua cura só pode ser realizada na
é possível construir inúmeras realizações demanda do Santo Graal. Incapacitado, Arthur
diferentes da mesma sintaxe de uma frase, é espera que os cavaleiros da Távola Redonda o
possível formular um esquema narrativo que coloquem em conjunção com o novo objeto
descreva, enquanto estrutura formal, a construção sagrado.
de inúmeras narrativas diferentes. Os dois momentos da novela de cavalaria
Partindo desse encaminhamento teórico, a
ilustram duas propriedades do esquema narrativo.
semiótica propõe que o esquema narrativo seja
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por querer, ou age movido por dever, ou até semiótica da narratividade em seus desdobra-
mesmo por ambos. mentos.
Em conjunção com os objetos modais Como as modalidades dizem respeito a
querer e/ou dever, no percurso narrativo do transformações em enunciados de ser e fazer, a
contrato, e em conjunção com os objetos modais semiótica as sistematiza na relação entre uma
poder e saber, na aquisição de competência, o modalidade e um desses enunciados. Desse
sujeito está pronto para realizar a performance modo, o querer pode ser articulado ao ser e gerar
da conjunção com o objeto descritivo, que define a seguinte rede de relações modais em quadrados
o programa de base. semióticos:
Por fim, há um último percurso narrativo,
chamado percurso da sanção, em que o sujeito é
avaliado por outros sujeitos ou por ele mesmo querer-ser querer-não ser
quanto ao valor da performance. Na sanção, o
ser é articulado ao parecer, gerando-se quatro
possibilidades de validação do programa
narrativo de base: não-querer-não ser não querer-ser
verdade
Nesse modelo, querer-ser implica querer a
ser parecer
conjunção e não querer-ser, não querer a
conjunção; querer-não ser implica querer a
segredo mentira disjunção e não querer-não ser, não querer a
não-parecer não-ser disjunção.
A aplicação do mesmo procedimento às
falsidade demais modalidades e aos enunciados do fazer
permite estabelecer a rede modal que dá forma
aos desdobramentos narrativos. O querer-ser, por
exemplo, pode ir de encontro ao não saber-fazer
Nessa rede de relações veridictórias, a
e levar o sujeito a buscar o saber-fazer necessário
performance pode ser sancionada como
para realizar seu desejo.
verdadeira, falsa, secreta ou mentirosa,
A partir do mesmo esquema narrativo,
dependendo da projeção do ser e do parecer feita
muitas estratégias narrativas podem ser
sobre ela.
realizadas. Nessas variações, estados de coisas,
Em síntese, o esquema narrativo é definido
traduzidos pelas relações juntivas com os objetos
na articulação dos percursos narrativos de
modais e descritivos, e estados de alma,
contrato, ação e sanção.
traduzidos pelas paixões sofridas pelos sujeitos,
Subordinadas ao esquema narrativo, as
são gerados na narrativa. Só para citar uma delas,
modalidades do querer, do dever, do saber e do
a quebra do contrato fiduciário, quando promove
poder constituem uma problemática à parte nos
estados de coisas em disjunção, pode gerar
estudos semióticos. Uma vez que o esquema
paixões no sujeito narrativo que variam da cólera
narrativo é formado em articulações modais, a
à tristeza.
sintaxe-semântica modal é a própria forma
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texto
plano de expressão
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mais evidência que em outras semióticas afirma a conjunção com o objeto, ou quando o
plásticas, o componente cronológico, que sujeito realiza os programas de aquisição de
determina a distribuição dos quadros da HQ em competência rumo à realização da performance.
seqüência; e o componente cinético, que Esse regime missivo é chamado emissivo, pois
determina o fluxo discursivo. nele o discurso se desenvolve na continuidade
Deve-se, portanto, considerar os limites do narrativa e prossegue adiante.
semissimbolismo na análise das semióticas Entretanto, esse fluxo emissivo pode ser
plásticas e procurar resolver a questão teórica interrompido quando é afirmada a desconti-
da análise semiótica da história em quadrinhos nuidade sobre a continuidade emissiva. Em termos
de outro ponto de vista. narrativos, ocorre a parada da conjunção com o
objeto de valor ou dos programas de aquisição
Os avanços teóricos da semiótica tensiva de competência determinados por ele. Se no fazer
emissivo cabe ao destinador encaminhar o sujeito
Sem desprezar o modelo do percurso em sua performance, na afirmação da desconti-
gerativo do sentido, a semiótica tensiva, nuidade cabe ao antissujeito desencaminhá-lo.
proposta por Fontanille e Zilberberg (Fontanille Em orientação contrária à do fazer emissivo, a
e Zilberberg, 2001), resolve a geração do sentido afirmação da descontinuidade se dá no fazer
em outra perspectiva. remissivo.
Em linhas gerais, Zilberberg (Zilberberg, A tensão entre os fazeres remissivo e
2006) concebe a geração do sentido não mais a emissivo dá forma ao fazer missivo, articulado
partir de redes fundamentais de relações na relação remissivo vs. emissivo. Ancorada na
semânticas, mas a partir do processo de enunciação na pessoa do “eu”, a relação remissivo
colocação das categorias de pessoa, tempo e vs. emissivo determina as formas do tempo e do
espaço em função do desenvolvimento espaço discursivos.
discursivo. No regime emissivo, devido à afirmação da
Para tanto, define-se o fazer dito missivo continuidade narrativa, o tempo é acelerado e o
(Zilberberg, 2006: 129-147), ancorado não na espaço se abre em outros espaços. Contraria-
enunciação-enunciada – que diz respeito às mente, no regime remissivo, devido às paradas,
marcas da enunciação no enunciado produzido, ou seja, às afirmações da descontinuidade, o
seja em regime enunciativo, seja em regime tempo é desacelerado e o espaço se fecha.
enuncivo – mas na própria instância da Nesse novo nível fundamental da geração
enunciação. Nela, são definidos o “eu”, o “agora” do sentido articula-se o nível narrativo, e o
e o “aqui”, próprios da enunciação, orientados esquema narrativo é redimensionado de acordo
pelo fazer missivo de colocação em discurso com as propriedades de cada regime missivo para,
dessas três categorias. por fim, ser realizado no discurso enunciado na
O fazer missivo, por sua vez, está articulado relação entre temas e figuras discursivas.
de acordo com a categoria formal Comparando as propostas de Greimas e
descontinuidade vs. continuidade aplicada sobre Zilberberg, verificam-se, pelos menos, duas
o fluxo discursivo produzido na enunciação. A mudanças importantes do ponto de vista da
continuidade do fluxo depende da continuidade geração semiótica do sentido.
da relação juntiva entre o sujeito narrativo e o Antes de tudo, categorias que no modelo
objeto de valor: há continuidade quando se de Greimas só aparecem no último patamar do
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percurso gerativo – como é o caso das categorias são correlatos aos mesmos movimentos no plano
de pessoa, tempo e espaço – no modelo de de conteúdo.
Zilberberg são colocadas no primeiro patamar; e De certo modo, separar expressão e
categorias que no modelo de Greimas aparecem conteúdo perde a pertinência no modelo de
no nível fundamental – como é o caso da Zilberberg, visto que tratar o tempo como
categoria semântica s1 vs. s2 – organizam a duração e o espaço como movimento dá conta
figuratividade no último patamar do modelo de de sistematizar a expressão da figuratividade no
Zilberberg. mesmo nível de manifestação.
No modelo de Zilberberg, tornam-se
fundamentais a colocação discursiva e a deter-
minação de seu fluxo, que se complexifica até a Conclusão
distribuição figurativa na superfície da geração
do sentido. Em meio às instâncias do percurso Em semiótica, como em quaisquer ciências,
gerativo, a missividade determina as relações diferentes propostas de sistematização dos
entre os sujeitos e os objetos narrativos, que se modelos teóricos convivem, sejam em relações
manifestam nas relações entre temas e figuras. harmônicas, sejam em relações polêmicas.
Nessas relações temático-figurativas, os valores Sem menosprezar as contribuições de
semânticos do discurso, uma vez formados,
Greimas, ou de supervalorizar as de Zilberberg,
podem ser sistematizados nas relações do
está entre os objetivos do trabalho que segue,
quadrado semiótico.
além da análise da obra em quadrinhos de Luiz
A outra mudança do ponto de vista diz
Gê, aplicar as propostas da semiótica tensiva e,
respeito ao estatuto do plano de expressão na
em particular, a da geração do sentido por meio
manifestação do sentido. Se antes o plano de
do fazer missivo.
expressão só poderia ser correlacionado ao plano
É evidente que o modelo de Zilberberg não
de conteúdo em relações semi-simbólicas entre
está descrito em seus pormenores, principalmente
categorias semânticas e categorias da expressão,
no que diz respeito às alterações do esquema
no modelo de Zilberberg o fluxo discursivo,
narrativo e da geração de estados de coisa e de
sistematizado em regimes remissivo vs. emissivo,
alma próprios de cada regime missivo. Tais
responsáveis pelas colocações de tempo e de
questões, assim como aquelas que não foram
espaço, termina por dar conta de descrever o
devidamente tratadas ao longo da exposição das
fluxo do conteúdo correlacionado ao da
propostas de Greimas e seus colaboradores, são
expressão.
desenvolvidas ou retomadas sempre que se
Em outras palavras, os movimentos de
aceleração e desaceleração do tempo, e de fizerem necessárias aos objetivos das análises das
abertura e fechamento do espaço na expressão HQs.
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2. O FLUXO DISCURSIVO
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10 – comando aéreo ataca o assaltante e mulher) estão articulados. Esse fazer remissivo
os árabes complexo, por sua vez, está articulado com outro
11 – assaltante derruba os aviões fazer emissivo, em que o objeto de valor é
12 – avião abatido cai sobre a locomotiva suplantado pela carga passional excessiva do
e interrompe seu caminho desejo fora de controle.
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tempo desacelera a ponto da locomotiva parar e derivação na categoria missiva, em que pessoa,
o maquinista jazer no mesmo espaço fechado; e tempo e espaço fundamentais determinam
nas seqüências 13 e 14 há fazer emissivo, o tempo regimes de colocação em discurso.
volta a acelerar na velocidade crescente da Em termos tensivos, do relaxamento à
locomotiva e o espaço se abre em seu caminho. tensão, o remissivo promove a retenção; e, da
Por fim, na seqüência 15, se o homem e tensão ao relaxamento, o emissivo promove a
sua locomotiva vão ao encontro da moça distensão:
amarrada, a locomotiva tende a parar, desacele-
pessoa: fazer remissivo
rando o tempo e fechando o espaço; mas, ao
tempo: desaceleração
contrário, se vão de encontro a ela, o tempo espaço: fechamento
continua acelerado no atropelamento e o espaço retenção
tende a se abrir ao longo dos trilhos.
relaxamento tensão
distenção
O fazer missivo e a geração do sentido
pessoa: fazer emissivo
tempo: aceleração
Uma vez explicado o funcionamento do
espaço: abertura
fazer missivo e sua forma de determinar a
colocação em discurso, é necessário mostrar
como o percurso gerativo do sentido está Uma vez gerados os regimes remissivo e
redimensionado em relação à missividade. emissivo, geram-se modalidades próprias em cada
Em algumas de suas propostas teóricas, um deles. Zilberberg (Zilberberg, 2006: 138-140)
Zilberberg (Zilberberg, 2006: 129-147) sugere a sistematiza a modalização em modalidades
categoria tensiva como fundamental na geração factivas, da ordem do fazer, e páticas, da ordem
do sentido. Articulada em tensão vs. relaxa- do ser. Para cada tipo, há de se considerar
mento, a categoria tensiva determina a projeção dimensões pragmáticas, da ordem do poder, e
das forias e os valores colocados em discurso. A cognitivas, da ordem do saber.
continuação da conjunção com o objeto de valor Nessa proposta, o esquema narrativo
euforizado se dá no relaxamento e, quando essa permanece articulado em termos de enunciados
conjunção é interrompida na não-conjunção e de estado – os enunciados de ser – e enunciados
na disjunção, dá-se a tensão, que tende a de fazer. Na medida em que estados e
reorientar a narrativa ao estado anterior. transformações são semiotizados em função do
Do tensivo ao missivo (Zilberberg, 2006: sujeito narrativo, Zilberberg concebe um sujeito
133-138), a orientação para o relaxamento se que age de acordo com estados de alma e
dá no fazer emissivo e a interrupção dessa manifesta estados de alma em decorrência de suas
orientação, no fazer remissivo. Tanto a categoria ações. Desse modo integra, em seu modelo
tensiva quanto a missiva estão em função do teórico, percursos factivos – próprios de estado
sujeito da enunciação. Nele se articulam a de coisas – e páticos – próprios de estado de
tensividade na relação tensão vs. relaxamento e alma – em duas dimensões modais – o fazer e o
a missividade na relação remissivo vs. emissivo ser – em função do sujeito narrativo.
com seus respectivos regimes espaço-temporais. Ao agir apaixonado, o sujeito sabe e pode
Portanto, em nível fundamental da geração em função da dimensão factiva ou pática. Há
do sentido, operam a categoria tensiva e sua um saber e um poder que modalizam como age,
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Desse modo, em “Eu quero ser uma locomo- actantes próprias de cada regime. Na geração do
tiva”, os arranjos modais de cada regime missivo, sentido, portanto, há de se determinar como se
uma vez determinados pela missividade, determinam dão as relações sujeito-sujeito e sujeito-objeto
o ser e o fazer dos actantes envolvidos na narra- narrativos modalizados em cada regime missivo
tiva, determinando, também, as expectativas do (Zilberberg, 2006: 140-145).
enunciatário leitor. Isso precisa ser explicado melhor. No fazer emissivo, a relação sujeito-sujeito
Nas seqüências regidas pelo fazer emissivo, se realiza na relação destinador-destinatário. O
o ser do maquinista é modalizado pelo crer, maquinista, ao mesmo tempo em que se dirige a
cognitivamente, e pelo esperar, pragmati- um passageiro oculto – ora chamado Alfredão,
camente. Enquanto crê em que uma mulher o ora Fredão ou Froidão, por pouco seria Fodão –
aguarda, ele segue adiante, a esperar pela fala consigo mesmo. Acionado pelo querer-ser em
confirmação da expectativa. O fazer, por sua vez, função do objeto euforizado mulher e dando-se
é modalizado cognitivamente pelo prever, pois ao julgamento do parceiro escondido, o
o maquinista age em função da confirmação do maquinista vai adiante nas relações destinador-
projeto; e é modalizado pragmaticamente pelo destinatário articuladas na cabine da locomotiva.
querer, pois não basta a mulher estar a sua espera, No fazer remissivo, a relação sujeito-sujeito
ele segue adiante porque também investe no se realiza na relação sujeito-anti sujeito. Aqueles
encontro. que buscam deter a locomotiva, “os mil caras
Nas seqüências regidas pelo fazer remissivo, atrapalhando”, são antissujeitos do maquinista,
o ser do maquinista é modalizado cognitiva- pois são eles os actantes principais da remissão.
mente pelo espantar-se, uma vez que a cada curva A relação sujeito-objeto, por sua vez, realiza-se
dos trilhos surge um novo oponente; e é na relação sujeito-abjeto. O abjeto é um anti-
modalizado pragmaticamente pelo interromper- objeto; contrariamente ao desejável, próprio do
se, pois, para cada surpresa, há uma tentativa de objeto euforizado, o abjeto é indesejável. Para o
detê-lo em sua trajetória. Seu fazer, na dimensão maquinista, a disjunção com a mulher e a con-
cognitiva, é modalizado pelo ignorar, as paradas junção com tudo aquilo que não seja ela são abjetas.
são sempre surpreendentes; e na dimensão No que diz respeito a uma semiótica do
pragmática, o maquinista é modalizado pelo objeto, Zilberberg examina como o sujeito
dever, que incide na obrigação de ultrapassar os narrativo, tanto em dimensões pragmáticas
“mil caras” em função de sua performance. quanto cognitivas, valoriza-o ao agir sobre ele e ao
Em nível discursivo, a enunciação de “Eu buscar compreendê-lo (Zilberberg, 2006: 142-143).
quero ser uma locomotiva” realiza, no percurso No fazer emissivo, o objeto é valorizado
figurativo, o fazer missivo e seus regimes modais, pragmaticamente na relação sujeito-objeto, de
que determinam a colocação em discurso da modo que, ao agir sobre o objeto, o sujeito
história. A missividade e suas modalizações, identifica-se com ele. Como a existência
dispostas como estão na narratividade da HQ e semiótica do sujeito narrativo se dá nas relações
em sua manifestação figurativa, sendo o percurso juntivas que ele contrai com os objetos de valor,
da leitura ancorado no percurso da locomotiva, realizar junções é realizar modos de existência
manipulam o enunciatário leitor a agir e se semiótica. De certo modo, a conjunção com o
apaixonar no ritmo do maquinista. objeto de valor euforizado define o sujeito
Geradas pelos regimes missivos, as narrativo, por isso age em função dele.
modalizações garantem a narratividade dos Cognitivamente, a compreensão do objeto
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Respectivamente, podem ser chamadas Nessa leitura, porque estão ancoradas no percurso
isotopias prática, mítica e metalingüística. ferroviário encenado no discurso, as figuras
Pelas reflexões de Rastier, é possível parecem assumir significados denotativos –
estabelecer, como hipótese de trabalho, que há locomotiva significa locomotiva, maquinista
três tipos básicos de tematização. Há a significa maquinista, etc. Há, entrelaçada com
tematização prática, em que o percurso figurativo a tematização prática do percurso ferroviário, a
ganha sentido mais evidente por estar ancorado tematização mítica de ordem erótica, em que as
na cena enunciativa formada na enunciação e figuras do discurso significam, enquanto
realizada no enunciado. O enunciador marcado metáforas, a virilidade masculina e suas inter-
nos primeiros versos do soneto cumpre o papel rupções. É possível, ainda, propor a tematização
temático de quem realiza o brinde no banquete metalingüística, em que os percursos e os
enunciado, por isso a leitura convocada por ele percalços da locomotiva significam também o
é mais evidente; e, por estar ancorada na fazer do quadrinista.
enunciação, ela parece menos fictícia que a A análise anterior do fazer missivo está
leitura da navegação. baseada na leitura da tematização prática, uma
Há a tematização mítica, em que o percurso vez que a história em quadrinhos teve suas
figurativo ganha outros sentidos baseados nas seqüências determinadas a partir da ancoragem
leituras desencadeadas na e conectadas com a na cena enunciativa formada no percurso
leitura prática. Por estar ancorada na leitura que ferroviário. Em nenhuma passagem da análise
está ancorada na enunciação, a tematização houve a preocupação de estabelecer o que o
mítica parece mais abstrata, fruto antes de leituras texto tematiza além das aventuras da locomotiva
conotativas que denotativas. Em Salut, na leitura e seu maquinista ansioso.
mítica o papel temático de quem brinda converte- Somente essa leitura, entretanto, não basta
se no papel temático do capitão do navio, de para a análise semiótica. Na tematização mítica
modo que o segundo é lido como metáfora do – assim como no poema de Mallarmé o tema do
primeiro. banquete é associado ao tema da navegação –
Por fim, há a tematização metalingüística em “Eu quero ser uma locomotiva” o tema da
quando o percurso figurativo está em função de ferrovia e associado ao tema do erotismo. Na
significar a propósito de si mesmo, o que quer leitura erótica, além do missivo incidir sobre a
dizer que o significado das figuras é a própria colocação em discurso, incidi, literalmente,
semiótica. sobre “meter”, se “meter” significar manter
Os tipos de tematizações propostas, inspi- relações sexuais.
radas nas análises de Rastier, não aparecem Tudo o que está determinado em termos de
necessariamente em todos os discursos, nem emissividade e remissividade na leitura prática é
delimitam o número de isotopias ao máximo de válido para a leitura mítica, pois ambas estão
três. A hipótese de trabalho diz respeito a tipos entrelaçadas. Na leitura erótica, o fazer emissivo
de tematizações, por isso, nada impede que haja está em função da realização da masculinidade
duas ou mais isotopias míticas, por exemplo, e por meio do coito heterossexual, figurativizada
nenhuma isotopia metalingüística. em metáforas pelo maquinista e sua locomotiva
Em “Eu quero ser uma locomotiva” ocorrem desenfreada em direção ao objeto de valor
os três tipos. Há a leitura prática, ancorada na mulher. O fazer remissivo, por sua vez, aparece
cena enunciativa discursivizada no enunciado. no confronto com outros homens, pois são os
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3. O DELÍRIO FIGURATIVO
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liberdade de comunicação tem sua nobreza, mas No último quadrinho, surge um palhaço
qual o heroísmo em lutar por fezes, urina, partes maluco, que se revela o narrador da demanda e
do lixo? A dúvida desfaz os limites da certeza, exclama: “É isso aí, amigos! E não esqueçam de
colocando em questão os valores de liberdade e perguntar ao seu freguês do lado qual foi o
vida que orientam a comitiva. Não se trata de resultado do FUTBOIL!”. O palhaço, como o rabo
metáfora, em que a comunicação de massa é tão da montaria, além de rearticular os valores
ruim como se fosse lixo, mas de confusão: a missivos – o que é uma forma de colocar em
Rotorotter, outra referência explícita no texto, é questão a valorização do objeto – promove sua
uma companhia que cuida da limpeza de privadas destruição ao menosprezar o fenômeno, já que
entupidas, que cede concessões e créditos a Sílvio FUTBOIL significa “fenomenozinho urbano
Santos, famoso por veicular programas de tipicamente brasileiro observado in loco”.
auditório da pior qualidade possível. Do mesmo modo que os meninos em
Estrategicamente, na medida em que “FUTBOIL”, o Gerente Geral e sua comitiva lutam,
constrói o objeto de valor pela articulação entre ironicamente, pelo fracasso.
valores semânticos, percursos temáticos e Apesar disso, na tematização metalingüís-
figurativos, Luiz Gê o destrói no delírio e na tica, em que a figuratividade e a textualização
confusão arquitetadas no texto da HQ. dizem respeito à construção da própria HQ
Como em “Eu quero ser uma locomotiva”, enquanto veículo de comunicação e de sua
em que o maquinista está no limiar de atropelar circulação social, se a engenhosidade do autor
a mulher amarrada nos trilhos, faz parte do estilo dificulta sua compreensão – indo ao encontro
do autor destruir o objeto de valor. Em do fracasso do mesmo modo que os meninos e a
“FUTBOIL”, Luiz Gê conta a demanda de um comitiva – vai de encontro à banalidade de
grupo de meninos em busca de um balão caindo informações, como as propagadas por Silvio
do céu; no limiar de conseguir a conjunção com Santos e outros camelôs.
o balão, a disputa é tamanha, que o bando Nesse último movimento, a proclamação de
termina por rasgá-lo em pedaços. “Errarem marcianum est” é vitoriosa.
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4. A ARTICULAÇÃO DA REALIDADE
relações entre a ficção e a realidade construídas Contudo, a qualquer momento, pode negar a
por meio dela. adequação construída entre a linguagem e a
Quando o autor se torna personagem de si representação do mundo e introduzir incoerências
mesmo, fazendo com que haja interdiscur- nessa relação que orientam o discurso rumo ao
sividade entre suas obras e os discursos a respeito absurdo. Dentre os prosadores da literatura
de sua vida, criam-se efeitos de realidade em que brasileira contemporânea, Lourenço Mutarelli
tudo se passa como se a personagem e o autor utiliza esse processo nos três romances escritos
fossem as mesmas pessoas. Na literatura brasileira por ele até então. Tanto em O cheiro do ralo,
contemporânea, o melhor exemplo é o escritor quanto em O natimorto e Jesus Kid , as
Luiz Alberto Mendes. Ex-presidiário, condenado personagens iniciam suas peripécias em meio à
por roubo e assassinato, Luiz Alberto narra a suposta realidade tomada como verdadeira,
história de sua vida de crimes e de detento. Além todavia, em poucos capítulos, já foram
do predomínio da denotação, ele narra no que introduzidas passagens capazes de negar esse
se convenciona chamar sequência linear dos ponto de vista. Em O natimorto, a partir dos
acontecimentos, em que se contam os fatos em avisos e fotografias de que fumar faz mal à saúde,
ordem cronológica. O resultado desses recursos impressos em maços de cigarro, o narrador
semióticos faz com que, mesmo sendo produtos elabora um novo tarô, com o qual passa a nortear
do discurso e da linguagem, seus textos se sua vida.
confundam com sua vida “real”. Na negação da função construtiva da
Joca Reiners Terron, ao contrário, não faz linguagem, contrariamente, o autor parte do
em seus escritos essa relação entre vida e obra. universo dito fictício para introduzir nele
Em Não há nada lá, seu primeiro romance, são elementos capazes de negar seu estatuto de
contadas as peripécias dos escritores William invenção e mito. São os recursos literários que,
Burroughs, Raymond Russel, Torquato Neto, basicamente, Marcelo Mirisola e Glauco Mattoso
Isidore Ducasse, Arthur Rimbaud, Alister Crowley utilizam: Marcelo Mirisola, em muitas passagens
e Fernando Pessoa em torno de um cubo de d’O Azul do filho morto, parte da desconstrução
quatro dimensões e da profecia não revelada da de mitos da televisão brasileira da década de 70;
Virgem de Fátima. A seu modo, Joca Terron faz e Glauco Mattoso, em A planta da donzela, parte
seu delírio figurativo enfatizando a função do romance A pata da gazela, de José de Alencar,
construtiva da linguagem, criando um mundo e rearticula suas personagens em clubes
mítico dado a existir exclusivamente nas páginas sadomasoquistas, cruzando passagens de Alencar
de seu romance. com as de antropólogos e historiadores.
Há, no entanto, mais dois processos de uso Ao estudar o discurso publicitário, J. M.
da linguagem. Se luiz Alberto Mendes afirma a Floch (Floch, 1995: 183-226) parte da
função representativa e Joca Reiners Terron, a articulação entre as afirmações das funções
função construtiva, é possível, ainda, negar as representativa e construtiva e de suas respectivas
duas funções, totalizando quatro regimes de negações para determinar quatro tipos de regimes
articulação da realidade. de publicidade. Quando há afirmação da função
Um romancista pode iniciar suas histórias representativa, Floch chama publicidade referen-
de modo semelhante ao regime adotado por Luiz cial; quando há afirmação da função construtiva,
Alberto Mendes e articular a realidade de acordo chama publicidade mítica. A negação da função
com a função representativa da linguagem. representativa é chamada publicidade oblíqua;
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pessoa cuja cabeça é desenhada diferentemente, mítica, mas seu temperamento sórdido e os caças
próxima dos delírios das demais HQs. garantem a negação substancial.
Enquanto a imagem do Cara de Bola coloca Em síntese, os movimentos de articulação
em questão a função representativa da lingua- da realidade em “Quem matou Papai Noel?” estão
gem, os desenhos das pessoas “comuns”, inclusive discursivizados da seguinte maneira:
do Papai Noel, colocam em questão a função
construtiva. O primeiro quadrinho, em que o Papai Noel na festa de carnaval – mítico ↔ substancial
regime
Papai Noel surge embriagado, no meio da orgia, Sonho do Seu Arlindo – referencial
A história do Cara de Bola – referencial ↔ oblíquo mítico
parece investido do regime mítico de articulação
Papai Noel e os aviões voando no céu – mítico ↔ substancial
do real; mas, como se trata de um baile de
Carnaval, a definição do Papai Noel oscila entre
a da personagem mitológica das festas de Natal Essa articulação da realidade gera, pelo
e a de um homem comum, bêbado e fantasiado. menos, três efeitos de sentido: dois deles dizem
Nesse processo, o investimento mítico é negado respeito à escolha dos valores que são utilizados
no regime substancial de articulação da para negar ora a função representativa, ora a
realidade. função mítica da linguagem; e o último diz
No desenvolvimento da narrativa, tanto as respeito à totalidade da HQ.
farras do Papai Noel quanto a decepção das Recapitulando, a realidade, tanto no regime
crianças se revelam pesadelos, e o regime referencial quanto no regime mítico, é formada
referencial da articulação da realidade volta a em arranjos entre percursos temáticos e
reger o cotidiano do pai das crianças. Esse regime figurativos. O regime referencial é realizado com
determina o discurso até o primeiro aparecimento valores próprios da denotação, investidos na
do Cara de Bola, quando, no regime oblíquo, é figurativização da cidade e das personagens; e o
negado o regime referencial. regime mítico, com valores conotativos,
Do aparecimento do Cara de Bola até sua investidos nas figuras do Papai Noel e do Cara de
morte, o discurso segue em regime oblíquo, Bola. Para negar ambos os regimes, é necessário
sustentado entre a representatividade referencial, que valores oblíquos neguem os valores
figurativizada pela ação cotidiana e as demais representativos do regime referencial e que
personagens, e a construção mítica da figura do valores substanciais neguem os valores
homem com cabeça estranha. construtivos do regime mítico.
Por fim, as últimas cenas são reservadas para Dentre os romancistas da literatura
o retorno do “verdadeiro” Papai Noel, que corta brasileira contemporânea, embora Glauco
os céus em seu trenó de renas. Nesse momento Mattoso e Marcelo Mirisola invistam no regime
da narrativa, o regime oblíquo parece trocado substancial, os valores substanciais escolhidos
pelo regime mítico e a linguagem se realiza como para negar os valores míticos são diferentes.
construção. Contudo, não se trata do Papai Noel Enquanto Glauco Mattoso, n’A planta da donzela,
gentil e bondoso das festas de Natal, trata-se de expõe a sexualidade perversa das personagens
um velho furioso, que chicoteia impiedosamente românticas de José de Alencar, Marcelo Mirisola
suas renas, além de viajar na companhia de aviões desmonta os mitos da televisão brasileira das
de guerra. Embora pareça mítico, o regime décadas de 70 e 80 ora perguntando por onde
discursivizado se dá na transformação do regime andará esta ou aquela pessoa famosa, há muito
mítico no substancial: a figura do Papai Noel é tempo desaparecida dos meios de comunicação
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– como o mito sexual Kátia D’Angelo – ora ao invés de instaurar uma realidade das “coisas”
insinuando o quanto a imagem pública destoa na humanização da lenda, faz com que o Papai
da suposta “pessoa” real, quando afirma que o Noel funcione em outra mitologia, aquela
playboy Pedrinho Agnaga teve um filho tão construída em torno dos valores do capital. Não
debilóide como o próprio Mirisola. se trata, por isso, de apontar uma realidade
Luiz Gê, por sua vez, não se vale com tanta objetiva, mas ideológica.
ênfase da sexualidade perversa nem de contrates Na colocação em discurso, as cenas em que
entre as imagens públicas e privadas de suas o regime substancial determina a articulação da
personagens. Em “Quem matou Papai Noel?”, o realidade estão dispostas no início e no final do
investimento no regime substancial de texto, intercalando a história do Cara de Bola.
articulação da realidade se dá nas cenas em que Tudo se passa como se a lenda encontrasse um
aparece o “verdadeiro” Papai Noel, primeiro no paralelo humano na vida de seu Nicolau – vulgo
baile de Carnaval, depois voando em seu trenó Cara de Bola – que, a seu modo, também é um
de renas acompanhado dos caças. Uma vez Papai Noel. Intercalantes, as cenas míticas
figurativizado o mito, Luiz Gê o nega por meio substancializadas seriam o equivalente mítico da
do antagonismo moral: se o lendário Papai Noel realidade prática realizada na história do Cara
é bom e justo, seu Papai Noel é um velho de Bola.
bandalho e irresponsável, que troca a distribuição Essa realidade prática, que parece ser
dos presentes na noite de Natal pelo Carnaval. afirmada no regime referencial, é na verdade
Além do mais, não é o caso de presentear com negada por investimentos discursivos no regime
justiça, mas de movimentar o mercado oblíquo.
consumidor; ao viajar pelos céus, na companhia Retomando exemplos da literatura
de aviões de guerra – que descem todo ano rumo brasileira, está dito que Lourenço Mutarelli
ao Sul para “impiedosamente encher o saco” – o também investe no regime oblíquo na construção
Papai Noel se torna mais um agente do de seus romances. Em princípio, os três romances
imperialismo econômico e militar das potências de Mutarelli O cheiro do ralo, O natimorto e Jesus
do Hemisfério Norte contra os países subde- Kid começam em função referencial, a realidade
senvolvidos do terceiro mundo. é construída neles em denotações e ações
Em termos retóricos, Luiz Gê se vale de uma cotidianas. Todavia, paulatinamente, essa
diáfora; ele utiliza um mesmo significante articulação é negada na medida que o autor
correlacionado com o significado contrário do introduz o inusitado capaz de colocar em questão
habitual. Repetir o mesmo signo dá forma a a realidade e denunciá-la como construção. Em
anáforas, contudo, pode-se repetir o mesmo O cheiro do ralo, o dono da loja de penhores vê
significante, mas com outros significados, ao seus problemas com o ralo do banheiro e o esgoto
longo da argumentação. O significante do Papai tornarem-se cada vez mais estranhos e o que é
Noel é como o do “verdadeiro”, seu significado, tomado como fato comum, torna-se cada vez
porém, está contrariado pelas ações e paixões mais absurdo.
da personagem. Em Mutarelli, os valores capazes de negar a
Em sua diáfora, Luiz Gê humaniza o Papai representação referencial da realidade são de
Noel, entretanto, humanizá-lo é torná-lo ordem psicótica, suas personagens são tomadas
desumano, semeador de guerras, injustiças e por distúrbios emocionais. Nessas crises, a
pesadelos. Ainda por meio da diáfora, Luiz Gê, realidade é redimensionada na loucura que,
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nesse caso, os valores emissivos que se articulam de Luiz Gê, como em “Quem matou Papai Noel?”
com essa remissividade complexa? e “Errare marcianum est”. Em sua Ópera do
A temática dos rompimentos de contratos malandro, Chico Buarque de Hollanda, na canção
fiduciários em cascata enquanto explicação da de abertura O malandro, utiliza o mesmo tema
economia brasileira não aparece apenas nos textos em outros percursos figurativos:
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A circulação econômica de bens de consu- mito que orienta o discurso da HQ? De acordo
mo no Brasil, metonimizada pela economia da com a narrativa de “Quem matou Papai Noel?”,
cachaça, é baseada na quebra de contratos só aquele que não participa das quebras dos
fiduciários e de soluções que se realizam na forma contratos poderia romper o mito que os determina.
de roubos e trambiques. No círculo vicioso da Em sua versão dos mitos sociais, o “Cara de
falcatrua, o único culpado é o malandro, que Bola” figurativiza o otário, que tem um papel
também é o único que não participa dele, uma temático bem definido no imaginário brasileiro.
vez que não trabalha para seu funcionamento. Para ilustrar tal papel e sua contraposição ao do
Em “Quem matou Papai Noel?”, dá-se o malandro, basta lembrar a canção de Caetano
mesmo: o grande culpado, o imperialismo econô- Veloso Festa imodesta – que cita a canção O
mico, movimenta o infortúnio das personagens;
cinema falado, de Noel Rosa – quando diz que
o único culpado é um ladrão de rua, denunciado
tudo aquilo que o malandro pronuncia, o otário
às autoridades pelo “Cara de Bola”, que, como o
silencia. De modo mais contundente, na HQ de
garçom, denuncia o malandro da canção.
Luiz Gê o malandro, em seu fazer homicida,
O malandro de Luiz Gê, além de escapar da
silencia o otário Nicolau e vai de encontro a tudo
polícia, no final da HQ mata o “Cara de Bola”.
aquilo que ele representa.
Seria esse o valor emissivo capaz de romper o
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5. HISTÓRIA EM QUADRINHOS E MÚSICA
As duas funções da semiótica verbal verbal em função de etapa, uma vez que o
propostas por Barthes podem ser aplicadas sincretismo entre as três semióticas gera o
também às relações entre a semiótica verbal e a sintagma geral que as organiza em forma de texto.
musical. Quando o texto verbal explica Entretanto, para viabilizar a análise, convém
composições instrumentais com títulos ou estudá-las separadamente.
programas, há função de ancoragem; quando essa Como a HQ “Tubarões voadores” é anterior
semiótica compõe com a música correlações à musica e aparece publicada sem o texto musical
entre melodia e letra, como nas canções, há em coletâneas das obras de Luiz Gê, é possível
função de etapa. analisá-la primeiro e, depois, verificar os efeitos
Em “Tubarões voadores”, as semióticas de sentido que a música de Arrigo Barnabé
plástica e musical estão sincretizadas com a promove no texto sincrético.
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Frágeis e indefesos como estão, esses um programa narrativo cujos heróis são os vilões
habitantes sequer assumem o estatuto de do outro programa, complexificando os papéis
antissujeitos em relação ao fazer emissivo dos temáticos de cada um. Assim, o paradoxo
tubarões. Reduzidos a quase objetos, os consiste na confusão deliberada dos papéis, o
habitantes carecem de poder e saber para manter pior inimigo está para se tornar o herói da
a conjunção com a vida; o único modo de história.
preservá-la é em esconderijos, nem sempre
eficazes. O percurso figurativo e a
A falta de competência para resistir dos articulação da realidade
habitantes e sua redução a quase objetos faz com
que a remissividade articulada com o fazer Fiel a seu estilo, a figuratividade construída
emissivo dos tubarões seja enfraquecida. Tão fraca por Luiz Gê em “Tubarões voadores” é delirante.
quanto os habitantes, a remissividade Há no texto, pelo menos, a neutralização das
praticamente não existe, os predadores agem sem diferenças semânticas entre o espaço próprio dos
parar. homens – figurativizado pela cidade grande – e
Se para os habitantes há predomínio do o espaço próprio dos tubarões – que seria o mar;
regime remissivo, para os tubarões, há a neutralização das diferenças entre o modo
contrariamente, há predomínio do regime de locomoção usual do tubarões e o das aves,
emissivo, de modo que espaço e tempo estão visto que os tubarões voadores nadam no ar.
articulados de acordo com os fazeres missivos Contudo, há detalhes mais sutis no delírio
dos habitantes e dos tubarões, complexificados figurativo de “Tubarões voadores”.
no discurso de “Tubarões voadores”. Entre o figurativo e o plástico, confusões
Na HQ, Luiz Gê articula dois programas devem ser evitadas a respeito dos domínios
narrativos, ao invés de enfatizar apenas o semióticos da cada um. Recapitulando
programa narrativo dos habitantes e de reduzir novamente, o figurativo é de ordem semântica;
o fazer dos tubarões somente ao fazer de a figuratividade é o patamar mais concreto e
antissujeitos desse programa. Há o programa específico do percurso gerativo do sentido; seus
narrativo dos habitantes, cujo objeto de valor é domínios estão restritos ao plano de conteúdo.
a vida, mas há também o programa narrativo dos O plástico, por sua vez, diz respeito à
tubarões, cujo objeto de valor é a morte. Nessa manifestação da figuratividade no plano de
polêmica, os últimos são antissujeitos dos expressão das semióticas plásticas. Nas HQs, com
primeiros, no entanto, a ênfase no fazer emissivo o plástico sincretizado com a manifestação verbal
dos tubarões, vitoriosos sobre a cidade, faz com em função de etapa, a articulação da semiótica
que seus papéis actanciais de sujeitos se verbal com a semiótica plástica cuida de
manifestem com intensidade, no limiar de isolar manifestar a figuratividade formada no conteúdo.
seu programa do programa narrativo das presas. Se Luiz Gê houvesse escrito um conto, os
O paradoxo, portanto, não está na traços figurativos das personagens seriam
aceleração do tempo e na abertura do espaço descritos com palavras e frases; como no plano
durante o fazer dos antissujeitos em um discurso de expressão das HQs a figuratividade se
dominado pela remissividade. Articulando a manifesta distribuída entre o verbal e o visual,
emissividade dos tubarões no seio do fazer em “Tubarões voadores” há imagens e palavras
remissivo que rege os habitantes, Luiz Gê destaca na textualização. Ver ou ler, nos domínios da
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figuratividade, faz pouca diferença, pois se trata Fica evidente, também, a relação entre a
de analisar um domínio teoricamente isolado do gradação das figuras e a do fazer emissivo dos
plano de expressão. Por enquanto, trata-se de tubarões sobre o fazer emissivo dos habitantes.
analisar o plano de conteúdo; as correlações entre Gerada na polêmica entre dois fazeres missivos,
a figuratividade e as categorias plásticas da o dos predadores e o das presas, há em “Tubarões
expressão são estudadas depois. voadores” a imposição do primeiro sobre o
Em “Tubarões voadores”, além das segundo, do mesmo modo que o traço “realista”
neutralizações apontadas no início, há a se impõe sobre a caricatura.
presença, no mesmo universo gráfico, de figuras A vitória da figuratividade “realista”,
que se poderiam chamar mais “realistas” e de entretanto, constrói outro paradoxo. Uma vez
caricaturas. O Joãozinho e a menina que pula relacionada à tematização mítica, é paradoxal
corda são caricaturas; o pai da menina, nem ver o mítico realizado com figuras mais próximas
tanto; as personagens vítimas dos tubarões, ou do real, enquanto os habitantes da tematização
de atos de violência inseridos no discurso são prática estão próximos da caricatura. O que
bem menos caricatas – como na fuga da cerca de parece incongruente, porém, gera um efeito de
arames farpados, ou o corte dos pulsos com sentido próprio: a vitória dos tubarões míticos é
gilete; e os tubarões, de tão precisos, poderiam carregada de “realidade” em suas figuras,
enquanto a realidade da cidade é esvaziada nas
ilustrar livros de biologia marinha.
caricaturas; tornado “real” na realização figu-
Há, por isso, uma gradação entre constru-
rativa, o mítico domina a “realidade” prática se
ções representativas da realidade, com a
sobrepondo a ela, fazendo crer que aquilo que
linguagem em função referencial, e construções
existe, de fato, são os tubarões.
míticas, com a linguagem em função construtiva.
Nos percursos temáticos, há, pelo menos,
Correlações semióticas
uma tematização prática, que sustenta a vida
entre o figurativo e o plástico
cotidiana dos habitantes da cidade, e outra
mítica, responsável pelo sentido dos tubarões
Recapitulando, quando manifestado, o
voadores. Complexificadas no mesmo percurso
percurso figurativo aparece no plano da expres-
figurativo, não deixam de ser diferenciadas pela
são, ora na semiótica verbal, ora na plástica. A
gradação da articulação da realidade determinada.
semiótica plástica, por sua vez, é formada por
Quando o cotidiano da cidade se realiza no
categorias próprias, que dão forma à expressão
olhar através da janela e nas brincadeiras de rua,
das imagens desenhadas.
o Joãozinho e a menina são caricaturas; quando Ainda recapitulando, as categorias plásticas
o mito invade a cidade na forma de tubarões são de três tipos: as categorias cromáticas, que
voadores, os animais são figuras construídas para determinam a cor; as categorias eidéticas, que
parecerem “reais”. Além do mais, como há gradação determinam a forma; e as categorias topológicas,
entre o caricato e o “real” na representação das que determinam a distribuição de cores e formas.
personagens, a invasão e a vitória dos tubarões se Construído nessas categorias, o plano de expres-
manifestam tão gradativamente como a são, potencialmente, pode ser correlacionado ao
figuratividade, pois tudo se passa como se o plano de conteúdo, bastando, para isso, que uma
domínio da figuratividade realista sobre a caricata categoria semântica seja homologada a uma
se desenvolvesse do mesmo modo que o domínio categoria plástica na formação de relações semi-
dos predadores sobre as presas. simbólicas.
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os ditos populares funcionam como julgamentos A ironia, entretanto, sugere outras relações
de valor a respeito da relação presa-predador semióticas entre a HQ e a abordagem musical. A
estabelecida no plano de conteúdo. Julgamento oposição ênfase rítmica e consonantal vs. ênfase
curioso, na medida em que justifica a matança, melódica e vocálica está construída com base na
dando razão aos predadores. categoria formal descontinuidade vs. continui-
Quando cantadas, as falas da HQ assumem dade. O ritmo e as consoantes são descontínuos,
propriedades musicais e podem ser determinadas eles promovem subdivisões na curva entoativa,
de acordo com a semiótica da canção. A voz ao passo que a melodia e as vogais permitem a
masculina, que descreve e justifica os tubarões, formação de continuidades sonoras.
é colocada de modo a enfatizar as consoantes; Em “Tubarões voadores”, há a relação semi-
apesar de quase falado, o texto é carregado de simbólica entre os valores semânticos vida vs.
ritmo, como nas locuções de eventos esportivos morte e os valores plásticos continuidade vs.
e documentários sensacionalistas. A voz descontinuidade. Nessa relação, é possível
feminina, que também justifica o fazer dos verificar que os tubarões são expressos tanto por
tubarões, contrariamente, é melodiosa, insiste valores descontínuos, nas imagens dos dentes
nas vogais e é a única parte da música com pontudos, quanto por valores contínuos, nas
melodia definida e construída em compasso ¾, imagens do vôo-nado dos predadores. Por isso,
tratando-se de uma valsa. são complexos no que diz respeito à articulação
Embora o conteúdo seja o mesmo, a expressão semântica vida vs. morte e não apenas
das vozes, além da distinção por meio do timbre, é figurativizações dos valores de morte, como
construída de modo a opor ênfase rítmico e parece sugerido na oposição que fazem às vidas
consonantal vs. ênfase melódico e vocálico. das vítimas.
Enquanto canção, a voz masculina está de acordo Musicalmente, a abordagem semiótica é a
com a ênfase em estados de coisas, visto que mesma. Tanto nos trechos cantados quanto nos
descreve a ação dos predadores. A voz feminina, somente musicais, há o investimento na
por sua vez, apesar da descrição que faz da harmonia descontinuidade, a música é formada por ataques
da vida – portanto, de um estado de coisas – está descontínuos dos instrumentos musicais ou por
de acordo com a ênfase em estados de alma, pois, ataques consonantais da voz masculina.
na descrição que faz, conota tal harmonia com Contrariamente, na voz feminina, há investimento
paixões próprias da satisfação e da confiança. na continuidade melódica da música e
A voz feminina não se refere com indignação insistência na duração das vogais.
ao julgamento que faz da harmonia da vida, Do mesmo modo que as formas visuais, as
baseada que está no medo e na violência. Sua formas musicais, construídas pela mesma
fala aparece em ritmo de valsa, harmoniosa, sem categoria formal descontinuidade vs. continui-
as invenções sonoras características do restante dade, estão em função de complexificar o fazer
da música. Tudo se passa como se a música dos tubarões: quando se trata do fazer remissivo
refletisse, em sua expressão harmoniosa, a dos tubarões em relação ao fazer emissivo das
harmonia da vida estabelecida no plano de vítimas, a música é descontínua, são enfatizados
conteúdo. Sem dúvida, há a construção de uma os valores de morte; mas quando se trata do fazer
ironia, pois o conteúdo tenso e disfórico da emissivo próprio dos tubarões, a música é
matança dos tubarões é justificado por conteúdos contínua, são enfatizados os valores de vida dos
contrários, expressos melodiosamente. predadores em meio à harmonia da vida.
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plásticas e musicais, tais valores levam a rever o ram a música Sabor de veneno, e o LP foi
papel disfórico atribuído aos predadores. literalmente jogado em um latão de lixo pelo
Em todas as histórias em quadrinhos apresentador de programas de auditório Flávio
analisadas, Luiz Gê escolhe articular a relação Cavalcanti, em rede nacional, quando dirigia seu
remissivo vs. emissivo de modo que ela se torne Boa Noite Brasil.
a remissividade de uma nova relação remissivo Todavia, quando a Abril Educação lançou
vs. emissivo . Em “Tubarões voadores”, a em 1982 a coleção Literatura Comentada, Iumna
emissividade dos predadores se torna o fazer Maria Simon e Vinicius Dantas (Iumna e Dantas,
emissivo que domina a relação remissivo vs. 1982: 107), organizadores do volume relativo à
emissivo própria dos habitantes da cidade. poesia Concreta, não deixam de mencionar o
Seriam os tubarões os heróis da narrativa e lançamento do LP entre as obras que cercaram
não seus vilões? cronologicamente o concretismo. Além disso,
Além das tematizações prática e mítica houve o apoio dado a Arrigo Barnabé por
realizadas, Luiz Gê costuma investir na maestros da TV e da Rádio Cultura.
tematização metalingüística. Enquanto artista, Nessa polêmica interdiscursiva, a
nunca foi um militante solitário. No universo tematização metalingüística ganha um sentido
dos quadrinhos, dirigiu a revista Circo, ao lado particular. Os tubarões podem ser os próprios
de outros desenhistas, e atuou com músicos nas quadrinhos, invadindo a cidade, mas também
parcerias que fez com Arrigo Barnabé nos seus podem ser os artistas plásticos e músicos com
primeiros LPs Clara crocodilo e Tubarões os quais Luiz Gê estava articulado nas décadas
voadores. de 80 e 90.
Quando o LP Clara crocodilo, de Arrigo Como predadores, esses artistas invadiram
Barnabé e a banda Sabor de Veneno – cuja capa a cidade de São Paulo prontos para devorar os
é da autoria de Luiz Gê – foi lançado em 1980, apresentadores e os públicos de programas como
não foi aceito com tranqüilidade. Arrigo Barnabé Boa Noite Brasil, formados por pessoas mal
e Itamar Assumpção foram vaiados no festival educadas e sem preparo algum para julgar a arte
de música da antiga TV Tupi quando apresenta- brasileira em um de seus melhores momentos.
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6. HISTÓRIA EM QUADRINHOS E ÓPERA
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por HQ 2 e HQ 3. Traído pelos quadrinhos, que familiares – conforme a análise do mito feita por
deveriam contar o final da história do caçador Lévi-Strauss (Lévi-Strauss, 1985: 237-265) e
de crocodilos de acordo com suas expectativas, apresentada ao longo do estudo de “Quem matou
Antonio termina regido pelo fazer remissivo, em Papai Noel?”.
que os próprios quadrinhos são o antissujeito. Ao procurar a mãe na lagoa como tubarão,
Antonio superestima os laços familiares; ao matá-
O mito de Édipo e o la, confundido com o caçador, ele os subestima.
mito da criação artística Além do mais, há a presença do monstro ctônico
na figura do homem-crocodilo, morto pelo
Determinada a estratégia da enunciação e caçador-Antonio, que nega a autoctonia humana
as relações entre temas e figuras, assim como a – como o dragão é morto por Cadmo e a esfinge,
estratégia missiva que orienta as distribuições imolada por Édipo.
dos valores e das relações entre os sujeitos Antonio, por sua vez, não aparece manco,
narrativos, é possível descrever, mais detalhada- contudo, incapaz de vencer o monstro sozinho,
mente, a articulação entre as tematizações mítica necessita do caçador. Em termos míticos, embora
e metalingüística. se pense tubarão durante a excitação sexual na
De acordo com a orientação missiva e sua lagoa, Antonio é ainda lambari ao fugir assusta-
realização discursiva, O caçador de crocodilos do, em busca de ajuda. Embora mate o monstro
pode ser segmentado em, pelo menos, duas partes. ctônico como caçador-Antonio, ele é incapaz de
Há a primeira parte, formada pela enunciação HQ 1, vencê-lo sem essa complexificação de papéis. À
em que a tematização predominante é a meta- revelia dos simulacros que Antonio faz a respeito
lingüística; há a segunda parte, formada pelas de si mesmo, o ser como lambari surge de modo
enunciações de HQ 2 e HQ 3, em que a semelhante à incapacidade de negar a autoctonia.
tematização metalingüística aparece relacionada No mito de Édipo, os mancos matam os monstros
à tematização mítica, com predominância da e, apesar de mancos, vencem os monstros
última. ctônicos; no entanto, por permanecerem mancos,
No que diz respeito à segunda parte – o não vencem a autoctonia. Em O caçador de
centro narrativo da HQ dentro de HQ 1 – a crocodilos, o caçador-tubarão-Antonio mata o
interdiscursividade com o mito de Édipo é crocodilo, mas por ser também a presa-lambari-
evidente; entretanto, na relação que contrai com Antonio, não mata.
a tematização metalingüística da primeira parte, Desse modo, a tematização mítica tem a
está longe de ser óbvia. mesma estrutura do mito de Édipo: a superestima-
Não se trata de reproduzir, simplesmente, ção dos laços familiares está para a sua subestima-
a morte do pai e as núpcias com a mãe. Em ção assim como o esforço de negar a autoctonia
O caçador de crocodilos, Antonio não mata o do homem está para a impossibilidade de conse-
pai-caçador e, quando se confunde com ele, mata gui-lo.
sua mãe-música ao mesmo tempo em que, Essa relação entre a tematização mítica
separado do caçador, sente sua perda. Trata-se, d’O caçador de crocodilos e o mito de Édipo,
na HQ, da reprodução do mito de Édipo e de sua predominante nas enunciações HQ 2 e HQ 3,
genealogia, uma vez que matar o pai e se casar aparece articulada com a tematização
com a mãe é mais uma variação do tema geral metalingüística, colocada em discurso desde a
subestimação vs. superestimação dos laços enunciação de HQ 1. Essa metalinguagem, uma
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vez construída em torno das semióticas da nos caminhos da narrativa entre buscas e resgates.
história em quadrinhos e da música, pode ser Em termos patêmicos, está cognitivamente
relacionada à criação artística de modo geral. surpreso e pragmaticamente interrompido, que
Desse ponto de vista, O caçador de é como surge na colocação em abismo.
crocodilos dá forma a um mito a propósito da Dominado pelo regime remissivo, Antonio
criação artística e estabelece relações entre esse é incapaz de terminar a história. Nesse regime,
mito e o mito de Édipo. há a negação da possibilidade de realização da
Para o menino, aprofundar-se na HQ está performance narrativa e o menino não pode entrar
em função do fazer emissivo de HQ 1, cujo objeto em conjunção com o objeto de valor do regime
de valor é figurativizado pelo final da história emissivo.
da saga do caçador. No regime emissivo, Antonio Articulada ao mito de Édipo, a tematização
é modalizado em seu fazer pelo prever, metalingüística funciona como a relação dos
cognitivamente, e pelo querer, pragmaticamente, heróis do mito com o monstro ctônico: a possibi-
pois, ao ler os quadrinhos, está acionado para lidade de realizar a obra está para impossibilidade
chegar ao final da história. Em termos patêmicos, de realizá-la, assim como o esforço de negar a
é modalizado pelo crer, cognitivamente, e pelo autoctonia está para a impossibilidade de
esperar, pragmaticamente, pois estabelece o consegui-lo.
contrato fiduciário com os quadrinhos, na
No universo mítico analisado por Lévi-
esperança de ser colocado em conjunção com o
Staruss, monstros ctônicos estão relacionados às
final da saga. No regime emissivo de HQ 1,
mitologias telúricas e vencê-los significa negar
portanto, há a afirmação da possibilidade de
que os homens são filhos da terra, ou seja, negar
realizar a performance narrativa, e Antonio pode
que são autóctones. Ser filho da terra quer dizer,
entrar em conjunção com o objeto de valor
literalmente, nascer da própria terra como os
próprio desse regime.
Spartoi, no mito de Cadmo, em uma das variações
Nessa perspectiva semiótica, a criação
do mito que rege a genealogia de Édipo. O
artística tem aspecto perfectivo, já que a obra
paradoxo do mito está justamente nas
encontra sua realização em seu fim. Todavia, uma
performances dos heróis, visto que, sendo coxos,
vez mergulhado na HQ, Antonio se perde nos
revelam-se nascidos da terra, ao mesmo tempo
caminhos que levam até o final e a obra se mostra
em que negam essas origens ao vencer ora o
com aspecto imperfectivo, uma vez que não
dragão, ora a esfinge.
termina nunca, colocada em abismo no último
O que há de comum entre a tematização
quadrinho.
mítica e o mito da criação artística tematizado
Em regime remissivo, a HQ, antes emissiva,
torna-se o antissujeito de Antonio e também, por Luiz Gê, além da relação entre a possibilidade
seu abjeto. Contrariamente ao início de HQ 1, e a impossibilidade de realizar a performance?
em sua conclusão, Antonio termina modalizado Há, pelo menos, mais duas semelhanças.
de acordo com o regime remissivo. Quanto ao A criação, tanto a antropogenética quanto
fazer, Antonio é modalizado cognitivamente a artística, envolve dar a luz, respectivamente, a
pelo ignorar – porque não sabe como fazer para outros seres humanos ou às obras de arte. Frutos
chegar ao fim – e pragmaticamente pelo dever – da criação, os trabalhos artísticos podem ser
Antonio, assustado, vê o querer do regime tomados como filhos dos homens, ainda que
emissivo ser substituído pelo dever, pois se perde metaforicamente. Essa relação de maternidade
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construído por ele e, a seu modo, também afirma do instrumento são dentes afiados de crocodilo,
o mesmo de si e de suas personagens. prontos para lhe devorar os dedos. Em busca de
tratamento, Antonio se submete à psicanálise e
A inserção do texto da HQ a ópera se passa durante as sessões, entre as
no texto da ópera confissões, lembranças e sonhos do protagonista.
No que diz respeito à missividade, no
O modo de inserção d’ O caçador de consultório da psicanalista se estabelece o
crocodilos n’O homem dos crocodilos deve ser contrato fiduciário entre médico e paciente, por
analisado em, pelos menos, quatro níveis de isso, a relação emissiva entre destinador e sujeito
interação semiótica: a inserção semio-narrativa narrativo. No discurso psicanalítico, grosso
e discursiva, em que a HQ ganha pertinência no modo, devem ser proporcionadas ao paciente as
plano de conteúdo da ópera; a inserção textual, condições para que sejam lembrados os
em que a relação entre a expressão e o conteúdo conteúdos reprimidos, considerados as causas de
da HQ é sincretizada com a relação entre a suas neuroses. As lembranças reprimidas tornam-
expressão e o conteúdo da ópera; a inserção se sintomas, cujas curas dependem tanto da
pragmática, em que o objeto de valor HQ ganha recordação consciente quanto do trabalho
dimensões de uso entre os co-enunciadores na durante a psicoterapia.
encenação do espetáculo; a inserção mitológica, Nesse processo, as lembranças assumem
em que a mitologia da criação artística dupla função narrativa: figurativizam o objeto
tematizada na HQ encontra correspondências nos de valor, uma vez que estar em conjunção com
percursos temáticos da ópera. elas leva à cura dos sintomas neuróticos; mas
também figurativizam o valor abjeto, pois vem
– A INSERÇÃO SEMIO-NARRATIVA E DISCURSIVA delas as origens dos distúrbios emocionais. Assim,
nos dramas psicanalíticos, como é o caso d’O
De acordo com a semiótica, vale lembrar, Homem dos crocodilos, o sujeito narrativo oscila
discurso e texto são domínios teóricos diferentes. entre a emissividade da cura e a remissividade
O discurso é formado no plano de conteúdo em do trauma; para se curar, ele deve ir, ao mesmo
operações semio-narrativas e suas colocações em tempo, ao encontro das e de encontro às mesmas
percursos temáticos e figurativos; o texto se recordações.
forma na articulação do plano de conteúdo com Na história de Antonio, há a sensação de
o plano de expressão, manifestando-se em culpa do assassinato da mãe. Através do buraco
sistemas semióticos verbais, não-verbais ou da fechadura, o menino flagra a mãe e o amante,
sincréticos. para depois ver que ambos são assassinados pelo
A inserção semio-narrativa e discursiva, pai. Antonio não se lembra de nada disso; as
portanto, pode ser separada da inserção textual, recordações aparecem confusas, disfarçadas em
para que se verifique como o discurso da HQ condensações e deslocamentos em seus sonhos e
dialoga com o da ópera e passa a fazer parte delírios. Não se lembra, principalmente, de que
constitutiva dele. fora ele a buscar pelo pai, foi ele quem lhe avisou
O Homem dos crocodilos conta a história do adultério. De forma indireta, enquanto delator,
de Antonio, um pianista que não consegue mais Antonio divide com o pai a culpa do crime.
sentir as mãos e desenvolve fobia em relação ao Em sua neurose, há duas relações que devem
piano. Para ele, em suas alucinações, as teclas ser consideradas: sua mãe era violoncelista,
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dividia com o filho o gosto pela música, influen- com sistemas verbais, que cuidam de articular
ciando-o a ponto de determinar sua profissão de falas, gestos, cenário, figurino, iluminação e as
pianista e compositor; enquanto o pai dividia marcações de palco, como na encenação teatral.
com ele as leituras de histórias em quadrinhos, Na ópera, entretanto, a fala aparece sincretizada
em especial, as aventuras do Caçador de com a semiótica da canção e a semiótica musical
Crocodilos. Em delírios, Antonio presencia uma assume aspecto durativo, contrário à
discussão entre os pais, em que a mãe defende a aspectualização pontual, como é mais comum
música e o pai, os quadrinhos. na encenação do teatro.
Desse modo, música e HQ são figurativi- O sincretismo da semiótica plástica na
zações do núcleo da neurose: são figuras que semiótica da ópera, portanto, é diferente de
representam o conflito entre os pais, de como ele funciona sincretizado com o verbal na
resultados trágicos; são figurativizações do semiótica da história em quadrinhos. Estranha à
objeto de valor, uma vez que dão forma às linguagem da ópera, a inserção do texto da HQ
lembranças reprimidas que se pretende alcançar mantém sua especificidade em meio à
durante a terapia; são figurativizações do valor plasticidade da ópera; contudo, por meio da
abjeto, pois vem delas os sintomas que afetam manipulação textual, a HQ, antes figura do plano
Antonio. de conteúdo, torna-se texto nas mãos dos co-
Nesse drama psicanalítico, a HQ d’O caçador enunciadores do espetáculo.
de crocodilos é tomada como mais um Em suas declarações, Antonio relata um
deslocamento dos conteúdos reprimidos e revela sonho em que as notas de uma partitura borrada
para o paciente o trauma que gera suas se transformam em pássaros e levantam vôo.
alucinações e fobias. Nessa perspectiva, a música ganha dimensões
Inserida na narrativa da ópera, a HQ partilha espirituais ao permitir que, por meio dela, haja
com ela a mesma distribuição temática e transcendência. Ao espionar a mãe pelo buraco
figurativa, pois suas personagens são tomadas da fechadura, o menino a vê nua, a cantar
como deslocamentos das personagens da enquanto toca violoncelo, extasiado com a beleza
encenação teatral e, conseqüentemente, da cantora e do canto. Novamente, a música se
participam da mesma crise remissivo vs. emissivo revela da ordem do místico e do transcendente.
geradora do trauma emocional discursivizado. Os quadrinhos, por sua vez, afirmam valores
contrários aos da música. No cenário, atrás do
– A INSERÇÃO TEXTUAL divã, há uma tela branca em que são projetadas
molduras de quadros vazias. Quando o sonho dos
Além de figurativizações da mãe e do pai, pássaros é contado, as molduras se transformam
a música e a HQ são também as principais em asas e voam, fazendo com que a semiótica
linguagens tematizadas em O homem dos plástica afirme o mesmo que é contado na
crocodilos e manifestadas em seu plano de encenação teatral e no canto. Nesse primeiro
expressão. momento, a semiótica plástica está de acordo
No sistema semiótico da ópera, há com os valores transcendentes relacionados à
confluência de sistemas semióticos verbais, semiótica musical.
musicais e plásticos. Em linhas gerais, a Ao falar dos quadrinhos que o pai lhe dava,
figuratividade do plano de conteúdo se manifesta porém, a HQ nos conta a relação de Antonio com
distribuída em sistemas plásticos sincretizados a mãe em termos mais profanos. As mesmas
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molduras, antes vazias, ao invés de se tornarem enunciadores, a dimensão de uso semiótico, que
pássaros, são preenchidas com os quadrinhos da pode ser chamada pragmática.
revista e os quadros se transformam na projeção Na textualização da ópera, faz parte da
da HQ sendo folheada. Trata-se de revelar os fruição do texto todo o aparato que coloca sua
conteúdos libidinosos do menino e de mostrar encenação em movimento. Estudar os textos das
as lembranças reprimidas a propósito da delação óperas em libretos, partituras, ou gravações é
e do assassinato. Em orientação contrária à da sempre uma mutilação de sua forma de
música, a HQ materializa os desejos sexuais e a manifestação integral, em que os co-
culpa do protagonista. enunciadores devem participar da apresentação
Desse modo, a inserção textual da HQ segue do espetáculo, seja como observadores, seja nas
este percurso ao longo do texto da ópera: muitas formas de interação entre palco e platéia,
1) a partir da semiótica plástica que dá propostas pelas escolas de teatro.
forma aos quadros projetados no cenário, o texto Em sua dimensão pragmática, uma ópera não
da HQ se materializa no texto da ópera, mas ainda é portátil, como a música em suas reproduções
são projeções de quadrinhos no cenário da peça. mecânicas e eletrônicas, ou as histórias em
2) antes da lembrança de Antonio se revelar quadrinhos, em suas reproduções gráficas.
completamente, as luzes se apagam e Arrigo Quando Antonio, durante a terapia, mostra
Barnabé – um dos narradores cantores – entra para a analista uma reprodução do gibi O caçador
no palco com uma lanterna acesa e a revista em de crocodilos, comenta que ele é real, que existe
quadrinhos nas mãos. Pede que se acendam de fato, que o gibi se pode folhear, pode-se tocar.
também as luzes da plateia e todos leem juntos Quando Arrigo lê com a platéia o mesmo texto e
O caçador de crocodilos, que aparece sincretizada ele se reproduz materialmente entre os co-
com a semiótica musical, na mesma técnica de enunciadores, o apresentador diz as mesmas
composição utilizada em Tubarões voadores. palavras do protagonista da ópera: que a HQ
3) por fim, o texto da HQ se materializa existe, que pode ser tocada.
das projeções do cenário para as mãos e os olhos Essa inserção pragmática entra em relação
dos co-enunciadores do espetáculo. Nesse com o texto da ópera em, pelo menos, duas
momento, a inserção textual desencadeia a instâncias semióticas: ela está de acordo com a
inserção pragmática e as dimensões de uso do relação espiritualização da música vs.
objeto HQ ganham pertinência nos efeitos de materialização dos quadrinhos no que diz
sentido d’O homem dos crocodilos. respeito a sua inserção narrativa e discursiva; ela
prepara a etapa final da inserção textual da HQ.
– A INSERÇÃO PRAGMÁTICA Lida por Arrigo, o texto dos quadrinhos ainda
aparece sincretizado com o texto musical que a
Ao ser definido entre os planos de conteúdo acompanha, entretanto, uma vez que o gibi
e expressão, o texto não se limita a ser uma rede permanece pragmaticamente com os co-
de correlações de categorias entre ambos. A forma enunciadores depois do espetáculo, a leitura
da expressão, além de configurar uma rede de conjunta prepara a singularização do texto da
relações entre categorias próprias e de manifestar HQ e a semiótica específica de seu tipo de texto
relações entre elas e as categorias semânticas do surge isolada do texto integral da ópera.
conteúdo, garante, na construção do texto A seu modo, os quadrinhos de Luiz Gê
enquanto objeto de circulação entre os co- colocam em crise os limites da encenação teatral
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e os limites da própria ópera. Ao singularizar a Antonio – Não sinto minhas mãos, tenho
semiótica dos quadrinhos no final e depois do medo que ele me corte os dedos.
espetáculo, a HQ termina a encenação da ópera Psicanalista – Quem é ele?
ao mesmo tempo em que dá continuidade a ela. Antonio – Não sei... às vezes as palavras
Singularizada, sua semiótica põe fim à semiótica vão aonde querem e a gente se perde nelas...
da ópera, substituindo um tipo de texto por
outro, mas mantém sua continuidade na medida Dono da fala, Antonio se perde nela como
em que faz parte do texto integral da ópera se o menino se perde na HQ. Criador de seu discurso,
desenvolver assim. o paciente não deixa de perceber o quanto suas
Encaminhada pela inserção narrativa e palavras se tornam criatura, a ponto de gerar o
discursiva, a materialização do texto da HQ próprio Antonio e seus sentidos e manipulá-lo
cumpre seu papel textual e pragmático na de acordo com elas.
semiótica geral d’O homem dos crocodilos, que O outro processo de inserção mitológica
determina o sincretismo entre a linguagem da está relacionado com as inserções textual e
ópera e a da história em quadrinhos. pragmática. Uma vez materializado entre os co-
enunciadores do espetáculo, o texto da HQ ganha
– A INSERÇÃO MITOLÓGICA sua autonomia e afirma sua singularização,
mostrando que HQ e opera não têm o mesmo
Do mesmo modo que a HQ oscila entre estatuto semiótico.
ser criação, obra do autor, e criatura, obra à Ao permanecer enquanto objeto que “se
revelia dele, há na ópera, no mínimo, dois pode folhear, que se pode tocar” à revelia do
processos que se encarregam de gerar o mesmo final do espetáculo, a HQ, antes parte da ópera
efeito de sentido e de promover a inserção da e sob seus domínios textuais, adquire seus
mitologia da criação artística tematizada n’O próprios domínios semióticos e passa a gerar a
caçador de crocodilos na mitologia geral do ópera a partir de si mesma.
espetáculo. Dispersa entre os co-enunciadores, a HQ,
Um dos processos diz respeito aos percursos antes objeto das personagens, torna-se objeto
temáticos e figurativos d’O homem dos croco- de todos. Enquanto objetos semióticos criados
dilos. No decorrer da ópera, Antonio busca ajuda pelo texto da ópera desde as projeções no palco
com dois psicanalistas: uma mulher, sua analista até a leitura coletiva e sua multiplicação e
ao longo do texto; um homem, na última cena, dispersão finais, os textos da HQ – como as
depois da leitura da HQ. Em ambas as cenas, o palavras de Antonio – tornam-se criaturas, vão
diálogo entre médico e paciente é o mesmo: aonde querem e a ópera se perde neles.
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7. HISTÓRIA EM QUADRINHOS E ESCULTURA
Em 20 de janeiro de 2007, no espaço Para dar uma ideia aproximada desse seu
Calligraphia, na cidade de São Paulo, Claudio Rocha trabalho, está reproduzida, nas páginas seguin-
organizou a exposição Manequim arte, na qual, tes, uma versão dele, publicada na revista O
conforme sua proposta, manequins femininos ser- mundo de Playboy (edição 398-B, Abril, 2007:
viriam de base para a intervenção de vários artistas. pp. 31-37), com fotos de Gustavo Lacerda.
Entre eles, Luiz Gê desenhou, sobre o corpo de uma
delas, a história em quadrinhos da “Borba Gata”.
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integridade, ameaçada pelo fazer do rato especificamente com a inimiga mais famosa do
inimigo. Já o fazer remissivo, realizado na relação Batman, a Mulher Gato, e com todo o imaginário
sujeito-antissujeito, aparece nos percursos do erótico de dominadora sadomasoquista que, nas
rato sobre o corpo da heroína e na afirmação dos últimas versões cinematográficas da personagem, por
valores da transgressão. meio de chicotes, garras e roupas de couro, enfatizou
Na HQ da “Borba Gata” o emissivo resiste traços já presentes em suas versões mais antigas.
ao remissivo, visto que ela termina por expulsar Essas duas interdiscursividades – com as
o ratinho invasor, pelo menos, na leitura pelejas entre gato e rato e com os super-heróis –
bidimensional dos quadrinhos, que, a seu modo, garantem a tematização metalingüística
orienta a leitura de cima para baixo, da esquerda articulada com a tematização prática do assédio
para a direita, de frente para trás, de acordo com sexual, pois se trata de dar forma a uma figurati-
a posição ereta do corpo do manequim. vidade em que os quadrinhos tematizam os
Regidos pela emissividade e na tensão em próprios quadrinhos.
que se realiza a categoria semântica integridade Aludindo a outros quadrinhos, de outras
vs. transgressão, o tempo surge na HQ acelerado personagens e de outros autores enquanto
nas defesas que Borba Gata faz do corpo e nas mulher-gata, que persegue um ratinho, a Borba
investidas do rato; e o espaço se abre ao longo Gata também se refere a outros quadrinhos e a
dos braços, das pernas, do colo, do ventre, das outras personagens do próprio Luiz Gê.
costas da heroína. Seduzido pelos monumentos históricos da
Sobre o fazer missivo, articulam-se as cidade de São Paulo, Luiz Gê costuma, ao lado
relações entre temas e figuras, formadas na de iconizá-los na espacialização de numerosas
semântica discursiva. histórias em quadrinhos, como “Gino Amleto
No que diz respeito à tematização prática, Meneghetti”, “Vôo Cego” e, em especial, na
há a colocação em discurso da peleja entre a “História da Avenida Paulista”, também costuma
gata e o rato. Geralmente determinada pela transformá-los em pessoas do discurso, como em
categoria semântica vida vs. morte – como nos “Entradas e Bandeiras”, em que as estátuas do
casos citados de Tom e Jerry, Plic, Ploc e Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret,
Chuvisco, em que o gato é predador do rato; ou do Parque do Ibirapuera, e o Borba Gato, da
nos casos de Comichão e Coçadinha, Squeak the Avenida Santo Amaro, ganham vida e atravessam
mouse, Ignatz Mouse e Krazy Kat, em que o a Avenida Brasil em seu cruzamento com a
sadismo do rato vai de encontro à tontice do Avenida Brigadeiro Luís Antonio. A Borba Gata,
gato – esse tipo de peleja ganha, em Luiz Gê, estátua no corpo do manequim e personagem da
além de uma determinação semântica diferente, HQ desenhada sobre ela, dialoga com a estátua
formada pela categoria semântica integridade vs. do Borba Gato, evidentemente, mas também com
transgressão, uma determinação erótica, em que o Borba Gato de Luiz Gê, que como a Borba Gata,
o rato assedia sexualmente a gata. é uma estátua que ganha vida e movimento
Outra diferença reside no delírio figurativo, em quando se torna personagem dos quadrinhos.
que o gato é uma mulher vestida de gata e o rato é A interdiscursividade com personagens e
um animal personificado. Desse modo, ao lado da quadrinhos estrangeiros, portanto, dialoga com
interdiscursividade com as perseguições clássicas os quadrinhos e a cultura brasileira, mais
entre os animais, há interdiscursividade com as especificamente, com a cultura paulistana e a
histórias em quadrinhos de super-heróis, obra do autor.
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Análise textual da história em quadrinhos
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Antonio Vicente Pietroforte Luiz Gê
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BIBLIOGRAFIA
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